UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTU SENSU DOUTORADO EM LETRAS MARLEIDE SANTANA PAES

December 6, 2022 | Author: Maria do Mar Alcaide Porto | Category: N/A
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1 UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTU SENSU DOUTORADO EM LETRAS ...

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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTU SENSU DOUTORADO EM LETRAS

MARLEIDE SANTANA PAES

O MUNDO MEDIEVAL RECRIADO: O ―Sertão profundo‖ de Elomar Figueira Mello

São Paulo 2016

MARLEIDE SANTANA PAES

O MUNDO MEDIEVAL RECRIADO: O ―Sertão profundo‖ de Elomar Figueira Mello

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie, como exigência para a obtenção do título de doutora em Letras.

ORIENTADORA: Profa. Dra. Glória Carneiro do Amaral

São Paulo 2016

P126m

Paes, Marleide Santana. O mundo medieval recriado: o ―Sertão profundo‖ de Elomar Figueira Mello / Marleide Santana Paes. – 2016. 241f. Il. Tese (Doutorado em Letras) - Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2016. Bibligorafia: f. 227-234. 1. Homem. 2. Sertão. 3. Religiosidade. 4. Fantástico. 5. Memória. I. Título.

CDD869. 93

À mainha, Marinalva Pereira de Santana (in memorian)

AGRADECIMENTOS A Deus, único Senhor da minha existência. À Universidade Presbiteriana Mackenzie- UPM - Programa de Pós-Graduação em Letras, pelo custeio da bolsa integral. A minha orientadora, professora Drª. Glória Carneiro do Amaral pela disponibilidade e apoio nos momentos de orientação. À coordenadora do curso, professora Drª. Ana Lúcia Trevisan Pelegrine pela competência e dedicação na coordenação do Programa de Pós-Graduação do curso de Letras. Aos outros professores do doutorado, grande parte das discussões durante as disciplinas foram úteis para ampliar o meu conhecimento acerca do objeto estudado. A meu pai Romeu Porto de Santana e à minha mãe Marinalva Pereira de Santana (in memórian). Eles sempre foram meus grandes incentivadores. Nunca deixaram de me ensinar que a melhor escolha que alguém pode fazer pra vencer na vida é estudar, ter dignidade e persistência. Ao meu esposo Miquéias Meira Paes pelo apoio, não apenas o financeiro, mas, sobretudo, o incentivo moral, a demonstração de afeto expressa na vontade de estar ao meu lado em todas as etapas do curso. Sem o seu amplo apoio, sei que não teria conseguido. Por compreender minhas ausências nas programações sociais, nas festinhas da família, porque precisava terminar a leitura de um capítulo de um livro. Aos meus filhos Tiago e Dilson Júnior pelo incentivo que me deram, mesmo quando precisaram ―abrir mão de minha presença‖ para eu me dedicar mais aos estudos.

Por

sempre

acreditarem

que

eu

conseguiria,

por

expressarem

publicamente, o orgulho que têm de mim, pelo meu esforço e minha dedicação aos estudos. Aos meus irmãos Robson Santana e Roanderson Santana, a minha irmã, Maria de Lourdes, aos meus sobrinhos, sobrinhas, cunhadas e cunhadas pelos constantes incentivos. As minhas enteadas Nayane e Nataly pela hospitalidade com que me recebiam em suas casas.

Ao professor Gilson Rodrigues Bonfim pelo grande incentivo que me deu para eu me tornar uma pesquisadora da obra de Elomar Figueira Mello. Pelo material teórico que me indicava para as leituras. Pelas inúmeras conversas informais. Em cada uma delas, eu compreendia muito mais o Sertão Profundo de Elomar. A professora Dárley Leite pela disponibilidade para as conversas a respeito de Sertanílias e pelos inúmeros empréstimos de materiais para pesquisa e a tradução do resumo. Aos demais colegas do Colégio Estadual do Juvêncio Amaral sempre me encentivando e alegrando-se com as minhas vitórias. Ao meu ex-aluno Robson Feres, agora Professor de Filosofia, pelas traduções das expressões em latim. À Fundação Casa dos Carneiros por mediar um ―bate papo‖ informal entre mim e o autor Elomar Figueira Mello. Aos professores membros da Banca de Qualificação. Todas estas pessoas colaboraram direta ou indiretamente para que mais este projeto profissional fosse realizado com êxito em minha vida.

O homem é a antena receptora de Deus, da caatinga, da chuva, do ar. Absorvo emoções que talvez venha de estrelas remotas e as reflito. Elomar Figueira Mello

RESUMO Esta pesquisa propõe-se analisar o primeiro romance do escritor Elomar Figueira Mello, Sertanílias - Romance de Cavalaria publicado em 2008, com as seguintes finalidades: compreender a abordagem que ele faz das matrizes medievais e avaliar a reconfiguração de sua narrativa a partir do referente, o sertão baiano, especificamente as regiões conhecidas como ―Sertão da Ressaca‖ e o Médio São Francisco. As discussões desenvolvidas pautaram em duas hipóteses: os ciclos de narrativas medievais, ainda presentes nas tradições de cunho oral e, por conseguinte, na memória coletiva do sertanejo foram reconstruídos no referido romance e incorporados às lendas locais; o cavaleiro medieval é recuperado na construção idealizada da figura do protagonista. Para tratarmos dos elementos operantes no processo de substituição do foco narrativo por um roteiro cinematográfico, buscamos apoio nas considerações de Alfredo Carvalho acerca do foco narrativo, e no que tange aos princípios fundamentais do cinema, consideramos os conceitos de Jean-Claude Bernardet. Sobre as pesquisas concernentes aos aspectos fantásticos presentes na obra, pautamo-nos em pressupostos teóricos dos autores Tzvetan Todorov, Irlemar Chiampi, Selma Calasan Rodrigues, Ana Luiza Camarani. Com vistas a apreendermos o grau discursivo do fantástico recorrente no romance e averiguamos os aspectos estruturais e semânticos do campo argumentativo da obra, norteados pela pergunta: como o autor potencializa as crenças e culturas do sertanejo a partir de uma abordagem fantástica? Demarcamos como objetivo de pesquisa: a) perceber a maneira como Elomar constrói a linguagem fantástica se apropriando do referencial do sertão. b) entender o modo pelo qual as personagens situam-se no sertão físico e no sertão mítico medieval proposto na tessitura narrativa. c) evidenciar os vieses argumentativos adotados pelo o autor no processo de elaboração da linguagem sertaneja. d) apreender os procedimentos adotados pelo autor quando da construção do conceito de sertão e de sertanejo no sentido fictício. A respeito dos aspectos metodológicos, recorremos à pesquisa bibliográfica entrevistas, coletas de jornais, em livros, periódicos, artigos, e vídeos, entrevista com próprio autor1; fontes das quais trazem uma quantidade considerável de informações para enriquecer as discussões propostas nesta pesquisa.

Palavras-chave: Fantástico. Homem. Memória. Religiosidade.Sertão.

1

Durante o período de coleta de dados, tive o privilégio de ter uma conversa informal com Elomar Figueira Mello, lá na Fundação Casa dos Carneiros. Este encontro foi mediado pelo sociólogo Gilson Rodrigues Bonfim. Na ocasião, não foi permitido que nenhum trecho da conversa entre mim e o autor de Sertanílias fosse registrado. Há muitos anos, Elomar não concede entrevistas e também não permite que ninguém o fotografe.

ABSTRACT

This research proposes to analyze the first novel by Elomar, Sertanílias - Cavalry Novel published in 2008, for the following purposes: to understand the approach that it is the medieval foundations and evaluate the reconfiguration of its narrative from the referent the Bahian backlands, specifically the regions known as "hinterland Surf" and the Middle San Francisco. Developed discussions were based on two assumptions: the cycles of medieval narratives, still present in the traditions of orality and therefore in the collective memory of the frontiersman were reconstructed in that novel and incorporated into local legends; the medieval knight is recovered in idealized construction of the protagonist figure. To treat the operating elements in the process of replacing the narrative focus for a screenplay, we seek support in Alfredo Carvalho considerations about the narrative focus, and respect the fundamental principles of movie theater, consider the concepts of Jean-Claude Bernardet. About the research concerning the fantastic aspects present in the work, we rely on theoretical assumptions of the authors Tzvetan Todorov, Irlemar Chiampi, Selma Calasan Rodrigues, Ana Luiza Camarani. In order to apprehend the discursive level of recurring fantastic in the novel and ascertained the structural and semantic aspects of argumentative field of work, guided by the question: how the author potentiates the beliefs and backcountry cultures from a fantastic approach? We defined the objective of research: a) realize how Elomar builds fantastic language appropriating the backwoods of reference. b) understand how the characters are in the physical hinterland and medieval mythical hinterland proposed in the narrative structure. c) show the argumentative bias adopted by the author in the preparation of country language process. d) learn the procedures adopted by the author during the construction of the concept of hinterland and backcountry in the fictional sense. Regarding the methodological aspects, we turn to literature interviews, newspaper collections, books, periodicals, articles, and videos, interview with the author; sources of which bring a considerable amount of information to enrich the discussions proposed in this research.

Keywords:Fantastic.Man. Memory.Religion.Interior.

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Brasão....................................................................................................... 64 Figura 2 - Os Retirantes de Candido Portinari......................................................... 131 Figura 3 - LP Fantasia leiga para um rio seco, 1981. .............................................. 133 Figura 4 - O romance .............................................................................................. 232 Figura 5 - Imagem de Sertano e do seu cavalo alado Russo Pombo ..................... 232 Figura 6 - A Cobra Grande ...................................................................................... 232 Figura 7 - Russo Pombo ......................................................................................... 232 Figura 8 - A viola da morte. Intertexto com o Auto da Catingueira .......................... 233 Figura 9 - A história do carpinteiro que enganou o Diabo ....................................... 233 Figura 10 - A mulher estranha ................................................................................. 233 Figura 11 - Convite para o Concerto Elomar Cancioneiro. O evento foi promovido pela Caixa Cultural, entre os dias 10 e 12 de Janeiro de 2014, na Praça da Sé, em São Paulo .................................................... 233 Figura 12 - Estandarte da Festa do Divino na cidade de Poções no Estado da Bahia ...................................................................................................... 234 Figura 13 - Encenação do Auto da Catingueira combonecos manipulados ............ 234 Figura 14 - Encenação do auto. Canto V- Da Viola da morte ................................. 234 Figura 15 - A caipora encenação do auto ............................................................... 234 Figura 16 - Partitura do Auto da Catingueira e encenações com atores ................. 235 Figura 17 - Elomar................................................................................................... 235

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .............................................................................................. 13 1

SERTANÍLIAS - ROMANCE DE CAVALARIA: O PORTAL PARA O SERTÃO PROFUNDO ................................................................................... 16

1.1

RUSSO POMBO: O CAVALO DA FICÇÃO SERTANEJA.............................. 18

1.2

O ESPAÇO E O TEMPO EM SERTANILIAS ................................................. 21

1.3

A GÊNESE ARTÍSTICA DO AUTOR............................................................. 25

1.3.1 O olhar artístico de Elomar.......................................................................... 31 1.4

O BERÇO GEOGRÁFICO DE ELOMAR........................................................ 36

1.5

O SERTÃO É UMA PÁTRIA ............................................................................ 39

1.5.1 O sertão sob outro ponto de vista ............................................................... 44 1.5.2 Do primitivo ao (in) civilizado ....................................................................... 46 2

AS RELAÇÕES TRANSTEXTUAIS EM SERTANÍLIAS ................................ 56

2.1

A CAPA: UMA LEITURA ICONOGRÁFICA ..................................................... 60

2.2

OS ELEMENTOS INTEGRANTES DO BRASÃO ........................................... 63

2.3

O BRASÃO COMO LUGAR DE MEMÓRIA .................................................... 69

2.4

AS TRANSPOSIÇÕES ICÔNICAS EM SERTANÍLIAS ................................... 74

2.5

O HERÓI MÍTICO RECUPERADO NO VAQUEIRO ....................................... 81

2.6

A TRAVESSIA DO SERTÃO PROFUNDO: DO HORRENDO AO LUGAR AMENO........................................................................................................... 85

2.7

SERTANÍLIAS: A EPOPÉIA DO SERTÃO ...................................................... 89

3

A CONSTRUÇÃO DA FICÇÃO EM SERTANÍLIAS ...................................... 100

3.1

ANÁLISES DE ALGUMAS PERSONAGENS ................................................ 104

3.2

A ENIGMÁTICA FIGURA DO CANOEIRO .................................................... 119

3.3

O DIÁLOGO DE ELOMAR COM OUTROS SERTÕES E OUTROS SERTANEJOS .............................................................................................. 122

3.4

O SERTÕES: ―TERRA IGNOTA‖, TERRA DOS DESPATRIADOS ............. 125

3.5

―VELHO CHICO‖: UM ÍCONE DO SERTÃO ................................................ 127

3.5.1

Lembranças de um astro tirano ............................................................... 133

3.6

DA CATINGUEIRA: SUA ORIGEM, SUA LABUTA, SEU PIDIDO .............. 140

3.6.1

Bespa.......................................................................................................... 141

3.6.2

Os (en) cantos da catingueira .................................................................. 145

3.7

DAS VIOLAS DA MORTE: O CÓDIGO DE MACHEZA NO SERTÃO.......... 152

4

O REFERENTE E O IMAGINÁRIO SOB O FIO DA NAVALHA .................. 160

4.1

PERCURSOS HISTÓRICOS DO FANTÁSTICO ......................................... 162

4.2

O FANTÁSTICO NA LITERATURA DA AMÉRICA LATINA ......................... 165

4.3

A ESCRITA FANTÁSTICA E SUAS VERTENTES NA OBRA DE ELOMAR....................................................................................................... 169

5

O TEMPO NA CONSTRUÇÃO DA HISTÓRIA E DA TRAMA DE SERTANÍLIAS .............................................................................................. 178

5.1

A CÂMERA E O ROTEIRO .......................................................................... 180

5.2

O OLHAR CINEMATOGRÁFICO DO AUTOR ............................................. 182

5.3

O FOCO NARRATIVO EM XEQUE.............................................................. 183

5.4

A ONISCIÊNCIA NARRATIVA NO ENREDO .............................................. 185

5.5

O FOCO NARRATIVO EM SERTANÍLIAS .................................................. 188

5.6

A EXPRESSÃO CONCEITUAL DO AUTOR ............................................... 191

5.7

O DISCURSO RELIGIOSO DE SERTANO ................................................. 195

6

AS RECORRÊNCIAS DO DUPLO NA CONSTITUIÇÃODATRAMA ......... 203

6.1

O DUPLO: A EXTENSÃO DO SUJEITO DESDOBRADO........................... 207 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................ 214 REFERÊNCIAS ........................................................................................... 223 ANEXOS ...................................................................................................... 231 ANEXO A - Registro de obras de Elomar Figueira Mello .............................. 232 ANEXO B - Letras de músicas de Elomar Figueira Mello ............................. 236

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INTRODUÇÃO

O romance Sertanílias é um misto de linguagem popular e erudita. Elomar Figueira Mello opta pela construção textual que apresenta a linguagem erudita por um lado, e, por outro evidencia na fala de algumas de suas personagens iletradas um dialeto muito próprio das regiões em que, de início a narrativa tem seu referente, a saber, o ―sertão da ressaca‖ e o Médio São Francisco. A identidade pouco clara sobre algumas de suas personagens dão à narrativa um tom mítico. Santos, demônios ou meros seres humanos? Quem são as personagens de Sertanílias? O primeiro romance de Elomar publicado em 2008 é composto por 14 capítulos. As ações de alguns personagens seguem o modelo da conduta medieval e cavaleiresca, os duelos entre o bem e o mal são dotados de caráter mítico e também simbólico, elementos que apontam a trama para um ideário cristão, cujo objetivo é levar a salvação a todos os perdidos que vivem sob a ―régula do mundo‖. Ao criar esta obra, o autor pretendia construir um roteiro de cinema; posteriormente, tal projeto foi substituído transformando-o em romance. Preservou, todavia o roteiro intercalado à narrativa. A inserção do roteiro, e também a inclusão de entrevistas no corpo da narrativa criaram características bem peculiares a este romance. O ―Sertão Profundo‖ é o ―outro lado da moeda‖ do sertão político-geográfico. Sertanílias é um mundo cujo cotidiano enrosca-se ao sobrenatural, sem com isso criar uma situação aterradora; antes, o romance inscreve-se em um universo ficcional onde o sertanejo e as ―livusias‖ convivem harmoniosamente. Em termos gerais, podemos dizer que a referida obra é composta por duas linhas tênues: uma em cujo espaço físico é concebido dentro de certa disposição espacial lógica e temporal dedutível, ou seja, cronologicamente identificável, outra em que o espaço é mítico, atemporal e ambíguo. Estas linhas imperceptíveis são a conexão que cria as condições de possibilidades da captação não só do elemento histórico, mas também do cultural e do sagrado no âmago da narrativa. Sendo assim, a construção argumentativa transita sem aviso prévio entre o real e o suprareal, de modo que é possível percebe a potencialização do fantástico não apenas nos elementos concernentes à História, mas também à cultura, aos costumes e às crenças do povo sertanejo. A narrativa transcorre a partir de uma organização textual favorável ao entrelaçamento constante de tais elementos. Em entrevista concedida em 2003, quando indagado sobre o processo de

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criação do roteiro de cinema, o autor cita a elaboração de Sertanílias e explica este projeto literário que só será concretizado, como sabemos, em 2008:

Já escrito tenho o Sertanílias, onde tem um personagem chamado Sertano. A câmera nunca pega seu rosto, ele está sempre de perfil, é um anti-herói, uma figura ética que viaja pelos sertões. Ele anda a cavalo, calça botas, tem uma pistola e porta um facão, mas a grande arma dele é a palavra, seu discurso passa por todo o conhecimento histórico do homem. Trabalho entre a ficção e a realidade: na abertura tem cinco jornalistas que me entrevistam sobre minha obra e vida. Após cada pergunta/resposta, escorrega para Sertano, viajando por meus personagens; indo e vindo. É 20% de realidade e 80% de imaginário. (LOUREIRO, 2003, [s.p.]).

Elomar tece severas críticas ao cinema brasileiro. Sob sua ótica, nada mais é que imitação dos ―americanos‖, desse modo, opta por construir seus roteiros. Na mesma entrevista, o autor enfatiza o potencial temático que o Brasil tem para transformar suas próprias histórias de batalhas em filme: ―O que tem de entradas e bandeiras, revoluções, Guerra dos alfaiates, levantes do Maranhão, investidas dos ingleses e holandeses, cada história dessas dá um roteiro belíssimo‖. Reconhece que seus roteiros falam de algo muito além da realidade: ―meus roteiros são utópicos‖, mas isso não os impedem de ser um roteiro ―protesto‖ contra as produções cinematográficas contemporâneas. No decorrer da entrevista, nem o cinema brasileiro é poupado de suas críticas: ―Faço um anti-cinema. Tenho asco às propostas atuais, acho os cineastas brasileiros tudo um bando de copistas dos americanos - pelo menos o que já chegou até a mim.‖ (LOUREIRO, 2003, [s.p.]). Ciente de que uma produção cinematográfica no Brasil é algo que requer muito dinheiro, na época que escreveu o roteiro de Sertanílias, Elomar decidiu transformálo em romance; preocupa-se, contudo que seu projeto original seja adulterado, se alguém, no futuro interessar-se em levá-lo para o cinema. Comenta a este respeito:

Sertanílias vai sair em formato de livro. Já estou dando 40 cenas principais para Orlando Celino, um artista plástico de Conquista, desenhar a bico de pena. Porque todas as cenas do meu filme eu desenho a lápis, com todos os posicionamentos de câmera. Para quem vier filmar não ficar inventando! Assim, quem dirigiu fui eu, mesmo pós-mortem. Se der certo em formato de livro, vou publicar os outros também. (LOUREIRO, 2003, [s.p.], grifo nosso).

Sertanílias é composto por personagens que emergem não apenas de um

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espaço prosaico, mas também, de territórios que povoam o imaginário popular nos ritos e na cultura do povo sertanejo nordestino. Assim, vaqueiros, caçadores, andarilhos, tropeiros, retirantes relacionam-se sem nenhum embaraço a seres de identidade humana duvidosa. Ao tempo em que, serras, riachos e lagoas, rios imbricam-se a ambientes míticos que não têm nenhuma referência espacial com a geografia do sertão. Estes são alguns dos recursos frequentemente utilizados por Elomar para a composição de seu universo ficcional; um mundo que nos instiga a conhecer os mistérios que perscrutam as entranhas não só do solo, mas também do imaginário sertanejo permeado de seres ambivalentes, criaturas envoltas por uma ―aura de mistério‖. A constituição da trama inscreve-se em uma espécie de mundo paralelo em que tudo ou quase tudo é possível de se concretizar, mas que quase nada é comprovado pelos vieses da razão. De posse desta constatação, ratificamos um princípio básico apontado por Todorov a respeito do texto fantástico: a ambivalência será sempre a condição imprescindível para a aparição do evento fantástico. A ambiguidade é marca constante em Sertanílias. Como veremos no decorrer da análise dos outros capítulos, as ações das personagens são em alguns momentos regidas pelo dúbio, ou seja, começam por um ato corriqueiro e, abruptamente, passam a uma ação irrealizável do ponto de vista da razão. Os diálogos também são revestidos de pensamentos reticentes, de uma frase interrompida aqui, de respostas inacabadas acolá. Toda a ordem narrativa parece ser forjada em diálogos intrigantes, sobretudo, aqueles relativos à identidade das personagens. Para melhor exposição das análises dos dados coletados, optamos por dividir a tese em seis capítulos. Cada um deles traz pontos que consideramos mais complexos para a compreensão da obra. Desse modo, seguimos alguns passos, assim resumidos: investigamos como o autor explora os elementos culturais sertanejos em sua obra; analisamos o processo de recuperação da figura do cavaleiro medieval; ressaltamos quais são os recursos que utiliza para a reapropriação do cavaleiro andante da Idade Média, a partir daconstrução do protagonista; analisamos os elementos pretextuais, especialmente, a capa e o título; observamos a apropriação que o autor faz do fantástico; investigamos o processo de substituição do foco narrativo por um roteiro de cinema e por uma câmera cinematográfica, e, por fim, averiguamos a recorrência do duplo na construção da obra. Adentremos, pois as paragens do sertão profundo de Elomar Figueira Melo!

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1 SERTANÍLIAS - ROMANCE DE CAVALARIA: O PORTAL PARA O SERTÃO PROFUNDO

Eu desci na estação completamente errada. Não me sinto bem nessa galáxia. Elomar Figueira Mello (1979)

A personagem protagonista do romance é Sertano, um nobre e destemido vaqueiro. A origem e o percurso dele até chegar (ou regressar) ao sertão não é algo que esteja explícito na narrativa. Em termos gerais, podemos dizer que além de ser um vaqueiro culto, leitor de Virgílio, Flaubert e Herculano, ele é também um guerreiro hábil, munido de ―uma pistola de pirata e um facão cimitarrado‖. Na Prefala, é posta a justificativa da construção de Sertanílias: o mundo politico-geográfico é insuficiente para abarcar o mundo mítico do sertão. A diegese da obra trata dos grandes feitos do povo sertanejo representado na figura austera de Sertano. Suas andanças não têm ―eras‖ demarcadas. Rico senhor de terras infinitas e proprietário de ―rebanhos incontáveis, garimpeiro e possuidor de diamantes verdes e azuis‖, o vaqueiro culto tem uma missão: cruzar o ―Sertão Profundo‖ para libertar seus irmãos Zurai e Urano: ―dois vaqueiros valentes armados de capa e facão‖. Outrora, estes foram vendidos como escravos depois de derrotados em um combate. O referencial narrativo é construído em um ambiente cujos acontecimentos oriundos do círculo socioeconômico, cultural e religioso parecem familiar à realidade do protagonista, desde os tempos em que ninguém se preocupava em demarcar a passagem do tempo. Conforme dissemos, o fio condutor da trama é a busca do vaqueiro pelos irmãos. Nada o intimidará, de sorte que todos os percalços pelos quais há de passar serão eliminados, a fim de que seu propósito seja cumprido. Como notaremos, no decorrer da análise, as ações das personagens são em alguns momentos regidas por acontecimentos que fogem à razão. Os diálogos são revestidos de pensamentos reticentes, de uma frase interrompida aqui, de respostas inacabadas acolá. Durante sua jornada, procura saber notícias de seus irmãos. No trecho que se segue, Sertano encontra um retirante, este também se perdeu do irmão tempos atrás, e desde então, peregrina, miseravelmente, pelo sertão na esperança de encontrá-lo: ―condo minin‘ eu fui tropêro/ Qui mim perdi de meu irirmão/ ₢ampiei o sertão intero/ Percurando, meu patrão‖ (MELLO, 2008, p. 48)

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O andarilho do sertão indaga a presença de um ―nobre vaqueiro‖ por aquelas paragens ermas. Segue o diálogo entre ambos:

[...] atravesso o sertão À procura dos meus manos São dois vaqueiros valentes Armados de capa e facão A que encima o gibão Por um acaso nos os viu? - Iôr não, ieu num vi não. Só dô nutiça dua festa Qui dêxei lá atrais, patrão Quem sabe passano pruesta Num incronta tieu irimao! (MELLO, 2008, p. 49).

Conforme podemos verificar no trecho acima citado, o retirante não afirma têlos visto, não obstante sugere que Sertano procure-os em uma festa. Até então, a pista mais concreta que o vaqueiro possuía sobre ambos foi fornecida por uma enigmática figurada, Ôra, que analisaremos, posteriormente quando tratarmos da construção das personagens do romance. Ela o instrui como proceder na busca pelos cativos. Cito parte do conselho: ―Os teus irmãos estão muito longe, apressa-te, pois, o país de Ofir demora em antiqüíssimas terras de Suleiman. Vá sempre rumo ao norte.‖ (MELLO, 2008, p.42). A primeira referência sobre a aventura que o protagonista irá enfrentar, bem como, a sua causa aparece na página 21, conforme o fragmento a seguir: ―Vou para libertar meus irmãos que sendo vencidos em combate, foram vendidos como escravo em terras distantes, longe muito além das terras de Ofir‖ (MELLO, 2008, p. 21). Desde o momento em que soube dos sequestro dos irmãos, o cavaleiro segue seu propósito de libertá-los. Na travessia pelo sertão profundo passa por lugares horrendos e estabelece contatos com seres estranhos, cujas atitudes muito destoam de maneiras humanas. Isso tudo ao lado de seu cavalo, Russo Pombo. À medida que se desenrola a narrativa, a figura de Sertano configura-se como a de um ser provido de identidade cronologica não demarcada; um cavaleiro que, na garupa de seu cavalo alado, é transportado por eras imprecisas no sertão profundo. Ao cruzar este território, convive com seres de outras épocas, sobrepostas à era em que ele se encontra, de modo que, isso gera uma espécie de ―espelho do tempo‖ refletindo civilizações antigas a partir de imagens ―retardadas‖. O sertão profundo

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encontra-se neste espaço. Perante a perplexidade de seus companheiros de viagem, a respeito das cenas confusas presenciadas por eles, Sertano explica o mistério: ―estas hordas de cavaleiros que encontramos podem ser imagens de coisas reais que passaram há quinhentos, mil ou dois mil ou mais anos.‖ (MELLO, 2008, p. 157). É importante notar a presença da expressão modalizadora ―pode ser‖. Ela gera a ambiguidade da ação desenvolvida. As personagens presenciam a passagem de cavaleiros estranhos ao seu tempo, mas Sertano diz: ―podem ser‖ coisas passadas. Na construção da sentença, ele nem afirma e nem desmente as hordas de cavaleiros como ações pretéritas, apenas sugere ser simulacros de realidades acontecidas em outras eras, e só agora refletidas no tempo em que eles (Sertano e seus companheiros) estão situados. Sendo assim, à proporção que Sertano busca o resgate dos irmãos, mais mistérios testemunha no ―sertão profundo‖. A própria cavalgadura do vaqueiro, Russo Pombo, é um animal misterioso: trata-se de um cavalo voador. Tal constatação fica clara no trecho em que Sertano recusa-se a carregar uma donzela consigo: ―Russo Pombo é alado. Se vais na garupa, ele não poderá abrir as asas‖ (MELLO, 2008, p. 22). Conforme veremos no tópico subsequente a esse, no decorrer da narrativa, não saberemos maiores detalhes sobre este cavalo, muito menos sobre a origem de seu nome.

1.1 RUSSO POMBO: O CAVALO DA FICÇÃO SERTANEJA

Em toda a travessia que Sertano faz do sertão profundo, rumo ao cativeiro, seu cavalo acompanha-o. No entanto, no decorrer da narrativa, não saberemos maiores detalhes sobre este equino, muito menos sobre a origem de seu nome. Em quase toda a narrativa ele aparece como um cavalo normal, inclusive, como uma cavalgadura que necessita de troca das ferraduras; aliás, único momento em que o animal participará de uma ação sobrenatural, conforme veremos no decorrer da análise. Sobre o nome do animal, encontramos apenas referências em outras obras cuja temática é o sertão. São livros de poesias e cordéis. A primeira alusão que descobrimos sobre o nome do cavalo foi no livro de poesia Sertão em flor de autoria do poeta Catullo da Paixão Cearence, conforme podemos verificar no trecho a seguir:

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O home, de muito longe, De dez légua bem puxada, Im riba d‘um Russo Pombo, Apareiada de prata, Veio vê a Furtunata. (CEARENCE, [s.d.], p. 121).

A segunda referência ao cavalo Russo Pombo encontramos no livro Folclore em Sergipe, num cordel intitulado Macacaria. Neste cordel, a maior característica do equino é a esperteza. É desse atributo que o animal valeu-se para não ser vendido pelos seus donos, ao tempo em que os ajudou a salvar a lavoura, à beira da falência, devido aos ataques de muitos macacos nas plantações de legumes. Segue um pequeno trecho da versão colhida em Aracaju e adicionada ao Romanceiro que compõe o supracitado livro:

Era um home Que no sertão habitia Fazia uma grande roça Entre a mata e a i[lh] a Aproveitava toda chuva Que na mata chovia Mas nunca pôde ser feliz Que o legume que plantava Chegava o macaco e comia: — Meu cavalo russo pombo, Russo pombo d'alegria Te dou três ração de milho Te lavo três vez o dia... Quanto mais Jacó falava Mais o cavalo corria Quando o meu cavalo se viu Com tanto macaco amarrado Ajuntou o pé no mundo [...]. (LIMA, 1977, p. 479).

Em outro cordel intitulado O Segredo do Cavalo Ventania, do poeta José Medeiros de Lacerda, mais uma vez, temos recorrência ao cavalo Russo Pombo. Assim como em Sertanílias, neste cordel o cavalo é aliado do cavaleiro nos grandes desafios: [...]

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Eu tinha muita paixão Pela menina lindinha Purisso, participá Da disputa me convinha. Se eu pegasse o boi Croá Nós dois ia se casá E ela seria minha. Saimo de mainhazinha Pra pega o barbatão Boca Negra num tardio Cachimbo num alazão Pelado num bagaceiro Maoquitola num foveiro Zé Braúna num cardão Lipordo no garanhão Costumado a campeá Fureca num russo pombo Com focinho de gambá Os cabra mais afamado Já tava tudo amuntado Correndo daqui pra lá [...]. (LACERDA, 2012, [s.p.]).

Aqui, russo pombo parece fazer parte de uma raça especifica de cavalo, pois as cavalgaduras são identificadas por ―barbatão, alazão, bagaceiro, foveiro e russo pombo‖; poderíamos considerar que este último é uma raça especifica de cavalo, e muito recorrente na literatura sertanista; não obstante, inexistem referências a tais ―raças‖ nas literaturas que tratam dos equinos. Sendo assim, é difícil identificar a fonte de inspiração dos poetas da literatura sertaneja na predileção que eles têm por chamar suas cavalgaduras pelo nome de russo pombo. No livro, Manuscrito Holandês ou a Peleja do Caboclo Mitavai com o monstro Macobeba do autor M. Cavalcanti Proença, também há referência de um cavalo por nome ―Ruço- pombo‖. Observem que a única mudança é na grafia, contudo, o nome é usado para um cavalo semelhante aos outros presentes nas obras supracitadas. Além de Russo Pombo, nessa obra aparece referência a outro cavalo mencionado no cordel O Segredo do Cavalo Ventania, trata-se do cavalo ―barbatão‖. Vejamos: O velho Mané Lucídio mentia a suas canguaras, sentava na beira da calçada e falava feito reza de igreja:- vaqueiro vestido de couro, da cor de tijolo, marcando o compasso do passo curtindo dos bois do sertão. Tilim tilim das rosetas, o aboi tão triste tão... e o passo e os passos, os bois não têm pressa. Se vão para a morte, pra que se apressar? [...] Cavalinho Ruço- pombo baixou a cabeça de tanta tristeza; carreira ligeira quebrava barbatão [...] Ruço-pombo perde

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tempo que a boiada tudo sabe. (PROENÇA, 1960, p. 25).

Como se constata, diante de tantas referências em obras literárias distintas, não se pode precisar se o Russo Pombo de Sertano tem relação com estes outros animais dos quais os nomes são aludidos na literatura sertanista. Não saberemos afirmar se Elomar buscou inspiração em alguns desses poetas, muito menos, podemos assegurar que ele os leu, mas um fato é certo: a presença de um cavalo por nome Russo Pombo não é algo inédito. Antes de Elomar, outros escritores cujas obras abordam a temática do sertão já nomearam suas personagens equinas pelo nome Russo Pombo. Parece que a velocidade, solidariedade e lealdade são marcas características desses cavalos: Nas patas de Russo Pombo muitas mil léguas cortadas. Nascente dos quatro ventos, bem depois do derradeiro horizonte, nas camarinhas da aurora [...] Para bem dizer, estive na esquina do mundo, lá onde os grandes conquistadores choraram por não haver mais terras para conquistar (MELLO, 2008, p. 18).

Semelhante ao seu cavalo Russo Pombo, a construção argumentativa acerca da identidade de Sertano é lacunar. As informações sobre quem de fato é o protagonista não se revelam facilmente no texto: Nunca voltei, sempre parti. Quando pensam ver o cavaleiro em regresso, viram apenas a sombra do que se foi. Todavia não voltarei [...] de uma alma para outra alma confesso-lhe eu nunca voltarei. Sempre fui sem regresso, e se algum dia eu voltasse, com certeza pediria ao senhor Deus para me encarcerar sobre canteiros, nos sagrados jardins da minha infância, onde de sonhos é o ar que respiramos e a flor da inocência flagelo de Satanás (MELLO, 2004, p. 112-115).

1.2 O ESPAÇO E O TEMPO EM SERTANILIAS

As relações espaço/temporal apresentam-se de modo impreciso no desenrolar do enredo. Se, no primeiro momento, os atos de Sertano estão situados em um espaço geograficamente localizável, em outras ocasiões, tais referentes são inesperadamente suprimidos; e a trama passa a desenrolar-se em espaço e tempo estranhos aos iniciais. Além do exemplo que acima mencionamos acerca das hordas de cavaleiros de outras eras refletindo suas imagens na era que Sertano encontra-

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se; no trecho a seguir, esta imprecisão temporal/espacial também aparece de modo difuso, e outra vez, o sertão profundo é mencionado: [...] não tenho casa, nunca tive! Já tive um lar uma vez e o perdi para sempre regressarei ao ponto de partida, o começo da estrada, onde os caminhos se dividiram e os sonhos alçaram vôo! [...] muito longe, numa planície azul imensa e recortada de verdejantes vales, onde os rios correm tranqüilos por todo o tempo; sem enchentes e sem dar por conta do suave cursar dos dias... [...] cada um tem um lugar desse dado por Deus, de maneira que dado não é ninguém dividir este território com outrem. [...] Somente o Senhor Deus, e ninguém mais, pisa neste chão sagrado. Apenas sei que sou um grande pecador, pobre desvalido que, se alguma coisa é, tão somente o é com licença e a graça do Nosso Senhor Jesus Cristo. Maiores detalhes saberão quando se algum dia demorarem lá em casa no Sertão Profundo. (MELLO, 2008, p. 112).

Consoante assinalamos, o texto acima apresenta pontos truncados. É importante a ressalva de que isto, em nossa opinião, não se configura como algo negativo na construção textual do autor. Vale ressaltarmos que percebemos o uso desses recursos expressivos como algo intecional do autor com vistas a enriquecer estética e poeticamente o seu texto.

Vejamos como isso ocorre: inicialmente,

aparece a distinção que a personagem faz entre casa e lar. O primeiro ele nunca teve, ao passo que o segundo já possuiu, contudo perdeu-o. Em seguida, descreve o lugar ao qual pretende regressar, que, todavia, parece inacessível a qualquer ser humano. Apenas Deus poderá habitá-lo, pois se tratar de ―um chão sagrado‖. Se Deus é o único que pode acessá-lo, como então a personagem pretende regressar a tal lugar? Qual a localização do ―Sertão profundo‖, região em que fica sua casa? Que casa? Se ele nunca possuiu uma? É inúltil procurar por estas indagações, porque a narrativa não as fornece. Desse modo, a identidade de Sertano nunca será plenamente definida em Sertanílias. Sob a ótica de Antonio Cândido, vivemos submetidos à eterna visão fragmentária da identidade do outro, que nos apresenta apenas algumas nuances de sua personalidade, mas que jamais se revela de modo pleno: O romance, ao abordar as personagens de modo fragmentário, nada mais faz do que retomar, no plano da técnica de caracterização, a maneira fragmentária, insatisfatória e incompleta, com que elaboramos o conhecimento dos nossos semelhantes [...] na vida, a visão fragmentaria é imanente à nossa própria experiência [...] No romance, ela é criada é estabelecida e racionalmente dirigida pelo escritor, que delimita e encerra, numa estrutura elaborada, a

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aventura sem fim que é a vida, o conhecimento do outro. (CÂNDIDO, 2012, p. 58).

Seguindo o posicionamento de Antonio Cândido sobre a construção da personagem fictícia, é fácil compreendermos a seguinte situação acerca da definição da origem do protagonista: por mais explícita que seja a caracterização de uma personagem, ela terá pontos lacunares, e estes ocultarão parte de sua essência para o leitor. Assim é Sertano: em alguns momentos, revela-se um homem que demonstra interesse à vida do campo e também, subordinação aos princípios teocráticos no que se referem à existência e as regras de vida. Em outros momentos, no entanto mostra-se um ser misterioso, dotado de existência imprecisa; um indivíduo frequentador de lugares onde habitam criaturas de identidade humana questionável. Nas partes pretextuais do romance, quando o autor descreve a geografia do sertão, ele ressalta que nenhum lugar o extasia mais que as lagoas. Sob sua ótica, as tais águas distribuídas em riachos, lagoas e riachões são as mais fascinantes em se tratando da geografia do lugar. A atração que estes topônimos exercem sobre ele justifica-se talvez, pelos mistérios que os envolvem. Os inúmeros enigmas que emanam das lagoas são relatados ao ―seu dotô‖ pelos moradores da região. Diante desses testemunhos, Elomar explica seu favoritismo por uma lagoa específica, tratase da Lagoa Quadrada: ―Não sei! Só sei que, entre todas elas uma se destaca, nem tanto pela forma, mas pela aura de mistério que, segundo os relatos dos vaqueiros, lhe envolve [...].‖ (MELLO, 2008, p.10). Vimos na página 19 que ao fazer conjectura acerca das ―hordas de cavaleiros‖ que atravessaram à sua frente, Sertano explicou a seus companheiros que tais hordas pertenciam a outras eras e espaços, um território mítico de onde emergem as referidas lagoas. Assim, diz: ―― Estamos ouvindo o preludiar das águas perdidas na Lagoa Quadrada [...] Estamos já no território da Quadrada das Águas.‖ (MELLO, 2008, p. 154-155). Ao explicitar seu fascínio pelas águas das lagoas, enumera algumas hipóteses possíveis de elucidar a sua predileção por pequenos lagos: a) Águas rasas/ pequenas extensões estão em seu domínio, diferente do mar que é imenso. b) Por se tratar de lugar possível de saciar a sede de animais domésticos e

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selvagens, e também, por ser a estação do Veado Branco 2. Vejamos como o narrador explica a sua predileção pelas lagoas: As lagoas sempre me encantaram mais que qualquer outros acidentes deste belo pedaço de geografia, não sei porque razão; sepor sempre de águas rasas, sem perigo de morte, um mar pequeno [...] Se por serem a ágora de encontro de rebanhos de éguas, gado, cabras e carneiros;bebida de onça e o alevantado pelas horas tardias da noite; estação de visita do Veado Branco? (MELLO, 2008, p. 9-10).

É notável que além de ser fonte de subsistência para os animais que dela se servem para saciar a sede; a lagoa também se configura como a estação do ―veado branco‖. Este espaço realiza-se na trama como duplo lugar, ou seja, a junção dos espaços medievo-sertanejo sobrepostos. Jerusa Pires Ferreira, em Cartas Catingueiras, explica-nos acerca desse animal recuperado no romance de Elomar. Trata-se de uma figura mítica pertencente ao bestiário medieval. Em Sertanílias, o veado branco aparece na narrativa como um elemento ―transgressor de tempo e espaço‖. Temos na presença desse ser mítico, o primeiro exemplo de reapropriação da narrativa medieval no referente sertanejo. Acerca da presença do veado branco, cito a referida autora: ―o tema do veadinho branco aparece no mundo do romance de encantamento medieval, uma das matrizes de nossa cultura popular e sertaneja [...] O veadinho branco, espécie de anúncio da salvação.‖ (FERREIRA, [s/d], p. 43). Ao destacar os testemunhos de ―alguns simples‖ que convivem sem maiores espantos com as livusias, às quais sem a mínima cerimônia transitam próximas à Lagoa Quadrada, o autor já deixa pistas ao leitor de como estes enigmas serão tratados no romance. De posse dessas informações, o leitor já possui indícios de que a narrativa desenvolver-se-á em um ambiente suscetível a manifestações misteriosas, conforme veremos a seguir: Contaram-me alguns simplesmente que ela, quando cheia por ocasião da Águas, logo em seguida se esvazia sem ter fendas ou canais de espaço no fundo de sua bacia. Já outros falaram de certas livusias, que acontecem às vezes por ali passando, taint‘ faiz de noite cuma de dia, seu dotô. (MELLO, 2008, p. 10).

No trecho exposto acima, há recorrência dos pronomes indefinidos ―alguns‖ e 2

Veado Branco aparece não como um animal pertencente à geografia física do sertão, mas como uma espécie de entidade que freqüenta a lagoa para saciar a sede.

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―outros‖ para reforçar a imprecisão de quem relata os fatos misteriosos acerca do desaparecimento

das

―Águas‖

da

lagoa.

Todas

estas

pessoas

parecem

acostumadas a presenciar estranhos acontecimentos naquele pedaço de geografia. Entre inúmeros mistérios que interpenetram o mundo físico e o mítico no sertão está o desaparecimento misterioso das ―Águas‖. É importante frisar que não há nenhum elemento gramatical que exija a palavra água aparecer grafada com letra maiúscula (Água). Provavelmente, ao escrevê-la assim, o autor desejava valorizar os relatos das testemunhas que tomam a lagoa como lugar sagrado, daí o motivo de enfatizar a palavra como um substantivo próprio. A expressão ―ocasião das Águas‖, também pode ser entendida como os períodos chuvosos no sertão. Mesmo assim, o fato da palavra aparecer grafada com letra maiúscula pode ser o indício de que para os relatores dos fatos, as águas daquela região apresentam aura sagrada; algo imbuído de poder mítico, assim como é mítica a presença do veado branco por aquelas paragens.

1.3 A GÊNESE ARTÍSTICA DO AUTOR

Neste tópico e no subsequente, interromperemos a iniciada análise do corpus da pesquisa, pois avaliamos pertinente fazermos algumas considerações acerca do autor, dos aspectos gerais do seu processo de criação ficcional e de sua fortuna crítica. Depois disso, retornaremos à análise da obra. Nascido em 1937, na Fazenda Boa Vista, localizada na região rural de Vitória da Conquista-Bahia, o artista Elomar Figueira Mello sempre teve laços profundos com a vida campesina; e somente afastou-se dela entre os anos de 1954 e 1964 quando, por vontade dos pais, foi morar em Salvador para cursar o científico e depois, a faculdade de Arquitetura. Além de sua formação acadêmica, ele é cantor, compositor, maestro, roteirista e escritor. Quando do seu regresso ao sertão da Bahia, após concluir o curso acadêmico, o autor usa a profissão de arquiteto apenas como fonte de renda familiar. Seu interesse pela música e pela cultura local sempre foi incessante, portanto é a este ofício que dedica até hoje boa parte de seu tempo. Desde muito cedo, Elomar interessou-se pela música e pela poesia. As

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primeiras composições datam dos onze anos. Desde a primeira infância, nas ocasiões que ia à cidade, visitava todas as noites um tio, a fim de ouvir uma ―música estranha‖ no rádio. Anos mais tarde, quando foi estudar em Salvador descobriu tratar-se da protofonia de "O Guarani‖. O sociólogo Gilson Rodrigues Bonfim destaca esta experiência prematura que o autor teve com a música clássica: [...] toda noite ia à casa do Tio Flávio ouvir no rádio uma música estranha executada com instrumentos estranhos diferentes do violão, viola, sanfona etc... Música esta que mal começava logo, terminava. Anos mais tarde ao chegar à capital descobre que aquela música era a protofonia de "O Guarani", também descobre escrita musical, a partitura e o que mais lhe causou espanto: a existência de milhares de músicas, escritas por milhares de compositores que viveram a partir de centenas de anos passados. (BONFIM, 2003, p. 25).

Em 1969, Elomar compõe o caderno da sua primeira ópera, o Auto da Catingueira, mais tarde transformada em partitura. Em capítulo oportuno quando tratarmos da intertextualidade em Sertanílias, falaremos com maiores detalhes sobre este auto. No começo dos anos 80, inicia a carreira de menestrel, e de viola na mão, errante, de palco em palco pelos teatros do país, ele vai conquistando uma pequena plateia composta por poetas, músicos, compositores, e, por fim, por pessoas do povo, atraídas pela linguagem dialetal e pela temática do sertão. Sobre o processo de criação artística de Elomar, e a sua rejeição à cultura de massa por considerá-la nociva à cultura popular do sertanejo, trazemos aqui as considerações de Eduardo Bastos: Essas guerras travadas por Elomar a partir de criações artísticas e de seus discursos se opõem de fato a todo conjunto cultural massivo e midiático que, sob a representação do popularesco, abafa, segundo o cantador, as expressões culturais sertanejas, da roça ou catingueiras. Nessas condições está, talvez, o sonho elaborado por ele ao engendrar sua obra na intenção de uma composição fugidia, recriando o temário medieval em busca de outra civilização e linguagem, realizando seu projeto, nomadista, de fuga [sic]. (BASTOS, 2012, [s.p.]).

A produção artística de Elomar em toda sua inteireza fala do sertão iletrado para um povo letrado. Os apreciadores de suas obras, via de regra, são intelectuais, compositores e pensadores. Em 2001, o Jornal Magazine, na edição de 15 de julho, fala sobre o Projeto de Pesquisa, A Poética do Sagrado, desenvolvido pelo Instituto

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de Letras da Universidade Federal da Bahia UFBA, com vistas a comparar a obra de Elomar a de Guimarães Rosa. Sobre isso o jornal relata: Cruzou em dado momento as duas obras, a de Elomar e de Rosa. Depois seguiu a trilha elomariana. Antonia Torreão Herrera, professora da UFBA com Doutorado na USP, observa que na contramão da contemporaneidade, ele faz um trabalho de preservação, de recolha do sagrado da natureza, a partir de uma versão erudita, mas utilizando a linguagem, a dedicação do sertanejo. E incorpora a isso, um tom profético, uma tentativa de entender a realidade (JORNAL MAGAZINE, 2001, p. 4).

Nestes grupos, sua obra tem uma circulação razoável e ele, o ―menestrel do sertão‖, desfruta de considerável prestígio. Entre os dias 18/07 a 23/08 de 2015, ocorreu uma exposição de sua obra no ITAÚ CULTURAL3 na Avenida Paulista. Sobre este evento, captamos informações hospedadas no site da Info Arts SP (Agenda Cultural): A 25ª mostra ‗Ocupação‘ leva ao público do instituto o mundo particular de Elomar entre os dias 18 de julho e 23 de agosto. O espaço expositivo no Piso Paulista se transforma em um excerto da fazenda onde ele vive, no sertão da Bahia e abre a porteira para revelar o universo desse compositor que se celebrizou por meio de músicas dos discos Na Quadrada das Águas Perdidas. ... Das Barrancas do Rio Gavião, Auto da Catingueira, ConSertão ou Concerto Sertanêz entre tantos outros e cuja a vida e obra são objetos de teses de mestrados e doutorados nas mais importantes universidades brasileiras e de outros países (INFOARTSsp, 2015, [s.p.]).

A informação de que a produção artística de Elomar há muito tempo já é conhecida de um público seleto é confirmada em várias fontes que tratam da fortuna crítica do autor. Vejamos algumas delas: ―Reconhecido como autor de um cancioneiro primoroso, compositor de óperas e de músicas para orquestra, realizador de concertos memoráveis, Elomar, já era chamado, há 40 anos, por Vinícius de Moraes, de príncipe da caatinga‖. (INFOART sp, 2015). Este comentário é ratificado por Reno Viana, juiz baiano admirador da obra de Elomar. Segundo ele, Elomar foi chamado de ―Príncipe da Caatinga‖, por Vinícius de Moraes, quando do lançamento do disco Nas Barrancas do Rio Gavião (1973) pela gravadora Philips. Conforme ressalta: 3

Esta instituição mantém uma equipe que faz a curadoria sobre a produção artística do autor.

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Na contracapa do disco, impressionava o longo texto explicativo assinado pelo consagrado poeta Vinicius de Morais. Uma das canções do LP, inclusive, fez parte da trilha sonora da telenovela Gabriela, adaptação do romance de Jorge Amado que fez muito sucesso na TV Globo (VIANA, 2011, [s.p.]).

O seu disco Na Quadrada das Águas Perdidas (1979) dividiu o prêmio de melhor música do ano com o álbum Ópera do malandro, de Chico Buarque. Reno Viana traz algumas considerações importantes acerca da trajetória e do reconhecimento, por parte da imprensa, da Obra de Elomar, bem como enfatiza o processual afastamento do artista dos holofotes da mídia oficial:

Em sua edição do dia 30 de janeiro de 1980, o Jornal do Brasil anuncia que ‗Elomar, um príncipe da caatinga, tornou-se com dois discos o fenômeno musical da década’. Em 1980 sua canção O Peão na Amarração concorreu como finalista do festival MPB na TV Globo. [...] Depois disso, cada novo disco seu lançado trazia de imediato inúmeras reportagens elogiosas nas principais publicações do país. Suas apresentações recebiam o aplauso unânime de todos os jornais. No entanto, à medida que se aproximava a virada do século, Elomar ia gradativamente se afastando da chamada MPB e cada vez mais se aproximando da música erudita. Por fim, passou a se dedicar ao que chamava de ópera do sertão, iniciando inclusive a construção do Teatro Domus Operae, localizado na sua fazenda Casa dos Carneiros [sic]. (VIANA, 2011, [s.p.]).

Há alguns anos, Elomar não concede entrevistas a jornais nem a imprensa em geral; recusa-se também a ser fotografado ou filmado, todavia, em 2003, no Centro Cultura do Banco do Brasil, ainda aceitou ser entrevistada pela jornalista da Clic Music, Mônica Loureiro (2003). Vejamos as palavras iniciais dela a respeito de Elomar:

Elomar Figueira Mello não faz shows, faz concertos e cantorias. Odeia a língua inglesa por questões culturais, faz citações em latim e compõe em dialeto sertanês. Se recusa a ser filmado e acha que a imprensa brasileira é uma cópia vergonhosa da americana - assim como os filmes.Poderia-se enumerar aqui uma série de opiniões que, aos olhos dos mais desavisados, podem parecer extravagantes. Mas diante de um mínimo de conhecimento de sua obra - que está atualmente sendo estudada por alunos da Uerj, coordenados pela professora Darcília M. P. Simões - e sua vida, Elomar revela-se um ser humano rico, um artista de tal talento que, por isso mesmo, acaba sendo mal-compreendido e pouco conhecido do grande público. (LOUREIRO, 2003, [s.p.]).

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A respeito da aversão à mídia, Elomar tem uma posição bem definida: considera os meios de comunicação, sobretudo, a TV uma invenção louvável, porém, dominada por pessoas imerecidas. Ele é enfático ao declarar pouca ou nenhuma tolerância à arte televisiva e às comidas estrangeiras:

Não assisto televisão, não acompanho as notícias. E sob hipótese nenhuma como comida que não seja da minha terra. Quando viajo levo carne de bode, meus biscoitos de polvilho, minha farinha (JORNAL DA TARDE, 1998, p.15).

Por isso, evita contato com estes suportes de comunicação e não autoriza a reprodução de sua imagem, por considerá-la ―sagrada‖. Sobre isso afirma: A imprensa é uma vergonha, tudo cópia americana. Eu só ligo a TV para ver noticiário e a previsão do tempo. O banco (CCBB) queria me filmar, eu não! De maneira nenhuma, minha imagem é sagrada. Eu já fiz muitas gravações para a TV Educativa, a Record, mas de uns 15 anos para trás. A televisão é uma bela invenção, mas está nas mãos dos maus, dos poderosos (LOUREIRO, 2003, [s.p.]).

Ainda discorrendo sobre a ojeriza de Elomar à cultura de massa e aos modismos efêmeros na arte em geral, verificamos que Reno Viana tece mais algumas consideraçoes, na tentativa de elucidar a resistência do autor de Sertanílias à cultura oficial: A meu ver, o seu perfil humano e a sua obra, ao negarem radicalmente a cultura oficial vigente, antes de tudo evidenciam uma inequívoca expressão de inconformidade. É como uma legítima expressão de inconformidade, por exemplo, que enxergo o singular livro Sertanílias, lançado em 2008, e definido pelo autor com sendo um romance de cavalaria [sic]. (VIANA, 2011[s.p.], grifo do autor).

Acerca do efeito estético provocado pela leitura do romance de Elomar, Reno Viana relata a dificuldade que enfrentou para compreender a obra na primeira leitura: Ao ler este livro pela primeira vez, senti novamente o mesmo estranhamento experimentado ao ouvir, há tantos anos, o disco Das barrancas do Rio Gavião. Era a surpresa de me deparar com algo diferente de tudo que já tinha conhecido antes, algo completamente fora dos padrões vigentes. Em uma segunda leitura atenta, entretanto, vi admirado se abrir o portal mágico de acesso ao reino

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onde habitam os personagens elomarianos, lá na região que ele denomina de Sertão Profundo. Lá na perigosa travessia da Vage dos Trumento, na altura do Laço dos Môra, no território da Quadrada das Águas... [sic]. (VIANA, 2011, [s.p.], grifo do autor).

Reno Viana compara o romance ao livro Riverão Sussuarana (1978), autoria do cineasta baiano Glauber Rocha. Ele valoriza a figura do leitor como parte importante no processo de significação destas obras. Vejamos: Elomar, ao publicar Sertanílias, repetia trinta anos depois o gesto do conterrâneo Glauber Rocha. O famoso cineasta baiano, já dono de uma das mais importantes obras autorais do cinema mundial, resolve enveredar pelos domínios da literatura e lança em 1978 o polêmico livro Riverão Sussuarana. Esses livros são ambos romances de dificílima compreensão, caso o leitor insista em ignorar as chaves que abrem as portas da interpretação deles. Os dois livros são narrativas oníricas, e é assim que devem ser lidos. O método de interpretação deve ser o mesmo empregado para compreensão dos nossos sonhos e dos nossos pesadelos [sic]. (VIANA, 2011, [s.p.], grifo do autor).

É oportuno destacamos a partir dessas considerações citadas, acerca do processo de criação de Elomar, que a sua resistência à arte contemporânea e à cultura oficial desvenda o anseio de fuga de tudo que cheira modismo. Entretanto, como vemos, ele não foge completamente desse mundo moderno, é por ele que o autor adentra seu ―sertão profundo‖, e de lá capta a matéria de sua criação rumo às terras fantásticas, habitadas por donzelas, cavaleiros e grandes senhores feudais. Sobre isso, diz: ―eu capto as emanações da caatinga, da terra‖ (JORNAL DO BRASIL, 1979, p. 5). O trajeto para adentrar o sertão profundo não se finda, e o anseio de Elomar em direção a lugares sagrados é contínuo. E este lugar perfeito está posto, no mundo físico sob a égide de um mundo medieval consolidado nas proezas físicas e espirituais dos cavaleiros andantes, e caminha para um mundo perfeito sob o exclusivo reinado de Deus. É o mundo medievo que estará posto no seu projeto artístico. Na verdade, percebemos fagulhas do mundo medieval não apenas no seu romance, mas em suas outras produções, muitas vezes, dialogadas com o próprio livro. São os fluxos e refluxos dos ecos medievais recuperados em seu projeto literário.

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1.3.1 O olhar artístico de Elomar Em Sertanílias, as personagens dividem-se em dois grupos, o primeiro representa as pessoas que conhecem e fazem uso abundante da linguagem vernácula, não são muitas, poderíamos pensar em quatro ou cinco, incluindo nesse rol de letrados o próprio protagonista. O grupo dos que apenas faz uso do dialeto ―sertanês‖ 4, ou seja, que fala a linguagem ―sertaneza‖ é bem mais amplo. Este último grupo representa as pessoas desprovidas do domínio da línguagem formal. Se por um lado, o olhar artístico de Elomar recai sobre o modo de vida do sertanejo, sobretudo, os mais simples, aqueles que têm maior apego à terra e celebram continuamente a cultura do sertão; por outro lado, não são estes sertanejos simples o público receptor de sua obra. A matéria de criação do autor é o sertão e o sertanejo. Nenhuma de suas personagens deslumbra-se pelo mundo contemporâneo; todas têm seu cotidiano cravado no ―Sertão Profundo‖. Retomando as discussões acerca da relação de Elomar com a arte contemporânea, em linhas gerais é procedente enfatizar que ele evita o ―mundo urbano‖; por isso, passa grande parte do seu tempo na Casa dos Carneiros 5. A sua formação clássica e, ao mesmo tempo, regionalista leva-o a repelir tudo o que comprende como modismo; rejeita e critica a maioria das produções artísticas e culturais difundidas pela mídia como referenciais de arte contemporânea. Ademais, não mostra nenhuma simpatia nem pela arte e nem pela língua inglesa. Sobre isso diz:

Não faço shows, faço concertos e cantorias. Gosto de citações em francês, espanhol, latim e grego. Mas a língua inglesa é abominável por uma questão cultural. Sua proposta imperialista é asquerosa (LOUREIRO, 2003, [s.p.]).

A supremacia da música e do cinema americano, entre os jovens do sertão, deixa-o exasperado. Ele considera inadmissível que as pessoas conheçam a cultura 4

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Os dois adjetivos ―sertanês‖ e ―sertaneza‖ referindo a língua e linguagem do sertanejo foi cunhado pelo próprio Elomar Figueira Mello para nomear com precisão o dialeto do povo setanejo da região baiana denominada de Sertão da Ressaca. ―Elomar possui duas pequenas fazendas no semi-árido do Sudoeste da Bahia onde cria miunça carneiros e cabras, as vezes um pouco de gado graúdo. A fazenda Casa dos Carneiros situa-se na região da Gameleira, Serra da Tromba município de Vitória da Conquista. Ali tem passado grande parte da sua vida em lidas de currais e campo: ferra de animais, vacinação, abalizando cercas, montando cancelas e outros tantos afazeres. E, na maior parte do tempo compondo‖. (Disponível em: ).

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popular de outros países e dos grandes centros urbanos do país e não tenham conhecimento de histórias relativas a seu povo. Sob a ótica do autor, é inaceitável que os próprios sertanejos ignorem a cultura e as lendas locais. Lamenta que as tradições orais e as festas às quais a figura do vaqueiro é celebrada estejam sendo esquecidas pelos jovens do sertão baiano. Além das leituras dos romances de cavalaria, a formação de leitor de Elomar está calcada em princípios religiosos e clássicos universais, além de claro, dos cânones nacionais. Durante sua vida, leu todos os escritores e poetas hebreus constantes na Bíblia. Por sua formação religiosa ser protestante, desde a mais tenra idade, teve contato com os textos bíblicos. Suas leituras, porém, foram bem além dos textos canônicos sagrados. Aos dezessete anos, iniciou as leituras de novelas de Cavalaria. Antes disso, o autor escreveu às primeiras composições literárias e musicais, mas ainda sem uma linha definida. Sobre seu envolvimento com a música, declara: Comecei a compor aos 11 anos, aos 16 tive notícias dos menestréis, conheci os cantadores do sertão, de feira em feira, de fazenda em fazenda. Na época eu nem sabia que existia disco, teatro. Cantava como um trovador, um rapseto. Aí fui para cidade, descobri o disco, o auto-falante, o rádio. Mesmo depois de me formar, já com muitas composições, ainda assim não pretendia gravar, sempre achei que música tinha que ser apreciada ao vivo. Me induziram a gravar um disco, gravei, depois o público cobrando mais música... Hoje, tenho 17 horas de partituras que dariam 18 CDs de uma hora, mas tudo depende de dinheiro. (LOUREIRO, 2003, [s.p.]).

Como podemos verificar, as leituras clássicas e o contato direto com o mundo sertanejo foram incisivos na sua formação artística. A formação religiosa também não ficou ignorada na sua gênese artística, por isso, são constantes em suas obras temas ligados ao sagrado e citações bíblicas, sobretudo, os livros do antigo testamento. Aliás, a sua constituição religiosa está bem demarcada nas páginas de Sertanílias, em outro capítulo trataremos desse aspecto. Além dessas leituras já citadas, o autor também leu os clássicos gregos, bem como os latinos, incluindo as fábulas de Esopo e as de Fedro. No penúltimo capítulo, intitulado ―A Legião dos Condenados‖ ele revitaliza estes dois nomes. O seu repertório de obras lidas estendeu-se também a alguns escritores italianos, franceses, ingleses, espanhóis,

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russos e, por último, os alemães. A respeito do Elomar, o escritor Márcio Meirelles 6 comenta: Elomar é mais que um representante da cultura baiana, um homem de vasto território do sertão que engloba outros estados brasileiros, é o sintetizador não só da cultura brasileira perdida nos séculos, que adormece e ressurge nas entranhas do sertão da Bahia e dos imensos chapadões de nosso Brasil mais profundo. (MEIRELLES, 2010, p. 5).

O autor declara-se um genuíno cristão. Não considera adequado alguém nomear seu estilo de ―transgressor‖; segundo ele, este adjetivo contradiz sua identidade de cristão puro. Sob sua ótica, o transgressor passa por cima de regras, leis. Diante disso, em entrevista, sugere: ―Seria melhor marginalizados, rebeldes, malditos no sentido poético da expressão‖. (LOUREIRO, 2003, [s.p.]). Em Tramas do Sagrado- a Poética do Sertão de Elomar, a escritora Simone Guerreiro tece as seguintes considerações sobre o autor: ―um pensador que oferta com prazer o imaginário; homem apaixonado, generoso; interlocutor perspicaz para um diálogo sobre a própria obra, cujo projeto, delineia com precisão‖ (GUERREIRO, 2007, p. 26). O cantor e ator Saulo Laranjeira7 considera-o ―um mestre, um clássico‖ que não se rende ao ―modismo fácil‖. Saulo ressalta que a música concebida pelo autor de Sertanílias é cheia de traços do povo, por isso, volta-se para o povo: ―Elomar é um mestre, um clássico, nunca deixou de fazer a sua música como sempre fez. Nada o fez mudar: Elomar é resistente criou escola. É uma base firme para criar brio e coragem nos caminhos da atualidade‖ (LARANJEIRA, [s.d], [s.p.]). É, pois, no sertão enxertado de sagrado, de mistério, de aventuras, de amores e de desventuras que o ―trovador medieval‖, Elomar sente-se em casa. A metrópole incomoda-o, ademais, o modo de vida contemporâneo impacienta-o. Como já assinalamos, há alguns anos já não concede entrevistas aos jornalistas e a nenhum pesquisador que o procura na Casa dos Carneiros para saber mais de sua obra. No caso dos pesquisadores, o autor recebe-os para uma conversa informal, mas assim como exige da imprensa, nenhuma entrevista formal é concedida, muito 6

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Secretário da Cultura do Estado da Bahia em 2010. Este trecho transcrito faz parte do texto intitulado ―Um brasileiro chamado Elomar‖, escrito pelo referido secretário no caderno informativo para divulgar o Festival de Opera Brasileiro ocorrido entre os dias 26 e 27 de novembro de 2010. Esta citação do apresentador faz parte da abertura do DVD Elomar Figueira parte 1 gravada no programa de televisão - Arrumação. Uma produção essencialmente mineira realizada em parceria pela Laranjeira Produções e Rede Minas. Disponível em: .

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menos são autorizadas aos pesquisadores fotografias ou filmagens de sua pessoa, conforme disse em entrevista já citada; ―minha imagem é sagrada‖. O mundo atual, que valoriza em demasia a tecnologia, deixa-o entediado. Diante do público a quem chama de ―confraria de cúmplice‖ ele desabafa8: ―Eu me sinto sempre estrangeiro. O que me atenua é quando estou no campo, com os bichos, conversando com os peões. Eu desci na estação completamente errada‖. Perante tal declaração, parece que a arte é o ―portal‖ que o ―conecta‖ ao mundo contemporâneo. Sem ela, talvez o cidadão Elomar vivesse apenas no campo, e dispensasse todo o contato com o mundo tecnológico. Segundo Julio Maria9, a motivação de Elomar em sair de ―seu sertão medieval‖ é a concretização do seu universo em música: Se não fosse por um bom motivo, Elomar, o bode, jamais sairia das terras de seu sertão medieval. É lá que ele cria carneiros, bois e cavalos em uma dimensão que parece anteceder a existência do próprio sertão, uma era que só se conecta com o século 21 por meio da música que faz. A música é a possibilidade de materialização do universo medieval de Elomar. (MARIA, 2014, [s.p.]).

Embora faça questão de enfatizar que, em grande parte das vezes, não ―está pensando em nada‖ quando compõe alguma canção, em alguns momentos, o maestro reconhece que já encontrou inspiração em situações presenciadas por ele no sertão. Mas, ao que parece, isto não é regra, geralmente, a composição surge espontaneamente, coisa de momento, enquanto dirige o carro, por exemplo, quando se sente inspirado, o autor afirma: ―paro e escrevo‖. Simone Guerreiro emite suas considerações acerca do autor, bem como, do seu processo de construção literária: Vejamos: Elomar é um cancioneiro e um operista que não só dialoga com a literatura, mas com ela transita com liberdade e fluidez. Suas canções e árias possuem densidade na construção da linguagem, diluindo as fronteiras entre poesia escrita e poesia cantada. (GUERREIRO, 2007, p. 19).

Desde meados de 1970 que Elomar tem tido seu trabalho divulgado por todo o território nacional, e também no exterior. Além de realizar gravações de uma extensa discografia, faz apresentações com orquestras, quintetos, quartetos e outras 8

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Estas palavras foram proferidas por Elomar Figueira Mello, dia 11 de janeiro de 2014 durante a apresentação do concerto promovido pela Caixa da Cultura na Praça da Sé, São Paulo. O jornalista do Estadão, autor da matéria sobre Elomar Figueira. 09 jan. 2014. 20h06 min. Disponível em: .

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formações sinfônicas. Estas apresentações já aconteceram na Martinica e também na Alemanha Ocidental, 1986, ocasião que foi convidado para representar o Brasil no Festival ibero-americano. Na época, gravou o LP Dos Confins do Sertão, recebendo da crítica, daquele país, o primeiro prêmio internacional. Muitos convites internacionais vieram e continuam a vir de países como França, Inglaterra e Portugal, entretanto, o autor tem recusado com frequência tais solicitações por considerar insignificantes os cachês e as propostas. Segundo o site ―Porteira Oficial de Elomar‖ que hospeda as informações sobre a produção cultural do autor, ―até o momento sua obra, em termos de composição e escrita (partituração) encontra-se no seguinte estágio‖: onze óperas, uma antífona, quatro galopes estradeiros10, um concerto de violão e orquestra; um concerto para piano e orquestra - composto e a ser partiturado; um pequeno concerto para sax alto e piano - composto e partiturado; uma sinfonia - quase toda composta; Doze peças para violão-solo. O referido site informa ainda que no concernente às composições para violão, a maioria já está partiturada. A respeito do Cancioneiro, declara existir ―Um caderno de oitenta canções, sendo que a maioria delas, já se encontra gravada e uma pequena parte inédita‖. Quanto às Óperas, estas ainda se encontram em vias de conclusão. As óperas às quais o site refere-se são as Bespas Esponsais Sertana, cinco trágicos que se encontram nos seguintes estágios: A Carta - óperas com quatro cenas, compostas e partituradas; A Casa das Bonecas - composta e 30% partiturada; Faviela - toda composta e nada partiturada; O Peão Mansador - composta e a ser escrita; Os Poetas são Loucos (mas conversam com Deus) - composta em partes. Com o conjunto dessas obras eruditas, o autor concede vida às personagens que habitam em um espaço autenticador da cultura popular. Efetivamente, a obra de Elomar cria as condições de resgate da identidade do homem contemporâneo do sertão e também, daqueles saídos de lá para os grandes centros urbanos, mas que ainda se reconhecem nos ritos e nos mitos religiosos e culturais sertanejos. As canções, as melodias, as interpretações formam um conjunto coerente com a 10

Em conversa informal com Gilson Rodrigues Bonfim (jul. 20160, foi esclareciso que Elomar Figueira Mello nomeia de Galope estradeiro suas composições baseadas em sinfonias, porém com tempo reduzido, cada galope tem tempo de duração que varia entre 15 e 20 minutos. Os galopes seguem os mesmos movimentos das sinfonias convencionais, com três movimentos compactos. Quanto à temática, o cavaleiro do galope é uma recuperação do Cavaleiro Medieval. Enquanto as sinfonias são numeradas por Opus, Elomar prefere usar números, assim, temos ―Galope 1, Galope 2, Galope 3‖, tem ainda uma sinfonia nos moldes europeus. A última sinfonia composta por Elomar é o REKUIN e trata de tudo relacionado à morte que, na maioria das vezes, pode ser do próprio autor.

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proposta do autor, a saber, trazer para o foco argumentativo de sua obra a ficção pautada na temática sertaneja. A interação entre tais elementos favorecem reverberar o sentimento de pertencimento a outro lugar avesso ao contemporâneo.

1.4 O BERÇO GEOGRÁFICO DE ELOMAR FIGUEIRA MELLO O Sudoeste da Bahia é o ―berço geográfico‖ da obra de Elomar, sobretudo, as regiões circunvizinhas da cidade Vitória da Conquista. A sua fundação data dos finais do século XVII quando das incursões bandeirantes realizadas pelo sertão baiano. Seu fundador foi João Gonçalves da Costa11. O território em que se localiza a cidade e suas cercanias, inicialmente foi denominado por seus ―desbravadores‖ como ―Sertão da Ressaca‖. Segundo o Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa, a expressão ―sertão da ressaca‖ significa o ―refluxo de uma vaga, depois de espraiar ou encontrar obstáculos que a impedem de avançar livremente‖ (CUNHA, 1986, p.679). Conforme assinalam Jorge Augusto Alves da Silva e Valéria Viana Sousa: Do ponto de vista geográfico atual, o ―Sertão da Ressaca‖ corresponde, grosso modo, a um recorte regional intraestadual inserido no grande semiárido baiano, recebendo nomes diversos, segundo critérios oficiais de regionalização, tais como: Sudoeste da Bahia (SEPLANTEC-BA), Região de Vitória da Conquista (IBGE) e Planalto de Conquista (IBGE). (SILVA; SOUSA, 2013, p. 02).

Esta região é composta por caatinga, mata de cipó, agreste e cerrado. Semelhante a muitas cidades brasileiras, anterior à chegada dos bandeirantes, a referida terra era habitada por povos indígenas denominados de Ymboré, Mongoyó e Pataxó. Em seus primeiros anos de fundação, a localidade era apenas um pequeno núcleo urbano cercado por um número considerável de fazendas. A conquista das terras não se deu de modo pacífico, houve muita resistência das tribos indígenas que ainda se encontravam naquela região, praticamente sem contato com os colonizadores. Desse modo, a tomada das terras, em que os índios habitavam, efetivou-se, plenamente em 1783, após três confrontos com os nativos. 11

Português nascido em 1720 na cidade de Chaves, com apenas 17 anos de idade veio para o Brasil para com a missão de auxiliar a abertura de novas fronteiras para os colonizadores portugueses. Depois de suas conquistas, sobretudo a do ―sertão da ressaca‖, onde se localiza a cidade de Vitória da Conquista ele é reconhecido pelas autoridades coloniais, como um grande desbravador e conquista dos gentios, recebe então a patente de Capitão-Mor do Terço de Henrique Dias.

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Conforme assinala Rita Maria Costa Melo: ―Das nações indígenas, que resistiram em combates de extrema violência e longa duração, ressaltam-se os Mongoiós- também conhecidos por Camacans - os Pataxós e os Emborés.‖ (COSTA MELO, 1989, p. 23). É nesse período que a ―conquista‖ do território do ―sertão da ressaca‖ concretiza-se. Assim, inicia-se a instalação de fazendas de gado e abertura de estradas ligando o sertão à região litorânea do estado da Bahia. Segundo a autora, a partir disso: ―os conquistadores ‗afazendaram-se‘ e constituíram famílias, ao mesmo tempo em que atraiam levas de homens e mulheres da Península Ibérica para povoar a região com o estabelecimento de novas fazendas.‖ (COSTA MELO, 1989, p. 26). Entretanto, durante o processo de conquista, já se tem registro de moradias dos colonizadores nas terras habitadas pelas três tribos supracitadas. Costa Melo (1989, p. 27) faz o seguinte registro sobre este período: ―Em 1753, já encontra ai instaladas duas fazendas de gado, algumas trilhas de boiadas e esboço do que se tornariam posteriormente os pontos de paradas para as boiadas que, vindas da região do Rio São Francisco, destinavam-se ao abastecimento do litoral.‖ Vê-se com isso que a economia da região do Sudoeste da Bahia teve sua organização pautada na atividade pecuária, a criação extensiva de gado. Atividade esta que predominou até a metade do século XX. Conforme enfatiza a autora, ―é a civilização coriácea que tem ai seu nascedouro‖. (COSTA MELO, 1989. p. 24- 26). Já na segunda década do XIX, o pequeno vilarejo contava com, aproximadamente, uma população de 240 habitantes, comunidade formada, mormente por ―negros, brancos, índios e aculturados‖

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. O arraial era composto de residências simples e sem o mínimo de

conforto, e os abastados que compunham o lugarejo viviam em suas fazendas de gado. O arraial de Conquista foi elevado à condição de vila no ano de 1780, passou a chamar-se Imperial Vila da Vitória, feito conseguido por pressão exercida pelos latifundiários do ―Sertão da Ressaca‖ sobre o Governo Central da Bahia. Em 1872, a população da vila era de 18.836 moradores. Em 1891, a referida vila passou à condição de cidade. Desde sua fundação, quando ainda era um arraial com duas centenas de habitantes, a atividade agropecuária já exercia um importante papel na fixação do homem na região; posteriormente o comércio e, depois a agricultura voltada às necessidades básicas da população. Como veremos, no decorrer das nossas 12

Disponível em: . Acesso em: 09 fev. 2015.

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análises, esta base de atividade coriácea marcará, histórica e culturalmente, a região e seus habitantes. Como veremos nos capítulos subsequentes, os ecos dessa sociedade coriácea do sertão da ressaca encontrarão repouso também na construção do sertão profundo do romance de Elomar. Entre o final do século XIX e o início do XX, o município destaca-se como uma área significante de produção agropecuária e intermediária das relações comerciais entre o litoral e regiões do seu entorno, contudo até a década de 1940, o quadro socioeconômico da cidade tinha por base econômica a pecuária extensiva. Atualmente, a fonte de renda mais considerável da cidade é o comércio. Quanto aos seus aspectos demográficos, a cidade conta com uma população de 340.109 habitantes, segundo fontes do IBGE (2014). Historicamente, o povoamento e economia do ―sertão da ressaca‖ estiveram condicionados exclusivamente a dois fatores, o primeiro já explicado nas páginas anteriores, a criação de gado, e o segundo, ao clima da região com extremos períodos de seca. Conforme assinala Costa Melo, os eixos da sociedade ―coriácea‖ têm a seca como ―fator decisivo nas sucessivas e frequentes desagregação/reagregação dos núcleos familiares.‖ (COSTA MELO, 1989, p. 35). Em 1920, já se encontra a preocupação das autoridades a respeito dos efeitos da grande seca que assola o sertão e o sertanejo até hoje e o tange de suas terras como ―um judeu errante‖, para usarmos um termo mencionado por Graciliano Ramos em Vidas Secas. No livro O Sertão do Velho Chico, ao tratar dos problemas sociais que afligem as terras sertanejas do Médio São Francisco, a autora Edyla Mangabeira Unger apresenta fragmentos de uma carta à qual teve acesso durante suas pesquisas na região do sertão banhada pelo Rio São Francisco. A correspondência é endereçada ao então Excelentíssimo Presidente da República, e também nordestino Epitácio Pessoa. A carta teve por remetente uma autoridade da cidade de Lençóis, senhor Horácio de Matos, e nela está contida a seguinte mensagem: Desde muito tempo que o povo sofre e luta sem o amparo da justiça. Toda vasta zona sertaneja do centro-oeste do Estado apresenta, hoje, um aspecto lúgubre, da mais profunda desolação. As populações vão-se aos poucos abandonando as terras, procurando abrigo longe, nos Estados vizinhos. E a miséria e a fome ficam dizimando os que não puderam fugir. Em nome, pois, de milhares de homens que querem trabalhar, eu peço a Vossa Excelência ferramentas para o amanho da terra. Peço a Vossa Excelência foices, enxadas, machados, auxílio de toda natureza para transformar este deserto de hoje em vastos campos cultivados,

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fazendo a felicidade de muitas centenas de famílias que atualmente vivem na mais negra miséria. (UNGER, 1977, p. 98).

Como vemos, na correspondência endereçada ao Presidente da República, o remetente preocupa-se em listar as ferramentas necessárias para transformar as terras desertas do sertão em lugar produtivo e, por conseguinte, evitar que seus habitantes abandonem suas casas em busca de vida melhor na cidade grande. Conforme se verifica nesta breve explanação acerca da origem da cidade e regiões circunvizinhas, o espaço geográfico, em que Elomar situa suas personagens, é um lugar que tem sua origem econômica baseada na terra e no homem que com ela lida. O homem simples, vaqueiro, lavrador. É deste contexto que suas obras emergem. Estas paragens são os espaços que viabilizam as ações das personagens entre o sertão físico (o Sertão da Ressaca) e o sertão simbólico (o Sertão Profundo).

1.5 O SERTÃO É UMA PÁTRIA

Na obra de Elomar é flagrante que o sertão não seja concebido apenas a partir de uma observação geológica, mas, sobretudo, engendrado como resultante de uma fina observação de casos reais e ficcionais narrados oralmente durante muitos e muitos anos. A construção do sertão simbólico é fruto da memória coletiva. A persistência oral das lendas e costumes da região é a marca mais contundente de que a representação do sertão, na obra do autor perpassa pelos meandros não apenas geográficos e históricos, mas alcança o simbólico que é a matéria prima imprescindível para a construção do sertão ficcional de Elomar. Estas narrativas foram, de acordo com as fontes históricas, repassadas de uma geração a outra por pessoas, preponderantemente, de classes sociais que não têm o domínio da norma culta, todavia são exímias contadoras de histórias. Todo este universo de narrações antigas é atualizado em Sertanílias, e em muitas outras obras do autor. O Sertão imaginado por Elomar é uma ―pátria‖ com definição sempre a ser complementada. Conforme Jerusa pires Ferreira destaca: Para entender aquilo que ele [Elomar] fala, é preciso situar entre outras noções, a desta pátria do sertão, a nação que se compreende, em suas características e modo de ser, geográfico e humano para além de limitações do estado. O Sertão se estendia além da

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civilização do couro, os pastos a perder de vistas, conservando práticas e paisagens que o artista se incumbiria como Guimarães Rosa, de entender e recriar-radicalizando. Um Brasil que é ele mesmo, mas que também é um apontar para além de seus limites. (FERREIRA, 2001, p. 63).

Mas afinal, do ponto de vista etimológico o que é o sertão? Assim é a definição dessa palavra no Dicionário de Língua Portuguesa Larousse Cultural:

Sertão: Região agreste afastada dos centros de povoação e das terras cultivadas. Local pouco povoado, afastado das costas. O interior do país. Zona fisiográfica do Nordeste brasileiro, correspondente ao clima semi-árido do nordeste e da caatinga. (LAROUSSE CULTURAL, 1999, p. 824).

Em Sertanílias, a construção do sertão não se configura como algo fácil. Ela não pode ser dada plenamente, de modo exato. A definição da palavra sertão na obra de Elomar precisa passar pelo menos por quatro crivos: cultural, geográfico, político e simbólico. Será falaciosa qualquer tentativa de defini-lo a partir de uma única perspectiva. Uma pátria não pode ser compreendida apenas por um aspecto que a compõe. E na concepção de Elomar, o sertão é uma ―pátria‖. O sertão é tudo isso: a caatinga, o juazeiro, o rio, as ladainhas, as cantorias, as ―incelença‖, os ―imbuzero‖, as livusias, os repentistas das feiras livres, os folguedos. Para Albertina Vicentini ([s.d.]), uma das maiores problemáticas que impera na dita literatura ―sertanista‖ é o fato do sertão dos ―iletrados‖ ser ajuizado sob a ótica do "letrado" e endereçado ao leitor ―letrado‖. A autora aponta que esta modalidade literária é, na maioria das vezes, analisada por um sujeito não pertencente ao mundo rural, ele fala de uma cultura que não lhe é própria. Outros três pontos mencionados por Albertina Vicentini ([s.d.]) acerca da construção do conceito de sertão são os problemas da alteridade, (colonização), da "exterioridade" e da "posição da escrita sertanista na sociedade". Sobre a alteridade, a autora observa que perceber o modo como o "o outro" enxerga e interpretar aquilo de que não faz parte é algo que não pode ser deixado de lado na análise do romance "sertanista". Este alheamento está posto de modo incisivo no trecho abaixo. Trata-se de parte do relato de pesquisa de Edyla Mangabeira Unger, a respeito das manifestações culturais e religiosas dos sertanejos: Os mitos, as lendas e as superstições têm raízes profundas na

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mente do sertanejo, como as plantas mais selvagens que resistem às agruras da seca, essas crenças ingênuas persistem nele malgrado as investidas de indescritíveis sofrimentos- de incalculáveis privações. Tem-se a impressão de que não existem fronteiras entre a natureza e o homem nos lugares mais afastados do que chamamos de civilização. Devido talvez, a ausência de estímulos externos, de influências vindas de fora, seu mundo interior povoa-se de seres misteriosos. De percepções vagas, de impulsos irreprimidos. De surpreendentes intuições. (UNGER, 1977 p. 77-78, grifo nosso).

A partir do trecho acima, podemos ratificar como este olhar do ―civilizado‖ recai sobre o que lhe é alheio. A pesquisadora traz na síntese de suas observações a religiosidade do sertanejo e a relação dele com suas crenças, às quais nomeia de ―ingênuas‖, resultantes de ―percepções vagas‖, também de ―impulsos irreprimidos‖. Diante de tais descrições sobre o sertanejo, fica claro o exemplo de distanciamento entre o enunciador e o enunciado mencionado por Albertina. Como assinala a referida autora, a representação do sertão repousa sobre pressupostos históricos críticos e posicionamentos sociais embasados em análises falaciosas de cujas origens encontram-se pautadas no "senso comum". Olhando por este prisma o universo ficcional que trata do sertão teria suas bases no seguinte princípio: na construção de um ―mundo do escritor citadino fingindo ser sertanejo, que escreve para um leitor também ele citadino, a respeito de uma cultura diferente da sua" (VICENTINI ([s.d.]), p.44). Está posto que no caso de Edyla Mangabeira não se trata propriamente de algo proferido à luz do senso comum, no entanto a pesquisadora, em seus relatos, não consegue fugir da falácia interpretativa a respeito da relação do sertanejo com seus ritos e mitos quando os nomeia de ―crenças ingênuas‖. O sertão tem na sua própria origem colonizadora o sentido de distante. A etimologia dessa palavra aponta para lugar de difícil acesso, aquilo que se encontra afastado do centro, lugar do inferior, do periférico, o descampado. Historicamente, sertão tem por par positivo o litoral. Sobre isso, é enfatizada a origem da palavra: "Trazida para o Brasil desde o descobrimento, passou a refletir na América, o ponto de vista do europeu". Etimologicamente, a palavra sertão teria o sentido de DeSertanum, supino de "Desere", significa "o que sai da fileira". "Desertanum" lugar incerto, desconhecido, impenetrável‖ (TELES, 1998 apud VICENTINI, [s.d.], p. 45), Sertão configura-se então como um ―vocábulo‖ que aponta sempre para um ―sítio oposto e distinto‖ do sujeito enunciante. Na tradição literária, os critérios utilizados

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para se considerar um romance como pertencente à literatura sertaneja ou não, é a temática abordada pelo autor. Como temos visto, o modo como o sujeito da enunciação fala daquilo que não lhe pertence é sem dúvida um dos pontos mais incisivos dos romances ditos sertanistas e nos trabalhos acadêmicos que versam sobre o sertão e o sertanejo. Geralmente, os enunciadores são sujeitos distanciados da cultura e do modo de viver do sertanejo. O sertão narrado está sempre longe do sujeito da enunciação. Este distanciamento é flagrado "num dêitico adverbial": esse, lá, acolá, mais além. (VICENTINI, [s.d.], p.45). Desse modo, entendemos que a construção de sentido do conceito de sertão está sedimentada, pelo menos boa parte dela, na estrutura colonizadora do novo mundo. A partir de um ponto de vista que enxerga o outro como desconhecido, rude, impenetrável, iletrado, um ser vivente regido por um mundo desordenado avesso à lei. Desse modo, efetiva-se o olhar "civilizado" falando pelo ―incivilizado". O olhar estrangeiro que explica e interpreta o sertão e o sertanejo a partir se seus parâmetros civilizatórios. (VICENTINI, [s.d.], p. 46). Consoante explica Albertina, Os Sertões é um exemplo propício para ilustrarmos este olhar litorâneo sobre o sertanejo. Ao falar do processo genérico opositivo litoral/sertão, a autora enfatiza: O exemplo máximo desse processo se encontra em Euclides da Cunha. N'Sertões, Euclides defende o sertanejo, sim, mas fala por ele, explicá-o, interpreta a sua terra e a sua luta por parâmetros seus, de homem da cidade, do litoral, do mar, homem da ciência, ex-militar e jornalista. Fala com autoridade, em tom ensaístico, ensinado [sic]. (VICENTINI, s/d. p. 47).

Albertina Vicentini ([s.d.]) observa que este tom narrativo distanciado, de terceira pessoa, de "colonizador disfarçado" será rompido em Grande Sertão: Veredas, com o narrador Riobaldo. As lutas, os medos e a grande paixão reprimida que o ex-jagunço traz no peito por Diadorim, todas estas profusões de sentimentos aparecem relatadas não pela voz do outro, mas pela sua própria linguagem de homem do sertão: [...] Com minha brandura, alegre que eu matava. Mas, as barbaridades que este delegado fez e aconteceu, o senhor não tem calo no coração para poder me escutar. Conseguindo de muito homem e mulher chorar sangue. Por este simples universozinho nosso aqui. Sertão. O senhor sabe: sertão é onde manda quem é forte e, com as astúcias. Deus mesmo quando vier, que venha

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armado! E bala é um pedacinho de metal. (GUIMARÃES ROSA, 2001, p. 35, grifo nosso).

Neste romance, Guimarães rompe com a "reprodução" da voz do sertanejo pelo homem dominante da linguagem culta. Conforme assinala a autora Guimarães Rosa não reproduz a voz do sertanejo, mas cede a palavra a ele, mantendo-se como presença simbólica, sem voz de homem da cidade, escutando a narrativa de um homem sertanejo [...] o que se disfarça, no texto de Guimarães, é o escritor da cidade, não o sertanejo. (VICENTINI, s/d. p. 48).

No fragmento acima isto fica bem visível, o sujeito da enunciação é próprio sertanejo, expresso no pronome substantivo (eu), o ―dêitico adverbial‖ não aparece marcado pelo distanciamento, mas pela aproximação (aqui), o pronome possessivo também elimina o distanciamento entre o enunciador e o referente, assim, o sertão (dele) cede lugar ao sertão (nosso). Falando da questão da exterioridade, Albertina Vicentini ([s.d.]) salienta o modo pelo qual este aspecto é abordado na literatura. O imaginário do sertanejo não é lugar de fácil acesso ao olhar alheio, conforme ressalta: ―há uma intimidade no sertão que não se desvelou ainda. Há uma psicologia do homem sertanejo que permanece em total obscuridade" (VICENTINI, [s.p.], p. 47). O imaginário que se revela sobre o universo sertanejo é o descrito superficial em sua essência. O que é visível ao olhar de fora é apenas a ponta do ice-berg do que efetivamente é invisível e dominante do imaginário sertanejo. Este fato é constatado não apenas na literatura, mas também nos relatos de pesquisa sobre o modo de vida dos sertanejos, conforme poderemos observar na pesquisa de Edyla Mangabeira. Ao falar das características psicológicas do sertanejo, conclui: Caminhando na caatinga permanece a tudo atento, nada lhe passa despercebido- nem a queda de uma folha, nem as pegadas de um animal. No entanto ao observarmos a expressão de seu rosto, parece alheio a tudo- perdido dentro de si mesmo. Homem de pouca fala, guarda tudo o que escuta. Não pergunta porque de repente aparecemos, carregando, a tiracolo, nossas máquinas estranhas. Para ele tudo é parte do mesmo mistério imerso [...] Ele, destemido, capaz de enfrentar no matagal qualquer perigo, recua diante das forças misteriosas que regem os destinos dos homens. E tira o chapéu. E faz o sinal da cruz (UNGER, 1977, p. 37).

Conforme podemos verificar no trecho acima, a ―essência‖ do pensamento do sertanejo não se revela amplamente perante o olhar do estrangeiro, há sempre uma

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reticência entre suas ações e sua concepção e percepção de mundo. O que já temos discutido, até o presente momento, o espaço geográfico e social do sertão sempre foi construído oficialmente por um olhar alheio e lamentavelmente, etnocêntrico, razão que explica perfeitamente a fácil criação de antinomias reais e imaginárias entre centro (visão litoral) e interior (sertão). Edilberto Trigueiro (1977) aponta que um desses pontos de diferenciação entre o litoral e o sertão está na linguagem. Segundo ele, a ―língua sertaneja‖ constitui-se como elemento ―tão distanciada daquela falada no litoral‖ que chega até se organizar ―quase como um dialeto‖ adaptado às suas necessidades locais. Este autor não percebe a língua diferente da falada no litoral como algo pejorativo, apenas, entende-a como resultante de um processo de ―isolamento‖ territorial entre a população do litoral e a população das regiões mais distantes dele, no processo de ocupação. Sob a perspectiva do referido autor, quando do contato com língua sertaneja:

O idioma que ora falam se aproxima muito mais dos portugueses seiscentistas que do atual português de Portugal [...] sertanejos conservaram em grande cópia, expressões dos primitivos colonizadores ou criaram novas, quaisquer delas estranhas ao léxico atual, mas admiravelmente adaptadas ambas às suas necessidades e ao comercio de suas ideias. (TRIGUEIRO, 1977, p. 13-15).

Edyla Mangabeira descreve esta sensação de isolamento, em seus relatos, quando chegou ao sertão para pesquisar a respeito da vida econômica das comunidades ribeirinhas da região do Médio São Francisco: Margem do rio grande, no ponto onde se confunde com as águas barrentas do São Francisco, vi pela primeira vez, a Vila de antigos barões encravada no sertão, edificada no silêncio, construída na solidão, sem estrada que levasse até ela, a não ser aquelas, amplas das águas ou os caminhos abertos nas caatingas [...]era este o cenário de um palco que me pareceu deserto.[...] um espaço metafísico transmitindo a sensação do irreal do inesperado. (UNGER, 1978, p. 9, grifo nosso).

É pertinente observarmos como todas as palavras usadas para a descrição da antiga morada dos barões que vieram desbravar as terras da região do Médio São Francisco remetem-nos à ideia de isolamento e deserto. 1.5.1 O sertão sob outro ponto de vista

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Ao longo do povoamento do Brasil pelos europeus, nem sempre sertão teve a ideia de lugar árido, com longos períodos de estiagem. Em seu texto Cidades e Sertões, Gilmar Arruda discorre a respeito do sertão a partir da memória de algumas pessoas da região de Araçatuba, São Paulo. Neste trabalho, ele colhe depoimento de indivíduos que habitaram a referida região no início do século XX. Perante tais relatos, constatamos que em muitos, os depoentes concebem sertão, não como lugar de sol rigoroso e, muito menos, seco e com pouco volume de chuva, antes, eles o definiram como um espaço de ―mata fechada‖, lugar desabitado. No relato memorialístico de um dos moradores da região de Araçatuba, publicado na Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (1948 apud ARRUDA, 1999), percebemos a concepção de sertão é finita, temporariamente demarcada; com a chegada da ―civilização‖, o sertão foi acabando quando as atividades de derrubada de matas, plantio de roças, construção de ferrovias foram surgindo naquele espaço; tal afirmação corrobora para entendemos que a concepção de sertão está condicionada à falta de civilização e escassez de povoamento. Quando estes espaços passam a ser explorados, o sertão acaba. Nesse depoimento é possível verificarmos isso: O panorama dos sertões de Araçatuba está mudando inteiramente [...] não existe mais aquela mataria fechada, nem aqueles lugares tidos como desconhecidos e morada de índios adversários da Civilização. (ARRUDA, 1999, p. 129).

No relato de outro morador da região de Araçatuba, podemos constatar que ao falar sobre o período de ocupação daquelas terras, mais uma vez, aparece esta relação entre sertão e lugar desabitado: Sertão, sertão é o que não tem mais família, é só mato entendeu? Então você anda na beira do rio, o que dá um dia, dois dias, você só encontra uma residência, não encontra uma querência, você não encontra um lugar e fala, vou parar aqui, vou tomar uma água na casa daquele amigo ali, não, é tudo rio, rio e mato, rio e mato. (ARRUDA, 1999, p. 130).

Consoante podemos constatar, a concepção dessas pessoas a respeito de sertão é a de um espaço de mata fechada, um lugar inabitado. Nesse sentido, as referências espaciais são modificadas; sertão deixa de ser sertão e passa a ser cidade,

a

partir

da

interferência

do

homem.

Assim,

o

sertão

torna-se

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―cronologicamente‖ findo. Fica patente que a percepção dos habitantes da região de Araçatuba sobre o significado da palavra sertão é, consideravelmente, distinta da visão de sertão no nordeste brasileiro em cuja apreensão das pessoas sobre a ideia do que é sertão ergue-se a partir de uma concepção que abarca não apenas o espaço geográfico, mas o modo de vida em todos os seus aspectos. O sertão concebido sob esta ótica, nunca acaba, pois ele é um estado permanente, sem data limite para deixar de existir, povoado ou não, o sertão sempre será sertão. Ele não tem apenas a ver com o espaço geográfico e suas modificações pelo homem, antes, tem relação com uma construção afetiva entre o meio e o homem; nesse sentido, a sua significação não está atrelada apenas a elementos geográficos. Isto aparece em Os Sertões, quando a vegetação nativa é descrita como aliada dos conselheristas. Observem como Euclides da Cunha faz uso do recurso estilístico da prosopopeia, concedendo à vegetação sentimento de solidariedade em relação ao sertanejo: ―E o jagunço faz-se o guerrilheiro-tugue, inatingível [...] As caatingas não o escondem apenas, amparam-no.‖ (CUNHA, 2009, p. 224). Nesta parte do texto euclidiano é atribuída à caatinga a capacidade de ―amparar os jagunços― e de dificultar a ação dos soldados durante a Guerra de Canudos. No discurso literário, a construção do sertão, sob a ótica da narrativa de Guimarães Rosa, também traz uma referência de lugar desabitado, assim ele define o sertão em Grande Sertão: Veredas: ―é onde os pastos carecem de fechos, onde um pode topar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde criminoso vive seu cristo - jesus, arreado do arrocho da autoridade.‖ (ROSA, 1986, p. 7). Este sertão descrito por Guimarães Rosa já não é o mesmo concebido pelos habitantes da região de Araçatuba, em São Paulo, mas, o sertão da região localizada no Norte de Minas Gerais. Vemos que além de definir sertão como lugar desabitado, na narrativa de Rosa, o sertão também aparece como uma terra sem lei, cada um tem sua própria autoridade e dela se vale da maneira que bem lhe apetecer. Nestas definições de sertão, é fácil observarmos que há uma nítida oposição entre a civilização, o litoral e o sertão compreendido como o ―incivilizado‖ e o ―desabitado‖. 1.5.2 Do primitivo ao (in) civilizado

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Conforme assinala José Raimundo Fontes (2008, p. 8): ―A essência do significado da palavra sertão manteve-se praticamente inalterada ao longo dos séculos‖. Nos primeiros anos de colonização, a palavra sertão sob a ótica dos desbravadores, remetia à ideia de amplos territórios, ―vazios, incultos e desabitados‖. Todos estes predicados referentes ao sertão somaram-se a outras definições. Desse modo, sertão passa a designar a ―região interior - o coração da terra‖, daí adquirir o significado de ―lugar oposto ao litoral; lugar afastado e distante de grandes centros‖. Conforme ressalta José Raimundo Fontes, por um extenso período, durante a ocupação dessas terras, houve a persistência do sertão como um grande ―Eldorado‖. No imaginário de ―agentes e autoridades coloniais‖, fervilhava a ―visão fantasiosa de um lugar distante, exuberante e rico em tesouros, pedras e metais preciosos: um verdadeiro paraíso terreno, o Eldorado à espera de descobridores‖. Com isso, ainda sob a ótica desse autor, era difundida a noção de sertão ―como espaço desregrado, de desordem, onde imperava a barbárie, a irracionalidade e a ausência de leis [sic]‖. (FONTES, 2008, p. 9). [...] as expressões culturais e artísticas de qualquer sociedade, em grande parte, são sempre um dialogo entre tempos e heranças. As sociedades modernas, as suas instituições e representações, não anulam as matrizes das sociedades tradicionais. Na verdade, deitam suas raízes nas profundezas dos tempos. A sociedade moderna racional não desencantou o mundo como um todo como supunha Weber. O sertão continuou (e continua) encantado e encantando. Lá no fundo da alma de muita gente convivem tempos, valores e códigos de relações humanas de um passado imemorial com regras e gestos e atitudes atuais. (FONTES, 2008, p. 13-14).

Prosseguindo suas reflexões sobre o sertão, José Raimundo Fontes destaca o seguinte ponto: ―Com o processo de conquista e colonização, se fixaram nas entranhas da região, ricas práticas sociais que aqui fincaram raízes profundas e invisíveis, porém sensíveis ao observador arguto.‖ (FONTES, 2008, p. 14). Nas crenças religiosas do sertanejo podem ser identificadas vivências diversificadas do cristianismo. Uma religiosidade amalgamada nos cânones eclesiásticos e práticas religiosas próprias das culturas indígenas e africanas. Estas manifestações são caras às personagens das obras de Elomar, e a um só tempo, revelam-se sagradas e profanas. O que se percebe nesse processo de ―amálgama‖ religiosa é o intercruzamento

de

formas

ressignificadas em Sertanílias.

culturais

dominantes

e

identidades

culturais

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Sobre a inserção da cultura europeia no Novo Mundo e a sua imposição como superior pelos colonizadores das Américas, Antonio Cândido ressalta: O aspecto mais interessante da literatura nos países da América é a adaptação dos padrões estéticos e intelectuais da Europa às condições físicas e sociais do Novo Mundo, por intermédio do processo colonizador que é um episódio. (CÂNDIDO, 2011, p. 198).

Antonio Cândido ainda observa que a literatura produzida pelos europeus nas colônias é apenas uma variante das matrizes europeias, no entanto a influência que prevaleceu foi a da cultura do colonizador. Sobre isso, chama atenção para a análise simplista que defende ter havido uma miscigenação literária no Novo Mundo. O processo de formação da literatura brasileira não está pautado na fusão de três etnias basilares resultante do contado entre as culturas indígenas, europeias e africanas. Desse modo, ressalta:

O que houve não foi fusão prévia para formar uma literatura, mas modificação do universo de uma literatura já existente, importada com o conquista e submetida ao processo geral de colonização e ajustamento ao novo Mundo. (CÂNDIDO, 2011, p. 199).

A partir desse posicionamento, vemos que a literatura brasileira é resultante da visão do colonizador e, posteriormente, dos seus ―herdeiros‖; as matrizes indígenas e africanas ficaram, na maioria das vezes, às margens, mormente foram usadas como manifestações folclóricas e as literaturas orais pouco valorizadas na esfera canônica das produções consideradas clássicas na tradição literária brasileira. A concepção de sertão, construída por Elomar, em suas obras, ultrapassa as referências espaço-temporais; ela se imbrica nos aspectos culturais, sociais, religiosos e afetivos do homem a sua terra. Desse modo, os cânticos, festejos, ―incelença‖, as práticas culturais, sociais e religiosas evidentes na obra dele, nada mais são que a representação do cotidiano do sertanejo. Tais folguedos são manifestações que ratificam o sertão não como um espaço circunstancial, mas como algo permanente. Consoante afirma Mendes Pereira (2007, p. 25): ―Em suas histórias por meio de suas personagens, Elomar afirma a existência de práticas e crenças, correntes nos meios ‗populares‘, situadas à margem da ortodoxia, embora subordinadas ao julgamento moral e religioso de orientação cristã‖.

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Em Literatura e Sociedade, Antonio Cândido tece algumas considerações acerca das relações possíveis entre literatura e as suas nuances sociais com as fontes das quais ela emerge. No capítulo Estimulo da criação literária, o autor dá ênfase à crítica de cunho antropológico e ressalta o predomínio do olhar ―branco e civilizado‖ a respeito da sociedade. Sobre isso, cito: ―O ponto de vista preponderante nos estudos filosóficos e sociais quase até nossos dias, foi para usar uma expressão corriqueira, o do adulto branco, civilizado que reduz à sua própria realidade a realidade dos outros‖ (CÂNDIDO, 2000, p. 37). Este olhar do ―branco civilizado‖ de que fala Antonio Cândido é flagrante na tessitura textual do romance de Elomar, a diferença é que no caso do autor de Sertanílias, este olhar é civilizado, mas não é estrangeiro. Elomar é homem da terra sertaneja. O Sertão é a sua casa. A sua ―casa grande‖ está situada no seio da caatinga, e não nos grandes centros urbanos. Sua paisagem predileta é a bucólica; a sua formação acadêmica e o seu conhecimento erudito literário e musical não o afastam do homem lavrador, do vaqueiro e de qualquer outro trabalhador do campo. Seu convívio com as pessoas simples do sertão não ocorre de modo esporádico, pois é uma relação contínua, estabelecida no labor diário do trabalho no campo, no chiqueiro dos bodes etc. E o resultado dessa experiência diária é transposto para o seu mundo ficcional, construindo, por conseguinte, o seu sertão poético. Desse modo, o sertão construído por Elomar é uma espécie de fusão de dois sertões distintos, a saber, o sertão primitivo e o sertão contemporâneo. É a partir dessa contração de mundos que insurge toda liberdade de criação de um universo dito fantástico em que lógico e o ilógico são duas faces da mesma moeda. É como se o sertão habitado pelas personagens de Elomar fosse a própria sombra do sertão idealizado por ele, mas que, em muitos aspectos não existe, especialmente, nas tradições culturais. Segundo Antonio Cândido, ―a mentalidade de todos os homens tem a mesma base essencial‖ em se tratando da dualidade ―mágica‖ e lógica. Não importa se primitivo ou se civilizado, todo e qualquer homem sempre teve, e por certo, sempre terá o seu modo de interpretar o mundo, as matizes míticas e os eventos lógicos. Sendo assim, sob a ótica de Antonio Cândido, o que diferencia o comportamento do homem em relação ao ritual mágico é apenas o seu grau de envolvimento com o mágico ou com o lógico. Diante de tal constatação, o autor acrescenta:

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Os povos primitivos distinguem, essencialmente como nós, o lógico e mágico, embora na suas mentes ambos formem configurações diversas, e o mágico sobressaia proporcionalmente mais do que o lógico no tecido de sua existência. (CÂNDIDO, 2000, p. 38).

Não podemos entender com isso que apenas o homem ―primitivo‖ possuía preponderância para o mágico. Conforme assinala Antonio Cândido, o homem civilizado também se apega aos fenômenos míticos, porém, usa mais o lógico, a técnica, todavia isso não exclui sua crença no ritual mágico. Sendo assim, o homem ―civilizado‖ faz a fusão ordenada do mágico e do lógico, e exercita-o de maneira consciente, de modo que este aspecto de ilusão não lhe tira a capacidade de racionalizar o mundo e observá-lo sistematicamente. Por outro lado, é valido ressaltar que o homem ―primitivo‖ também é dotado da capacidade de ―abstrair‖ e mensurar o principio da contradição entre o lógico e mágico. Perante tal fato, fica evidente o seguinte ponto: tanto o primitivo, quanto o civilizado são dotados de concepções míticas e lógicas do mundo, não obstante, apresentam singularidades de olhar no ato de contemplar o sujeito e o objeto que compõem o mundo. Sobre a singularidade de olhar o mundo, destacamos, mais uma vez, as observações de Edyla Mangabeira Unger a respeito das relações que o sertanejo iletrado estabelece com suas crenças religiosas: Para ele tudo é parte do mesmo mistério imenso, aceita sem espanto o inusitado, porque de coisa mais estranha, já tomou conhecimento. Sabe que na casa varrida de dentro para fora, alguém há de morrer. Que nada deve ser entregue pela janela, que no sétimo dia após o parto, não pode a mãe sair do quarto porque carrega, na barra da saia, o mal de sete dias (o tétano) não passa por trás da mulher grávida porque atrapalha o parto. Não pisa em rastro de cobra e nem atravessa da corda de um animal amarrado. (UNGER, 1978, p. 37).

Voltando às discussões de Antonio Cândido, ele se opõe a teoria de uma ―mentalidade pré-lógica‖ cuja principal característica é a ―incapacidade de abstrair e observar o princípio da contradição‖. Olhando por este prisma, podemos então compreender que as relações do homem com o mágico e o lógico estão condicionadas ao meio social e cultural; estas relações que dosam o uso de uma ou de outra concepção, pois ambas são intrínsecas ao homem. Se procurarmos entender o posicionamento de Cândido, a partir do relato de Edyla, veremos que para os ribeirinhos, o tétano que provoca a morte do recém-nascido não existe, o que há de fato é um espírito maligno ávido por tragar a vida da criança. Desse

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modo, o óbito infantil pode ser evitado, simplesmente resguardando a criança no interior do quarto sete dias após o seu nascimento. Isto tem todo sentido para o homem simples, pois é o ato mágico que aos seus olhos é revestido de coerência. É uma ordem estabelecida pelo universo e deve apenas ser seguida sem qualquer questionamento. E toda esta crença no mágico, que a ele parece lógico, é transportada para sua vida cultural, suas histórias orais, contadas e recontadas, durante muitas gerações, porque consideram assuntos relevantes para que seus descendentes também tomem conhecimento sobre todos os mistérios que envolvem a vida. Eis ai a ―ideologia‖ do povo iletrado do sertão. Desse modo, Antonio Cândido ressalta: A literatura dos grupos iletrados liga-se diretamente à vida coletiva, sendo as suas manifestações mais comuns do que pessoais, no sentido de que, ao contrário do que pode ocorrer nas literaturas eruditas, nunca o artista ou poeta deixa de exprimir aspectos que interessam a todos. (CÂNDIDO, 2000, p. 42).

A literatura expressa pelos grupos desprovidos de instrução formal, geralmente, preocupa-se em propagar matéria artística de interesse coletivo. Estas produções culturais estão presentes, principalmente nas historietas de cunho moralista e nos cordéis, que mesmo impressos, deixam nítidas marcas de oralidade. Antonio Cândido assinala as funções distintas da literatura oral, segundo ele: ―Para entender a função da literatura oral, é preciso não perder de vista sua integridade estética. E é preciso começar distinguindo, nela como na literatura escrita, a função total, função social e função ideológica‖. (CÂNDIDO, 2000, p.40). No universo social e estético, a literatura oral depende da participação da coletividade para adquirir o significado para o grupo a que ela se destina. As visões de mundo e de sociedade ganham significações apenas quando acopladas às circunstâncias de produção. Neste tipo de literatura é válido o deciframento coletivo, e nunca a interpretação de leitor solitário. Em se tratando de transmissão e preservação da memória de um povo, Jacques Le Goff (1996) também aponta algumas diferenças entre a linguagem oral e a linguagem escrita. Sob sua ótica, a transmissão da memória em uma sociedade ágrafa não ocorre do mesmo modo que em uma sociedade que tem também como recurso de expressão a escrita. Ela não se desenvolve de modo automático. Compreende-se, portanto, que a memória coletiva aparece dentro de um processo

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de reconstrução generativa e não mecânica de reprodução mnemônica. ―O suporte da rememorização não se situa ao nível superficial em que opera a memória palavra por palavra [...] parece pelo contrário que o papel importante cabe à dimensão narrativa e a outras estruturas da história cronológica dos acontecimentos.‖ (LE GOFF, 1986, p. 430). Sendo assim, é pertinente compreendermos que, para Le Goff, as sociedades ágrafas apresentam mais liberdade e maior possibilidade de conservação de memória. Elas têm maiores probabilidades de se cultivar uma memória mais criativa e vigorosa em lugar de uma memória repetitiva. Esta criatividade e esta rapidez estão postas, de modo evidente, nos desafios dos cantadores do nordeste, exaustivamente estudados por Câmara Cascudo. Segundo Le Goff (1996), a escrita produz mudanças na memória coletiva de uma comunidade. Ela permite o desenvolvimento de duas formas de memória: a saber, monumento comemorativo que preserva a memória coletiva a respeito de um acontecimento memorável para um determinado povo; e o documento escrito cujas funções primordiais são armazenamento de informações, reordenação e retificação de palavras isoladas. Diante do exposto, compreendemos que para Jacques Le Goff, a transição da oralidade à escrita (memória artificial) causa profunda transformação na memória coletiva e acaba em muitos casos por aniquilá-la. Do ponto de vista discursivo, Sertanílias traz em seu escopo argumentativo uma gama de recursos da literatura oral, sobretudo, no que concerne aos diálogos desenvolvidos pelas personagens ―iletrados‖. O protagonista que é um ―vaqueiro culto‖ cuja oralidade é inteiramente expressa por meio de língua vernácula salienta o valor da linguagem oral no dialeto catingueiro. Esta constatação pode ser endossada pelo trecho a seguir, no diálogo de Sertano com uma moça sertaneja que o entrevistara. Diante do questionamento da jovem se seu interlocutor publicaria a entrevista sem transcrever os diálogos entre ambos para o vernáculo, ele sentenciou: Vou publicar na íntegra como você fala. E fique sabendo que é muito bonito esse dialeto, esta maneira simples de se expressar. Compreendo tudo. [...] mais me apraz ouvir teus falares em sertanês que no vernáculo. (MELLO, 2008, p. 210; 217, grifo nosso).

Prosseguiremos às discussões desenvolvidas por Antonio Cândido a respeito das funções da literatura, e seus aspectos sociais e estéticos, pois as consideramos

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importantes para o desenvolvimento das análises acerca da função total do gênero literário, e do modo como esta função sobrepõe-se no contexto local da obra ampliando-lhe o sentido: [...] a função total deriva da elaboração de um sistema simbólico, que transmite certa visão de mundo, por meio de instrumentos expressivos adequados. Ela exprime representações individuais e sociais que transcendem a situação imediata, inscrevendo-se no patrimônio do grupo. (CÂNDIDO, 2000, p. 41).

Nesse sentido, este tipo de função ultrapassa os sistemas culturais e sociais da criação artística, e adquire um caráter universal e atemporal, desvencilhando-se do momento e do ambiente em que a obra foi criada. Sobre isso Antonio Cândido diz: A grandeza de uma literatura, ou de uma obra, depende de sua relativa intemporalidade e universalidade, e estas dependem por sua vez da função total que é capaz de exercer, desligando-se dos fatores que a prendem a um momento determinado e a determinado lugar. Esta função é aparentemente menos acentuada na literatura oral, que merece limitar-se no âmbito restrito dos grupos em que atua e que a produziram. Todavia quando surgem possibilidade de comunicação, entre os grupos, a sua universalidade pode afirmar-se, e até mais do que sucede com as obras de literatura erudita- pois se de um lado ela radica em experiências peculiares ao grupo, de outro encarna certos temas da mais acentuada intemporalidade, como os de alguns mitos, análogos em vários povos. Daí o encanto e a emoção que as lendas e as canções primitivas despertam em nós, mesmo precariamente traduzidas e arrancadas ao seu contexto. (CÂNDIDO, 2000, p. 41).

A esse respeito, Cândido (2000) destaca a força de transmissão que a literatura oral pode ter para disseminar com maior eficácia seus mitos mais do que a cultura erudita. Quando tratamos dos mitos e das lendas do nordeste, faremos uma abordagem mais ampla sobre o processo de transmissão da literatura oral no sertão nordestino. A função social por sua vez, segundo assinala Antonio Cândido, insere-se nos valores culturais e também reforça a consciência dos valores sociais destacando a unidade fundamental do contexto (mundo) que ela representa, e a partir disso, revela a oposição entre este mundo de onde emana e outras culturas: Comporta o papel que a obra desempenha no estabelecimento de relações sociais na satisfação de necessidades espirituais e

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materiais, na manutenção ou mudança de certa ordem na sociedade. (CÂNDIDO, 2000, p. 41).

Em Sertanílias, esta função social a que Antonio Cândido refere-se aparece sublimada em narrativas orais recuperadas em alguns trechos do romance, conforme podemos verificar nos fragmentos abaixo, quando Sertano encontra um grupo de trabalhadores braçais preparando a lavoura. Depois de cumprimentá-los, segue viagem, e os cantadores voltam ao labor de lavrar a terra cantando a ―chula‖: Bastião Vermei Pau aqui da díêro Pra fazê marqueza Oi no Rio de Janeiro... Lá vai o sol entrano Vermei feito um latão Alegria prus camarada Tristeza pru patrão. (MELLO, 2008, p. 40).

No trecho acima temos um exemplo de cantoria de ―chula‖ durante o cultivo da terra. Nela, veremos como o trabalhador simples, enquanto executa seu labor, relata a relação de trabalho entre o patrão e os empregados. Ao celebrarem o fim da jornada cantam: ―Lá vai o sol se entrando‖, momento de alegria, pois a merecida hora do trabalho está findando. Fica claro que o final da jornada provoca a insatisfação do patrão: ―tristeza pru patrão‖. Segundo Cascudo (2000), no nordeste, o cantar vai muito além do divertir, do distrair, do alegrar as festas que acontecem nas casas espalhadas pela região. Este ato não tem apenas a finalidade de espairecer o povo e tornar mais ameno o árduo labor de longas horas exposto sob o sol inclemente. Em algumas ocasiões, o cantar também é o momento de lazer do povo que se aglomera nas ―latadas‖ das casas em tempos de festas. No sertão, cantar é um ofício que transpõe a intenção do lúdico, antes, significa preservar a memória coletiva de um povo, por isso, é prática do sertanejo, enquanto lavra a terra, cantar ―chulas‖, cantigas executadas durante o trabalho ou colheita e/ou ceifa das lavouras. Podemos verificar outro exemplo de chula na música Chula no terreiro de Elomar: Mas cadê meus cumpanhero, cadê? que cantava aqui mais eu, cadê? Na calçada no terreiro, cadê? Cadê os cumpanheiro meus cadê?

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Cairo na lapa do mundo, cadê? lapa do mundão de Deus, cadê? (MELLO, 2008, p. 40).

É muito comum ouvir os trabalhadores rurais cantando, durante a jornada de trabalho. Segundo a ótica de Câmara Cascudo, o canto e a dança são elementos inseparáveis do povo brasileiro. Sobre isso afirma: ―filhos de raças cantadeiras e dançarinas, o brasileiro instintivamente possui simpatias naturais para essa atividade inseparável de sua alegria.‖ (CASCUDO, 1984, p. 37). A tarefa de cantar para o sertanejo, não se restringe aos cantadores, estas cantorias constituem tarefa de conceder voz às pessoas que tiveram suas histórias silenciadas. Por isso, mesmo sendo importante a presença dos cantadores profissionais para a transmissão da memória oral, as chulas dos terreiros, cantadas pelos leigos durante o labor nas lavouras, e no trato do gado, constituem-se também eficazes instrumentos de transmissão da cultura oral, entre muitas gerações. As histórias e cantigas que por inúmeras razões não foram impressas, continuam vivas por meio da tradição oral e são perpetuadas no idioma popular do nordestino. Cantar enquanto lavra a terra é um ato mnemônico que estimula a anamnesis, favorece a, recordação, recolection. (RICOEUR, 2007, p. 23). Desse modo, fazer cantoria durante os folguedos, e cantar ―chulas‖ na execução do labor é testemunhar a história sob a ótica dos vencidos e, muitas vezes, por isso, por em ―xeque‖ a história dos vencedores. Segundo Câmara Cascudo, a cantoria pode ser definida como: ―a voz da multidão silenciosa, a presença do passado, o registro das emoções anteriores, a História sonora e humilde dos que não têm história. É o testemunho, o depoimento.‖ (CASCUDO, 2000, p. 115-119). Sobre a tradição dos cantadores de desafios, Cascudo destaca que o ofício de cantar é passado de pai para filho. Conforme aponta, as cantorias exercem o papel de guardiã na memória popular. Falando sobre a missão dos cantadores de desafio no Nordeste de perpetuar a memória do seu povo, o autor acrescenta: ―A voz paterna emudecida na morte, ecoa nos lábios filiais, numa homenagem de saudade.‖ (CASCUDO, 2000, p. 119).

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2 AS RELAÇÕES TRANSTEXTUAIS EM SERTANÍLIAS

Quero que as pessoas percebam que com a riqueza de nossa terra fazemos artistas como Guimarães Rosa, como João Cabral de Melo e Neto, que isso é a nossa maior riqueza. Sem essa convivência, sem este orgulho, nunca deixaremos de ser colonizados, subjugados, aviltados. 13 Elomar Figueira Mello

A proposta de transposição de alguns modelos de linguagem, cultura e costumes da Idade Média para o sertão contemporâneo estão disseminados em toda a obra. Estes aspectos são percebidos no romance mesmo antes do leitor folheá-lo. Segundo assinala Genette (2010), uma obra pode ser compreendida por seu leitor mesmo antes dele ter contato com o texto. Isso ocorre a partir das afinidades textuais recorrentes na obra. Genette aponta cinco tipos distintos de relações, e as denomina de transtextuais. Nomeia-as como: ―intertextualidade, paratexto, metatextualidade, hipertextualidade e arquitextualidade‖. O crítico adverte-nos, no entanto de que estes tipos de transtextualidade não se constituem como ―classes estanques‖, pois entre elas existem, antes de qualquer coisa, uma relação de ―comunicação‖ ou de ―intersecção‖ reveladas a partir de ―alusões textuais‖ recorrentes tanto nos elementos metatextuais, quanto nos paratextuais (GENETTE, 2010, p. 22). Neste trabalho, daremos ênfase à segunda e à quarta categoria; nossa escolha deve-se a uma questão de maior densidade de conteúdo explicativo, uma vez que, estas duas categorias mostraram-se mais completas para entendemos algumas questões transtextuais em Sertanílias que evidenciam a junção de dois mundos romanescos, um da idade medieval e outro sertanejo. Nesse processo, um mundo sobrepõe-se ao outro, mas coexistem na tessitura da trama até o final. Ainda sob a ótica de Genette (2010, p. 76): ―a hipertextualidade é apenas um dos nomes dessa incessante circulação dos textos sem a qual a literatura não valeria a pena‖. Desse modo, sobre os procedimentos de textualidade, o autor destaca que ocorre a sobreposição do novo sobre o velho, todavia sem promover o apagamento desse último:

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Texto retirado de uma entrevista de Elomar Figueira Mello concedida à Revista VEJA em 27 de Junho, 1979.

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A arte de ―fazer o novo com o velho‖ tem a vantagem de produzir objetos mais complexos e mais saborosos do que os produtos ―fabricados‖: uma função nova se superpõe e se mistura com uma estrutura antiga, e a dissonância entre esses dois elementos copresentes dá sabor ao conjunto. Essa duplicidade do objeto, na ordem das relações textuais, pode ser figurada pela velha imagem do palimpsesto, na qual vemos, sobre o mesmo pergaminho, um texto se sobrepor a outro que ele não dissimula completamente, mas deixa ver por transparência. (GENETTTE, 2010, p.144).

Pautando-nos nas considerações que Gérard Genette faz acerca dos textos que se constroem a partir da justaposição de um texto novo sobre um antigo, poderemos entender que o romance de Elomar emerge por meio de hipertextos, tendo em vista a possibilidade de reconhecimento de outros textos antepostos sobre o seu. Eis o conceito de hipertexto para Genette (2010, p. 07): ―todas as obras derivadas de uma obra anterior, por transformação ou imitação‖. O termo hipertexto foi cunhado pelo autor, a partir de outro termo bem mais antigo, a saber, ―palimpsesto‖. Em linhas gerais, Genette (2010, p. 07) assim o define: um palimpsesto é um pergaminho cuja primeira inscrição foi raspada para se traçar outra, que não a esconde de fato, de modo que se pode lê-la por transparência, o antigo sob o novo. Perante a definição de hipertexto, poderemos entender que boa parte da construção textual de Sertanílias perpassa por elementos os quais Genette designa de ―transcendência textual do texto‖. Isso significa que quando um texto apresenta de modo explícito ou não relação com outros textos, ocorre a ―transtextualidade‖ (GENETTE, 2010, p. 11). Seguindo suas reflexões acerca dos conceitos de um texto que deriva de outro preexistente, Genette amplia o conceito de hipertextualidade, entendendo-o como resultante da relação estabelecida entre dois subconceitos: hipertexto e hipotexto. Assim o define: Entendo por hipertextualidade toda relação que une um texto B (que chamarei hipertexto) a um texto anterior A (que, naturalmente, chamarei hipotexto) do qual ele brota de uma forma que não é a do comentário. (GENETTE, 2010, p. 18).

Vejamos como isso sucede no romance de Elomar em dois momentos distintos. O primeiro exemplo de hipertextualidade aparece na retomada do quinto canto Das Violas da Morte do Auto da Catingueira quando este episódio é recuperado no romance. Mais à frente, faremos a análise do referido ―Canto V‖.

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Segundo as explicações de Genette acerca da distinção entre ―hipotexto‖ e ―hipertexto‖, entendemos como o primeiro o Auto da Catingueira, a obra completa; ao passo que o segundo é o fragmento dessa obra, inserido em Sertanílias. Este procedimento é nomeado por Genette como ―texto de segunda mão‖, ou seja, um texto resultante de outro texto preexistente. Em última instância: ―presença efetiva de um texto em um outro.‖ (GENETTE, 2010, p. 17). Além da hipertextualidade, Genette aponta outro elemento que compõe os cinco tipos de transtextualidade: a paratextualidade é composta por informações externas que giram em torno do texto principal do livro. Os paratextos localizam-se nas partes anteriores, tais como capa, título, epígrafe, advertência, prefácio, ilustrações, e também, nas partes pós-textuais: posfácio, entrevistas, comentários e notas de rodapé. O termo paratextualidade foi cunhado por Gérard Genette, e está estritamente ligado a materiais auxiliares nas leituras e interpretações do texto central. O crítico assinala que os elementos paratextuais são importantes, uma vez que agregam ao texto informações proveitosas à compreensão do leitor. Desse modo, Genette (2006) diz: [...] título, subtítulo, intertítulos, prefácios, posfácios, advertências, prólogos, etc.; notas marginais, de rodapé, de fim de texto; epígrafes; ilustrações; errata, orelha, capa, e tantos outros tipos de sinais acessórios, autógrafos ou alógrafos, que fornecem ao texto um aparato (variável) e por vezes um comentário, oficial ou oficioso, do qual o leitor, o mais purista e o menos vocacionado à erudição externa, nem sempre pode dispor tão facilmente como desejaria e pretende. (apud FAGUNDES; SANTOS, 2012, p. 9-10).

A hipertextualidade declara-se, mais frequentemente, por meio de um índice paratextual que tem valor contratual. Desse contrato, nasce o direcionamento do jogo ficcional que será estabelecido entre autor e leitor. Em Sertanílias, os elementos paratextuais adquirem um ―valor contratual‖ de que fala Genette, a partir de dois elementos dispostos na organização material do romance. O primeiro é a capa do livro que ratifica o título da obra (Sertanílias- Romance de Cavalaria), junto ao título, temos a ilustração de um brasão contendo vários elementos heráldicos. Isto, previamente, avisa ao leitor a temática do enredo. O segundo elemento paratextual é o prefácio, cujo nome apresenta-se na obra como Prelafa (já analisada aqui). Desse modo, entendemos que a respeito do campo hipertextual, Genette

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descreve a hipertextualidade não como uma categoria de texto, mas como uma ―classe de texto‖; e a textualidade e a paratextualidade como aspecto da textualidade. Sobre isso, ele acrescenta: ―não há textos sem transcendência textual [...] é próprio da obra literária que, em algum grau e segundo as leituras, evoque alguma outra e, nesse sentido, todas as obras são hipertextuais.‖ (GENETTE, 2010, p. 22; 24). Em linhas gerais, Genette analisa a relação ―entre o texto e seu leitor‖ como algo ―socializável e contratual‖. A respeito do processo pelo qual se formam as relações transtextuais, ele fornece ao leitor um lugar de destaque na percepção dialógica

presente

em

uma

obra.

Acerca

disso

diz:

―Quanto

menos

a

hipertextualidade de uma obra é maciça e declarada, mais sua análise depende de um julgamento constitutivo, e até mesmo de uma decisão interpretativa do leitor.‖ (GENETTE, 2010, p. 22, grifo nosso). Usando aqui uma expressão de Genette. Podemos dizer que toda obra possui ―ecos parciais‖, de outras obras. Seguindo as suas sistematizações: As diversas formas de transtextualidade são ao mesmo tempo aspectos de toda textualidade e, potencialmente e em graus diversos, das categorias de textos: todo texto pode ser citado e, portanto, tornar-se citação, mas a citação é uma prática literária definida, que transcende evidentemente cada uma de suas performances e que tem suas características gerais. (GENETTE, 2010, p. 24).

Partindo do pressuposto de que a literatura é uma fonte dialógica inesgotável, nenhuma obra é genuinamente inédita, em seus cantos e recantos há ―ecos‖ inesgotáveis de outras vozes, outros tempos, outros saberes que se revelam pelas suas constituições transtextuais, outros tantos textos prontos a serem reutilizados, reelaborados, ressignificados. Conforme assinala Genette: Nenhuma forma de hipertextualidade ocorre sem uma parte de jogo, inerente à prática da reutilização de estruturas existentes: no fundo, a bricolagem, qualquer que seja ela, é sempre um jogo, pelo menos no sentido de que ela trata e utiliza um objeto de uma maneira imprevisível, não programada e, portanto, ―indevida‖ – o verdadeiro jogo comporta sempre um pouco de perversão. (GENETTE, 2010, p.145).

Para Rosa Borges dos Santos (2012), a paratextualidade compõe-se a partir de matérias que orbitam em torno do texto principal, e nele acrescentam

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informações que ampliam a sua interpretação. Segundo os autores, os elementos paratextuais são representados: ―por entrevistas, matérias de jornal e certificados de censura‖ (SANTOS, 2012, p. 2696). Sob a ótica de Genette, o paratexto divide-se em dois blocos, a saber: ―o peritexto e o epitexto‖. Enquanto o primeiro ocupa-se de apontar ―o nome do autor, título, subtítulo e dedicatória, prefácio, epígrafe e notas‖; o segundo ainda divide-se em duas subcategorias, a pública: entrevistas, colóquios e conferências e a privada: correspondências, confidências, diários íntimos. Como veremos, no decorrer da análise do livro, o ponto intrincado para se analisar o romance de Elomar, no que diz respeito ao paratexto, consiste nesta falta de divisão espacial, tendo em vista que os epitextos aparecem ―materialmente‖ integrados ao livro, como se fizessem parte da trama ficcional.

2.1 A CAPA: UMA LEITURA ICONOGRÁFICA

Vejamos a partir daqui a maneira que estes elementos paratextuais aparecem como suporte da obra de Elomar. Vamos iniciar a análise pela capa do livro. Nela temos a primeira referência de influência medieval, posto que esta parte material do livro é composta por um emblema de couro, sobre o qual, em alto relevo aparece um brasão de armas contendo escudo e alguns ornamentos. Nesta parte do trabalho, ocupar-nos-emos do significado de cada símbolo no emblema que compõe a referida capa. Em estudos desenvolvidos sobre as origens e as regras que regem a composição e a interpretação dos brasões, dos escudos e das armas, Vera Lúcia Bottrel Tostes (2011, p. 13) assim define a heráldica: ―é arte a ciência que determina, produz e estuda os brasões, interpreta as origens e o significado simbólico e social de família, grupo, nação ou instituição‖. Na Idade Média, a pessoa encarregada de fazer a análise cientifica da heráldica era chamada de ―heraldista‖, o ―Heraldo ou Arauto, nobre, aristocrático que a especialidade era criar as regras de composição e interpretação dos brasões.‖ (TOSTES, 2011, p. 25). Ainda segundo Tostes, a própria palavra heráldica origina-se da palavra Arauto ou Hardult, em consonância com Tostes, a respeito da heráldica, Eduardo Duarte acrescenta que sempre houve nela artefatos de significações ―artísticas, sociais e de poder‖. Atualmente, a heráldica tem sido muito utilizada para se compreender, sob várias perspectivas, os elementos que a compõem:

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Considerada há pouco tempo como ―algo risível e pouco sério‖ por muitos historiadores, hoje a heráldica é uma Ciência auxiliar da História, ou mesmo uma Ciência Histórica, com ampla utilidade nos vários campos, desde o sociológico ao artístico, passando pelo político, jurídico, entre outros. Como ciência, a heráldica é sempre muita influenciada pela moda, seja a cultural, a social ou a política. Podemos evidentemente acrescentar a artística. (DUARTE, 2011, p. 35).

No mundo medieval europeu, especialmente, na Baixa Idade Média, tais insígnias representavam o valor social de um indivíduo, de um grupo ou até mesmo de uma nação e/ou de um território. Segundo assinalam Matos e Bandeira (1969, p.19), durante a era medieval, a confecção dos Brasões seguia uma recomendação acerca do material mais apropriado a ser utilizado em sua composição. Cada elemento que compunha tais emblemas tinha um significado especifico, portanto, nada era posto de modo aleatório. Toda e qualquer insígnia era minunciosamente pensada; a saber os aspectos gráficos do escudo, as cores, a matéria-prima, entre outros. Via de regra, as cores utilizadas nestes objetos eram denominadas de ―esmaltes‖. Estes se subdividiam em ―metais‖ (ouro e prata); os ―esmaltes‖ propriamente ditos, compostos por umas dessas cores: (vermelho, azul, verde, púrpura ou preto) cada cor tinha um significado especifico, e por meio delas, os grupos eram diferenciados nas batalhas, como aliados ou inimigos, nos campos de batalhas ou nos torneios; e por fim, havia também os compostos por ―Forros‖ ou ―Peles‖ de (arminhos e Veiros, a parte metálica do brasão). Sobre estes elementos Vera Lúcia Bottrel Tostes faz as seguintes considerações: As peles, na heráldica, são a combinação de dois esmaltes associados de uma maneira convencionada e estilizada, a fim de lembrar as antigas peles com que, no séc. XII, os combatentes cobriam partes de seus escudos, para reforçá-lo, protegê-los ou decorá-los. O veiro é a pele de um animal encontrado, encontrado na África, que tem o ventre branco e dorso azul acinzentado. Foi muito usado na Idade Média. O arminho foi uma pele mais apreciada que o veiro. É rara e muito cara. É constituída da parte branca da cauda do animal e da mosqueta negra da extremidade. (TOSTES, 2011, p.3940).

A esse respeito, discorrendo sobre as heráldicas, e o uso adequado dos esmaltes nos brasões no século XII, Marques de Abrantes acrescenta: O conjunto de esmaltes e metais que mais copiosamente se nos depara a ser adoptado na época em questão é o ouro e o vermelho,

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enquanto que o verde é inexistente, rareando extremanente os arminhos, mais abundantes os veiros são aproveitados nas mais variadas disposiçoes [sic]. (ABRANTES, 1992, p. 21).

A partir das leituras de Vera Tostes e outros autores que tratam do tema, percebemos que o brasão exposto na capa de Sertanílias procura seguir as regras de composição dos emblemas da Idade Média. Não obstante, no romance Sertanílias, os elementos que remetem ao mundo medieval são substituídos por outros pertencentes à cor local das paragens do sertão da Bahia. A partir desse ponto, iremos analisar estes elementos, a saber: o aspecto gráfico, os ornamentos e a matéria de que esta insígnia é feita. Cada artefato mencionado é importante para se compreender a regra de composição e interpretação de um brasão. Segundo Vera Tostes, as formas dos escudos, bem como, a forma de defesa, ou seja, as armas que aparecem no interior deles variam de acordo com seu país de origem. O escudo da capa do romance em análise é classificado, segundo Tostes como português- espanhol. Obviamente, recebe este nome porque foi usado durante a Idade Média por estes dois países. (TOSTES, 2011, p. 29). No mencionado período, as armas do escudo eram postas nos brasões com o propósito de revelar quais eram os aparatos bélicos usados por um povo nos combates, tanto para defender e/ou ampliar seus domínios territoriais, quanto para revelar outras características individuais ou de um grupo. Assim, Tostes (2011, p. 30) define o escudo: ―Superfície limitada em formas variadas, sobre a qual se colocam as armas‖. Cada figura que compunha os brasões possuía um significado especifico. Segundo Tostes, estas figuras heráldicas dividiam-se em três categorias: as primeiras, denominadas de naturais, eram compostas por animais, plantas, árvores, astros, seres humanos; seguindo a sequência, havia as artificiais cujos elementos eram a guerra, a caça, as artes, os ofícios, a arquitetura militar, a cavalaria, cerimônias religiosas entre outros; e por fim, as últimas que recebiam duas denominações: quiméricas e fantásticas; a este grupo juntavam-se as figuras de um ser mítico, lendário, a saber: dragão, centauro, serpente, unicórnio, entre outros. Conforme já foi dito, a utilização de símbolos, cores e materiais na composição dos brasões medievais não eram feitas de modo aleatório, antes, toda a confecção desses objetos obedecia às leis que eram universalmente aceitas. Consoante assinala Tostes:

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Nas duas primeiras [cruzadas], indivíduos de regiões diferentes que tinham costumes e línguas próprias se confundiam nos acampamentos e nos campos de batalha. Com a finalidade de evitar a desordem anterior, durante a terceira Cruzada o Rei da França, Filipe II, e o da Inglaterra, Henrique II, decidiram que cada grupo se faria representar por cores próprias, facilitando o reconhecimento imediato de cada língua e a comunicação entre os componentes. (TOSTES, 2011, p. 17).

O brasão, em Sertanílias, também tem um significado especifico na representação das paragens sertanejas. Na sua composição observa-se o uso de elementos ―naturais‖ e ―artificiais‖. A primeira classificação deve-se à presença de animais, e a segunda é devido à presença das armas. Tais insígnias são imbuídas de sentido para o mundo sertanejo. Com base na ilustração da página a seguir, examinaremos cada elemento de composição e seu respectivo significado.

2.2 OS ELEMENTOS INTEGRANTES DO BRASÃO A partir da ilustração exposta abaixo (Figura 1), constatamos que a capa do romance reproduz a imagem de uma insígnia que obedece às regras e os modelos exigidos nas confecções dos brasões medievais. O escudo aproxima-se do formato denominado de ―escudo espanhol ou português‖: figura retangular, na parte superior e na inferior, ligeiramente arredondada nas bordas. Quanto à textura gráfica, a pele foi o material utilizado para se confeccionar o brasão. Esta forma de escudo segue um dos modelos heráldicos usados nas grandes batalhas durante a Idade Média. Há, entretanto, consoante o já exposto, a substituição dos ornamentos medievais por artefatos que remetem ao mundo sertanejo brasileiro. Desse modo, percebemos nos elementos a recuperação dos ornamentos de composição medieval. Além de uma contracapa de couro, centralizada sobre a capa, temos também, escrito em alto relevo o título Sertanílias, abaixo dele, segue um brasão de armas contendo escudo e ornamentos.

64 Figura 1 - Brasão

Fonte: Mello (2008)

Outro elemento paratextual importante na compreensão do romance é o título da obra. Sertanílias é a narração dos feitos do povo sertanejo. Assim como Os Lusíadas narra os feitos do povo lusitano, o romance de Elomar narra os feitos do povo sertanejo. Desse modo, ela seria uma ―epopéia‖ sertaneja. O protagonista do romance define Sertanílias como o livro onde se narra as ―Sertanílias‖, a saber, os feitos dos valentes vaqueiros, dos que desbravavam o sertão com machado e enxada, o sertão dos repentistas, dos cantadores errantes, dos bravos e dos esquecidos tropeiros que enfrentam na desolação do ermo o jaguar traiçoeiro e os bandidos da estrada. (MELLO, 2008, p. 234). Na parte de cima do escudo, está exposta a ilustração de uma casa senhorial. Este desenho pode ser uma transposição do castelo que nos brasões medievais significava segurança. O casarão ilustrado no brasão do livro, também pode ser uma referência a casa senhorial denominada por Sertano como: ―Casa dos Baxio dos Pelegos no Sertão Profundo‖. (MELLO, 2008, p.235). Consoante assinala Tostes, era comum o uso de construções nos ornamentos dos escudos, sobretudo, em emblemas de cidades ou país. A autora divide as ―construções em três grupos, a saber: as brasonadas ―abertas‖, ―iluminadas‖ e ―lavradas‖. Seguem as diferenças entre elas, segundo a ótica da autora:

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São brasonadas: abertas quando apresentam esmaltes diferentes na porta; iluminadas quando se referem às janelas, frestas ou seteiras. Se apresentam contorno formando pedras, designam-se lavradas [...] das construções o castelo e as torres são as mais frequentes. (MELLO, 2010, p. 104, grifo do autor).

Na parte central do escudo em forma de ―X‖ encontram-se as ilustrações de dois ―artefatos de guerra‖, o facão e uma espingarda. O primeiro sugere a transposição semântica da espada usada pelos cavaleiros medievais, ela significa ―justiça e honra‖. Assim como a espada era imprescindível nos campos de batalhas na Idade Média, o facão é fundamental para os labores do sertanejo, no meio da inóspita vegetação em que desenvolve suas atividades diárias. Em muitas guerras, este objeto foi usado como arma para confronto com os inimigos. Em Sertanílias, a espada medieval é substituída pelo facão ou pelo punhal, assim como a primeira, as duas últimas também se configuram como armas que fazem parte das indumentárias de seus heróis. No passado, as brigas pessoais que aconteciam entre os sertanejos, muitas vezes, eram resolvidas com o uso do facão. Empunhando esta arma, o ofendido ―lavava sua honra perante uma afronta pública‖ (Veremos um exemplo dessa lavagem de honra quando analisarmos o capítulo que trata do diálogo entre o Auto da Catingueira e Sertanílias). A espingarda tinha, praticamente a mesma função do facão, no cotidiano do sertanejo. Em Sertanílias, o protagonista tem sempre na cintura um ―facão cimitarrado‖ 14. O trecho a seguir traz um exemplo de uso do facão. Trata-se do momento em que Sertano é tomado de assalto em uma emboscada por quatro salteadores: Súbita e violentamente, o estranho, sem o menor aviso ou grito de guerra, desembainha o ―ferrão‖ e parte para lancear o cavaleiro, que em se endireitando num fulminante contragolpe de facão cimitarrado, cepa o ferrão da charrua, e postando-se endireitado com muita firmeza, silencioso e de olhos fitos nos bandidos. (MELLO, 2008, p. 72).

A partir das considerações expostas, é possível percebermos que o facão para o sertanejo vai muito além da função de trabalho, e em muitas ocasiões, foi usado como arma de combate, ataque ou defesa. A destreza com a qual o 14

Cimitarra. Segundo o dicionário Larousse Cultural de Língua Portuguesa, este artefato é de origem persa Chimchir Sabre oriental de lamina curva e larga, que se vai alargando no sentido da sua extremidade e que tem um só gume (no lado convexo).

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protagonista utilizou o facão foi fundamental para que ele se defendesse dos salteadores. É importante ressaltar, entretanto que o facão é um artefato cuja utilidade não está atrelada apenas às atividades bélicas; ele parece fazer parte da indumentária do vaqueiro até nos momentos de festa e descontração entre amigo. Elomar revitaliza o significado dessa arma no capítulo O Senhor dos Cavalos: ―no terreiro, fogueira, muita gente armada pelo lado de fora nas calçadas, grupo em treino de lança, facão, etc.‖ (MELLO, 2008, p. 168, grifo nosso). Conforme já sinalizamos acima, no Auto da Catingueira, o facão aparece como objeto fundamental para o sertanejo. Ele foi a arma usada por dois cantadores de desafios que disputavam o amor de Dassanta, uma jovem cuja beleza fascinava todos os homens que a conheciam. Elomar recupera esta história em Sertanílias, no capítulo intitulado Un Chevalier Dans La Tempete. O trecho a ser reproduzido a seguir trata do momento que Sertano e seus companheiros testemunham a peleja dos cantadores com os facões: ―assistem na sala a peleja dos cantadores. Quando saem para o terreiro os cantadores, nos primeiros tinires do facão [...]‖. (MELLO, 2008, p. 96). Voltando para o brasão, analisadas as partes superiores e centrais do escudo, verificaremos, a partir desse ponto, os elementos que compõe as partes laterais e inferiores dele. O cavalo que aparece do lado esquedo significa presteza a qualquer ocasião. Vera Lúcia Bottrel Tostes ressalta a pouca representação do cavalo, tanto na heráldica medieval, quanto na heráldica contemporânea. Ela explica essa exígua reprodução equina: ―a raridade dos cavalos nos brasões, se prende ao fato de ser difícil usá-lo como figura falante, no entanto foi muito usado nos selos equestres dos cavaleiros e nas indumentárias dos senhores feudais. Quando brasonado aparece sempre galopante.‖ (TOSTES, 2011, p. 85). Como se vê, o animal ilustrado na capa do romance não foi e continua não sendo tão usual como ornato nos emblemas, no entanto no livro de Elomar, aparece exatamente como convém ser representado, quando brasonado, está galopante. Prosseguindo a análise dos ornatos, do lado direito, notamos a presença da ilustração de um chapéu, provavelmente de couro. Tal aparato é elemento imprescindível nas indumentárias do homem sertanejo. Não só o chapéu, como também o jaleco de couro que serve de proteção contra a vegetação espinhosa que forma a flora da região. Vera Lúcia Bottrel Tostes fala da preocupação que o homem sempre teve, sobretudo, nas guerras, com a proteção da cabeça: ―[...] desde a

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Antiguidade, o homem, quando em luta, preocupou-se com proteger a cabeça. Os romanos usaram capacetes de metal e couro ornamentado.‖ (TOSTES, 2011, p. 107). E por fim, completando os elementos de composição do brasão, na parte inferior, aparece o solo como parte do ornamento do escudo. Todos estes elementos substituem os artefatos que tradicionalmente faziam parte da sistematização heráldica medieval com seus símbolos e reconhecimentos políticos, econômicos, culturais, religiosos etc. Nesse sentido, compreendemos que a heráldica é uma ciência capaz de transpor tempos e espaços sociais, e assim receber novas significações em outros contextos. Sobre isso, Vera Lúcia Bottrel Tostes apresenta-nos um exemplo: Modernamente, os escudos ainda são usados por povos africanos, que até a colonização, se utilizavam de instrumentos bélicos sem a influência da tecnologia de guerra. Com a colonização e as recentes independências, serviram-se das cores dos escudos para formarem suas cores nacionais, como foi o caso do Quênia, que conserva a mesma forma dos escudos primitivos e as mesmas cores: negro, vermelho e verde. (TOSTES, 2011, p. 30).

A partir do posicionamento da autora, é possível percebermos o caráter de transposição da heráldica, sua capacidade de influenciar e de se propagar no que diz respeito aos aspectos artísticos, sociais e culturais de uma para outra sociedade. Em Sertanílias, é verificável o caráter de transposição de elementos agregados em tempos remotos para artefatos que remetem, geralmente a povos colonizados pelos europeus. Afinal de contas, o que são o facão, a espada, o chapéu de coro e a casa grande, senão símbolos do período de conquista do europeu no ―Novo Mundo‖ no processo de colonização? Tantos os aparatos bélicos quanto o chapéu de couro cuja representação faz parte da indumentária dos desbravadores do sertão são objetos que refletem uma realidade a qual abarca aspectos histórico-culturais, político-ideológicos e também geográfico-econômicos. Desse modo, é pertinente destacarmos que ao fazer substituição de elementos de representações medievais para elementos do ofício dos povos colonizados, os emblemas de Sertanílias tornam-se elementos reveladores da identidade de um dos povos conquistados, a saber, o sertanejo baiano. A recuperação de alguns símbolos medievais pode ser entendida por via dupla, uma semântica e outra sintática. De acordo com Tiago Berg, a análise semântica dos símbolos é realizada a partir do significado do conteúdo de cada

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brasão. Por seu turno, a projeção da ―análise sintática‖ dos símbolos realiza-se a partir do posicionamento e organização que estes estabelecem com as outras partes que compõem o brasão. Olhando por este prisma, o conteúdo simbólico dos ornamentos brasonados, na capa do livro, revitaliza o processo histórico de povoamento do sertão, inclusive do ―sertão da ressaca‖, referente inicial da trama de Sertanílias. Tal revitalização estiliza os brasões de configuração medieval e fornecelhe uma significação mais restrita, a partir de emblemas militares, econômicos e também elementos físicos que remetem seu significado não mais para a Idade Média, mas para o processo de conquista do ―Novo Mundo‖. Sobre isso cito Tiago Berg: Nas Américas, os brasões procuram estilizar emblemas das vitórias militares (canhões, fuzis, espadas e machados) e aspirações republicanas (barretes frígios, fasces consulares), símbolos de caráter econômico-comercial (rodas aladas, cornucópias, navios mercantes), além de estrelas como categorias territoriais (estados, províncias, departamentos) e animais da fauna local. Entretanto, há uma série de brasões que trazem como emblemas principais elementos físicos (montanhas, estreitos, mares, rios, lagos, campos, etc.), que conferem a esses símbolos uma alta representatividade geográfica. (BERG, 2012, p. 5).

Sobre a significação dos brasões na América, Berg (2012, p. 5) afirma que ela pode revelar ―o processo de construção de uma imagem da nação‖. Sendo assim, podemos entender estes símbolos com uma alta significação territorial que busca revelar os referentes, sejam eles classificados como: natural, artificial ou quimérica. Estas relações transtextuais observadas neste processo de construções hipertextuais e paratextuais de que fala Genette corroboram com o projeto de transposição temática proposto no romance de Elomar. Nele, o mundo sertanejo imaginário justapõe-se ao mundo medieval, no entanto não o esconde, deixa-o explícito. Eis ai estabelecido, no seu texto, o ―palimpsesto‖ de Genette, por meio da transcendência textual.

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2.3 O BRASÃO COMO LUGAR DE MEMÓRIA

O emblema estampado, na capa do romance, configura-se também como uma tentativa de revitalização de um sertão primitivo perdido no emaranhado de apelo da ―modernage‖ que tanto o autor lamenta. Nesse contexto, o brasão seria no romance a representação do lugar de memória do sertanejo a respeito do sertão primitivo habitado por seus antepassados. Esta insígnia ratifica a identidade do sertanejo, em um espaço, progressivamente sucumbido pela tecnologia, tão duramente criticada e rejeitada por Elomar: "Meu sonho é que deixassem o Sertão em paz, assim como eu queria que a cidade deixasse o sertão em paz. O sertão é auto-suficiente, não pede nada para ninguém.‖ (VEJA 1985, [s.p.]).15 Segundo Nora (1993), a percepção histórica auxiliada pela mídia substitui a herança de sua própria identidade pela estrutura efêmera da atualidade. Este caráter efêmero dos significados culturais, especialmente, no que diz respeito aos bens culturais que nas últimas décadas têm chegado facilmente ao sertão, exaspera sobremaneira Elomar. Sob sua ótica, a maioria das produções culturais brasileiras é vazia de sentido e aniquiladora da cultura do povo sertanejo. Nesse sentido, durante a conversa informal16 que tive com ele, o autor ressalta que há tempos observa a falta de identificação dos sertanejos com suas personagens. A ausência de interesse pela cultura local, o autor atribui aos ―enlatados americanos‖, às novelas e às músicas sem profundidade temática. Em seu entendimento, tudo isso agrava a falta de interesse do sertanejo para a preservação da ―boa música‖ e da ―boa narrativa‖ de origem sertaneja. A aversão aos grandes centros urbanos é uma marca inconfundível do autor. O exacerbado apego da sociedade contemporânea à tecnologia também o irrita. Em um de seus concertos17, entre a execução de uma canção e outra, desabafa: ―eu me sinto sempre estrangeiro, o que me atenua é quando estou no campo, com os bichos, conversando com os peões [...] eu desci na estação completamente errada.‖ 15

Texto retirado de uma entrevista de Elomar Figueira Mello concedida à Revista Veja, 23 jul. 1985. Durante a pesquisa, o autor recebeu-me muito bem na Fundação Casa dos Carneiros, aceitou ter uma conversa informal comigo, contudo não autorizou nenhum tipo de registro formal, como fotografia, filmagem ou gravação de áudio das conversas. 17 No dia 11 de Janeiro de 2014 às 19h15min às 21h40min participei da primeira pesquisa de campo relativa à minha tese de doutorado. Depois de enfrentar aproximadamente 3 horas em uma fila no pátio da Caixa Cultura - Praça da Sé- São Paulo, finalmente obtive um ingresso para a entrada do segundo dia do Concerto Elomar Cancioneiro. 16

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Tal afirmação está em consonância com uma declaração que ele, em entrevista, concedeu à revista VEJA, em 1985. Na ocasião, falando sobre a cidade grande e seu ritmo frenético, o autor afirmou: "Não me sinto bem nessa galáxia". Perante tal declaração, parece que sua produção artística é o ―portal‖ que o ―conecta‖ ao mundo contemporâneo. Se não fosse isso, o ―bode‖, provavelmente, não teria contato com o pós-moderno, conforme disse: ―Não me dou bem com coisa nenhuma, sou anticontemporâneo, não me sinto bem nos dias que estou passando aqui na terra‖. Segundo Julio Maria18, a motivação de Elomar, em sair de ―seu sertão medieval‖, é a concretização do seu universo em música: Se não fosse por um bom motivo, Elomar, o bode, jamais sairia das terras de seu sertão medieval. É lá que ele cria carneiros, bois e cavalos em uma dimensão que parece anteceder a existência do próprio sertão, uma era que só se conecta com o século 21 por meio da música que faz. A música é a possibilidade de materialização do universo medieval de Elomar (MARIA, 2014, [s.p.]).

O lugar de memória do projeto artístico dele está na composição de um sertão que se configura como algo primitivo, rústico. Conforme ressalta Costa Melo (1989, p. 143), a obra de Elomar é também composta pelo: ―o boi e o cavalo, elementos intimamente relacionados em um imaginário social, que por sua vez, está impregnado pela a herança de uma civilização coriácea.‖ Em Sertanílias, achamos indícios da recuperação desse sertão primitivo coriáceo na passagem do protagonista Sertano, pela casa do senhor dos cavalos. Segue o diálogo entre ambos: Como o senhor conseguiu fundar tudo isso que chamaria de um verdadeiro principado feudal? Por que a paixão por cavalos? – [...] é que sou de uma famía de criadô aqui so criava caval‘ dêrna uma era muito véa bem iantes de meus tataravô que só criava caval‘ e as herança só vem conservada até os dia de hojo essa pessoa seu criad‘ meu siôro [sic]. (MELLO, 2008, p. 184).

No trecho acima fica evidente que a atividade agropecuária a herança de uma cultura de vaqueiros é algo que é repassado de uma geração a outra. Em suma, o sertão de Elomar é fundamentado a partir de uma sociedade pecuária. Por isso, como já falamos, nas linhas acima, diante do modismo das músicas eletrônicas e 5

Jornalista do Estadão, autor da matéria sobre Elomar Figueira. 09 jan. 2014. 20h06min. Disponível em: .

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das novelas televisivas que invadem velozmente os costumes dos moradores do sertão, ele refuta a atitude do sertanejo que não valoriza a simplicidade e as diversificadas tradições próprias do sertão; critica um sertão e/ou o sertanejo que se sente envergonhado diante de seu sotaque catingueiro. Seu sertão imaginário afasta-se de uma visão moderna de mundo, pois esta parece surgir como uma constante ameaça à transmissão dos valores culturais que ele tanto preza. Segundo Nora (1993), quando a legitimação do passado cede lugar à legitimação do futuro, a memória deixa de ser uma manifestação da consciência coletiva e passa a representar um fenômeno puramente privativo. A memória é transportada pela história; assim é necessário consagrar lugares para a memória. Quando um povo deixa de praticar no seu cotidiano os rituais tradicionais que lhes são próprios, a memória cede lugar para a história. Entre memória e história há uma diferença digna de destaque, a saber, enquanto a primeira é sempre atual e dinâmica, a segunda representa um passado acabado. Desse modo, cessa-se uma vivência íntima de uma memória, e passa-se a viver apenas sob a ótica de uma história reconstituída. Ou seja, quando se opta por priorizar mais o futuro do que o passado ocorre à valorização do novo em detrimento do velho. Seguindo o posicionamento de Nora, podemos compreender que este é o cerne do questionamento de Elomar em relação à cultura que vem sendo disseminada para o homem do campo. Ela é uma ameaça real para a celebração da cultura do sertanejo. Dificilmente não encontraremos nas festas dos santos padroeiros, nas festas juninas ou nas celebrações natalinas a inserção da música eletrônica, e os carros aparelhados com potentes sons tocando os ―paredões‖. Atualmente, nas festas dos padroeiros, grande parte das vezes, a população avalia se estes festejos, mencionados acima, foram ―bons‖, não pela preservação dos ritos que relembram a fé de seus antepassados, mas a partir das ―atrações‖ que foram contratadas para cantar depois do povo celebrar o santo homenageado. Gradativamente, as festas do povo sertanejo vão sendo ―descaracterizadas‖, tendo em vista a inserção da música eletrônica e dos estridentes ―batidões‖ nos festejos locais. Sob a ótica de Nora (1993), são as memórias particulares, as identidades individuais, que buscam reconstituir as gêneses de suas tradições. Quando as tradições de um povo deixam de ser celebrados, surge no homem a necessidade de procurar e reconstituir sua história. É como se a memória nos impulsionasse a sermos revitalizadores de nossa própria história. Nessa busca por encontrar suas

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origens, existe no homem, portanto o anseio claro pela compreensão da sua própria constituição; isso o levará a tornar-se um historiador de si mesmo. Na produção artística de Elomar, é flagrante o intuito de reconstituição da história do homem sertanejo e do sertão como uma pátria. O próprio autor considera que em suas produções artísticas ocorre o intento de recuperação dos valores do sertão primitivo, hábitos e costumes que podem ser identificados no sertão contemporâneo. Segundo assiná-la Costa Melo, Elomar reconhece que a ambientação medieval emana de sua obra: A caatinga conserva usos e costumes dos conquistadores da terra. O modus vivendi do catingueiro é estritamente medieval, todo ato dele é medieval- resguardando as perdas que a caatinga tem sofrido a partir de duas décadas e meia para cá, por causa das linhas de ônibus, do rádio e da televisão. (COSTA MELO, 1989, p. 62).

Conforme já mencionado por Costa Mello, estes conquistadores chegaram em 1734, na região do Sudoeste da Bahia, após o desbravador João Gonçalves da Silva solicitarautorização ao Rei D. João V para conquistar o ―Sertão da Ressaca‖. Diante do exposto, compreendemos que na seleção dos artefatos que fazem parte do brasão da capa do livro, fica evidente a recuperação das raízes históricas da ―Pátria Sertaneja‖. Na representação da insígnia, nota-se o intento do autor em reconhecer traços característicos no presente como resultado de ações que repousam nesse passado remoto, mas com nuanças de familiaridade. Esta tentativa de recuperação histórica parte da compreensão da memória como uma lacuna entre o presente e o passado. Segundo Le Goff (1984), a memória revela assim uma relação de continuidade, ao passo que a história revela uma de relação de descontinuidade da qual haveria, no máximo, uma similaridade de veneração ao passado, já impenetrável e irremediavelmente abolido, uma espécie de vestígio de um objeto perdido. No processo de povoamento do ―sertão da ressaca‖, as extensas áreas de latifúndios para a criação extensiva de gado, configuravam-se como o panorama de uma sociedade que, segundo Costa Melo (1989, p. 34), dividiam-se entre ―os peões e os vaqueiros de um lado, e o proprietário de outro‖. Entende-se com isso que na configuração do brasão ilustrado na capa de Sertanílias, há o regate da memória de um sertão nos seus primeiros anos de desbravamento. Sertão conquistado à base de muito esforço, debaixo do inclemente sol e do descaso das autoridades governamentais que tinham seus olhares mais

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voltados às regiões do sudeste do país. Nesse sentido, é importante recuperarmos o pensamento de Jacques Le Goff (1984) sobre o processo de deciframento da memória. Ele entende que a memória visa decifrar o que somos a partir daquilo que não somos mais. Por isso, revelar a identidade e o passado histórico do povo do ―sertão da ressaca‖, a partir de um brasão ilustrado na capa de um romance, vai muito além de uma simples recuperação de um símbolo medieval para um símbolo contemporâneo. Nesse processo, o que está em jogo é a identidade de um povo. Stuart Hall enfatiza: [...] não importa quão diferentes seus membros possam ser em termos de classe, gênero ou raça; uma cultura nacional busca unificá-los numa identidade cultural, para representá-los todos como pertencendo à mesma grande família nacional (HALL, 2005, p. 59).

Perante isso, este resgate de identidade nacional enfatizado por Hall parece ser o propósito de Elomar em Sertanílias. O brasão é ornado por elementos que compõe a ―Pátria sertaneja‖, cada elemento tem um significado para o homem do sertão, não importando a classe de que ele é oriundo. O importante, no sentido de autenticações identitárias, é que estes símbolos despertam o sentimento de pertencimento do solo sertanejo. Sob a ótica de Pierre Nora, os lugares da memória material, simbólico e funcional coexistem sempre. Eles apenas existem a partir da fusão entre o material e o simbólico; ou seja, um lugar apenas entra na categoria de lugar memória se tiver um aspecto ritualístico que garanta a cristalização da lembrança e sua transmissão, e também que denote um aspecto simbólico, no qual caracterize um acontecimento ou experiência vivida de um determinado grupo. O simbólico possibilita a abertura de ―um novo livro para a história‖ (COSTA MELO, 1989, p. 22). Jacques Le Goff (1996) observa que quando o objeto deixa de fazer parte em um determinado período da memória coletiva, em outro momento, pode ser perfeitamente resgatado e transportado da memória histórica e, portanto voltar a fazer parte da memória coletiva. A condição necessária para que exista memória é o sentimento de continuidade naquilo que se lembra. A memória não faz corte entre passado e presente porque retém do passado somente aquilo que está vivo ou capaz de viver na consciência do grupo que a mantém. Sendo assim, é fácil entendermos que cada imagem projetada é importante para se compreender o conteúdo simbólico da insígnia do romance de Elomar.

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Nesse sentido, é imprescindível compreendermos a opção do autor em colocar um brasão como ornamento da capa de seu livro não apenas como uma ilustração simples, mas como oportunidade de recuperar o ―símbolo heráldico‖ tão caro à sociedade medieval e, ao mesmo tempo, revitalizar as representações das armas sertanejas com o intuito de revigorar a memória coletiva acerca do passado histórico do ―sertão da ressaca‖.

2.4 AS TRANSPOSIÇÕES ICÔNICAS EM SERTANÍLIAS Em suas obras, Elomar constrói as referências espaço-temporais do sertão e põe em evidência os aspectos culturais, sociais, religiosos e afetivos dos seus habitantes. Desse modo, toda e qualquer atividade da qual o homem participa e celebra ratifica o sertão, não como um espaço circunstancial, mas como algo permanente e em constantes modificações. As obras de Elomar confirmam a existência de práticas e crenças, muitas vezes, interpretadas sob o olhar distante e ortodoxo; explicações alheias que dão a estas representações um aspecto de espetacularização, e, por conseguinte, na maioria das vezes, cristalizam-nas como manifestações culturais inferiores, periféricas, continuamente subordinadas ao julgamento dos ―de fora‖. As práticas e as crenças de um povo são móveis e dialógicas, assim, estão em constante ebulição, e nada as impede de se acoplar às práticas religiosas oficiais e prestigiosas socialmente. Percebemos, em Sertanílias, que, muitas vezes, tais práticas aparecem como desvio da fé genuína dos pricípios bíblicos e precisam ser abandonadas pelo sertanejo para que a ―graça salvadora‖ de Deus alcance-o. Na citação a seguir, veremos Sertano repreendendo seus companheiros, que sucumbem diante de algo misterioso. Desesperado, diante de uma ―aparição‖, os exsalteadores fizeram clamores estranhos aos ensinamentos bíblicos ministrados por Sertano. Vejamos: Nesta altura, os quatro em verdadeira recaída caem de joelhos em cruzes credos e eu te arrequêro arma dos pantarioso, ao virem a figura imponente do veado branco em viajero picado ao largo e em sentido contrário ao deles [...] – Levantai-vos idiotas que é feito de vossa conversão? Hoje sois crentes justificados que não carecem destas posturas de tradições supersticiosas e ignorâncias outras. (MELLO, 2008, p. 158-159, grifo nosso).

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Verificamos, nesse trecho, que o sincretismo religioso não é ignorado, e está posto de maneira explícita no texto; entretanto percebemos também que o discurso proferido pelo protagonista não estimula tais práticas. Em Sertanílias, todo o posicionamento religioso está pautado nas influências religiosas ortodoxas, sobretudo, as de cunho apocalíptico que adquirem novos significados. De acordo com o posicionamento de Pereira (2007, p. 25): ―As fontes de seu discurso sobre o fim do tempo, da história e do homem são certamente as Escrituras Sagradas, em especial as tradições apocalípticas dos profetas, sobre as quais ele demonstra leitura e conhecimento.‖ Devido a sua formação cristã, o conjunto da sua obra sempre traz nuances dessa religiosidade ortodoxa, conforme é mencionada por Costa Melo: Elomar é descendente de cristãos novos que, vindos da Península Ibérica- muito provavelmente das terras espanholas- foram os pioneiros e desbravadores da região de Vitória da Conquista adentrando pelo sertão até o rio das Contas. Chegaram no início do século XVIII, junto ao bandeirante João Gonçalves da Silva. São as famílias Gusmão, Oliveira e Figueiras - Os Mellos - de origem portuguesa- vieram mais tarde; é certo porém que chegaram antes de 1840 [sic].(COSTA MELO,1989, p. 48).

Em alguns trechos do romance, a transposição do medievo torna-se flagrante, tanto na composição de algumas de suas personagens, quanto na reprodução do espaço em que as ações desenrolam-se, conforme podemos constatar quando Sertano vê um castelo, enquanto fazia a travessia do sertão profundo. Ao chegar à residência real, o cavaleiro inicia diálogo com uma moça a quem ele trata por ―alteza‖. Esta personagem é uma alusão a uma donzela medieval, personagem cantada em uma das composições do autor19. Na música, Naninha é uma donzela raptada por um príncipe apaixonado, depois de ter seu pedido de casamento rejeitado pelo rei, padrasto dela. Para executar o rapto, o sagaz príncipe disfarça-se de cego, por isso, ganha a compaixão da moça que desce do castelo para guiá-lo: Mindigava paxonado te qui um dia essa princesa desceu feito um serafim ele intoce pidiu ela 19

Naninha faz parte do disco ―Dos Confins do Sertão‖ gravado em 1984. Editado no Brasil e na Europa. Lançado dois anos depois lançado pela gravadora alemã Trikont, foi gravado e publicado na Alemanha. Pela obra, Elomar recebeu da crítica do referido país seu primeiro prêmio internacional, além de ter apresentado no Festival de música Ibero-americana.

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que li insinasse o camim rompe mais Naninha mais um bucadin vê qui o pobre cego num inxerga o camim

O trecho acima demonstra que Elomar busca histórias de tradição medievais e as revitalizam no contexto de uma geografia imaginária que, em nenhum momento, omite a geografia física do sertão, pois é durante a travessia do sertão geográfico que ele transpõe o tempo presente e chega a um espaço e um tempo medieval. No próprio texto de Sertanílias, a história de Naninha e do falso cego é recuperada no capítulo A Legião dos Condenados: ―Ao se aproximarem do castelo, ouvem-se os acordes de ‗Naninha‘ e os versos iniciais do cego cantando sob a janela. Quando Naninha desce e vem à porta a orquestra segura o tema.‖ (MELLO, 2008, p. 244). Os dois espaços sobrepõem-se de modo harmônico. Suas personagens transitam entre o dia-a-dia do sertão e o cotidiano de um mundo inventado, carregado de matrizes ibéricas, povoado de donzelas, príncipes e repleto de castelos e de habitações feudais. A história de Naninha guiando o cego é mais uma de tantas versões sobre a donzela que se transforma em guia de um cego. Esta história é muito recorrente na literatura oral do nordeste e prova material dos resquícios da literatura portuguesa nesta parte do país. Segundo Cascudo (1994, p. 211), a história do cego possui três variantes populares, colhidas em três estados nordestinos, a saber: Pernambuco, Ceará e Sergipe. Silvio Romero recuperou a versão no Rio Grande do Norte.

Levanta-te Aninha do doce dormir anda ver pobre -se ele pede e canta dai-lhe pão e vinho, e deixai o cego seguir seu caminho. -Não quero seu pão Nem quero seu vinho, Só quero que Aninha me ensine o caminho. - Levanta-te, Aninha Do doce dormir Pegai o pão do pobre. - eis aqui o pão, Já podeis seguir, O caminho é curto Vá de vagarinho.

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- Caminhai Aninha, Mais um bocadinho, Sou curto das vista, Não vejo o caminho. - Valha-me Deus E Santa Maria, nunca vi um pobre com cavalaria. -Eu não sou pobre, nem também sou cego, Sou aquele conde que por ti morria - Adeus, minha terra, adeus minha irmã, adeus minha mãe que falsa me era (CASCUDO, 1994, p. 211).

Segundo o autor assinala, há ainda uma versão portuguesa dessa mesma história do cego no Romanceiro Minhoto cujos autores são Joaquim Alberto Pires de Lima e Fernando de Castro Pires de Lima e Porto. Nesta versão do ―Cego‖, a última estrofe diz: Adeus, minha mãe! Adeus, minha terra! Adeus, minha mãe, Que tão falsa me era (CASCUDO, 1994, p. 211).

Cascudo aponta que nas pesquisas desenvolvidas por Silvio Romero, a figura do cego é resultante de formas adaptadas do romance português. Com vistas a entender este processo de transformação de que fala Câmara Cascudo, cito trecho:

- O brinquedo ou auto popular do Cego é menos característico. É todo de implantação portuguesa. É a história de um conde que se finge de cego para raptar uma moçoila. Esta vai lhe ensinar o caminho e se encontra com os companheiros do conde. É raptada e diz com melancolia: Valha-me Deus E Santa Maria Que nunca vi cego De cavalaria... (ROMERO apud CASCUDO, 1984, p. 210).

Conforme temos dito, a obra de Elomar, não só o romance, mas suas outras produçoes recuperam as historietas européias, sobretudo, as de fundo moral. Outro indício de influência da literatura portuguesa, em sua obra, aparece no álbum intitulado As Cartas Catingueiras. Neste trabalho, ele recupera a historieta da

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―Donzela Teodora‖ que em sua canção tem a grafia modificada: A donzela Tiadora. Segundo Guerreiro (2007, p. 103): ―Teodora era uma espanhola que foi comprada pelo um mouro que encantado com a beleza e feições de fidalga, procura educá-la com os melhores mestres.‖ Não só a história de Teodora, mas também outras tantas narrativas de tradição ibérica foram revitalizadas nas tradições orais por cantadores de feira livre, nos cordéis nordestinos, e também revigoradas na narrativa de Elomar: Da Idade Média, Elomar foi buscar, também, os elementos próprios a uma produção literária que por meio de cantadores e jograis se espraiava pelas cortes, cidades e aldeias camponesas: as epopéias, as cantigas de amor e de amigo e, principalmente, os romances de cavalaria. A partir delas, de suas formas escritas, construiu um universo pontilhado por castelos, reis e princesas, modelos peculiares de comportamento heróico e estórias de amor, marcadas pela distância entre os amantes, pelo ideal de amor puro, pela tragicidade, tudo isso transmutado para o ambiente da catinga, para o espaço do sertão. (PEREIRA, 2007, p. 26).

Conforme pontua Pereira (2007), Elomar ―re-significa‖ as heranças ibéricas, ao tempo em que usando de sua criatividade autônoma difunde ―as múltiplas temporalidades, a cultura, a linguagem e a identidade de homens e mulheres, em sua maioria, pobres, miseráveis e disvalidos, excluídos dos mecanismos formais de produção de conhecimento e divulgação cultural [sic].‖ (PEREIRA, 2007, p. 27). Na passagem pela casa do ―Senhor dos Cavalos‖, Sertano admira todos os bens incontáveis que este possui, qualifica a casa do grande proprietário como um ―principado feudal‖. É neste ambiente bucólico que uma das mucamas do ―Senhor dos Cavalos‖ rende-se aos encantos de Sertano e ele aos dela: [...] de uma janela, Sertano se delicia com uma música e a visão da enorme área forrada de animais [...] Nisto, Sertano há muito que tinha notado uma das mucamas nos afazeres da copa e sala que não tirava os olhos dele, muito bonita, morena clara de cabelos longos e sedosos acastanhados e os olhos essencialmente verdes [...] Sertano fica de olho prisioneiro dos olhos verdes da janela que parecem indagar: ‗cuano ancê voltá vai vim mim levá?‘ Ao tempo que inconscientemente Sertano exclama: Vou sim!. (MELLO, 2008, p.179; 191).

O dialeto catingueiro é mais uma vez posto em destaque, a fim de que seja entendido como a ―voz‖ do homem simples do sertão, para que ele fale de seus valores, de sua cultura e também de seu modo de conceber o mundo. A esse respeito, Simone Guerreiro acrescenta sobre a ―poliglossia‖ composicional de

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Elomar: Aqui encontro um compositor com olhar agudo sobre a realidade das personagens, preocupado com que o fictício seja verossímil, a partir de uma adequação dramática da linguagem [...] na própria língua transita do dialeto sertanejo, aos pampas do português culto ao arcaico, medieval [...]. (GUERREIRO, 2007, p. 58).

Sob esta ótica, poderemos compreender que as personagens sertanejas são pensadas como representantes de tipos sociais que guardam valores do medievo, em suas culturas, em suas diversificadas manifestações religiosas e nos seus labores com a terra. A respeito da herança cultural portuguesa, na literatura popular do sertão brasileiro, Cascudo destaca: ―alguns romances tomaram novas formas no Brasil. Uns foram adaptados para as rondas infantis e outros se transformaram em pequeninos autos ou folganças, avós dos shows dos nights clubs modernos.‖ (CASCUDO, 1984, p. 210). Em consonância com o pensamento de Câmara Cascudo, ao discorrer sobre a novela de cavalaria ibérica, Jerusa Pires Ferreira explica o seguinte ponto: Estes livros alcançaram na Península Ibérica um enorme desenvolvimento e prestígio, dos finais do século XV ao começo do XVII, portanto no espaço-tempo de um mundo em profundas e intensas modificações. Estas histórias foram contadas, consumidas, ouvidas, copiadas e repetidas, exaustivamente, até muito mais tarde, deslocando-se para o universo da poesia oral e do livro popular. Textos trazendo andanças de cavaleiros, proezas e encantamentos, entremeados de ensinamentos e preceitos à moda dos livros de moral e doutrina, foram dos mais assíduos tipos de leitura e de escuta, parte efetiva de um repertório popular mais amplo. (FERREIRA, 2012, p. 2).

Segundo assinala a autora, a trama de cunho cavaleiresca apóia-se no ―quadro ideal‖, este construído sob as bases dos ―estereótipos‖, ―topoi e de loci comuni”, de maneira que fica registrado nesta construção ―o social, as contradições e o absurdo, a ferocidade e a ira, os desígnios da vida, os bruxedos, encantamentos e a morte‖. (FERREIRA, 2012, p. 3). Em meio aos conflitos sociais, as manifestações culturais, as festas, os folguedos, e as funções (fonções) aparecem como elemento amenizador das ―tensões sociais‖. Sobre isso, a autora também aponta: ―Há também a proposta amenizadora, que compensa tensões sociais pela diversão e pela força do ritual‖

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(FERREIRA, 2012, p. 3). Conforme assinalam Câmara Cascudo e Jerusa Pires Ferreira, estes hábitos sertanejos remetem ao mundo medieval, e aparecem, por vezes, revitalizados em Sertanílias, e em outras obras do autor aqui analisadas em diálogo com o romance. Como podemos verificar no diálogo entre Sertano e a mucama (filha adotiva) do Senhor dos Cavalos: - O Sio não é dessas banda de perto... - E a senhora parece-me que não é daqui nem de perto, nem de longe. -Donde intonce?- estampando um belo sorriso. -Tenho quase certeza que veio do céu, perto das alturas onde habitam anjo -Condo iancê voltá da longa viagem passa pru aqui? - Não sei. Nei sei se voltarei ... - Vai voltá sim, eu sei que sim. E condo iancê voltá mim panha, me roba e meleva tombem. [...] - por favor, formosa, doce estrela do céu que canta na minha tarde que já escamba... Não tenho para onde te levar - pra tua casa, teu reno teu lugá, magino que lá hai muitas qui teserve, santo cavalêro, mim leva preu tombem ajudar elas na lida de sirví... -Lá em minha casa, no meu reino como queres, os aposentos não te cabem - Eu fico em qualquer lugá, nos com‘ d‘ dos fund‘, na casa dos arrei... -Eu terei que te construir um castelo - Cuma?₢umaé qui é um castel‘ -E uma casa bonita, morada de princesas (MELLO, 2008, p. 180181).

No fragmento acima, em que temos parte da conversa entre Sertano e a mucama, é possível perceber que há uma linguagem amalgamada nas duas canções medievais: as Cantigas de ―Amigo‖ e as Cantigas de ―Amor‖. Da parte do cavaleiro há indícios de uma tentativa de subjetivação e exaltação da dama quase como um ser inatingível: Os vocábulos céu, altura e anjo remetem-nos a essa ideia de impossibilidade de concretização do amor entre a dama e o cavaleiro. De igual modo, a impossibilidade de levá-la por não ter um lugar adequado, um castelo para que possa alojá-la adequadamente, revela, mais uma vez, a revitalização das cantigas de amor e do ambiente palaciano em que estas construções são mencionadas constantemente. Então, os vocábulos aludidos; ―castelos, reino, princesa, cavaleiro‖ endossam o mundo medieval recuperado por Elomar em Sertanílias. Assim como a promessa que a moça faz ao cavaleiro de esperá-lo até

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seu retorno a fim de servi-lo. Ansiar pelo retorno do amado é uma postura típica do eu - lírico feminino recorrente nas Cantigas de Amigo. Mais uma vez, vemos a revitalização do mundo medieval no sertão profundo imaginado de Elomar.

2.5 O HERÓI MÍTICO RECUPERADO NO VAQUEIRO

Segundo ressalta Jaques Le Goff (1996), a memória coletiva cristaliza-se primeiramente naquilo que fundamenta a existência das etnias, a saber: os mitos de origem. Assim, a história ideológica está estritamente atrelada à memória coletiva. Ela caminha em direção aos primórdios do reino em busca do herói mítico. No caso de Sertanílias, compreendemos que a figura mítica é o cavaleiro medieval e a sua recuperação está configurada no vaqueiro dos primeiros anos de povoamento do Sertão brasileiro, sobretudo, o oriundo da região Nordeste. Segundo Gilberto Durant: O mito aparece como uma narrativa [...] colocando em cena personagens, cenário, objetos simbolicamente valorizados, segmentável em sequências ou menores unidades semânticas (mitemas) nas quais se investe obrigatoriamente uma crença [...] chamada pregnância simbólica (DURAND, 1979, p. 34).

Ainda segundo Durand (1979, p. 34): ―Todo mito se ancora em uma linguagem simbólica cuja característica/qualidade maior é a repetição/ ―redundância‖ [...] ela que permite a identificação do núcleo mítico de uma obra‖. O núcleo mítico em Sertanílias é estabelecido através de mitemas, pequenos temas, cujas repetições favorecem a compreensão do que Durand (1978, p. 191) define como: ―gnose cristã não ortodoxa‖. Tal definição revela tanto as histórias sagradas quanto as de cunho exemplar, a partir da narrativa iniciática de que fala Jerusa Pires Ferreira. Ainda sob a ótica de Durand (1978, p. 191): ―na busca gnótica temos sempre uma travessia purificadora, consubstanciada em um doloroso processo iniciático, que é acesso ao conhecimento e à salvação.‖. Sendo assim, podemos atentar para o fato de que na construção narrativa de Elomar, o mito da peregrinação começa a se delinear na figura do ―cavaleiroandante‖, Sertano. Esta andança dá-se no início da sua travessia no sertão, localizável geograficamente, às margens do Rio Gavião, na região do Sudoeste da Bahia, e termina depois que ele corta as terras do ―sertão profundo,‖ e chega além das terras de Ofir. Podemos compreender então que há um ―processo gnóstico‖ o

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qual é alavancado quando o protagonista toma conhecimento do cativeiro que os irmãos encontram-se; e termina quando ele depois de cruzar o ―sertão profundo‖, descobre que este ―cativeiro‖ não pode ser vencido com seu facão cimitarrado, pois se trata de uma servidão espiritual. Realidade revelada apenas no último capítulo do livro. Segundo Eliade (1983), o cavaleiro andante pode ser entendido como um ―símbolo universal‖ pertencente à mitologia da cavalaria. Sobre isso, afiança: ―teve uma influência cultural mais importante que sua história propriamente dita [...] a penetração do herói em outro mundo.‖ (ELIADE, 1983, p. 113). Seguindo o pensamento de Eliade, podemos entender então que o ―cavaleiro andante‖ construído na narrativa de Elomar engendra sua travessia tendo por alvo o sagrado a partir de suas peregrinações. Nesse sentido, a importância social do cavaleiro é posta em evidência. Usando um termo de Jerusa Pires Ferreira, ele tem como missão ―restaurar‖ ou ―resignificar‖ a ordem coletiva. Por esta perspectiva, o cavaleiro construído na obra de Elomar parece ser o ―porta-voz‖ da palavra de redenção, o mensageiro da verdade salvadora cujos alvos são as almas cativas que vivem conforme a ―regula do mundo‖. Para libertá-las ele precisará enfrentar inúmeros perigos, colocando em muitos casos, sua própria integridade física em jogo, em confronto direto com seu adversário. Conforme assinala Ferreira (1993, p. 102): ―O gesto heróico do combate é cumprido pelo herói individual.‖ Entendemos com isso que o combate é a razão da jornada do cavaleiro, a justificativa de todas as peripécias que o herói enfrentará; configura-se como a tentativa da solução de um problema apresentado ao cavaleiro como sendo ele o único capaz de resolver. O combate, nos dizeres de Ferreira (1993, p. 69): ―faz parte integrante do Universo heróico em sua mais ampla configuração, em que há sempre o ato salvador, fundador, inaugural a triunfar contra força adversa‖. O trecho a seguir foi retirado do capítulo ―Legião dos Condenados‖, quando Sertano e seus quatro companheiros encontram vários homens sendo subjugados por inúmeros carrascos. Os flagelos são ações dissolutas dos homens que viveram à revelia da revelação da ―Palavra de Salvação‖ que emana de Deus a todos os homens de boa vontade. Diante das faces estupefatas de seus companheiros, Sertano justifica tamanho sofrimento daqueles cativos:

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-Se foram condenados, é que alguma coisa fizeram, para tanto e , portanto, devem pagar. Todos eles escolheram viver segundo a Régula do Mundo [...] Creio que todos eles terão oportunidade de repensar sobre suas vidas e se endireitar, abandonando os largos caminhos do mundo quando então serão libertos por suas próprias vontades e segundo o favorecimento de Deus. (MELLO, 2008, p. 251).

Neste trecho, verificamos que há três aspectos que revelam o discurso construído a partir da perspectiva cristã bem recorrente nas obras de Elomar. O primeiro aspecto é a condenação de todos os que não vivem sob os parâmetros espirituais dos ensinamentos cristãos; o segundo revela que ainda há esperança para todos que se encontram sob o jugo da escravidão, basta apenas que se arrependam de andar segundo seus próprios caminhos de iniquidade; e o terceiro, e mais importante, diz respeito ao fato de que a liberdade da alma humana condiciona-se a dois fatores, a saber: a escolha do indivíduo em viver sob a proteção do ―Supremo Criador‖, e o favorecimento de Deus a todos os indivíduos arrependidos. Desse modo, Sertano assume o papel do cavaleiro andante que busca libertar as almas do jugo imposto pelo pecado. Segundo assinala Costa Melo: O cavaleiro é símbolo que se inscreve em um complexo de combate, e em uma intenção de se espiritualizar o combate. Esta espiritualização realiza-se pela escolha de uma causa superior [...] O sonho do cavaleiro revela o desejo de participar de um grande empreendimento, que se distingue por um caráter moralmente elevado e de certo modo sagrado (COSTA MELO, 1989, p. 79).

O herói mítico de Sertanílias é, sem dúvida, o cavaleiro andante trazido nas histórias de cunho medieval pelos primeiros colonizadores do ―sertão da ressaca‖. Consoante ressalta Le Goff (1996), a memória coletiva cristaliza-se, a priori, no elemento fundador da existência étnica encerrada nos ―mitos de origem‖. Sertanílias narra histórias (mitemas) estritamente acopladas à memória coletiva do processo de povoamento do sertão da ressaca. As histórias recuperadas na narrativa de Elomar apontam para ―os primórdios do reino em busca do herói mítico‖, que é o cavaleiro medieval e a sua recuperação no vaqueiro dos primeiros anos de povoamento do Sertão brasileiro. A presença de cavaleiros, trovadores (cantadores), são nas palavras de Jerusa Pires Ferreira, a ―ressonância carolíngia e arturianas povoando uma

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consciência coletiva e/ou um inconsciente coletivo‖. Tais presenças, ―remontam ao período colonial‖, e são ―reminiscências medievais‖ reencontradas no sertão da Bahia. Ainda sob a ótica dessa autora, na obra de Elomar, os valores medievais aparecem cristalizados no imaginário sertanejo a partir da recuperação dos ―valores de honra e valentia, os reinos de castelos‖ os quais povoam as produções artísticas do autor em sua inteireza. (FERREIRA, 1979. p. 15). De acordo com Le Goff (1996), nas sociedades sem escrita há preocupação da manutenção da unidade do grupo, por isso, entre eles designam homensmemória, genealogistas, etc. São estes especialistas da memória, guardiões cuja função é preservar não só a história social, mas também, a ideologia de um grupo. Nas obras de Elomar, estes ―homens memórias‖ são os cantadores de feiras, os repentistas, os cordelista e os cantadores de desafios. Conforme já vimos, nas considerações feitas por Câmara Cascudo (2000), muitos desses materiais que, hoje, aparecem impressos, são processos resultantes das histórias orais passadas de geração para geração; são fontes depositárias de memórias das comunidades de vaqueiros, sem acesso à linguagem escrita, mas, que das histórias dos romances, trazido pelos colonizadores, serviram-se longos anos, adaptando-as à linguagem oral. Desse modo, é importante ressaltar que a transmissão da memória em uma sociedade ágrafa não ocorre do mesmo modo que em uma sociedade que tem também como recurso de expressão a escrita, na verdade, ela não se desenvolve de modo automático. Compreende-se, portanto que a memória coletiva apareça dentro de um processo de reconstrução generativa e não mecânica: nesse sentido Jacques Le Goff enfatiza: O suporte da rememorização não se situa ao nível superficial em que opera a memória palavra por palavra [...] parece pelo contrário que o papel importante cabe a dimensão narrativa e a outras estruturas da história cronológica dos acontecimentos (LE GOFF, 1996, p. 430).

O que notamos, no plano da construção da linguagem, não só no romance Sertanílias, mas também, em suas outras obras, é a revitalização destas histórias orais que foram contadas e recontadas, continuamente, durante todo o processo de ocupação do sertão. Obviamente, os dialetos sertanejos não se configuram como uma manifestação linguística homogênea, visto que, a ―língua sertaneja‖ apresenta certas particularidades de uma região a outra. Segundo assinala Costa Melo (1989,

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p. 40): ―Elomar nos traz desse sertão, seus falares, seus seres, seus teres e haveres.‖.

2.6 A TRAVESSIA DO SERTÃO PROFUNDO: DO HORRENDO AO LUGAR AMENO

Em Sertanílias, a narrativa desenvolve-se em direção ao cativeiro além das terras de Ofir. A travessia do sertão profundo efetiva-se por alguns obstáculos, mas todos motivadores de superação para se alcançar o alvo que é a libertação dos irmãos de Sertano. Os desafios são matérias indispensáveis para que o herói sagrese como digno do título de mensageiro de Deus, libertador dos oprimidos. Conforme aponta Jerusa Pires Ferreira: O combate vai assim compreender toda uma passagem por lugares inóspitos e horrendos, ilhas misteriosas e encantadas sede dos perigos que em uma situação típica recorrente, alternam-se com lugares amenos. O desafio do herói, mais uma vez ligado ao sentido de travessia. (FERREIRA, 1993, p. 76).

Geralmente, perante os heróis são postos desafios que os obriguam expor suas façanhas. Nesse sentido, nos relatos dos heróis que cruzam o sertão quase sempre existirão: ―ardis, dilemas, gigantes, monstros e serpentes‖. Ainda segundo a autora, grande parte da ―floração de imaginário e de encantamento‖ está ligada à influência da ―matéria arturiana‖ tão arraigada no mundo português e que teve larga penetração no Novo Mundo (FERREIRA, 1993, p. 77). A captação dessas influências arturianas opera de modo difuso. Sobre isso, Jerusa Pires Ferreira destaca: faltam ―os moldes referências objetivos‖ encontrados na ―matéria carolíngia épica‖ que traz em seu escopo o ―cânone da realidade histórica‖. Essa falta de referencial histórico, entretanto, não nos impede de detectar, na literatura nordestina, a que trata do sertão mítico, a referência de um reino ideal, impossível de ser localizado geograficamente, posto que, é dotado de caráter ―encantatório‖, desvencilhado de cânones históricos, mas repleto de princesas, castelos e monstros que povoavam os romances medievais. Tudo isso, de modo explícito ou não, permanece no imaginário popular do sertanejo. Nesse sentido, nas obras de Elomar ocorre um processo de transferência das narrativas de cunho medieval às narrativas desenvolvidas no sertão. Isto é flagrante nos cordéis, nas historietas de fundo moralístico disseminadas nas feiras

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livres pelos cantadores que têm nas literaturas orais e escritas populares suas fontes de inspirações. A esse respeito, cito: Todos os romances vieram na memória portuguesa e ficaram vivos no Brasil. Creio que rapidamente passaram a acalantos, ninando os filhos e não mais sendo cantados ou entoados em cantilenas, aos ouvidos de pessoas maiores, como em Portugal. (CASCUDO, 1984, p. 29).

O mundo envolto por uma ―aura de mistério‖ não se limita às literaturas de cordéis ou às cantorias nas feiras livres. Este universo ficcional também está posto nos romances que tratam da vida do sertanejo, sejam eles livros canônicos, como é o caso de Guimarães Rosa, como também nas produções musicais de Elomar, nos seu Auto da Catingueira e no próprio Sertanílias, cujo tempo e espaço da narração são erigidos em alguns momentos sob as bases de um mundo sem referenciais históricos. A respeito da construção do mundo ficcional de Elomar, Jerusa Pires Ferreira diz: ―nos limites de cada um dos mundos possíveis, ou de um desses micromundos, se realizam e se encontram as coordenadas muitas vezes opostas que só se ajustam no macromundo, ou seja, numa totalidade sócio-imaginativa‖. (FERREIRA, 1993, p. 52). Quando nos fala de ―mundos possíveis‖, a autora explicita que o processo de criação do mundo sertanejo, ora se aproxima de um mundo imaginário de forma exacerbada, ora se afasta dele, isso se dá pelo movimento de afastamento do maravilhoso e aproximação do mundo concreto: [...] tudo acontece dentro de universos configurados. O que aqui se rejeita lá se adota, o que aqui não se cumpre, lá se realiza; se se omite o maravilhoso como proposta, em outro campo se o exacerba, se se condiciona e limita a imaginação adiante a estimula [sic] (FERREIRA, 1993, p. 50-51).

Assim o repertório sertanejo constrói-se, justapondo-se às matrizes medievais e reconfigurando-as no tempo e no espaço de ―mundos possíveis‖, como também, em mundos impossíveis pelo crivo do ilógico. Desse modo, a narrativa constrói-se por dois pólos, um dito ―real‖ e um ―imaginário‖ em cuja historicidade cede lugar a elementos que revelam a saga mítica e lendária de seus heróis. Segundo assinala Jerusa Pires Ferreira, na tradição nos romances de cavalaria, as conquistas nas guerras são, na maioria das vezes, entendidas como

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―uma empresa santa‖; em contrapartida, o inimigo será sempre uma figura pagã. Sendo assim, sob a ótica da autora: ―toda a vitória vai significar mudança implicando, portanto em conversão‖. A oposição entre ―cristão-pagãos‖ é uma constante na tipologia dos ―agentes cavaleirescos‖. (FERREIRA, 1993, p. 50-51). Demarcando fronteiras, estabelecendo limites, erguendo balizas, a construção argumentativa da prosa de Elomar vai pondo em evidência a dicotomia religiosa posta em muitos momentos em Sertanílias. Tanto aparece na oposição entre as concepções cristãs ortodoxas de Sertano junto ao conjunto de religiosidade popular de seus companheiros de viagens, apegados aos rituais religiosos populares, como também, na oposição dessa mesma concepção cristã ortodoxa perante o discurso do monge, seu antagonista, infiel da palavra de salvação do ―Filho de Deus‖. No último capítulo do romance, quando Sertano, finalmente liberta seus irmãos do cativeiro, ele confronta diretamente os princípios dos ensinamentos de Buda. No desfecho do livro, o resgate feito por Sertano não necessita de facão, pois seus irmãos não estavam cativos às prisões físicas, mas a cárceres espirituais, com suas mentes dominadas por ideias budistas que os afastavam da comunhão plena com Deus. Vê-se desse modo, que segundo aponta Jerusa Pires Ferreira, boa parte da tradição cultural sertaneja, inscrita na obra de Elomar também repousa suas raízes em elementos trazidos pelos colonizadores e transubstanciados no processo de apropriação da tradição oral de fontes clássicas do tradicionalismo medieval. A esse respeito assinala: ―A poesia tradicional sertaneja tem nos romances uma dos mais altos elementos. Recebidos de Portugal em prosa ou verso todos foram vestidos para as sextilhas habituais e cantados nas feiras, nos pátios, nas latadas das fazendas‖ (FERREIRA, 1993, p. 51). Histórias de exemplos, de origem medieval, foram contadas e recontadas ao longo do processo de povoamento do sertão; a tradição oral juntou-se sobremaneira à tradição escrita, e as historietas de fundo memorialístico cristalizaram-se na memória sertaneja. Segundo Ruth Lemos Terra (1981, p. 9), o procedimento literário denominado de ―exemplum‖ foi uma forma narrativa ―autônoma‖ bastante difundida nos princípios da ―literatura espiritual da Idade Média‖, por conseguinte, transformou-se em eficaz instrumento pedagógico, com vistas ao ensinamento moral ou religioso às pessoas de ―espíritos mais simples‖. Segundo Cascudo (1984, p. 273), os exemplos são narrativas ―atraentes‖ devido ao enredo simples; sua finalidade é ―ensinar a Moral

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sensível e popular facilmente percebível no enredo, de fácil fabulação[sic]‖. Em Sertanílias, a forma narrativa ―Exemplo‖ aparece no trecho em que Sertano narra para o Ferrêro, à história do carpina e do serrote. Posteriormente, faremos a análise sobre o ferreiro, de modo mais abrangente neste trabalho. Nos romances medievais, o cavaleiro cristão submete-se aos mais nefastos perigos para levar a cabo seu projeto de ―libertar do cativeiro‖ os que se configuram como ―inimigo de Deus‖. Da gesta medieval à canção de vaquejada. Os estudos sobre o romanceiro tradicional ibérico, realizados na Espanha e em Portugal apontam na direção de que este gênero literário, típico da Península Ibérica e das regiões colonizadas por espanhóis e portugueses, seja originário das gestas medievais. Alguns romances, de natureza histórica, mantêm traços de episódios da história política e social da Europa medieval. que vêm a constituir um ciclo arturiano e um ciclo carolíngio, além de remeterem para fatos da história da Península Ibérica, como a conquista dos mouros, a queda de Granada etc. (BENJAMIM, 2003, p. 10).

Sendo assim, a opção temática de Elomar não se dá de modo displicente, há um foco muito bem arquitetado no ato de representação cuja figura central é um vaqueiro que viaja por eras nas asas de seu cavalo alado, transpondo reinos e tempos cronologicamente distintos, mas que sempre apontam para uma sociedade pautada em uma atividade econômica comum, a coriácea. O gado é o ponto de semelhança que costura toda trama em que transita o mundo do sertanejo e o mundo medieval. Algumas partes do romance fazem referências ao labor do homem com o rebanho. Vejamos um trecho em que o autor opta por uma câmera cinematográfica em substituição do foco narrativo para informar sobre os rebanhos do senhor da casa dos cavalos: ―a câmera mostra o imenso e incontável rebanho cavalar nos currais, nos pátios, mangueiros e mangas.‖ (MELLO, 2004, p. 178-179). Mais à frente, há outra referência sobre os cavalos: Neste mesmo tempo chega os companheiros de Sertano com os animais laçados pelo pescoço. Quatro belos cavalos que se vendo pensa-se ter havido esmerado senso estético qualitativo na escolha, pelo variegado do porte e da pelagem. (MELLO, 2004, p. 183).

Ao por em evidência esta atividade que faz parte da gênese da vida do homem do sertão, Elomar religa o mundo sertanejo à suas origens ameaçadas pelo ―modismo‖ da cultura de massa que aos olhos do autor é a grande responsável por

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aniquilar a genuína cultura do sertanejo, gradativamente esquecida por grande parte do povo do sertão. Segundo Ferreira (1993, p. 13), a literatura popular produzida no Nordeste brasileiro ―dá-se um démarche arcaizante em vários níveis, preservadora de uma série de valores que já postos de lado pela sociedade global, enquanto que ai se realiza também os seus padrões‖. Sob a ótica da autora, esta dita literatura ―avança e se vanguardiza‖, e desse modo, realiza de maneira contínua um ―processo de crítica a esta sociedade‖; muitas vezes, tal crítica constrói-se, de modo ―inconscientemente‖, entretanto, não deixa de existir. (FERREIRA, 1993, p. 13). 2.7 SERTANÍLIAS: A EPOPÉIA DO SERTÃO

Conforme já dissemos, assim como Os Lusíadas narra os heróicos feitos do povo de Portugal; Sertanílias é a ―epopéia‖ de um povo que não sucumbe facilmente perante a escassez de água, comida e de tantos outros bens essenciais no dia-a-dia de qualquer pessoa. Pelo dialeto catingueiro, Elomar concede voz aos sertanejos que: Persistem no apego à terra seca, nas pequenas clareiras de cultura, subtraídas dos imperativos do clima e da má qualidade do solo, ecoam cantos de louvor e de esperança na chegada de um novo tempo. Tempo de alegria fugaz, o tempo de chuva faz renovar a fé. (PEREIRA, 2007, p. 29).

É o homem que em plena miséria, ainda persevera em ficar na sua terra, cidadão que como assinala Graciliano Ramos em Vidas Secas, anda como um ―judeu errante‖. Em alguns trechos de Sertanílias, a realidade descrita do modo de vida do sertanejo ratifica que o sertão contemporâneo ainda continua sendo um lugar de segregação social, excessivamente agravado pelos fatores climáticos: Sobre a terra seca, debaixo do sol, os peregrinos retirantes e os que permanecem presos à terra somam-se em um canto de lamento. Sinal dos fins dos tempos, a desolação e a miséria fazem do sertanejo um ser consciente da inevitabilidade do cumprimento dos desígnios divinos. Das estradas aos confins, muitos são os que se precipitam em busca de solução para os pequenos e os grandes problemas da vida cotidiana. As desvalias, os desmantelos, as provações reforçam a idéia de proximidade do fim [sic]. (PEREIRA, 2007, p. 29).

Segundo o próprio Sertano, Sertanílias é um livro cujas narrativas tratam dos

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gloriosos feitos dos vaqueiros nobres, honrados e destemidos de toda sorte de perigos, sejam eles humanos, animais ou sobrenaturais; é também a narrativa que retrata os feitos culturais do sertanejo. Sertano assim define o termo Sertanílias: Os feitos dos valentes vaqueiros, dos que desbravavam com machado e enxada, dos repentistas e cantadores errantes, dos bravos e esquecidos tropeiros que enfrentam na desolação do ermo o jaguar traiçoeiro e os bandidos da estrada. (MELLO, 2008, p.234).

Embora a vida social do sertanejo não seja o âmago da temática desse romance, o autor não fica alheio a estas questões, e, ao longo da tessitura de sua composição, evidencia tais aspectos; isto permite o enriquecimento de seu texto, bem como dilata a possibilidade de diálogo entre outras obras que tratam do sertão. Nunca é demais ressaltar que o projeto de Elomar perpassa os limites do sertão geopolítico. Este é pequeno demais para caber suas personagens ―transgressoras de espaços‖, sendo assim, Rita de Cássia Pereira afirma: Sazonalmente ou desordenadamente, a pé ou a cavalo todos esses personagens singram as terras do sertão, e as suas passagens aparecem como marcadores temporais, coadjuvante dos ciclos da natureza, das quadras das águas ou dos ciclos da lua. Suas idas e vindas sedimentam uma concepção cíclica do tempo que ofusca o tempo calendário. (PEREIRA, 2007, p. 30).

As personagens de Elomar são seres que abarcam a um só tempo a dimensão humana e mítica em toda a sua inteireza. Se, por um lado, vemos na maioria das suas personagens o sertanejo com sua forma física configurada pelo espaço inóspito do sertão, a saber: mãos rudes, pés rachados, pele queimada pela exposição excessiva ao sol durante o lavrar da terra, rostos envelhecidos prematuramente pelo rigor das altas temperaturas climáticas em que está exposto desde sempre; temos também, neste mesmo homem, a fé em um mundo justo, regido por um regime teocrático, como último recuso redentor de suas mazelas terrenas. Conforme podemos constatar no depoimento de um dos ex-bandoleiros que acompanha Sertano em sua jornada: Deus, Nosso Senhor, nos enviou a este mundo não só para vivermos nossa vida, como também para cantarmos louvor a Ele e em louvando-o, atentarmos para os pequenos, nossos irmãos caídos, os desvalidos, órfãos, viúvas os que sofrem no abandono das prisões, os que tem fome os qui num tem ninguém pru êl‘s zelá. É por isso. É por isso que conseguimos escrever os versos com inteireza da

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verdade ausente. (MELLO, 2008, p. 207).

Regime teocrático, aliás, meio contraditório, insuficiente para neutralizar o sincretismo religioso flagrado no cotidiano de suas personagens. Se, em seu discurso, o protagonista Sertano apresenta Deus como via única para a salvação do homem, a partir do reconhecimento da morte de Jesus Cristo; por outro lado, verificamos na fé das outras personagens, uma fé não tão genuína, antes, imbuída de crenças híbridas. Isto, muitas vezes, solapa este regime teocrático que Sertano parece encarar como única possibilidade de redenção de toda alma perdida. Devese entender, no entanto, esta mistura entre a fé única em Deus e a dificuldade do homem sertanejo de se desvencilhar de outras crenças, não como algo opositivo a sua religiosidade, mas como uma ratificação de sua identidade de sertanejo que sabe muito bem transitar entre o sagrado e o profano. Daí a dificuldade de Sertano perante o desafio de fazer seus companheiros se renderem apenas aos ensinamentos bíblicos, e abandonarem a fé em crenças que contrariam o ―genuíno evangelho‖ apresentado por ele. A confiança em outras crenças é resultante do convívio do homem com estas desde a infância. Conforme já constatamos, Sertano irrita-se com as atitudes de receio deles diante de uma ―aparição‖, por isso, corrige-os drasticamente. Levantai idiotas, que é feito de vossa conversão? Hoje sois crentes justificados que não carecem destas posturas de tradições supersticiosas e ignorâncias outras. Este que xota imponente, na tradição cristã cavaleiresca, é o veado branco, o mesmo que guiava os peregrinos nas travessias de grande perigo. (MELLO, 2008, p. 159).

Sobre a construção do sertão e do sertanejo na obra de Elomar, Simone Guerreiro ressalta: O sertanejo que configura não é inocente e o sertão não se configura lugar de salvação para o homem. Não nega a ambiguidade do catingueiro, mostrando a doçura e a violência de sua gente, a convivência entre deus e o diabo, sagrado e profano no sertão. (GUERREIRO, 2007, p. 59),

A autora enfatiza esta ambivalência que compõe o sertanejo, sentimentos e ações opostas coexistem sem que isso se configure como uma contradição narrativa. Os salteadores que queriam roubar Sertano, em uma estrada deserta,

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foram os mesmo que souberam reconhecer os erros praticados e decidiram deixar suas vidas pregressas de crimes. Após Sertano discorrer sobre a importância do cristão não sucumbir diante das ―aparições‖, finalmente, seus companheiros entendem que a redenção chegou aos que dela precisavam. Mesmo cientes de que na terra não vão usufruir de nenhum benefício material, decidem seguir a vida cristã, fazendo da fé sua garantia de salvação num mundo vindouro repleto de gozo eterno para todos os que aceitarem depositar a fé no único que podem salvá-los, Jesus Cristo. Pobres e ricos dependem dessa comunhão divina com Deus para obter o beneplácito do paraíso eterno. Sobre esta relação de pecado, medo e arrependimento na obra de Elomar, Rita de Cássia Pereira faz as seguintes ponderações: A história do homem está inserida em uma História Universal de Salvação, estão em confronto as forças do bem e do mal. Tomada em seu conjunto, a obra de Elomar é uma detalhada reflexão sobre a liberdade humana, sobre a vida e a morte, sobre o fracasso e o mal, sobre as relações dos indivíduos- autor e personagens- com Deus , e sobre a representação que a sociedade faz Dele. Como o cristão da ‗era do grande medo‘- expressão de Jean Delumeau para designar os séculos finais de uma longa Idade Média- o sertanejo, submisso à culpabilização intensiva, é levado a conhecer melhor seu passado pessoal, a desenvolver sua memória e a precisar sua identidade. (PEREIRA, 2007, p. 31).

Desde que saíram da casa do ferreiro, os ex-salteadores são cristãos convertidos, sabem do ―poder e autoridade‖ que a ―Noiva de Cristo‖ possui, portanto já não podem mais titubear ante uma ―aparição‖; assim, um deles assegura que agora são: ―band‘ dos quartr‘ cristão piêdôs‘ e fié, meu patrão‖. (MELLO, 2008, p. 165). Neste trecho, vemos que a imagem do cavaleiro medieval recuperada na figura do vaqueiro Sertano começa a concretizar seu intento maior: retirar do cativeiro as almas que se encontram sob o jugo das trevas. Segundo assinala Costa Melo: O cavaleiro é símbolo que se inscreve em um complexo de combate, e em uma intenção de se espiritualizar o combate. Esta espiritualização realiza-se pela escolha de uma causa superior [...] o sonho do cavaleiro revela o desejo de participar de um grande empreendimento, que se distingue por um caráter moralmente elevado e de certo modo sagrado. (COSTA MELO, 1989, p.79).

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Para Jerusa Pires Ferreira, a saga do cavaleiro rumo ao combate, ao desafio, será sempre motivada pelo mistério da viagem. Apesar de não saber exatamente a dimensão do perigo que enfrentará, o cavaleiro aceitará o desafio e fará deste a sua motivação para superá-lo e cumprir sua missão: libertar alguém do perigo. A autora afirma: ―Todo o sentido de libertação conjugado à proposta do combate em sua finalidade, sintetiza-se na viagem do herói, quando o mistério vai se fazendo o desafio dos desafios‖. (FERREIRA, 1993, p. 77). O protagonista de Sertanílias enfrenta muitos percalços para efetivar seu intento: resgatar os irmãos. Este processo de recuperação perpassa pela dimensão da salvação do espírito do homem, que se encontra afastado dos princípios teocráticos. Desse modo, a busca pela libertação física aparece como um pretexto para uma conquista bem mais importante, a espiritual. No decorrer da narrativa, inúmeras vezes, verificamos a repetição do projeto de salvação que Sertano expõe para seus companheiros de jornada. Este plano está exclusivamente pautado no reconhecimento do sacrifício de Jesus Cristo pelos pecados de todos os homens, outrora separados do ―Criador‖ devido à queda do ―primeiro Adão‖. O trânsito entre as trevas e a luz, entre a imagem infernal e a imagem celeste efetiva-se na narrativa por vários momentos, dentre os quais podemos citar a passagem de Sertano e seus companheiros pela casa do ―Ferrêro‖, ocasião em que no campo dialógico ocorre uma briga pelas almas dos ex- bandoleiros que agora são cristãos recém-convertidos. Quando Sertano procura saber o preço do serviço feito pelo sinistro ferreiro, a estranha figura responde desapontada: ―Não me deves nada senhor‖. O ferreiro assume ai a figura do inimigo de Deus que pretende roubar as almas dos cristãos. Quando toma ciência de que não conseguiu capturar para si as almas dos companheiros de Sertano, o ferreiro lamenta: ―Este não era o preço quando fiz com que viesse até aqui [sic]‖. (MELLO, 2008, p. 128). Jerusa Pires Ferreira salienta que a saga do cavaleiro está sempre posta entre o lugar ―terrível e o lugar ―ameno‖, até alcançar o destino proposto como desafio. Ao sair da casa do ferreiro, (lugar terrível), Sertano sente-se vitorioso espiritualmente e pronto para encontrar repouso num (lugar ameno) e ali restaurar suas forças. (FERREIRA, 1993, p. 109). Ao discorrer sobre os percalços enfrentados pelos cavaleiros dos romances medievais Roberto Mello (1992, p. 20) destaca que há sempre uma ―força demolidora‖ interpondo-se entre o cavaleiro e o percurso de sua missão. Esta força objetiva dispersar o cavaleiro de seu intento, geralmente, é

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uma mulher dotada de poderes sobrenaturais. Os lugares terríveis repetem-se insistentemente durante a narrativa, até o cavaleiro conseguir sua vitória. Antes de confrontar os poderes maléficos do Ferrêro, Sertano tem um encontro com outro ser misterioso que procura ―enredá-lo‖, como Ôra o advertiu: ―não se deixe enredar por ela‖. Segue o trecho em que uma mulher misteriosa pede ao cavaleiro que a leve consigo na garupa de Russo Pombo até sua casa: Fico aqui, minha casa é ali mais embaixo [...] Sertano nada diz; apenas sentiu um frio muito gelado subir pela espinha [...] ao descer da garupa do animal, beijou-lhe o rosto. Disse-lhe adeus e tocou no vazio de Russo Pombo, boquiaberto, mudo arrepiado dos pés a cabeça e completamente sem fala, atravessando o abandonado- que era cortado ao meio pela estrada- cemitério. (MELLO, 2008, p. 62).

Após passar por esta ―força demolidora‖ Sertano finalmente chega ao ―lugar ameno‖ a que todo cavaleiro andante tem direito, a fim de repousar e revigorar suas forças rumo à nova jornada: ―É meio dia, sombra sobre os pés. Sertano descansa, tira a sela de Russo Pombo que fica babujar por ali, deita-se no chão estirado na mesma e igual postura do ‗Descanso do Guerreiro‘ de Adilson‖. (MELLO, 2004, p. 63). A travessia do sertão físico ao ―sertão profundo‖ é o verdadeiro ―rito de purificação‖ necessário ao homem para a ―reconciliação‖ com seu ―Criador‖. Este ponto argumentativo está posto de modo óbvio na narrativa de Elomar. Desse modo, entendemos que a ideia de ―purificação‖ em sua obra faz-se: [...] pelo sofrimento fundamentado na rocha da fé- força maior do peregrino que viaja a vida neste mundo, onde sempre a estrada está a tangenciar verdadeiros poços, abismo do maligno, minados de alçapões e laços perniciosos que arrastam as almas para reinos obscuros. (COSTA MELLO, 1989, p. 84).

Compreendemos então que a análise simbólica de Sertanílias é feita a partir da recorrência que nela há de ―repetição‖ / redundância das passagens doutrinárias, no esforço de convencer o outro pelo discurso da soberania de Deus e da irremediável malignidade do diabo, grande inimigo do ―Criador‖ e, por extensão, de suas criaturas. Em Sertanílias, o maligno está personificado na figura do Fêrrero ávido para arrebatar as almas dos companheiros de Sertano, recém-convertidos ao evangelho. Como já mencionamos, ao terminar o serviço nos cascos de Russo Pombo, o Ferrêro recusa-se a receber das mãos de Sertano o pagamento devido

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em função dos serviços prestados. Desse modo, percebemos que o ferreiro aparece como a personificação do maligno, é missão de Sertano detê-lo. Em consonância com o pensamento de Costa Mello, entendemos que as situações nefastas e também os valores negativos (trevas/monstros) são meros suportes para que se efetivem os ―valores positivos‖, a saber, ―ascensão e luz‖: Jamais em minha vida de Cristão eu desejaria conhecer, muito menos ser servido e, ainda pior, de graça, por um verme tão peçonhento! Um servo de Satanás, melhor, o próprio em pessoa. Mas pensando atentamente, muitas vezes, o diabo em suas más intenções acaba fazendo o bem para seu próprio mal. (MELLO, 2008, p. 128).

No caso de Sertanílias, não qualquer luz, mas a luz da salvação de Cristo, que segundo Sertano é o princípio primeiro e único para a liberdade de todos os homens subjugados pelo maligno, e, por conseguinte, separados de Deus. Em síntese, Sertano acredita ter por missão: propagar esta luz a todos os homens que não a conhece. O projeto de Sertano é levar os cativos desse mundo ao paraíso celestial que Deus preparou para todos os seus fiéis. Ele não está preocupado com a conquista do regozijo terreno posto que este é passageiro. Em seu livro Visão do Paraíso, Sergio Buarque de Holanda (2000) discorre sobre o paraíso terreal, apontado-o como a realidade física do Éden em ―alguma parte do globo‖. Esta possibilidade do paraíso terrestre não se concretiza em Sertanílias. Quando o protagonista fala sobre o paraíso, está efetivamente, mencionando

um

paraíso

realizável

no

―futuro-póstumo‖.

O

pensamento

disseminado por Sertano está em consonância com um aspecto muito relevante na Idade Média, e que vai ser incoerente com a ideia de um paraíso terreal. Conforme podemos constatar: A Idade Média se achava tão afeita, com certeza, a noção de que o mundo presente é simples lugar de passagem que a esperança de ele se encontrar algum porto seguro, se torna ao cabo irrelevante. A ruindade e a deterioração da Natureza, a miséria da terra, resgatavase num divino plano de salvação, que por sua vez não deixaria de valorizar, de algum modo, os próprios males e as misérias do presente. Mesmo a obsessão da materialidade do Paraíso Terrestre [...] é um modo de denunciar, com a vivacidade do contraste, esse fundo sendo de transitoriedade das coisas terrenas. (HOLANDA, 2000, p. 230).

Mesmo diante dessa concepção do mundo como lugar transitório, a ideia de

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que a topografia edênica localizava-se na terra foi recorrente algumas vezes, durante a Idade Média, ainda que fosse para reforçar a deterioração do mundo como resultante da ―queda do homem‖; porém a hipótese do paraíso terreal foi mais reforçada com a descoberta do Novo Mundo; e da sua persistência tem-se notícias até o início do século XVIII. Esta busca incessante pelo paraíso terrestre pode ser entendida como: o desejo do homem decaído e cansado do mundo de injustiça, em resgatar um mundo perfeito, livre da corrupção humana. Sob esta busca incessante do homem medieval pelo paraíso terreno, Francisco Iglésias (2009, p.148) diz: ―É a nostalgia do Paraíso que os homens tiveram e do qual foram expulsos. Ideia presente em muitas religiões e mitologia‖. É certo que nesse período, a tese do paraíso terreal deveria ser pensada cautelosamente, tendo em vista que na Idade Média, a heresia era entendida não apenas como a quebra de uma ordem religiosa e dos princípios espirituais e doutrinais estabelecidos pelas autoridades que detiam a ordem do discurso. Ela também significava a quebra de uma ordem social, por isso, tal prática não incomodava apenas os detentores dos dogmas doutrinários, mas a sociedade como um todo que procurava inibir as práticas heréticas aplicando severas penas a seus praticantes. Sobre as graves implicações da heresia na Idade Média, Nachman Falbel assinala: A natureza da sociedade feudal cristã conduziu à visão da heresia como quebra da ordem divina e social alicerçada sob a fides. O braço secular não deixou de atuar segundo os ditames de uma sociedade de guerreiros, que via na heresia uma falta grave, equivalente no plano religioso à quebra de um juramento de fidelidade do vassalo a seu senhor, de tal modo que ―infidelidade‖ social e religiosa se confundem. E, a medida que aumentava o número de heresias e sua influencia, procurava-se aperfeiçoar os instrumentos mobilizados para combatê-las. (FALBEL, 1976, p. 15).

Os princípios inibitórios em relação às heresias, inclusive a respeito do paraíso terreno, foi um evento tão consolidado na Idade Média que perdurou por alguns séculos. Segundo frisa Sergio Buarque de Holanda (2000), a ideia do paraíso terreno custou a vida de um português que residiu no Brasil, durante duas décadas, especificamente, em Minas Gerais, em pleno auge do ouro. Trata-se de Pedro de Rates de Hanequim. Sua condenação deveu-se às heresias que proferiu. Em suas apostasias estavam reveladas a visão de que o Brasil era o paraíso terreal, e também, a certeza de que a colônia de Portugal foi poupada da maldição divina das

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águas. Sob a ótica de Pedro Rates, o dilúvio, ao contrário do que as escrituras bíblicas afirmam, não foi um fenômeno universal. A propósito dos motivos pelos quais o lusitano residente no Brasil tornou-se alvo de ações inquisitórias, e, por conseguinte da condenação, cito Holanda: O crime que com crua morte assim pagou [...] foi o de heresiarca e apóstata, segundo reza o acórdão. E seus erros consistiram em sustentar com obstinação impávida que o Paraíso Terreal ficara e se conservava no Brasil, entre serranias do mesmo estado. Acrescentava haver ali uma árvore à feição de maçã ou figos, e esta era a do Bem e do Mal, e assim que o das amazonas, o São Francisco e outros, eram os quatro rios que saíram daquele horto [...] Afirmava que Adão se criou no Brasil, e dali se passou de pé enxuto a Jerusalém, abrindo-se para isso as águas do Mar Oceano [...] Enfim que as marcas de suas pisadas ainda se podiam ver perto da Bahia. [...] e para maior escândalo dos inquisidores, que o Dilúvio não foi universal, já que poupou o Brasil. (HOLANDA, 2000, p. XXIV).

Consoante citação, vimos que os delírios de imaginação dos quais se apossou Pedro Rates foram drasticamente corrigidos pela Igreja inquisidora. Delírios a parte, podemos verificar na tese do condenado, a projeção idealizada do Novo Mundo quase três séculos após a chegada dos primeiros colonizadores. Ele se apropriou das paisagens edênicas e as transpôs para a cor local, dois dos quatro rios que emanavam do paraíso são reconhecidos nas terras brasileiras como sendo Amazonas e São Francisco. Como já temos visto, historicamente, estes dois rios têm sido fontes inesgotáveis do depositório do imaginário popular brasileiro, sobretudo, por ser morada da grande cobra grande (personagem do romance de Elomar). Voltando às considerações de Pedro Rates, partindo do pressuposto de que o paraíso terreal poderia está em algum ―lugar do globo‖, este lugar, sob sua ótica, poderia ser perfeitamente o Brasil, ―terrae incognitae‖. Apesar da teoria de que o paraíso terrestre está localizado no Brasil, segundo Francisco Iglésias, a hipótese de que o Éden localiza-se no Novo Mundo teve bem maior recorrência na América espanhola. Conforme assinala: ―O Português aparece bem menos seduzido pelo maravilhoso. Os mitos do eldorado e o paraíso terreal, o Éden as terras fantásticas são mais espanhóis que portugueses.‖ (IGLÉSIAS, 2009, p.149). Sergio Buarque de Holanda (2000) destaca que esta visão do paraíso faz-se presente também no posicionamento de Cristovão Colombo. Segundo sua concepção, o paraíso terreal estava localizado nas Índias, terras em que ele chegou

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guiado pelas ―mãos da Providencia Divina‖. Seu parecer era o de que a paisagem edênica do lugar, as magias, e as lendas ratificavam sua hipótese: acreditar que a Índia é o paraíso perdido e possível de ser alcançado pela graça divina. O navegador mostrava-se pouco satisfeito quando questionada sua hipótese. A esse respeito, Holanda (2000, p. 197) diz: ―[...] não parece sorrir muito aquela ideia de um Paraíso Terreal inatingível, por mais que se admita só podê-lo alcançar com socorro divino.‖. Todas estas teorias foram introduzidas na geografia visionária do Novo Mundo. Isso corrobora para compreendermos que a busca pelo mundo perfeito e livre da corrupção era algo almejado pelo homem medieval. Em alguns casos, conforme temos percebido, a busca do paraíso era realizada na esfera terrena; em outros, por meios espirituais, apenas em uma dimensão pós-morte. Segundo ressalta Iglésias (2009, p.148): ―O homem antigo, medieval e o moderno tiveram e têm esse imaginário que pode ser visto como desejo de evasão, à fuga das dificuldades do presente, da realidade.‖ Diante do posicionamento desse autor, percebemos que não só o homem medieval buscava pelo Eldorado; mas também, o homem moderno procura este mundo perfeito. Em Sertanílias, acreditamos que as concepções

de paraíso como

recompensa estão em maior consonância com o pensamento de São Tomás de Aquino. Este descarta a possibilidade de um sítio do paraíso terrestre; para ele, a redenção do homem é de cunho ultraterreno, por isso, não poder ser buscada aqui na terra, pois é um ―ideal longínquo‖, apenas alcançável postumamente. Sobre isso cito: ―O próprio São Tomás de Aquino entendia alegoricamente a teoria eminentíssima do jardim.‖ (HOLANDA, 2000, p. 197). A ideia de que o jardim de Deus situava-se na Terra foi sobremaneira reprimida pela Igreja. Segundo temos observado os pensadores recalcitrantes a esta doutrina eram impiedosamente disciplinados ou mortos. Sob a ótica de Sérgio Buarque de Holanda (2000, p. 230): ―O paraíso Terrestre é, pela sua própria essência, inatingível aos homens, ou na melhor da hipótese, só pode, talvez, ser alcançado à custa de ingentes e sobre-humanos esforços.‖. A respeito da queda do homem e da corrupção do mundo, Holanda (2000, p. 229) enfatiza que estas ideias estão arraigadas no ―pensamento e sentimento cristão‖, bem como nas ―Sagradas Escrituras‖. Em linhas gerais, a teoria da decadência do homem e da natureza corrompida

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pelo pecado, é uma temática constante na Idade Média. Segundo destaca Sérgio Buarque de Holanda: A Constante reiteração da Ideia de uma Natureza em declínio ou francamente corrupta pelo contágio do Pecado Original, pode sugerir, mesmo em obras de pura imaginação, que esse pensamento seria largamente partilhado, e tanto pelos autores como pelos leitores de tais obras. (HOLANDA, 2000, p. 231).

Vemos nisso, mais uma recuperação de Elomar acerca do pensamento medieval no que concerne a degradação do Homem como herdeiro do pecado original praticado por Adão.

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3 A CONSTRUÇÃO DA FICÇÃO EM SERTANÍLIAS

Mas de onde vem a resistência da gente sertaneja, desnutrida e rija, capaz de enfrentar a maldição da seca, cobrindo a pé léguas e léguas de terra crestada, na fuga temporária, quando esta já não lhe oferece condições de vida? Edyla Mangabeira Unger

Em Literatura e Personagem Anatol Rosenfeld (2012) discute o problema geral da ficção; e trata da concepção teórica dos termos literatura e personagem de ficção. Sob sua ótica, no sentido lato, literatura é tudo que ―aparece fixado por meio de letra‖, ou seja, todo o vasto material que inclui notícias, reportagens etc. Literatura pode ser entendida, no sentido amplo, como toda a produção escrita que vai, desde obras científicas mais complexas e obras de ficção mais variadas, até as mais simples receitas de cozinha. No sentido restrito da palavra, literatura significa apenas as escrituras dotadas de caráter ficcional e/ou imaginário, no entanto conforme salienta Rosenfeld (2012, p. 12), é uma posição um tanto complexa a de ―delimitar literatura no campo restrito‖; somente a partir da concepção de elementos ficcionais e / ou imaginários, uma vez que mesmo uma obra não sendo dotada de tais elementos pode receber o nome de literatura no sentido restrito, apenas por possuir determinado valor estético. Toma-se como exemplo os sermões repletos de ornamentos do Padre Antônio Vieira. Desse modo, para Rosenfeld, o valor estético é um critério importante quando da necessidade de classificar uma obra como literária ou não literária. Além de discorrer sobre o conceito de literatura, o autor trata de explicar os aspectos mais relevantes, no que diz respeito aos princípios literários ficcionais, e seus problemas nos campos: antológico, lógico e epistemológico. Sob a ótica de Rosenfeld (2012), independente de seu ―nível científico ou ficcional‖, toda produção literária é dotada de uma estrutura. A obra é composta por uma série de planos que se estruturam, e dependem da seleção cuidadosa das palavras com suas conotações peculiares. Em Sertanílias, como já explanamos, o grande problema estrutural é a hibridez de gênero que Elomar tenta construir no interior da narrativa. Ao inserir na estrutura do romance, o roteiro de cinema e umas ―supostas entrevistas‖, ele deixa um caminho bastante árduo para o leitor no trato da compreensão do aspecto

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concernente a diegese da obra. A seleção vocabular é um aspecto esquemático imprescindível em um texto, seja ele ficcional ou não; pois são os contextos ―objectuais‖ que distinguem o texto científico do ficcional e imaginário. (ROSENFELD, 2012, p. 13-14). Ainda na Prefala de Sertanílias, ou seja, na parte paratextual do romance, já nos é apresentado o recurso da seleção vocabular, a fim de evidenciar o tipo de linguagem que se pretende usar no romance: ―eu percebi muito apertado o sertão político-geográfico para caber e conter certos meus personagens transgressores de espaços e tempos, e ordens pré-estabelecidas‖ (MELLO, 2008, p. 11, grifo nosso). A partir da análise desse fragmento, podemos perceber que o adjetivo ―transgressores‖ referindo-se as suas personagens, já aponta para um texto que pretende extrapolar os limites do imaginário, não delimitando fronteiras para o ato criador. O jogo ficcional, o contrato entre leitor e texto mencionado por Genette, quando fala das relações transtextuais; tudo isso está posto, de modo explícito, no prefácio do livro, um dos elementos que compõe o ―epitexto‖. No tocante ao problema antológico da obra ficcional, Rosenfeld (2012) pondera que a personagem ficcional depende do ato de interação para existir. Segundo o autor, ela não possui autonomia, não se constrói sozinha; sendo assim, esta construção permanece condicionada à representação que é feita da personagem em nossa consciência. Sob a ótica desse autor, a construção da imagem da personagem é ―puramente intencional‖, e desprovida de autonomia ôntica. Por este ângulo, fica evidente que, inicialmente, a personagem não tem existência própria, pois está à mercê da construção do leitor, não obstante, à proporção que a narrativa discorre, esta entidade ficcional vai ganhando autonomia, ―emancipa-se‖, e por isso, torna-se mais independente das ―construções objectuais‖ que possibilitam o preenchimento concretizador de que fala o crítico. (ROSENFELD, 2012, p. 16-17). É importante notarmos que para este autor, a compreensão do leitor, pelo menos inicialmente, é imprescindível para a personagem ganhar sentido. Podemos verificar que, pelo menos em parte, o pensamento de Rosenfeld (2012) acerca da importância do leitor, está em consonância com o posicionamento de Antoine Compagnon. Em se tratando da relação entre leitor e obra, este coloca o leitor no ápice do triângulo da literatura, igualando-o ao autor e ao mundo. Para Compagnon, é importante haver determinada interelação entre estas três categorias, a saber,

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leitor, mundo, autor e no centro desse triângulo situa-se a obra. Os posicionamentos desses dois teóricos são divergentes dos postulados desenvolvidos pelo New Criticism acerca do papel do leitor. Para a teoria literária, nascida no estruturalismo e marcada pelo desejo de descrever o funcionamento neutro do texto, o leitor implícito foi um ―intruso‖. O New Criticism postula a negação do leitor como agente capaz de interpretar de forma livre um texto. Para os pensadores dessa última corrente teórica, a obra é fechada, dotada de unidade autosuficiente, por isso, o leitor deve sempre fazer uma leitura fechada e objetiva sem acréscimos interpretativos. Voltando as formulações teóricas de Rosenfeld (2012) sobre o problema lógico da obra de arte, o crítico destaca que os enunciados de obras científicas são constituídos de juízos em cuja ―intenção séria de verdade‖ possibilita trabalhar-se com as categorias ―errado, falso, mentira e fraude‖ sem relativizar o sentido absoluto de veracidade, o termo verdade torna-se absoluto, ou seja, está imbuído de ―intenção séria‖. Por outro lado, quando se trata de textos ficcionais, há uma relativização ampla do termo ―verdade‖. Desse modo, é necessário haver adequação da linguagem de acordo com o jogo estabelecido previamente; nesse sentido, o ―falso, errado, mentiroso‖ seria aquilo que não tivesse dentro do acordo prévio entre autor e leitor. Partindo desses pressupostos apontados por Rosenfeld (2012), é licito compreendermos que quando, em Sertanílias, nos deparamos com a Cobra Grande, transportando Sertano e seus companheiros nos lombos, entendemos esta ação como possível, porque o jogo entre leitor e autor fora estabelecido previamente. Conforme discute Wolfgang Iser (2013), nos atos de fingir, e as operações entre estes atos devem existir um acordo prévio, ―um jogo‖ para que as transgressões dos limites do real não se mostrem incoerentes no interior da narrativa. O ato de fingir, sob a ótica desse crítico, é a ―transgressão dos limites‖ que resulta das alianças feitas entre o imaginário e a realidade repetida no ―fingir‖. Graças ao ato de fingir, o imaginário, e seu o referencial ganham corpo, passam de elementos difusos a determinados. Sobre as relações entre o imaginário e a realidade, Wolfgang Iser (2013, p. 33) assinala: ―Nos atos de fingir, o imaginário ganha uma determinação que não lhe é própria, e adquire desse modo, um atributo de realidade; pois a determinação é uma definição mínima do real.‖. A respeito da natureza ficcional dos textos literários, e das possíveis distinções entre estes e outras tipologias textuais, o teórico defende que a oposição

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usual entre realidade e ficção é inerente ao nosso ―repertório‖ basilar de leitor. Sob sua ótica, esta oposição ocorre a partir do nosso ―saber tácito‖. O crítico toma esta expressão de empréstimo do campo da sociologia do conhecimento. Assim ele a define: ―saber tácito faz parte do repertório de certezas que se mostra seguro a ponto de se parecer evidente por si mesmo.‖ (ISER, 2013, p. 31). Longe de ficar neste terreno opositivo que insurge dos pressupostos norteadores a partir do saber tácito, ele opta por substituir esta relação dual pela ―tríade‖ ―real, ficção e imaginário‖ para explicar a natureza dos textos literários. Em A História – ficção - Literatura, Luiz Costa Lima (2006) trata no capítulo “Um instante com Wolfgang Iser‖ sobre “os atos de fingir‖ e ―a operação dos atos de fingir‖ dos quais o crítico alemão põe em evidência sua tríade ―real-fictício e imaginário‖. Sendo assim, conforme assinala Lima, para Wolfgang Iser, são os ―atos de fingir‖ que movimentam a relação triádica: ―real, ficção e imaginário‖. Neste texto, ele trata da ―oposição entre realidade e ficção‖, e põe em evidência a tríade ―realfictício e imaginário‖. As transgressões dos limites para este crítico oferecem tanto a condição de ―reformulação de um mundo formulado‖ como também a ―compreensão de um mundo reformulado‖ (ISER apud LIMA, 2006, p. 284). Vemos com isso, a importância do leitor para que o romance Sertanílias tenha um sentido mítico. Tudo depende dele entrar ou não no jogo e acreditar que é possível uma cobra-grande levar seres humanos sob seus lombos em vez de devorá-los. Isso são os atos de fingir apontados por Wolfgang Iser. Sobre isso, Luiz Costa Lima adverte que esta ―reformulação‖ não trata de uma ―reformulação prática e efetiva do mundo‖, mas que exige de seus receptores a ―quebra do automatismo nas intenções cotidianas e se faça verossímil.‖ 20 (ISER apud LIMA, 2006, p. 284). Como já foi dito nas páginas iniciais, as personagens de Sertanílias transgridem ―espaços, tempos e ordens pré-estabelecidas‖. (MELLO, 2008, p. 11). A partir dessa perspectiva, compreendemos que, mesmo quando uma narração não corresponde à realidade empírica, poderá ser entendida como verossímil: uma verdade aceita previamente, graças ao ―acordo implícito‖ entre leitor e autor. Desse modo, não há intenção do leitor de desvendar a fraude, pelo lado do autor, parece haver a intenção de se ocultar a realidade histórica. É nesse jogo prévio entre leitor 20

Para conceituar verossímil, Luiz Costa Lima recorre a definição que Friedrich Schlegel utiliza para o termo: ‗o que positivamente parece verdadeiro‘. Esta designação de verossímil contraria aquela que entende verossimilhança como ‗uso corrompido‘ da linguagem, ou seja: ‗tanto quanto quase verdadeiro‘, ou pouco verdadeiro, ou ainda pode se tornar verdadeiro‘ (LIMA, 2006, p. 284).

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e autor que repousa a ―intenção ficcional‖ explanada por Rosenfeld (2012). Desse modo, é importante perceber isto: a seleção vocabular funciona no texto literário como uma preparação prévia desse acordo. Por isso, quando em Sertanílias, o narrador diz que o sertão-político e geográfico é muito ―apertado‖ para caber seus personagens transgressores, entendemos que o sujeito da enunciação está convidando o leitor para os ―atos de fingir‖ de que fala Wolfgang Iser quando trata da relação autor leitor na Estética da Recepção. Percebemos assim a importância de manutenção do interesse do leitor pelo enredo proposto pelo autor; o jogo não pode ser unilateral, sendo assim, apenas prevalece mediante o acordo prévio entre ambos. No concernente ao problema epistemológico, Rosenfeld (2012) frisa o seguinte ponto: o elemento cristalizador da ficção é a personagem, por isso, pode-se entender que a ―camada imaginária‖ cria maior consistência e, por conseguinte, cristaliza-se, graças a esta entidade ficcional. O crítico ressalta que as construções das imagens, e também, das ações da personagem são feitas a partir de determinadas seleções vocabulares, como por exemplo, os verbos definidores de processos psíquicos, tais como ―pensava, duvidava, receava‖. (ROSENFELD, 2012, p. 24). Em Sertanílias, ocorre a seleção vocabular de que fala Anatol Rosenfeld, conforme podemos verificar no trecho a seguir: ―Estava de passagem pela estrada ao ouvir a música fui arrastado até aqui por uma força incontida quem nem sei explicar.‖ (MELLO, 2008, p. 52). Fica patente que a expressão ―força incontida‖, presente na citação, confere um sentido subjetivo ao texto; e ainda é endossada pela afirmativa ―nem sei explicar‖. Estas expressões geram no texto uma linguagem subjetiva, bem como, afastam toda possibilidade da construção de enunciado científico com ―intenção de verdade‖ no romance de Elomar.

3.1 ANÁLISES DE ALGUMAS PERSONAGENS

Prosseguiremos a análise de algumas das personagens do romance, posteriormente, detalharemos algumas delas, quando tratarmos da construção do fantástico no romance, e também discorremos sobre o uso dos princípios religiosos cristãos dentro da obra de Elomar. Por hora, começaremos a análise pela parte pretextual do romance: a Prefala. Em seguida, faremos um breve estudo de outros capítulos, quando cuidaremos dos aspectos temáticos e estruturais mais relevantes.

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Como temos visto, segundo as discussões de Genette (2010), a prefala é um elemento que orbita em torno do romance propriamente dito, no entanto como afirma Genette, esta parte bônus aparecerá outras tantas vezes, à medida que a narrativa evolui. É na prefala a primeira informação que o leitor tem a respeito da imprecisão cronológica narrativa. Na primeira página da prefala, o autor situa os fatos dos quais tomou conhecimento, tão logo chegou às paragens das terras banhadas pelas margens do Rio Gavião: ―Assim que cheguei no Rio Gavião, ali pelos finais da década de 60, do?[sic]‖ (MELLO, 2008, p. 09). Eis a forma que o texto tem início, com o uso de uma expressão composta por substantivo incompleto, a saber, ―fui tendo conhecimento‖. A pergunta é inevitável, diante de um complemento nominal ausente: o sujeito da enunciação teve conhecimento de que? Se, na primeira página do livro, não se consegue obter esta resposta, o leitor pelo menos encontrará indícios dos sujeitos que levaram os fatos ao narrador: ―Logo fui tendo conhecimento- ao ouvir as narrativas de vaqueiros, caçadores, andarilhos, meladores- das coisas‖ (MELLO, 2008, p. 09). Depois de citar alguns topônimos e algumas faunas locais, o autor recupera o assunto da tomada de conhecimento e na página subsequente, revela o objeto do qual tomou ciência: a ―Lagoa Quadrada‖: Dentre todas as paisagens do sertão, as lagoas sempre me encantaram, mais do que quaisquer outros acidentes desse belo pedaço de geografia, não sei porque razão [...] Só sei que, entre todas elas uma se destaca, não tanto pela forma, mais pela aura de mistério, que segundo o relatos dos vaqueiros, lhe envolve. (MELLO, 2008, p. 10).

Prosseguindo a justificativa sobre sua predileção pelas lagoas, o autor relata os testemunhos dos vaqueiros, casos que revelam o enigma delas: Contaram-me alguns simplesmente que ela, quando cheia por ocasião das Àguas, logo em seguida se esvazia sem ter fendas ou canais de escape no fundo de sua bacia. Já outros falaram de certas livusias, que acontecem às vezes por ali passando, tant‘ faiz de noito Cuma di dia, seu dotô [sic]. (MELLO, 2008, p. 10).

No trecho acima selecionado, além de ficar visível a ―aura de mistério‖ que envolve a referida lagoa, é pertinente também a observação de outro fato, a saber: a mudança de foco narrativo. Esta alteração ocorre sem aviso prévio; a sentença começa por um narrador culto e, abruptamente, a voz é concedida a uma das

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testemunhas dos fatos presenciados na região do Rio Gavião: ―tant‘faiz de noito Cuma di dia, seu dotô‖. A marca da oralidade evidencia esta mudança de foco. A linguagem culta cede lugar ao modo de falar dos moradores iletrados da região sudoeste da Bahia, o ―dialeto catingueiro‖ designado por Elomar de ―sertanez‖. Diante dos relatos fantásticos acerca do desaparecimento das águas da referida lagoa, o autor recupera sua voz no texto dizendo que o fenômeno do desaparecimento dessas águas pode ser explicado à luz da teoria dos universos paralelos. Esta teoria foi desenvolvida por certo Hoerbigger, é provavelmente, uma alusão a Teoria dos Mundos Paralelos formulada pelo austríaco Hoerbiger, no início do século XX. Segundo este cientista, é possível a existência de múltiplas realidades. Os princípios para o desenvolvimento de semelhante hipótese encontram-se nos pilares da Física, mais especificamente na Mecânica Quântica. Considerando a possibilidade de haver ―mundos paralelos‖, ele explica a teoria da existência de ―corredor de passagem entre dois mundos‖. Evidentemente, a fim de criar uma falsa autoridade para sua teoria, o autor brinca com a grafia do nome do cientista austríaco duplicando-lhe também a letra ―G‖, assim, em vez de grafar Hoerbiger, ele opta porgrafá-la ―Hoerbigger‖. Ao prosseguir a Prefala, Elomar explanará algumas justificativas para a criação de um sertão simbólico, ou seja, um mundo paralelo ao sertão políticogeográfico. A primeira das suas justificativas tem a ver com a composição psicológica das personagens do romance, conforme já enfatizamos: ―personagens, transgressores de espaços e tempos e ordens preestabelecidas‖. (MELLO, 2008, p. 11, grifo nosso). Como temos verificado, o autor esboça o caráter transgressor das personagens que doravante aparecerão na trama. Elas rompem espaços e tempos constituídos sob ordens ―preestabelecidas‖. Segundo assinala Jerusa Pires Ferreira, as obras de Elomar apresentam um ―bestiário sertanejo‖. Percebemos que, em Sertanílias, o mais recorrente é o ―veado branco‖, seguido pelo ―cadelo grande‖ e pela ―cobra grande‖. Todos serão analisados em tempo oportuno, cada um deles é transgressor de ―ordens pré-estabelecidas‖. A autora reconhece no primeiro ser do bestiário sertanejo, a figura recuperada do imaginário medieval. Sendo assim, acrescenta: ―o veadinho branco, ‗espécie de anúncio da salvação‘ aparece no romance de encantamento medieval e é transmitido pela história do imperador Carlos Magno, torna-se matriz da cultura popular sertaneja [sic].‖ (FERREIRA, 1993,

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p. 50). Sob a perspectiva de autor, o sertão físico afronta a liberdade das personagens do romance. Sendo assim, as personagens reconhecem o espaço e tempo como elementos opressores, bem como, ―a ruína dos vôos e sonhos dos homens‖. Desse modo, justifica-se a necessidade de transposição de tais entidades ficcionais para um sertão simbólico, pois, só cabem no espaço imaginário, paralelo ao sertão político-geográfico. O capítulo ―Ôra‖ apresenta, logo nas primeiras linhas, um pequeno texto, em que o narrador explica sobre a viagem de Sertano. O diálogo entre Ôra e Sertano é lacunar. Sobretudo, no concernente à descrição da forma física do ser narrado que dá nome ao capítulo. Ao que parece, seu ânimo também é variável, pois nos encontros anteriores que teve com o cavaleiro, lamentou-se, não obstante dessa vez, abandonou tal procedimento, conforme se pode constatar no seguinte trecho: ―Não se lamentava dessa vez.‖ (MELLO, 2008, p. 42). Ela sabe acerca da jornada do visitante, bem como do seu objetivo. Em certa altura do diálogo, a situação ganha um tom de tensão, o ser enigmático adverte o protagonista sobre o perigo de se deixar envolver por uma força estranha ―[...] Mas, por favor, não te enredes‖. (MELLO, 2008, p. 43). Seu pedido é endossado por alguém que não está presente, mas que os dois conhecem. Ôra apela para o nome ―d‘Aquele que vestiu a casca indigna‖. A estranha interlocutora pouco usa o dialeto sertanejo. Em um ponto do diálogo, exorta Sertano fazendo uso do latim: ―Memento quid Sapientis oculi in capite eius; stultus in tenebris ambulante.‖ 21 (MELLO, 2008, p. 43). A enigmática figura instrui Sertano a seguir sua jornada. Aconselha-o a ficar atento aos possíveis ardis que o esperam, ao longo de sua marcha rumo ao Norte, país de Ofir, terras de Suleiman. O modo que Ôra conduz o diálogo deixa pistas de que tem total conhecimento do futuro reservado a Sertano. Quem poderá atrapalhar a jornada de Sertano? (Não fica claro, apenas existe a referência a ―Ela‖ que, mesmo sem intenção, procurará enredá-lo). Ôra adverte a Sertano que possivelmente tal ardil será inconsciente, por parte de quem o praticará, ou seja, ―Ela‖ tentará desviar Sertano de seu propósito unicamente por ter sido manipulada por uma força desconhecida, (provavelmente a força demolidora). O diálogo discorre 21

Tradução livre: Lembre-se os olhos do sábio estão na sua cabeça, mas o insensato anda nas trevas. O trecho é uma referência ao texto bíblico que se encontra no livro de Eclesiastes 2:14.

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sobre a importância de manter prudência perante alguém que poderá ser um ardil para o cavaleiro. É preciso cautela diante de uma mulher estranha. Este é o conselho de Ôra a Sertano: ―― Dic Sapietiae: Soror meã est e Prudentiam voca amicam tuam; ut custodiate at muliere extranea [...] Ne attendas fallacia mulieres; favos enim distillans lábia meretricis. Pedes eius descendunt in mortem.‖22 (MELLO, 2008, p. 44). Depois de suas advertências em latim, a interlocutora de Sertano retoma o diálogo em vernáculo. O texto requer muito atenção para ser compreendido. As mudanças de diálogos são feitas pelo discurso direto livre. Conforme veremos no trecho abaixo: ― Filho, de volta com os manos pousa aca? ― Sim, ao teu coração agrada se isto trouxer. ― Será inverno. Mêanoite nos dentes trará a lenha. ― Campolino? ― Não, da irmã da mãe o que não devo. ― Virei? ― Virás! Não vês o preparo já? ― Sim. E virei para o guisado em que quadra de inverno? ― Será num minguante. Mas, por favor, não te enredes! Eu te peço em nome daquele que vestiu a casaca indigna. ― Como assim? Por Favor, Ôra, me revele este negócio. ― Ela! Não te enredes. Nem ela sabe que é um laço! Não te deixes enredar, eu te peço [...] (MELLO, 2008, p. 43).

O sentido do texto não se mostra em uma estrutura superficial, antes, é preciso atentar-se a cada palavra, expressão, dialeto, a fim de que se compreenda o sentido geral dos diálogos. Muitas vezes, o significado de uma conversa entre as personagens completa-se em outro capítulo, em outras circunstâncias. Este caráter meio nublado do texto requer do leitor máxima atenção nas pistas deixadas pelo autor. Quando tratarmos do fantástico na construção da trama de Sertanílias, procuraremos observar como esta personagem enigmática é construída sob as bases dos princípios do fantástico e /ou de suas vertentes. No capítulo, ―O Ferrêro‖ a narração também apresentas acontecimentos que se relacionam diretamente a eventos de cunho fantástico. O primeiro episódio diz repeito ao labor do ferreiro, personagem que o protagonista procura a fim de que as ferraduras de Russo Pombo sejam reformadas. O segundo fato é o encontro de 22

Tradução livre: A prudência é minha irmã e se chama tua amiga. Guarda-te (toma cuidado) com a mulher estranha. O trecho é uma referência ao texto bíblico que se encontra no livro de Provérbios 7:14.

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Sertano com o Canoeiro. Este emerge das profundezas do rio São Francisco e ordena a Cobra Grande para auxiliar a travessia de Sertano de uma margem do rio para a outra. Em ―A Legião dos Condenados‖ vemos a presença de ―um cão negro gigante‖ que ferozmente livra um dos cativos dos açoites de seu verdugo. O trecho a seguir faz menção de um ser que possivelmente é o mesmo que aparecerá no decurso da travessia de Sertano no sertão profundo: ―Vais tempo que vi o Leviatã.‖ (MELLO, 2008, p. 44). Ao aludir tal ser, Elomar recupera, em sua narrativa, uma figura mitológica bastante recorrente nos textos bíblicos, cuja presença sempre está associada à oposição aos filhos de Deus. Inúmeras vezes, as narrativas bíblicas mencionam a figura do leviatã; em todas as passagens, esta criatura é dotada de uma personalidade hostil, perversa e maligna. Segundo o Dicionário Bíblico, Leviatã pode referir-se a distintos animais: ―Animal parecido com um crocodilo (JÓ 41:1) e (SL 74:14), ou uma serpente (IS 27:1). Representa as forças da desordem e do mal‖. No livro de Apocalipse, este ser é aludido como uma criatura horrenda que emerge das águas marítimas: ―Vi emergir do mar uma besta que tinha dez chifres e sete cabeças‖ (BÍBLIA N.T., Apocalipse 13.1). Nos relatos dos navegantes europeus da Idade Média, a presença desse ser também está associada a algo nefasto. Em Sertanílias, não obstante, parece que a aterrorizante criatura não representa perigo nem para Sertano, nem para Ôra. Sergio Buarque de Holanda (2000) lembra-nos que a figura do Leviatã esteve na imaginação do homem medieval, e foi pelas mãos dos navegadores exploradores do Novo Mundo, no final do século XV e início do XVI, que esta imagem, ―herdeira de tradições milenares‖, aportou como figura medonha da qual encontrou terreno fértil para se acoplar ao imaginário nativo, adaptando-se e formando novos monstros habitantes das águas do Hemisfério Sul. Na história bíblica, a serpente aparece, quase sempre, como um ser maligno, sobretudo, nos livros bíblicos de Gênesis e de Apocalipse; um ser que gera morte e separação entre Criador e criatura; a responsável direta pela ―queda do homem‖ no paraíso e, por conseguinte, da sua ―danação eterna‖; em contrapartida, no livro de Êxodo, ela será usada como sinal do ―poder de Deus‖, quando a ―vara‖ que estava nas mãos de Moisés transforma-se em uma serpente, ou em outra ocasião, quando a serpente adquire o significado do antítodo contra a morte devido à desobediência: a serpente de bronze levantada no deserto. Sobre a figura simbólica do Leviatã, Sérgio Buarque de Holanda (2000, p. 243) diz: ―Nas Escrituras já sabemos que encarna o espírito do Mal. Mas assim

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como pode seduzir Eva no Paraíso, consegue ser no êxodo a vara de Moisés.‖ Em Sertanílias, a serpente é uma figura acolhedora, capaz de sacrificar seu próprio filhote para em seu ovo gigante, abrigar o canoeiro descendente dos guerreiros Tupi, em tempos remotos. Será esta serpente o Leviatã mencionado por Ôra? Outro ser mencionado é o ―Grande Cão‖, seu ladrar, durante a noite, foi interpretado por Ôra como o prenúncio da chegada de Sertano: ―O Grande Cão, o cadelo azul tanto ladrou de porta em porta essa noite passada te anunciando‖ (MELLO, 2008, p. 44). Em suma, percebemos que os seres com os quais Ôra convive são tão estranhos à natureza humana quanto ela própria cuja habitação está situada ―entre muralhas encravadas no coração do Sertão Profundo‖ (MELLO, 2008, p. 45). Ao sair da casa de Ôra, Sertano é surpreendido por quatro salteadores que pretendem roubá-lo. São eles: Caçula, Terenço, Tinga e Cilistrino. O plano do ataque não tem sucesso, pois o cavaleiro experiente consegue dominar os bandoleiros. Após imobilizá-los, conversa com os bandidos e descobre que são apenas uns miseráveis que vivem vagueando pelo sertão e cometendo pequenos delitos. Depois de Sertano tratá-los bem, os homens arrependem-se do mal que planejaram intentar-lhe, pedem-lhe perdão e seguem viagem em sua companhia, a fim de ajudá-lo a encontrar seus irmãos Zurai e Urano. Durante o percurso, um imprevisto acontece: a ferradura de Russo Pombo é danificada, por isso, a viagem deve ser interrompida para que o reparo seja feito. Assim, os novos companheiros de Sertano falam da existência de um ferreiro, ali pela região em que estão passando. Para lá se dirigem, e a primeira descrição que se tem é a da casa do ferreiro. Como veremos na análise a seguir, o detalhamento do ambiente, e a descrição física do ferreiro corroboram para que o texto torne-se ambíguo e transite sem aviso prévio entre mundo real e o fantástico, de modo que a inserção do sobrenatural sobreponha-se ao natural. A primeira concretização do insólito ocorre no detalhamento do ambiente aterrador. Mais adiante falaremos sobre este aspecto quando tratarmos dos marcadores do fantástico. Segue a primeira descrição: Perpassam um ante espaço todo tomado de pesada tralha férrea pelo chão, pelos cantos, pelas prateleiras sujas imundas, antigas peças, antiguíssimas armaduras, elmos, cabeçadas, lanças, escudos templários [...] teias de aranha, por todos os cantos e tetos. (MELLO, 2008, p. 119).

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Logo em seguida, é feita a descrição da enigmática figura que aparece quase como se fosse o prolongamento do lugar em que habita e também trabalha, ou seja, tanto quanto o ambiente, as características físicas da personagem sugerem medo e terror: Num canto mais escuro sentado em um toco de madeira escura também, depois de grande busca com os olhos, com muita dificuldade conseguiram divisar um rosto escuro tisnado, numa roupa escura sobre um fundo escuro e parede onde apenas ressaltaram em diferenciação de planos, dois olhos vermelhos quase que sanguinolentos e totalmente isentos de branco esclerótico. (MELLO, 2008, p. 119).

Como se observa, o espaço descrito autentica a construção do ambiente aterrador, propício a desencadear o acontecimento sobrenatural. A figura do ferreiro é envolta por uma atmosfera sinistra. O estranho homem surpreende Sertano, quando revela que já o esperava, bem como já sabia o motivo pelo qual ele fora a sua casa. Indagado pelo recém-chegado de como estava ciente da sua chegada, a sinistra figura simplesmente diz: ―Sempre sei. Sei de tudo‖. Esta expressão alude à onisciência, característica restrita a Deus segundo a tradição cristã. A palavra ―sempre‖ inserida na frase causa uma extensão de sentido ambíguo e põe em xeque a identidade puramente terrena do ferreiro, tendo em vista que nenhum ser humano é capaz de saber de tudo ―sempre‖. Os mistérios em volta da conduta do ferreiro prosseguem. O modo como o estranho homem executa o seu labor remete o leitor ao mundo operante pelos vieses do fantástico.

O Ferrêro abre a portinhola de uma forja que estava ao lado. Ali enfiou a parte do casco dentro de um fogo vermelho com as bordas verdes. Nesta altura os companheiros de Sertano já quase passavam mal. Não havia carvão na forja e o fogo era alimentado por leitões, frangos multicoloridos vivos e uma grande gravetada de ossos de canela de velho. Ás vezes, divisava-se ao fundo que lembravam formas humanas. Em seguida, quando o casco da pata chegou até o rubro azulado, o Ferrêro trazendo-o para a bigorna acoplava-lhe uma placa metálica com as próprias mãos sem auxílio de tenazes, luvas ou outra coisa qualquer que lhe protegesse. (MELLO, 2008, p. 122).

A tessitura dos relatos apresentados no capítulo ―O Ferrêro‖ está permeado de aspectos misteriosos com características similares aos que Todorov define como narrativa fantástica. A categorização desse gênero será exposta no capítulo que

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trata do fantástico e algumas de suas vertentes, sobretudo, na América Latina. Por ora, vamos nos deter nos aspectos semânticos do texto que acabam por formar um jogo incessante de oposição entre: o lógico e o ilógico: ―O Ferrêro abre a portinhola de uma forja que estava ao lado. Ali enfiou a parte do casco dentro de um fogo vermelho com as bordas verdes‖ (MELLO, 2008, p. 121); O natural e o sobrenatural: ―quando o casco da pata chegou até o rubro azulado, o Ferrêro trazendo-o para a bigorna acoplava-lhe uma placa metálica com as próprias mãos sem auxílio de tenazes, luvas ou outra coisa qualquer que lhe protegesse‖ (MELLO, 2008, p.122); o temporal e o atemporal: ―Parece que êl num tem idade não siô! Os antigo, bisavô, os tataravô do avô já falava desse taferrêro [...] Dize qui ele o soldad‘ quiassoitõ nosso Siô no pat‘ do pretóroruman‘, cum um gato de nove calda‖ (MELLO, 2008,p. 116-7); o grotesco e o hediondo: ―o fogo era alimentado por leitões, frangos multicoloridos vivos e uma grande gravetada de ossos de canela de velho [...] Ás vezes, divisavase ao fundo das chamas alguns crânios que lembravam formas humanas.‖ (MELLO, 2008, p. 121). Percebemos mais uma vez a presença da ambiguidade no trecho modalizado: ―crânios que lembravam formas humanas‖. Aqui, notamos a sugestão no vocábulo ―lembravam‖ (crânios humanos), e não uma afirmativa categórica de que eram crânios humanos. Esta oposição entre um ato corriqueiro do ofício do ferreiro e seu modo inusitado de exercer seu ofício é o elemento catalisador do princípio do surgimento do fantástico, a saber, a ambiguidade, segundo Louis Vax (1965) e Todorov (2004). A ambiguidade é a mola mestre do fantástico. Ao sair da casa do ferreiro, a jornada de Sertano continua. No meio da marcha, os viajantes deparam-se com o rio São Francisco. Precisavam atravessá-lo para seguir viagem, no entanto tal travessia parece inviável perante a um ―fenômeno inusitado‖: as águas do rio estavam envoltas por denso nevoeiro. A partir desse ponto, a narrativa começa romper com a ordem lógica dos acontecimentos. Quando tratarmos das funções fugidias do Rio São Francisco faremos uma reflexão mais detalhadas desse episódio, por ora, a nossa intenção é apenas engendrar um breve relato da diegese do texto que começa às margens do rio: ―Então, ouviu-se um roçar de remo cortando a flor das águas dentro do branco russo. É quando desponta ao longe uma estranha e bela figura de um canoeiro que vem se aproximando da margem do rio.‖ (MELLO, 2008, p. 133).

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Imediatamente, ao perceber o recém-chegado, Sertano já o aponta como um possível ser mítico: ―Quem sois vós?! Um boto encantado do fundo das águas ou um cruel e perverso Jurupari23?‖. O canoeiro, ofendido com a segunda comparação, repele tal identidade, quanto à primeira, não confirma, todavia não a contesta, apenas fica reticente. Depois das conjecturas de Sertano, a misteriosa figura apresenta-se: ―Sou um príncipe, último representante de um povo extinto, ainda em tempos em que não havia a história, quando mal se contava o tempo‖. Depois de se identificar, o misterioso moço oferece ajuda aos viajantes: Desferindo um agudo e forte assobio, do fundo das águas ouviu-se junto à grande turbulência um som gravíssimo e estranhamente horripilante. De repente, as águas foram se abrindo e apareceu do gigante, lombo e após, a enorme cabeça com a bocaça escancarada, fauces mostrando as por completo: A cobra grande. Indescritível. Foi o assombro dos peões e do próprio Sertano que mal conseguira disfarçar a mortificação. (MELLO, 2008, p. 134).

O suposto príncipe discorre sobre sua origem, sobre seu povo; como já enfatizado, tudo foi contado a Sertano e aos seus companheiros enquanto os viajantes atravessavam o rio São Francisco nos lombos da admirável serpente. No ensaio, O Homem dos avessos, Antonio Cândido (1971) discorre sobre esta dupla face do rio São Francisco, na obra de Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas: [...] divide o mundo em duas partes qualitativamente diversas: o lado direito e o lado esquerdo, carregados do sentido mágico-simbólico para que esta divisão representa para a mentalidade primitiva. O direito é o fasto; o nefasto o esquerdo [...] Na margem direita a topografia parece mais nítida, as relações mais normais [...] na margem esquerda a topografia parece fugidia, passando a cada instante para o imaginário, em sincronia com os fatos estranhos e desencontrados que lá sucedem. (CÂNDIDO, 1971, p. 124-125).

Sob a ótica de Cândido, são às margens do rio que o natural e o sobrenatural amalgamam-se num simples ato de travessia da margem direita à esquerda. O

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A lenda diz que o Jurupari é um deus que veio do céu em busca de uma mulher perfeita para ser esposa de Coaraci, o Sol, mas não diz se ele a encontrou. Jurupari foi o maior legislador que os indígenas conheceram... deus reformador e legislador maia. A lenda completa desse ser encontrase disponível em: . Luis da Camara Cascudo faz um em estudo que aponta que a figura de Jurupari como uma figura do bem é uma criação a partir da intervenção dos jesuítas. A lenda original sobre o Jurupari o concebe como um perverso demônio. No capítulo em que tratarmos do fantástico e suas manifestações nas comunidades ribeirinhas do Rio São Francisco, discorreremos sobre esta versão do Jurupari prédescobrimento. A recusa do Canoeiro de se parecer com o Jurupari pode ser justificada por realmente este ser uma entidade maléfica para os ameríndios.

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cruzamento do rio não significa apenas uma transposição física, mas a mudança de um mundo real para um totalmente sobrenatural. Mundo que só alcançará coerência a partir dos ―atos de fingir‖ de que já falamos. Quando discorre sobre estes elementos sobrenaturais, o autor revigora as lendas locais que apontam o rio como um verdadeiro repositório das mais variadas lendas brasileiras. As criações imaginárias do sertão de Elomar não se atêm apenas a elementos locais, como a Cobra Grande; seu imaginário manifesta-se também a partir da tradição de historietas trazidas pelos colonizadores, narrativas repletas de castelos e donzela. Ao atravessar o rio, Sertano segue seu caminho em busca dos irmãos, e depara-se com um castelo. Neste ponto da narrativa, recupera-se em Sertanílias o referencial da Baixa Idade Média. Ao chegar à residência real, o protagonista trava um diálogo com uma moça a quem ele trata por Alteza. Esta personagem é uma alusão a uma donzela medieval, personagem cantada em uma das composições do autor24. Conforme já vimos, na música, Naninha é uma donzela raptada por um príncipe apaixonado, depois de ter seu pedido de casamento rejeitado pelo rei, padrasto da donzela, o sagaz príncipe disfarça-se de cego e assim ganha a compaixão da moça que desce do castelo para guiá-lo. Conforme já pontuamos, Câmara Cascudo esclarece a recorrência dessa historieta de origem portuguesa, em vários estados do nordeste brasileiro. Na verdade, uma adaptação da história trazida pelos colonizadores. Na versão colhida por Silvio Romero, no rio Grade do Norte, Cascudo diz que o nome da donzela é Aninha. Elomar recupera essa historieta, tanto na musica, quanto no romance. Mesmo assim, vale a ressalva de que, nas obras dele, há uma pequena variação no nome da donzela, a que chama de Naninha. Cito trecho: Mindigava paxonado Te qui um dia essa princeza desceu feito um serafim ele intonce pidiu ela que li insinasse o camim rompe mais Naninha mais um bucadin vê qui o pobre cego num inxerga o camim. (MELLO, 2008, p. 244). 24

Naninha faz parte do disco ―Dos Confins do Sertão‖ gravado em 1984. Editado no Brasil e na Europa. Lançado dois anos depoislançado pela gravadora alemã Trikont, foi gravado e publicado na Alemanha. Pela obra, Elomar recebeu da crítica do referido pais seu primeiro prêmio internacional, além de ter apresentado no Festival de música Ibero-americana.

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Percebemos que, com pouca variação das histórias recorrentes nos outros estados do nordeste, a história da donzela e do cego, em Sertanílias não apresenta muita variação quanto aos acontecimentos, pois há nela o desejo do falso cego pela donzela. Outro ponto pertinente a ser destacado é o diálogo entre Sertano e a donzela, a partir do qual apreendemos indícios de que a moça previamente sabe da existência do ―Sertão Profundo‖. Isto fica explícito no diálogo: Naninha - Sejam bem-vindos, vós estrangeiros de onde? Sertano -Viemos do Sertão Profundo d‖além São Francisco‖. Naninha - Do vasto Sertão, a terra dos vaqueiros onde pastam incontáveis rebanhos. Sertano - Onde os corcéis, naquela vastidão não galopam Naninha- Voam; a que buscais? (MELLO, 2008, p. 244).

A donzela interrompe o diálogo de Sertano e ratifica a existência de cavalos voadores. Além de demonstrar que sabe a localidade do ―Sertão Profundo‖, ela ainda se mostra bem familiarizada com as peculiaridades dos cavalos oriundos daquela região, não se surpreende com a existência dos cavalos alados. Depois de saber que o motivo da visita de Sertano é a busca pelos irmãos, a donzela assegura que eles não estão lá. Esclarece a Sertano que não se usa a prática de prisões ou comércio de escravos nos domínios de seu reino. Assim, o diálogo entre ambos encerra e a moça segue seu caminho, guiando um cego. A presença de Naninha, em Sertanílias, enfatiza as relações dialógicas contínuas entre as narrativas de tradição ibérica e as narrativas sertanejas. Diante disso, em consonância com o posicionamento de Câmara Cascudo, entendemos que estas histórias que circulam no imaginário popular foram acopladas, através dos anos, à oralidade do homem sertanejo. Esta transmutação de linguagem aparece não apenas na construção das personagens, mas também, nas descrições do espaço em que se desenrola a narrativa, com a presença de muralhas e castelos habitados por reis. Conforme assinala Albuquerque Júnior: Estas narrativas que circulam no Norte do país, através do cordel, desde pelo menos o final do século passado, remetem a outras narrativas ligadas ao romanceiro medieval que são reproduzidas oralmente ou por escrito desde o período colonial. Nestas também, a violência era um elemento constante. O folheto de cavalaria, extremamente importante na educação do homem da Idade Média,

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narrava as aventuras militares de reis, príncipes e seus cavaleiros contra os infiéis, os não cristãos, fossem eles turcos ou mulçumanos (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 1999, p.178).

Depois do encontro com a moça, Sertano e seus companheiros seguem a jornada. Ao lado da muralha externa do castelo, vindo em sentido contrário a eles, caminha uma multidão de homens miseravelmente acorrentados e açoitados por um involuntário carrasco: um soldado que se enquanto trabalha não açoitar os homens subjugados, ao término de sua jornada de trabalho, será açoitado junto com sua família. O tempo decorrido na narrativa apresenta uma cronologia difusa, desse modo, épocas distintas interpõem-se. Os flagelados pertencem a momentos históricos distintos, tendo em vista que: ―A legião está em trajes desde tempos muito antigos, perpassando pelos medievais até os trajes mais modernos de nossos dias.‖ (MELLO, 2008, p. 245). Desse modo, a narrativa vai criando a ambiência para uma realidade do que foge aos princípios da ordem pré-estabelecida. Primeiro um castelo e um reino que ninguém é escravizado; depois, o encontro de Sertano com pessoas trajando roupas de várias épocas. Tais elementos textuais fornecemo indícios de que a narrativa já foi transportada, sem aviso prévio para uma dimensão, além do espaço geográfico do sertão. A narrativa segue com Sertano perguntando aos verdugos se eles viram seus irmãos cativos. O curso dos acontecimentos apresenta-se de modo longo. Sertano e seus companheiros observam tudo, contudo não sabem como intervir naquela situação de flagelo em que tamanha multidão encontra-se. O trânsito do mundo real ao fantástico segue no desenrolar da trama, por exemplo, no momento em que um homem caído exausto está prestes a receber mais uma série de chicotadas, surge, misteriosamente um grande cão. O enorme animal protege o corpo do infeliz flagelado como se quisesse resguardá-lo de um perigo iminente: Ao levantar o chicote para espancar um que, já esgota, está caído, é encarado por um cão negro gigante que surge repentinamente e misteriosamente do nada por sobre o corpo do infeliz como que protegendo-o. Após mostra-lhe as fauces num ferocíssimo e escancarado rosnado de advertência, exclama: MISERICÓRDIA! O cão como surgiu desaparece [sic].(MELLO, 2008, p. 247).

Inerte diante de tal aparição, o carrasco permanece paralisado, conservando

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a mesma postura de ataque antes da aparição do misterioso canino. Ao refazer suas forças, o verdugo levanta o debilitado homem. Este último atribui a façanha a Sertano, por isso, ensina-lhe o caminho que poderá seguir para encontrar seus irmãos. O condenado que acabara de se livrar do castigo era Fedro, fabulistas romanos (século I d. C), e o outro condenado era Esopo, escritor da Grécia Antiga, considerado o pai de todas as fábulas. Sertano reconheceu a ambos, sem que eles se apresentassem. O cavaleiro procura saber os reais motivos de todos aqueles tormentos: Sertano – Que mal fizeram você e toda essa gente...? Condenado – Pelos outros eu desconheço. Nós dois somos combatentes e mercenários. (MELLO, 2008, p.250).

O capítulo parece cumprir uma missão: evangelizar os perdidos e resgatá-los da condenação eterna. Depois de salvos, os novos crentes precisam perseverar suas jornadas nos ensinamentos bíblicos. A legião de condenados aparece como elemento de temor e de advertência para os recém-convertidos, companheiros de Sertano. É como se todas aquelas cenas de flagelos que eles estão presenciando fossem um aviso: pessoas que se desviam do propósito do criador e vivem de acordo com a ―régula do mundo‖ estão fatalmente condenados ao flagelo. Na legião dos condenados, todos são malditos, a multidão dos ultrajados é composta por ―pessoas de todas as idades, até adolescentes e crianças‖. O juízo sobre os que atendem a ―régula do mundo‖ é implacável. Como vimos, em suas horas de folga, até o próprio verdugo pode ser espancado: ―Pois que tomem sõ ispancado nas mia zora de forga. E se, eu num ispancá, êls discobre e mim ispanca, mina muié e tombem meus fi.‖ (MELLO, 2008, p. 246). O capítulo termina com os companheiros de Sertano indagando sobre a legião de condenados. Eles querem saber se aqueles miseráveis estão irremediavelmente perdidos. Pensam na possibilidade de libertá-los de seus grilhões, quando do regresso da missão de resgatar os irmãos de Sertano. Este ratifica que viver condenado ou não é uma decisão pessoal e intransferível. Todos têm a oportunidade de escolher se querem viver condenados ou não, inclusive eles, os ex-salteadores. Assim como nas fábulas de Fedro e de Esopo, o capítulo tem um fundo moralizante, porém os argumentos pautam-se na bíblia. A presença dos dois

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fabulistas na legião dos condenados, provavelmente, seja para ratificar que os únicos princípios moralizantes válidos são os que seguem os paradigmas das sagradas escrituras, e não os princípios humanos, como os de Fedro e Esopo que fazem parte da legião dos condenados porque foram mercenários. Entendemos diante disso que o mundo medieval é atualizado neste capítulo. Ao recuperar a história de Naninha, uma donzela que vive em um castelo, o autor promove o entrecorte na tradição oral e atualiza a memória coletiva do sertanejo que oralmente, dominam estas narrativas. Desde a tradição oral, os propósitos de tais narrativas estavam além do simples distrair, seu projeto maior era o de moralizar ou / e instruir um povo. Conforme aponta Câmara Cascudo: A finalidade das estórias orais não é distrair [...] mas doutrinar [...] Quem assistiu à audição de uma estória entre pescadores em uma praia, ou sertanejos em uma fazenda, poderá medir o grau de solidariedade coletiva com o desenvolvimento do assunto. O interesse se expressa pela participação crítica e apreciação espontânea da matéria moral, gratidão, ingratidão, inveja, calúnia, traição, mentira. (CASCUDO, 1984, p. 36).

Neste capítulo, o autor apropria-se de uma gama de fatores culturais, éticos e religiosos, principalmente, os da tradição Ibérica e os reintegram na composição das suas personagens que parecem andar sempre na contramão do contemporâneo. Sobre isso, a professora Evelina Hoisel25 ressalta: O sertão posto em diálogo com elementos medievais dessa tradição preservados na sua paisagem cultural, torna-se espaço propício para a recuperação de valores arcaicos, vozes que se imprimem nas histórias narradas e servem de contraponto para a exposição dos signos da contemporaneidade no espaço da arte Sertaneza (apud GUERREIRO, 2007, p.13).

Estes elementos são fontes de inspirações do autor para criar suas personagens. A partir deles, o autor de Sertanílias atualiza a realidade histórica do sertão. Segundo Guerreiro (2007, p. 23): ―a consolidação de um estilo arcaico, medieval, é uma estratégia para resguardar determinados valores éticos e estéticos que se contrapõem à dessacralização da arte moderna e desumanização da arte contemporânea.‖

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Professora titular de Teoria da Literatura da Universidade Federal da Bahia. Evelina Hoisel fez a apresentação do livro Tramas do Sagrado- A Poética do Sertão de Elomar (2007) da autora Simone Guerreiro.

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3.2 A ENIGMÁTICA FIGURA DO CANOEIRO

Ao sair da casa do ferreiro, Sertano sente-se vitorioso por ter livrado seus companheiros das garras do maligno travestido de ferreiro. A jornada de Sertano em busca de seus irmãos continua. No meio da marcha, os viajantes dapararam-se com o rio São Francisco. É o lugar ameno que revitalizará suas forças, dando-lhes ânimo para prosseguir o árduo caminho que lhes espera. A referência ao lugar ameno é algo constante, em se tratando de novela de cavalaria, sobretudo, após o cavaleiro realizar com êxito a travessia de um lugar ―terrível‖. Precisavam atravessá-lo para seguir viagem, o que parecia ser uma etapa tranqüila da jornada, mostra-se algo inviável devido a um ―fenômeno inusitado‖, as águas do rio estavam envoltas por denso nevoeiro. A partir desse ponto, a narrativa começa a ser levemente direcionada para o campo do fantástico. Conforma já citamos na página 114 desse trabalho, Sertano presencia surgir das profundezas das águas do Rio São Francisco a bela figura de um canoeiro. Sem titubear, o protagonista identifica-o como uma figura mítica: ―Quem sois vós?! Um boto encantado do fundo das águas ou um cruel e perverso Jurupari?‖. (MELLO, 2008, p. 133). Segundo Edyla Mangabeira Unger, a gênese da formação étnica das comunidades da região do Médio São Francisco tem a mistura do colonizador com os nativos que ali habitavam quando ocorreram os primeiros contatos com os exploradores: Os primeiros povoadores do Vale do São Francisco, cruzando com as nativas, numa época em que o elemento negro não estava nas cogitações dos colonizadores lusitanos, criaram, às margens do grande rio, uma raça de homens fortes. [...] o sertanejo são franciscano, com sua pele brônzea, seus olhos meio oblíquos, é o mais autêntico representante dos primeiros cruzamentos havidos na terra recém-descoberta [...] lábios grossos, cabelos lisos, exibindo em tudo a predominância do elemento indígena. (UNGER, 1978, p. 54).

Nesta região, existem algumas grutas que os moradores acreditam ter sido, no passado bem remoto, habitadas por índios. Nelas, há indícios de ocupação, inclusive pinturas rupestres. Como o seu acesso é praticamente impossíveil, especula-se que elas ocultem objetos e utensílios. A população local acredita que se algum dia alguma pessoa tiver acesso a essas grutas, confirmará a existência da

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suposta tribo, os muribecas. Sobre isso, a autora acrescenta: As formações rochosas do Médio São Francisco possuem características estranhas. [...] Em certos pontos surgem no horizonte rochas imensas que se erguem como torres ou formam misteriosos coliseus com passagens estreitas e escarpas abruptas [...] como resquícios de uma civilização antiga- de templos remotos e assustadoras cidadelas. (URGER, 1978, p. 61).

A tão temida cobra grande, que apavora o sertanejo, tanto na ficção, quanto na vida real, foi recuperado na narrativa de Elomar. Na referida citação, percebemos que sob o comando do Canoeiro, a enorme serpente transporta Elomar e os exbandidos em seus lombos. (MELLO, 2008, p. 134). Conforme assinala Jerusa Pires Ferreira, às vezes, a água constrói o próprio obstáculo do herói que precisa executar a travessia para continuar seu destino. Em Sertanílias, a água revela o mistério que envolve o rio. Este mistério materializa-se na aparição do canoeiro e da cobra grande, às margens do São Francisco. O transporte usado pelos os viajantes pode ser entendido como a própria noção de travessia milagrosa de que fala a autora. Neste contexto, o rio adquire o significado de lugar de passagem entre o mundo com evidências referenciais, para outro, sem referente espacial, temporal ou histórico, constituído a partir da narração dos mistérios passados em uma ―geografia imaginária‖ cujo bestiário é apresentado como parte integrante da própria identidade do sertanejo. Jerusa Pires Ferreira assinala que o bestiário que permeia a geografia inventada é parte integrante do trajeto do herói em combate:

O conjunto de animais míticos (bestiário), que é relacionado no plano do combate, à ferocidade e ao obstáculo é também aqui trazido como parte de toda uma cenarização, como montagem da ‗geografia visionaria‘ que nos remete às telas medievais. Serpente, dragão, leão na geografia de heroísmo, ao largo de referências a regiões longínquas, dentro da máquina de encantamentos adaptados (PIRES

FERREIRA, 1993, p. 108). Como vimos, nas páginas anteriores, sob a ótica de Antônio Cândido, as margens do rio mostram o lado fasto e o lado nefasto da realidade ficcional criada: a margem direita é regida pelo crivo da razão, ao passo que a margem esquerda é conduzida pelo mistério. Em Sertanílias, a travessia também significa a passagem de um mundo lógico ao mundo ilógico. Entendemos que quando Elomar insere

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elementos fantásticos em seu romance, ele está revigorando as lendas locais que apontam o rio como um verdadeiro repositório das mais variadas lendas brasileiras. Na criação fictícia de Elomar, o Rio São Francisco não aparecerá apenas como fonte de subsistência do povo. A travessia do personagem Sertano e seus companheiros de uma margem a outra do rio, também significa a passagem de um mundo lógico ao mundo ilógico. Voltando nossas discussões para o evento da travessia, enquanto a cobra Grande transportava os viajantes, o Canoeiro, ao seu lado, relatava a Sertano a bravura das montarias que seu reino possuía e destacava a extensão das terras que sua tribo habitava em tempos remotos: ―O Reino de meu pai se destacava entre outros reinos pelo padrão de bravura de suas montarias‖. (MELLO, 2008, p.137). Ao descrever tudo isso, também falou de outras criaturas que há muito tempo viveram por aquelas paragens do sertão, os ―leviatores brancos‖, seres herbívoros com cabeças de formatos quiméricos:

Em tempos imemoriais, neste imenso baixio que se escalona do mar até a saia da grande montanha na direção do poente, a qui viveu meu povo e meu pai foi o último rei no grande território dos leviatores brancos De meu povo remanescente antropologicamente degeneradoo Tupi - conservou algumas lembranças das cabeças destes animais velozes e dóceis- os leviatores- nos cabeçotes de canoas para dar ideia de rapidez e ferocidade. (MELLO, 2008, p. 135. -136).

As carrancas que enfeitam as embarcações do Rio São Francisco seriam uma espécie de lugar de memória dos ―leviatores brancos‖ que habitaram aquela região em tempos imemoriais. Em O livro dos seres imaginários, Jorge Luis Borges define a Quimera, sob a ótica de Homero, como um ser dotado de: ―Cabeça de leão, ventre de cabra e cauda de serpente‖. Por outro lado, sob a ótica de Hesíodo, Borges a descreve com três cabeças: ―Na metade do lombo está a cabeça de cabra, numa extremidade a de serpente, noutra a de leão‖ (BORGES, 1982, p. 111). As referências que aparecem destes seres fantásticos em Sertanílias é uma mistura de seres mitológicos, com lendas brasileiras. A Quimera, segundo Borges, tem sua primeira referência no ―Canto VI‖ da Ilíada; o Boto, conforme aponta Câmara Cascudo é uma lenda amazônica; o Jurupari, ainda sob a ótica de Camara Cascudo, tem sua gênese nas tribos indígenas e por fim, a Cobra Grande, provavelmente, é referência ao Minhocão de que já falamos.

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3.3 O ―VELHO CHICO‖: UM ÍCONE DO SERTÃO A história do Rio São Francisco é tão antiga quanto a própria história do Brasil. ―Em 4 de outubro de 1501, dia de São Francisco, o navegador italiano Américo Vespúcio (1454-1512) descobriu a foz de um rio na costa do nordeste brasileiro. Em homenagem ao santo protetor dos animais‖, o rio assim foi batizado, São Francisco. Carinhosamente, este imenso rio é tratado pelos nordestinos como ―Velho Chico‖, antes da sua colonização, era chamado pelos índios que ali viviam de Oporá, topônimo que significa ―rio-mar‖. Ao longo de toda sua história, o Rio São Francisco tem exercido uma função econômica significativa. A pesca que dele se retira, além de servir de alimento às comunidades ribeirinhas, também se constitui fonte de comércio que elas possuem. A pesca que sai das águas daquele rio abastece o mercado de parte da região sudeste e nordeste do país. Este extenso rio também é responsável pelas rendas turísticas que se estabelecem pelas terras por ele banhadas. Boa parte das cidades que ele corta tem como opção de renda, além da pesca, hotéis, pousadas, lojas de artesanatos, confecções produzidas pelas ribeirinhas etc. O Rio São Francisco nasce na Serra da Canastra, município de São Roque de Minas, Centro-oeste do Estado de Minas Gerais. No entanto, antes de desaguar no Oceano Atlântico, cruza por outros estados: Bahia, Pernambuco, Sergipe e Alagoas. No Estado da Bahia, passa por 34 cidades, sendo que a mais próxima do sertão é a cidade de Bom Jesus da Lapa, localizada no Sudoeste do Estado, local que algumas das personagens de Elomar situam-se. Sem dúvida, o Rio São Francisco tem um papel fundamental na economia de muitas regiões brasileiras, não obstante, a sua função não se limita apenas às fontes primárias ou secundárias de subsistência das comunidades que vivem às suas margens ou moram em regiões próximas. É também fonte de alimentação da imaginação das comunidades ribeirinhas. Inúmeras são as lendas que se referem a seres fantásticos habitantes daquelas águas. No imaginário popular sertanejo, o rio existe destes tempos imemoriais. A partir da importância, não só econômica, mas também mítica que as comunidades ribeirinhas dispensam a este rio, podemos entendê-lo como um verdadeiro repositório da memória do sertão. Sob a ótica mítica, sua origem é resultante

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de uma desafortunada história de amor entre um casal de índios. As histórias são incontáveis acerca da origem e dos mistérios que estão submersos nas águas do ―Velho Chico‖. Vejamos a mais conhecida que explica sua origem: A versão lendária da origem do rio traz uma história poética, uma história de amor. Conta que viviam os índios nos chapadões, em várias tribos felizes. Entre esses estava uma linda mulher, a doce Iati. Era noiva de um forte guerreiro, quando houve uma guerra nas terras do Norte e todos os guerreiros se foram para a luta. Eles eram tantos que os seus passos afundaram a terra formando um grande sulco. Entre eles se foi o noivo da formosa índia que, tomada de saudades pelo seu amado, chorou copiosamente. Suas lágrimas foram tantas que escorreram pelo chapadão despencando do alto da serra, formando uma linda cascata e caindo no sulco criado pelos passos dos guerreiros. Seguiram para o Norte e lá muito longe se derramou no oceano, e assim se formou o rio São Francisco, (CODEVASF HOJE, 2007, [s.p.]).

Conforme se pode notar, a citação acima engendra uma explicação mítica para o surgimento do Rio São Francisco; entretanto, esta não é a única lenda que habita o imaginário das comunidades ribeirinhas, outras tantas tradições dão conta de narrar outros muitos fenômenos naturais e até tragédias ocorridas ao longo de sua existência. Therezinha de Jesus Pinto Fraxe analisa a cultura cabocla ribeira do Amazonas e sobre isto faz as seguintes ponderações, depois de desenvolver uma pesquisa a respeito do significado do mito para a respectiva população: O mito não é visto pelas comunidades ribeirinhas apenas como uma reminiscência de uma história contada e sim algo vivido. Não possui a mesma ficção em que podemos ler hoje em um romance, mas é uma realidade viva, considerada como tendo realmente acontecido em tempos primeiros, e que desde então, continua a influenciar o mundo e os destinos dos caboclos ribeirinhos. Para estes, o mito possui o mesmo significado das histórias bíblicas da Criação, da Redenção do sacrifício de Cristo na cruz, na versão do crente plenamente convicto. (FRAXE, 2004, p. 347).

Semelhante às comunidades ribeirinhas do Amazonas que Fraxe investiga, os grupos que vivem às margens do ―Velho Chico‖ também preservam o respeito pelos mitos. Muitas vezes, os ribeirinhos encontram explicações nos mitos para a justificativa e/ou compreensão dos eventos como os alagamentos das terras, os desabamentos de casas, os desaparecimentos e as mortes de pescadores no rio. Tudo, ou pelo menos quase tudo, é explicados por eles a partir dos vieses do sobrenatural, do transcendente, do mítico, ou seja, da interferência de seres

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misteriosos que habitam as profundezas daquelas águas. Se os peixes são fontes de vida da economia dos barqueiros, lavadeiras, pescadores, é importante salientarmos que as lendas são fonte de vida para a fé e a cultura da maioria da população que vive às margens do São Francisco. Toma-se como exemplo disso a lenda do ―Minhocão‖, também conhecida pelas comunidades ribeirinhas por Cobra Grande, ou Sucuri Gigante. Esta única lenda é capaz de solapar todas as explicações racionais a respeito das fatalidades que acontecem às comunidades ribeirinhas. Dessa forma, a casas ao redor do rio podem desabar, não porque são construídas precariamente, ou em locais indevidos, mas devido à fúria do ―Minhocão‖. Segundo a lenda, este ser é uma enorme cobra que apresenta ânimo imprevisível. Sendo assim, sem nenhum motivo agravante, a criatura gigante faz inúmeras travessuras, ora dá pancadas com a cauda nas embarcações que trafegam pelo ―Velho Chico‖, por conseguinte, ocasiona o afundamento das navegações e a morte dos passageiros; ora, a criatura de ânimo dobre cava grutas nas ribanceiras do leito do rio. Ademais, quando se entedia de tais feitos, abre grandes buracos no solo que estão sob as habitações dos ribeirinhos, provocando o desabe das casas. Achando insuficientes estes feitos nefastos, quando lhe apraz, a sinistra serpente procura outro divertimento, sendo o seu predileto: aterrorizar as pessoas nas embarcações. Não é por um acaso que as comunidades ribeirinhas do Rio São Francisco são tomadas por dois sentimentos antagônicos, o fascínio e o horror pelo gigante animal. Edyla Mangabeira Unger discorre sobre os perigos reais que as cobras representam para os sertanejos que vivem próximos das margens do rio São Francisco. As serpentes constituem-se a mais terrível ameaça nos pequenos lugarejos do interior, e, sobretudo, para os que atravessam a pé os atalhos abertos na caatinga. As sucuris não são apenas ameaçadoras nas lendas sertanejas, efetivamente, tais répteis representam perigo real à população que vive nas regiões do sertão próximas aos grandes rios. Em seus relatos de pesquisa sobre as comunidades do Médio São Francisco, a pesquisadora relata a aparição de uma enorme serpente, próximo à casa de um jovem que vivia à beira do rio:

e ali apareceu, num pântano vizinho, uma sucuri de vinte metros de cumprimento e vinte e cinco centímetros de circunferência. Só conseguiram matá-la depois de vários tiros. Muitos ossos de gado encontrados quando a cortaram de cima a baixo, desvendaram o

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mistério do desaparecimento de várias rezes. (UNGER, 1978, p. 21).

Além da lenda da gigante sucuri, que na vida real também é uma criatura ameaçadora da integridade física das pessoas e das criações que estas possuem; outras tantas lendas existem nas comunidades ribeirinhas do rio, e cada uma, a seu jeito, explica as grandes catástrofes ou até mesmo a abundância ou a escassez de peixes no Rio São Francisco26. A partir dos comentários de Antonio Cândido sobre a dupla face do São Francisco (CÂNDIDO, 1971, p. 124-125), entendemos que às margens do rio, o natural e o sobre natural amalgama-se num simples ato de travessia da margem direita à esquerda. A travessia do rio não significa apenas uma transposição física, mas uma transposição de um mundo coerente para um totalmente incoerente do ponto de vista da razão.

3.4 O DIÁLOGO DE ELOMAR COM OUTROS SERTÕES E OUTROS SERTANEJOS

Não é de hoje que o sertão nordestino é narrado, cantado ou historiado. Ao longo dos discursos engendrados acerca da história da natureza ou da história do homem sertanejo, muitos foram os escritores que se interessaram por temáticas ligadas ao modo de vida do sertão, seja em seus aspectos culturais e religiosos, seja em seus aspectos econômicos. Dentro da realidade inóspita do sertão, Eloma capta em suas obras o lado cultural de um sertão, politicamente mal administrado desde sua gênese, mas, sobretudo, o autor põe em evidência um sertão habitado por homens que esperam do divino a redenção e o descanso de suas vidas desafortunadas que nunca foram poupadas pelo inclemente sol. Conforme veremos, nas páginas subsequentes, em suas obras, e em outras, de diferentes autores brasileiros, o sol aparece imponente e tirano. Ele é o algoz da terra e dos rios. É

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Além da lenda do minhocão existem também a Caboclo-D‘água - criatura fantástica que vive no lugar mais fundo do Rio São Francisco. Tem o domínio sobre as águas e os peixes. E uma das mais conhecidas que fala sobre ―o sono do rio‖. ―Reza a lenda que à meia-noite as águas adormecem, o rio se aquieta por alguns minutos e todos os seres de suas águas adormecem. Nesses poucos momentos não se pode despertá-los, pois acordadas as águas se enfurecem virando as canoas e inundando as terras. Quando o rio dorme, as almas dos afogados se dirigem para as estrelas, a mãe d'água sai e se senta nas pedras no meio do rio e enxuga os longos cabelos, os peixes param no fundo do rio, as cobras perdem o veneno‖. Relatos disponíveis em: .

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pertinente ressaltar que mesmo o autor não trazendo para seu discurso um tom engajado sobre as agruras da vida do sertanejo; o drama do vaqueiro que sai de sua terra para escapar da fome e da seca, e o espaço hostil são introduzidos em suas obras. Por questão de delimitação temática, tivemos que escolher, além de Sertanílias, apenas duas obras para o desenvolvimento das discussões. Optamos pelo Auto da Catingueira e a ópera Fantasia Leiga Para um Rio Seco. Compreendemos que ambas serão úteis para tratarmos da relação do homem sertanejo com o inóspito clima do sertão; e também, para entendermos as relações que estabelecem com as lendas sertanejas e a cultura dos cantadores. Veremos como estas obras dialogam com Sertanílias e com as obras de outros artistas que tratam da temática da seca. Na ópera, exploramos a problemática do homem retirante, tangido do sertão pelo inclemente sol; no auto, analisamos as tradições dos cantadores dos desafios nordestinos. As duas obras foram produzidas a partir da mistura da música erudita com a linguagem simples do sertanejo iletrado. Este amálgama de estilo é uma das principais marcas do autor no conjunto de sua composição artística. Vejamos como estas composições dialogam com outras tantas que tratam dos homens e das terras sertanejas. Historicamente, na literatura brasileira, uma das obras mais célebres sobre o sertanejo nordestino é Os Sertões escrito em 1902 por Euclides da Cunha, cinco anos após o famigerado massacre ocorrido na Guerra de Canudos. Esta obra foi uma das primeiras a evidenciar, sob o crivo do pensamento positivista operante nos finais do século XIX, os problemas políticos sociais e econômicos do sertanejo. Três décadas depois, as mesmas agruras relatadas em Os Sertões foram também romanceadas por Graciliano Ramos e Raquel de Queiroz, nas respectivas obras Vidas Secas e O Quinze. Em 1944, o pintor Candido Portinari levou para as telas de suas pinturas a vida amarga dos sertanejos representados com toda crueza em Os Retirantes. No campo da música, inúmeras são as composições que evidenciam o ambiente inóspito nordestino. Um dos cantores que mais explorou esta temática do retirante fugindo da seca na ―terra ignota‖ foi Luiz Gonzaga com suas célebres canções: Asa Branca (1947) e A Triste Partida (1964). Vamos analisar todas essas abordagens e seus possíveis intertextos com uma das três obras supracitadas de Elomar.

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3.5 SERTÕES: ―TERRA IGNOTA‖, TERRA DOS DESPATRIADOS

Quando escreveu Os Sertões, em 1902, Euclides da Cunha pautou sua análise na supremacia da ciência, a fim de entender o sertanejo como sujeito histórico-social. Em sua obra, ele discorre sobre a geografia do sertão e tenta explicar a partir desta o clima totalmente inóspito ao homem sertanejo que recalcitrante teima em não abandoná-la. O posicionamento de Euclides da Cunha em relação à geografia do Sertão evidencia que apenas a ciência seria capaz de explicar as relações sociais, psicológicas e econômicas do homem do sertanejo. O termo ―Terra ignota‖ foi cunhado por Luis Costa Lima para se referir ao sertão descrito por Euclides da Cunha. Segundo o crítico, a literatura aparece em Os Sertões como ―ornato‖. Destaca que a linguagem poética foi utilizada por Euclides da Cunha como um ―aliviar de tensões‖ diante da perplexidade de se contemplar as agruras de uma ―terra ignota‖. Este crítico explica como se dá o exaurir de tensão diante das rudes paisagens sertanejas que Euclides da Cunha precisa descrever: ―pela torção literária, é esvaziada a tensão que quase se torna insuportável - há uma ciência capaz de dizer de tão estranha terra sujeita a tamanhas oscilações? [sic].‖ (LIMA, 1997, p. 153). O autor de Os Sertões concebe o sertanejo como produto resultante de inúmeros cruzamentos. Em sua visão, preponderantemente positivista, o homem do sertão faz parte de uma ―sub-raça‖, por isso, é empecilho ao progresso civilizatório, uma vez que a miscigenação entre portugueses, índios e negros constitui um problema representativo de involução biológica. Para Euclides da Cunha, a religiosidade do sertanejo era tão mestiça quanto ele próprio. Desse modo, o habitante do sertão era, por conseguinte, desprovido da ―capacidade orgânica de se afeiçoar a situação mais alta‖, uma vez que é ―um caso de anacronismo psíquico ideativo‖. Por isso, a esse respeito, o autor assegura: ―deixa-se facilmente arrebatar pelas superstições mais absurdas‖, sua ―religião mestiça‖ seria resultante do intercruzamento cultural-religioso feito a partir do ―antropismo selvagem, o animismo do africano e o aspecto emocional da raça superior.‖ (CUNHA, 2009, p. 135-136; 145-146). Perante isso, ao manter estreito vínculo com as correntes científicas emergentes nos finais do século XIX, Euclides da Cunha constrói seu pensamento sob as leis do determinismo e da hereditariedade. Sendo assim, os seus

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delineamentos positivistas fazem-no compreender o sertanejo como um ser dotado de apego servil a terra, alienado fatalmente a um ambiente de clima pouco receptivo ao homem que, diante das agruras oferecidas pelo meio, apega-se a: ―todas as profecias esdrúxulas de messias insanos; e as romarias piedosas; e as missões e as penitencias.‖ (CUNHA, 2009, p. 145). Euclides da Cunha (2009, p. 198) concebe estas

―manifestações

complexas

de

religiosidade

indefinida‖,

explicáveis

biologicamente, a partir da ―fraqueza de consciência‖ de um povo que na sua concepção é o ―resumo degenerativo de três raças.‖. Na década de 1930, os sérios problemas sociais ocasionados pela seca e pela falta de assistência política para as regiões do nordeste do Brasil serão explorados mais uma vez. Agora, a partir das ficções de Graciliano Ramos, em Vidas Secas, e Rachel de Queiroz, em O Quinze. Estas obras foram escritas nas chamadas literaturas modernistas da segunda fase, denominadas pela tradição literária como romance social e/ou literatura engajada. As personagens Fabiano e Chico Bento, respectivamente, dos dois últimos autores supracitados, representam os muitos sertanejos que ao longo da história do sertão nordestino brasileiro foram e ainda são segregados social e politicamente. Eles representam os milhares de nordestinos que todos os anos são varridos do sertão. Como diz o narrador de Vidas Secas a respeito de Fabiano: ―A sina dele era correr mundo, andar para cima e para baixo, à toa, como judeu errante. Um vagabundo empurrado pela seca.‖ (RAMOS, 2009, p. 8). A narrativa de Graciliano evidencia que a fome, a miséria e a falta de dignidade humana não se configuram como uma exceção na vida do sertanejo, antes, é uma realidade que o acompanha insistentemente. Quando o romance começa, Fabiano, Sinhá Vitória, os meninos e a cachorra Baleia estão retirando-se porque há um período de estiagem muito extenso na região em que vivem, conforme podemos constatar a citação a seguir: ―o vaqueiro precisava chegar, não sabia onde. Tinha deixado os caminhos cheios de espinhos seixos, fazia horas que pisavam a margem do rio, a lama seca e rachada que escaldava os pés.‖ (RAMOS, 2009, p.3). Como vemos, Fabiano e a família saem errantes, em busca de água. No desenrolar da narrativa, a chuva vem, e os retirantes têm a oportunidade de plantar em uma terra abandona. Todavia, quando tudo parece sob controle, e a família faz planos para melhorar a sofrida vida, eis que aparece um suposto dono da terra. Este os explora por algum período e depois os abandonam entregues à própria sorte com a

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chegada do outro período de estiagem. A narrativa de Graciliano Ramos deixa evidências de que a vida precária do sertanejo não está condicionada apenas aos fatores climáticos, mas também aos problemas sociais. O vaqueiro Chico Bento, por sua vez, experimenta a realidade da seca como uma fatalidade que acaba por desintegrar progressivamente a sua família, quando membro a membro se dispersa do grupo, e são tangidos para lugares longínquos, em busca de refúgio da seca. O romance termina, e a família de Chico Bento não é restaurada, cada membro perdeu-se pelas veredas do sertão assolado pela fome. O ponto alto da tragédia na trama de Rachel de Queiroz é a morte de Josias, um dos filhos do casal. A criança morre após comer uma ―manipepa‖, mandioca brava, imprópria para consumo humano: Lá se tinha ficado Josias, na sua cova à beira da estrada, com uma cruz de dois paus amarrados, feitas pelo pai. Ficou em paz. Não tinha mais que chorar de fome, estrada a fora, não tinha mais alguns anos de fome à frente da vida, para cair depois no mesmo buraco, à sombra da mesma cruz. (QUEIROZ, 1986, p. 27).

Josias era um privilegiado, descansou das agruras da vida antes dos outros miseráveis da família, provavelmente, fadados ao mesmo destino: nascer, viver e morrer como bicho. Sob a ótica de Nelson Werneck Sodré, os anos decorrentes entre 1930 e 1935 tiveram ―grandes criações literárias‖ às quais estavam imbuídas de ―imprescindível valor‖, bem como de estudos sobre o Brasil cujas ―variedades das temáticas‖ estavam ligadas às questões políticas e sociais: ―O tema político e social figura como destaque, e as controvérsias surgem acaloradas [...] É a época da ficção documentária e liberalista desvendando o terrível quadro da população abandonada e explorada secularmente.‖ (SODRÉ, 1987, p. 44-5). No gênero musical, a temática do homem e suas relações com as inclementes condições climáticas do nordeste, também foram cantadas. Um dos nomes de maior destaque é o cantor Luiz Gonzaga; como já vimos, nas composições ―Asa Branca‖ e ―A Triste Partida‖, ele revela a angústia do homem que se vê obrigado a deixar suas terras e muitas vezes, a família para ir ―tentar a sorte‖ em outras paragens: Que braseiro, que fornaia Nem um pé de plantação Por falta d‘agua perdi meu gado Morreu de sede meu alazão.

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Como vemos, mais uma vez a miséria e a falta de esperança humana são abordadas na arte para retratar a vida sertaneja assolada pela seca. A música de Luiz Gonzaga é um misto de dor do eu - lírico pela partida forçada de suas terras e também a esperança de que aquele sofrimento é temporário. Em Asa Branca, o eu lírico compara a terra seca e ardente do nordeste à fogueira de São João, mas resignado com a inevitável partida, só lhe resta sonhar com o dia do regresso para sua ―pátria‖, o sertão: Hoje longe muitas léguas Numa triste solidão Espero a chuva cair de novo Pra eu voltar pro meu sertão

A fé do sertanejo aparece na composição A triste partida. O eu - lírico insiste em aguardar até o limiar de sua resistência física, só depois de sucumbido pela fome e sede, resolve abandonar a terra; retira-se desprovido de esperança da chegada da chuva. Depois de meses rezando, fazendo simpatias, pedindo clemência aos céus, ele não encontra alternativa que não seja a de partir.

Meu Deus, meu Deus Setembro passou Outubro e Novembro Já estamos em Dezembro Meu Deus, que é de nós, Meu Deus, meu Deus Assim fala o pobre Do seco Nordeste Com medo da peste Da fome feroz.

É importante notarmos a semelhança dessa cena retratada na música A Triste Partida com a situação que Chico Bento, personagem de O Quinze terá que passar devido ao longo período de estiagem na região Nordeste: - Por falar em deixar morrer... o compadre já soube que a Dona Maroca das Aroeiras deu ordens pra, se não chover até o dia de São José, abrir as porteiras do curral? E o pessoal dela que ganhe o mundo... Não tem mais serviço pra ninguém [...]Do que tenho pena é do vaqueiro dela... Pobre do Chico Bento, ter de ganhar o mundo num tempo destes, com tanta família! - Ele já está fazendo a trouxa. Diz que vai pro Ceará e de lá embora pro Norte. (QUEIROZ, 1986, p. 04).

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Em diálogo com estes gêneros, as artes plásticas também transpõem para a pintura a triste condição do sertanejo fugindo da fome ocasionada pela seca. Os Retirantes (1944), do pintor Candido Portinari, tela que retratou a tríade da morte: seca, fome e desnutrição. Figura 2 - Os Retirantesde Candido Portinari

Fonte: Google (2015)

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As causas (desigualdade social/seca) direcionam–nos à consequência (morte). Os urubus que aparecem na parte de cima da tela, contrastando com o céu sem nuvens e o chão com pequenas manchas brancas que sugerem ossos espalhados pelo solo, corroboram para entendermos que a iminente morte é um fato concreto no futuro daquela família. Sendo assim, os elementos desigualdade social e fome são contundentes para que na tela se perceba o horror de seres humanos degradados a condição de mortos vivos. Esta sensação de deterioração humana, sentida na pintura de Portinari, também pode ser notada nas outras obras supracitadas, sobretudo, em O Quinze. O cenário desumano transposto para a pintura lembra a desafortunada família de Chico Bento sendo varrida pela seca e

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Disponível em: . Acesso em: 15 abr. 2015

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tragada pela morte. Podemos verificar no fragmento que trata da morte de um dos filhos do casal Chico Bento e Cordulina: [...] arquejando penosamente, estava um dos meninos de Chico Bento, o Josias. O ventre lhe inchara como um balão. O rosto intumescera, os lábios arroxeados e entreabertos deixavam passar um sopro cansado e angustioso [...] A criança era só osso e pele: o relevo do ventre inchado formava quase um aleijão naquela magreza, esticando o couro seco de defunto, empretecido e malcheiroso. (QUEIROZ, 1986, p. 23-4).

Segundo o que temos notado, os mais diversificados gêneros de circulações artísticas procuraram, a seu modo, mencionar os problemas sociais que afligem a região do nordeste brasileiro, desde seus primeiros anos de povoamento. Todas as composições são carregadas de muita dramaticidade e, por si mesmas, denunciam intencionalmente ou não os problemas sociais nordestinos. Estes artistas, cada uma ao seu estilo, ratificaram que este pedaço de geografia, em muitos casos, constituise uma ―terra ignota‖ divorciada do restante do país não só devido aos fatores climáticos, mas também, em razão de falta de assistência política. O que há em algumas regiões do sertão nordestino brasileiro é a carência de projetos sociais consistentes e duradouros. Infelizmente, a ―indústria‖ da seca em alguns pontos do sertão ainda é uma realidade. Muitos projetos criados para suprir a carência de água da população rural são assistencialistas, e insuficientes para erradicar o histórico problema da seca no sertão. A fim de atenuar esta demanda crônica, em algumas regiões do sertão são enviados carros pipas para o abastecimento das residências rurais, entretanto, esta ação é insuficiente para a grande demanda da população que precisa de água não só para o uso doméstico, como também para a irrigação da plantação e para o gado beber. Lamentavelmente, o sertão nordestino das primeiras décadas do século XXI continua produzindo retirantes que vão embora do sertão, semelhante ao eu-lírico da música de Luiz Gonzaga. Na ópera Fantasia Leiga para um Rio Seco, Elomar recupera algumas das abordagens apresentadas nas obras de Euclides da Cunha, Graciliano Ramos, Raquel de Queiroz, Candido Portinari e Luiz Gonzaga. Vejamos como o autor de Sertanílias dialoga sua ópera com as produções desses autores.

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3.5.1 Lembranças de um astro tirano

Consoante assinalamos, nas partes introdutórias desse trabalho, estas agruras nordestinas também foram interpretadas na voz de Elomar. Se, em Sertanílias, o autor não se concentra muito nesta questão do homem flagelado pela tirana seca, não podemos, com isso, afirmar que este tema seja excluído de sua produção artística, a prova disso é a ópera Fantasia leiga para um rio seco (MELLO, 1981). Esta obra é um poema narrativo que teve seu primeiro registro sinfônico feito pela Orquestra Sinfônica da Bahia. A composição relata a saga consciente do retirante para a morte que, fatalmente, espera-o antes de chegar ao seu destino. A dramaticidade do poema é potencializada pelo cenário de horror que semelhante às obras dos outros autores já citados, também revela a degradação humana, diante da fome. A história narrada remete aos acontecimentos da seca ocorrida em 1890, popularmente conhecida por ―fome do noventinha‖. Esta história foi ouvida inúmeras vezes pelo autor quando ainda uma criança. A fome e o horror que assolaram a população na época, ainda hoje são contados e recontados oralmente pelo povo do sertão.

Figura 3 - LP Fantasia

Fonte: Google (2016)

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leiga para um rio seco, 1981.

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Disponível em: . Acesso em: 2016

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Fantasia Leiga para um rio Seco segue o modelo do poema épico e narra a história de um retirante que, depois de perder mulher e filho na ―fome noventinha‖ parte do sertão em direção à região denominada de mata-cipó. A ópera é dividida em cinco cantos: a abertura intitulada ―Incelença para a terra que o sol matou‖, 2º canto ―tirana‖, 3º canto ―parcela‖ 4º canto ―contradança‖ e 5º canto ―amarração‖. A obra apresenta todas as asperezas que o ser humano pode sofrer quando privado da água, bem mais essencial à vida. Na abertura do poema, já se tem o canto fúnebre, ―as incelença‖ para a terra morta pelo sol. Levanto meus olhos Pela terra seca só vejo tristeza quidi solaçao eu‘a ossada branca fulorano o chão e o passu- Rei, rei do manjá deu bênça à Morte práavisá prus urubu de ôtros lugá qui Vince logo pru jantá

Observe-se que o mesmo cenário que aparece nos versos acima, também nos remete a imagens reproduzidas na tela de Candido Portinari, sobretudo ―a ossada branca/fulorano o chão‖ e a mobilização dos urubus de outros lugares que serão convidados para o iminente banquete. Os únicos seres robustos, naquele cenário são estas aves. Elas são indícios de morte ou véspera de morte. O convite para o manjar é feito pelo ―passu- Rei, rei do manjá‖, referência provável aos urubus locais que diante de tanta morte, podem convidar outros companheiros, de regiões mais longínquas, para se refestelarem também nas carcaças dos retirantes que sucumbem no meio de suas jornadas. Sobre a catastrófica seca presenciada na região do Médio São Francisco, Edyla Mangabeira Unger descreve uma cena análoga, às que aparecem em O Quinze e no quadro de Candido Portinari: As carcaças do gado morto, cada vez mais freqüentes, faziam com que eu estranhasse a ausência do carcará que 'pega, mata e come'. É que ali, já nada mais havia para pegar, matar e comer. De quando em vez, embora já raros àquela altura, os retirantes, tão fielmente retratados nos romances imortais de Jorge Amado, sobretudo em Seara Vermelha. Os retirantes, em fila indiana, pela beira da estrada, carregando à cabeça as poucas trouxas que enfaixavam seus trapos e uma ou outra panela. À frente o homem. Logo após a mulher com

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os filhos seguindo-lhes a pista, naquele passo curto e apressado que atravessa, num rito monótono a devastação das caatingas e de toda uma vida seca e erma. E o mato baixo crestado. Deserto. Só duas cores havia. A do barro e a das cinzas [sic].(UNGER, 1978, p. 68).

Diante da situação miserável dos retirantes do sertão do Médio São Francisco, envoltos por um mundo feito tão somente de ―barro e cinzas‖, a pesquisadora questiona a permanência do sertanejo na terra ―crestada‖; mas resolve explicar as possíveis razões dele só abandonar sua terra e sua gente quando não lhe resta mais solução alguma. Desse modo, diz: ―Porque a despeito de todas as privações, foi ali, no seu próprio chão, que ele criou raízes e aprendeu a resistiràs agruras da seca como as árvores mais fortes do sertão.‖ (UNGER, 1978, p. 68). Rachel de Queiroz retrata este apego do sertanejo à terra. Em O Quinze, Vicente recusa-se abandonar seu gado, e quando indagado sobre a possibilidade de deixar a sua criação entregue à própria sorte, diz: ―- Pois eu, não! Enquanto houver juazeiro e mandacaru em pé e água no açude, trato do que é meu! (QUEIROZ, 1986, p. 05). Voltando a análise de Fantasia leiga para um seco, é possível perceber que o tom narrativo da obra estabelece um diálogo harmonioso com todas as obras acima mencionadas. O próprio título do álbum dialoga com a retirada de Fabiano e de sua família. O retirante passa por um leito de rio seco, conforme aparece na citação de Vidas Secas: ―fazia horas que pisavam a margem do rio, a lama seca e rachada que escaldava os pés.‖ (RAMOS, 2009, p. 3). A religiosidade do sertanejo apontada por Euclides da Cunha como sinal de ―fraqueza de consciência‖, também aparece no poema-narrado. Obviamente, não com o mesmo posicionamento do autor de Os Sertões. Quando Elomar opta por inserir o ritual fúnebre na obra, oportunamente, resgata uma tradição secular que existe no sertão, a saber, o louvor ao morto. Cantar o morto é a um só tempo lamentar sua partida e celebrar a sua memória. Segundo a tradição popular nordestina, as ―incelença‖ são lamentos direcionados a quem ou está agonizando diante da morte ou acabou de morrer. Contrariando a tradição, no poema de Elomar, o canto fúnebre é direcionado à terra aniquilada pelo sol que neste contexto se configura como um implacável inimigo. As pessoas, a vegetação e os animais, todos se tornam vítimas do astro carrasco:

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Mais o sol malvado quemô os imbuzêro os bode e os carnêro toda a criação tudo o sol quemô

A referência ao ―umbuzêro‖ é feita também em Sertanílias quando Sertano está doutrinando seus companheiros de viagem. No romance, esta árvore aparece como fonte de sobrevivência terrena e uma alegoria espiritual para o homem que precisa estar ligado a Deus para não perecer no mundo. Conforme poderemos exemplificar, a graça salvadora aparece personificada pelo umbuzeiro, símbolo de resistência terrena no solo sertanejo:

[...] olhem o fruto do umbuzeiro, enquanto o fruto está preso no talo, à árvore, ele só faz crescer até a maturação. Se uma mão ou um vento forte retira da árvore para um lugar outro qualquer, a partir desse instante, ele começa a perecer até a putrefação. (MELLO, 2008, p. 148).

O segundo canto, por sua vez, narra a dor ―tirana‖, sentimento de perda e saudade do lugar e das pessoas amadas. Neste canto, conhecemos a saga do retirante que, após a morte da mulher e do filho, sai sertão afora, ciente de que sua sina é sucumbir, perante a morte. Semelhante aos seus entes queridos, a personagem fica desprovida de esperança, pois sabe que seu destino está fatalmente traçado pela seca, uma vez que ―todos qui fôro num voltaro tão nos ceus": prú vai-num-torna prá num voltá mais aqui in terra istranha e morrê longe do sertão

No terceiro canto, intitulado ―Parcela‖ o retirante prossegue sua caminhada sentindo-se desertor de sua pátria: "abaldonano as patra do sertão", porém esta culpa é atenuada pela certeza de que ele, semelhante a sua família, morrerá sem cumprir sua jornada: "do vai-num torna num se volta não". O quarto canto, sob o título de ―Contradança‖, ocorre apenas a presença da orquestra, nada se diz acerca da caminhada do sertanejo retirante, a debilidade física e moral de um sertanejo ―despatriado‖ do seu sertão é revelada apenas pelos

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sons eruditos que conseguem revelar toda dramaticidade omitida em palavras neste canto. Somente no último canto, saberemos que a sina do desafortunado retirante cumpriu-se. Apesar de o último canto ter boa parte orquestrada, o refrão revela que o momento da morte do retirante chegou. Ciente disso, ele se despede da vegetação do seu sertão: Cadê os pé do imbuzêro qui flora todo ano nas baxada e nas vereda mana mia cadê os pé d‘imbu meu mano adeus pé dosimbuzêro

A tragédia já anunciada no início do poema efetiva-se no último canto quando transpassado pela fome, sede e cansaço, o retirante contempla seus entes queridos descansando na glória de Deus. Em seguida, despede-se do ―imbuzêro‖, símbolo de subsistência do sertanejo. O ―pé de imbuzêro‖ também se tornou vítima do ―despotismo‖ do sol. De modo análogo ao retirante, a resistente árvore sucumbiu perante a ―tirania‖ do astro rei. Resignado perante a inevitável tragédia, o miserável lamenta: ―O imbuzêro não ‗fulorou‘ este ano‖. Vejo o céu se abrino Ela e o minino Tão drumino Na Santa Glória de Deus

Percebemos nessa última parte da ópera que o destino fatal para o retirante, não se configura como um momento de derrota, mas como um prêmio; sair desse mundo, castigo pela tirania do sol, é para o flagelado motivo de regozijo, pois será recebido por Deus. Diante da morte, consegue contemplar seus entes queridos, vitimados também pela seca. Semelhante a Josias de O Quinze, o retirante e a sua família, que já o espera lá, ao lado de Deus, também não sofrerá mais as agruras da terra ignota. Finalmente, o mundo justo, de alegria e de bonança efetivou-se na vida do retirante. Como em Sertanílias, o mundo de justiça e tranquilidade pregado por Sertano, só será concretizado em outra dimensão. Lá na glória de Deus, todos são iguais, todos terão os mesmos privilégios. Por outro lado, enquanto estiver na terra, cada um precisa cumprir sua própria sina.

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Entendemos assim que a obra de Elomar reflete a visão de redenção póstuma para os homens bons. Este mundo corrompido pelo pecado original não é capaz de conceder uma recompensa gloriosa aos fiéis filhos de Deus. Neste sentido, percebemos que sua obra, em alguns momentos, recupera princípios religiosos da Idade Média: a salvação do homem estava condicionada aos desígnios superiores. Em Sertanílias, a ideia de recompensa do homem justo aparece, apenas, em uma dimensão pós-morte, devido à corrupção do mundo. Isto é semelhante à ideia presente na literatura ficcional da Idade Média. Heitor Megale (1992) faz a seguinte consideração acerca da Demanda do Santo Graal (La Queste Del Saint Graalséculo XIII): Este mundo terreno é descrito como fadado ao despedaçamento, a imperfeição e ao desregramento no pecado, mas contendo sua remissão, apontada para a reconstituição, de um mundo do além, teodicéia para sempre presente. (MEGALE, 1992, p. 14).

O sertanejo que vive peregrinando seu rumo pelo sertão nos grandes períodos de imensa estiagem, também aparece em Sertanílias, semelhante aos retirantes das obras que acabamos analisar. Ao cruzar na estrada com um andarilho chamado João Imburana, Sertano não se mostra indignado pela condição do homem que, desde a infância, peregrina no sertão em busca do irmão que perdeu ainda quando criança. Ele escuta a história do vaqueiro retirante, conta a sua e vai embora: Condo minin‘ eu fui tropêro Qui mim perdi do meu irmão Campiei o sertão intero Percurando, meu patrão Já andei pulos quatro canto Do mundo vagan‘ a toa A cavalo e agora a péis Pulos campo pula istrada [...] vascuiando o sertão Eu vêvo penan‘ assim Isso foi dêrna eu minin‘ Percurano meu irirmao [...] Eu também me vou errante. Do levante até o poente, Atravessando o Sertão Sujeito a percas e danos À procura de meus manos. (MELLO, 2004, p. 48-49).

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No trecho acima citado, vimos o autor evidenciando o problema dos retirantes sempre tendo suas perdas físicas e familiares. No caso de João Imburana, a miséria agrava-se progressivamente. Quando começou a peregrinar tinha um cavalo, com o passar dos anos, sua situação tornou-se mais precária: ―a cavalo e agora a peis‖. Aliás, a história de João Imburana tem algumas semelhanças com a de Pedro, personagem de O Quinze, que se perde dos pais enquanto andavam sem rumo pelo sertão fugindo da seca. Segue trecho de O Quinze, quando Chico Bento e Cordulina buscam por Pedro:

Eu vim falar ao senhor mode um filho meu que desde ontem sumiço, nós ficamos na estrada, eu assim, variando, muito fraco... e ele veio, indo até aqui. Quando cacei o menino, não teve quem desse notícia. Como é ele? Assim magrinho comprido e cara chupada–[...] está dentro dos doze anos [...] - não tem jeito que dar não meu amigo, o menino naturalmente foi-se embora com alguém, um rapazinho, assim sozinho, muita gente quer ter. [...] talvez fosse até para a felicidade do menino. Onde poderia estar em maior desgraça ficando com o pai? (QUEIROZ, 1986, p. 43, grifo nosso).

Voltando às discussões sobre o posicionamento de Sertano perante a decrepitude do homem sucumbido pela seca; parece que o mundo cheio de agruras não o incomoda tanto, pois é lugar passageiro. Encara a vida tirana como uma fatalidade para alguns homens, mas se estes permanecerem ligados a Deus, um dia, hão de contemplar um lugar sagrado de Justiça e Paz que Deus lhes reservou. Assim Sertano descreve este lugar: ―muito longe, numa planície azul, imensa e recortada de verdes vales, onde os rios correm tranqüilos, por todo o tempo, sem enchentes e sem dar por conta do suave cursar dos dias [...].‖ (MELLO, 2004, p. 25). É deste mundo que Sertano diz ser o embaixador, é para este mundo que o herói caminha. Tanto em Fantasia Leiga para um Rio Seco, quanto em Sertanílias, a temática da seca não traça uma abordagem que deixa evidente as causas políticos e sociais do sertão, desde sua gênese mal administrado politicamente. Em ambas as obras, especialmente, na ópera em análise, o sertanejo passa por agruras infindáveis, mas isso parece ser provocado apenas pela tirania do sol. Não é demonstrando em nenhuma dessas duas obras de Elomar uma preocupação de colocar em pauta esta relação entre a seca e a falta de políticas adequadas para mudar a sorte do sertanejo que até hoje continua sendo obrigado a se retirar para os

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grandes centros urbanos pelos mesmos motivos das personagens de todas as obras analisadas aqui, a saber: fugir das agruras do sertão.

3.6 DA CATINGUEIRA: SUA ORIGEM, SUA LABUTA, SEU PIDIDO

Vejamos agora como Elomar estabelece diálogo entre Sertanílias e O Auto da Catingueira (1969). Quando compôs esta ópera, pretendia registrá-la em partituras, no entanto, após alguns anos, sugeriram-lhe que a expandisse para o palco. Assim, em 1983, a ópera teve sua primeira representação. O drama é apresentado a partir da manipulação de bonecos no palco. Os diálogos são todos feitos por meio do dialeto catingueiro recorrente no sertão baiano, principalmente pelas pessoas iletradas. A temática abordada é a beleza da mulher como fonte de desventura para os homens. A geografia referida na obra é a do sudoeste da Bahia. O tempo em que se desenrolam os fatos são datas remotas; desse modo, os acontecimentos não podem ser definidos com precisão, contudo esboçam, ainda que de forma vaga, um recorte temporal do momento que tais eventos ocorreram. Isto é possível devido à referência da moeda corrente (Réis) e da citação dos nomes de algumas vilas em que se desenrolam os fatos. O Auto da Catingueira narra às venturas e as desventuras de Dassanta, filha de um pobre vaqueiro. Linda donzela, dentro dos padrões da beleza sertaneja que não precisam necessariamente ser o padrão do belo de outras partes do país. A extrema formosura da humilde jovem é a causa dos prantos de muitas mães que perderam seus filhos, quando disputaram o amor da moça, depois de serem atingidos pela ―febre perdedêra‖, uma espécie de paixão descontrolada que faz os homens ficarem desprovidos de razão e pelejarem pelo amor da moça até a morte. A ópera sertaneja é composta por uma introdução (―Bespa‖) 29 e outras cinco partes, a saber: Canto I: ―Da catingueira‖; Canto II: “Dos labutos”; Canto III: ―Das visage e das latumia‖; Canto IV: ―Do pidido‖; Canto V: ―Das violas e da morte”. Todas as ações desenvolvidas nos cinco cantos são desenroladas a partir da versificação, precisamente 790 versos.

29

É uma introdução à cantoria; nela se definem os temas, os cantos, as histórias. De um modo geral é invocada a atenção dos circunstantes, de Deus e dos Santos, pois o cantador transfere a sua inspiração para as coisas do eterno. A tradição da Besta é ibérica, pois já no Canto Primeiro de Os Lusíadas, Camões abria com uma invocação, de proteção aos deuses. (MELLO, 1996, p. 6).

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3.6.1 Bespa

Nesta parte introdutória do drama é relatado como se deu o nascimento de Dassanta. Na primeira fala, o cantador pede licença ao dono da casa para iniciar a cantoria

da

―viola

rasa‖.

Segundo

Cascudo

(2000),

um

dos

elementos

imprescindíveis na cantoria é a louvação. Geralmente direcionada aos donos da casa que estão recebendo os cantadores. É o momento de louvar os anfitriões e atribuir-lhes virtudes. A louvação também pode ser direcionada a outras pessoas se estiver acontecendo uma festa específica como um casamento, um batizado, uma despedida ou chegada de alguém etc. No Auto da Catingueira, esta louvação aparece em pedido de licença aos donos da casa para que o cantador possa cumprir sua missão: cantar a trágica história de Dassanta, a catingueira. Sinhores, dono da casa O cantado pede licença Pra puxa a viola rasa Aqui na vossa presença30 contar a história de Dassanta. (MELLO, 1983, p.7).

Em seguida, ele ―implora‖ a atenção dos presentes para a história que pretende contar-lhes. Feito estas solicitações, o cantador volta-se para Deus e pedelhe a bênção. As manifestações culturais do sertanejo dificilmente estão desvencilhadas do sagrado. Tudo aponta para a dependência divina. Há sempre uma reverência aos céus. A consciência de total dependência do divino para que a missão seja bem sucedida: Sinhô me seja valido Inquanto eu tiver cantano Práqui no tempo currido Cumprido tenha a missão. (MELLO, 1983, p. 7).

Pedidas as devidas licenças aos homens e aos céus, o cantador inicia seus relatos acerca da origem de Dassanta. Os cantadores sãos guardiães do patrimônio imaterial nordestino. Câmara Cascudo define-os como: ―descendentes do Aedo da 30

Todas as citações do Auto da Catingueira, neste trabalho, serão citadas apenas a página e autor. O texto foi extraído de um livreto de divulgação produzido pelo Ministério da Cultura e Eletrobrás, mas não consta data em que esta obra do autor foi publicada neste material (BRASIL, [s.d]).

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Grécia, do rapsodo dos Helenos do Gleeman Anglo-saxão [...] Canta ele, como há séculos, a história da região e a gesta rude do Homem.‖ (CASCUDO, 2000, p. 115). No canto cinco, a missão do cantador é rememorar a história que ouviu de seus antepassados sobre fascinante moça. Procedendo assim, ele acredita que está cumprindo sua missão: a saber: contar para rememorar e garantir que a história permaneça viva entre os sertanejos. Este ato não tem apenas a finalidade de espairecer o povo que se aglomera nas ―latadas‖ das casas em tempos de festas. Como já enfatizamos, as agruras com as quais o sertanejo convive desde muito cedo não o impedem de celebrar suas festas, suas culturas. Em Sertanílias, enquanto o protagonista cruza o sertão profundo, passa por várias festas, uma delas na casa do Senhor dos Cavalos: trata-se da comemoração de uma celebração de casamento: ―aqui nas festas de bôda nois continua cum os custum‘ de nosso povo mais véi. Nessas festas, morre muita criação tanto graunça, cuma miunça, pois aqui elas custuma durá um méis de bespa e ôtro méis de festa prop‘mente [sic].‖ (MELLO, 2008, p. 171). A respeito da importância da festa de casamento na Idade Média, o historiador Peter Burke destaca a proeminência social que tais comemorações comunitárias ocupavam na sociedade. Não importa se mais restrita como as celebrações de casamento, mais regionais como as festas religiosas ou solenidades universais, tais como Natal, Páscoa ou Dia dos Reis. Tudo era motivo de grandes celebrações regadas a muito comida, bebida, muito festejo (BURKE, 1989, p.202). Vemos com isso que estes atos cerimoniais mencionado pelo referido historiador são recuperados no romance. Desse modo, prosseguindo o diálogo com Sertano, o senhor dos cavalos conta-lhe da tradição de celebração contínua dos seus antepassados e enfatiza que faz questão de preservar: Elos sempr‘gostaro das mêrma coisa que é do meu gôst‘:os caval‘, as orquestra, musga incelente; o traviá de janêr‘ a janêr‘ Cuma se fôs‘ uma festa dialogada sem Pará no temp‘ inconto a vida injistis. Musga, dicumduria, muita jento, armas e mais. Ieu sempre gosto muit‘ de festa. (MELLO, 2008, p. 185).

Sobre a importância das festas de casamento na literatura medieval, Jerusa Pires Ferreira também enfatiza: A festa do casamento é um importante dado étnico social, e de tal maneira conta no seio das pequenas comunidades, que termina por

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fazer-se transmitida. Na literatura de cavalaria ela merece sempre um destaque no conjunto ritualizante. (FERREIRA, 1993, p. 91).

No contexto do sertão, até algumas décadas atrás, a festa estava ligada à cantoria e à disputa entre cantadores. Era a certeza de que haveria celebração com músicas e com danças rememorando os grandes feitos dos primeiros habitantes do sertão. Durante muitos anos, no sertão, cantar significava um ofício que ultrapassava a intenção do lúdico; pois, exprimia a vontede de se preservar a memória coletiva de um povo. Em muitos momentos, este ofício constituía a tarefa de conceder voz às pessoas que tiveram suas histórias silenciadas. A arte de cantar foi, ao longo do povoamento do sertão, passada de pai para filho, conforme aponta Cascudo (2000, p. 119): ―A voz paterna emudecida na morte, ecoa nos lábios filiais, numa homenagem de saudade‖. Assim, as cantorias exercem o papel de guardiã na memória popular. As histórias que por inúmeras razões não foram impressas, continuam vivas por meio da tradição oral e são perpetuadas no idioma popular do nordestino. Desse modo, fazer cantoria, durante os folguedos, é testemunhar a história sob a ótica dos vencidos, e muitas vezes, por isso, por em xeque a história dos vencedores. Sob a ótica de Cascudo (2000, p. 115), a cantoria pode ser definida como: ―a voz da multidão silenciosa, a presença do passado, o registro das emoções anteriores, a História sonora e humilde dos que não têm história. É o testemunho, o depoimento‖. No sertão contemporâneo, estas celebrações têm diminuído progressivamente. Daí a crítica de Elomar à falta de apego do sertanejo a sua cultura. Voltando ao auto, a fim de dar veracidade aos fatos rememorados, o cantador justifica conhecer a história de Dassanta pelos relatos de um ex-companheiro, vaqueiro que viveu lá pelas bandas de onde tais eventos se passaram. Conforme pode ser verificado no trecho selecionado: Foi lá nas bandas do Brejo muito bem longe daqui qui essas coisa se deu num, tempo em que num vivi nas terra qui meu avo herdô do meu bisavô [...] Nessa terra há muitos anos Viveu um rico síô

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dono de um grande fecho [...] Suas posse era tanta Qui si a memória num erra Vídizêqui ele tia Mais de cem minréis de terra, ai‖! (MELLO, 1983, p. 7-8).

Consoante se observa no fragmento acima, os fatos apresentados são desprovidos de definição cronológica explícita, portanto para descobri-los é necessário atentarmos para os elementos textuais expostos tais como valores da moeda corrente; ―Mais de cem minréis de terra, ai!”. Geograficamente, o local em que desencadearam os acontecimentos a princípio é indefinido: Foi lá nas bandas do Brejo muito bem longe daqui. (MELLO, 1983,p. 09).

No desenrolar da narração, no entanto aparecem referentes que podem situar os acontecimentos em paragens reconhecidas: Ela nasceu na Laje do Gavião Batizou-se na Vila do Poção Na igreja do santo Padruêro. (MELLO, 1983, p.09).

Dassanta nasceu em uma região próxima ao rio Gavião que banha parte das terras localizadas no Sudoeste da Bahia. Seus pais batizaram-na em uma vila que atualmente é a cidade de Poções, aproximadamente 100 km do local em que a moça nasceu. Quanto ao canal de comunicação, percebe-se a grande influência da oralidade. É elemento constante no auto a linguagem oral, fonte depositária da memória coletiva de um povo: dindia conto cuan meu avô morreu e hoje eu canto para os filhos meus e eles amanhã para os filhinhos seu. (MELLO, 1983, p. 09).

Conforme aponta Câmara Cascudo, a literatura oral brasileira, inclusive a atual, é resultante, sobretudo, da amalgama das memórias das três etnias basilares

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da formação do povo brasileiro, a saber: nativos, europeus e africanos. Sobre isso ele explica: Indígenas, portugueses e africanos possuíam cantos, danças, estórias, lembranças guerreiras, mitos, cantigas de embalar, anedotas, poetas e cantores profissionais, uma já longa e espalhada admiração ao redor dos homens que já sabiam falar e entoar. (CASCUDO, 1984, p. 29).

Esta mistura étnica é posta no Auto da Catingueira e em Sertanílias. Ambas tratam tanto de historietas de fundo moralístico, das chamadas narrativas de exemplo, de origem portuguesa, quanto de elementos religiosos e culturais oriundos das culturas africanas e indígenas: as lendas operantes do sertão sobre a caipora e sobre a cobra grande. Como mais à frente veremos, Antonio Cândido põe em xeque esta mistura étnica como uma mistura igualitária, para ele, as duas últimas matrizes sempre tiveram suas culturas subjugadas pela primeira, e vistas como inferiores e desprestigiosas perante a tradição literária brasileira.

3.6.2 Os (en) cantos da catingueira

No Canto I, é informado ao público o cenário em que ocorreu o nascimento de Dassanta: Ela nasceu na Laje do Gavião numa quadra iscura de Janêro31 numa noite de chuva e de truvao e no meio do mais grade /aguacêro. (MELLO, 1983, p. 09).

Como vimos nos relatos sobre o nascimento da criança, os elementos lexicais dispostos no texto apontam para a introdução do espaço insólito: céu escuro, lua minguante, relâmpago, trovão, lua cheia, noite chuvosa. No momento de receber o sacramento do batismo repetiu-se a noite escura e chuvosa do seu nascimento. Para não morrer pagã, os pais da menina recém-nascida resolveram enfrentar a noite sem luar, encarar os perigos que uma ocasião análoga a esta proporciona. Apesar dos contratempos, iam cheios de regozijos, pois sabiam que a pequena 31

Esta expressão faz parte do dia-a-dia da conversa catingueira descrever quando o tempo se deu.

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tornar-se-ia uma cristã. Assim, o cantador descreve a noite da longa e perigosa jornada até chegar à igreja na Vila de Poção32: numa noite de relâmpo e truvão resolvêro fazer o sacrament‘ seu pai quéla e cum facho na mão sua mãe muntada num jiment‘ sairo no meio da iscuridão sofreno mais cum muit‘ contentamento. (MELLO, 1983, p. 09).

A caminho da igreja, o pai de Dassanta carrega-a segura apenas em um dos braços, enquanto que com a outra mão segura o tição para iluminar o caminho escuro, a mãe vai montada no jumentinho. No sertão da Bahia, a cerimônia do batismo, para a comunidade católica, é imprescindível para a vida espiritual de uma pessoa. Já segundo a crença popular, enquanto não receber este sacramento, a criança ficará vulnerável a toda sorte de males físicos e espirituais, pois é pagã, desprovida da proteção divina. Chegando à Vila do Poção a criança finalmente recebeu o sacramento do batismo. Por outro lado, sendo os pais da menina muito pobres, não tiveram condições de fazer o assentamento do seu nascimento, pois o dinheiro que possuíam fora pago ao sacerdote para que este realizasse a celebração do batismo. Assim, Dassanta foi batizada, mas não teve a sua existência oficializada entre os homens, tendo em vista que seu registro de nascimento custaria aos pais ―cinco mili reis‖, quantia não disponível por um humilde vaqueiro que vivia do trabalho em pastos alheios. Dessa forma, sem ter sua ―era‖ assentada na Vila do Poção, a sertaneja cresceu como uma pessoa sem existência oficial na história. O que aconteceu com a moça, assemelha-se ao que sucedeu com Cilistrino, um dos companheiros de Sertano. Ele também não teve suas ―era assentada‖, pois quando era criança vivia em extrema pobreza, fugindo da seca com os pais. Situação de miséria parecida também com a do retirante em Fantasia Leiga para um Rio Seco, com a da família de Fabiano em Vidas Secas e com da família de Chico Bento em O Quinze. Todos eles são miseráveis, varridos sertão afora, pobres analfabetos, despatriados dentro 32

Vila de Poção, é uma referencia a cidade de Poções, localizada no Sudoeste da Bahia a 444 km da capital Salvador. Fundada em 26 de Junho de 1880. Segundo os dados do IBGE no ano de 2013, a cidade é composta por uma população de 48.576 habitantes. Está localizada numa depressão em forma de bacia, daí seu nome ―Vila Poção‖ atualmente é o município de―Poções‖.

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da própria pátria. Voltando à falta de assentamento do nascimento de Dassanta, e, por conseguinte, à imprecisão de sua idade, o texto deixa um tempo histórico bastante amplo para delimitar a data em que se deu a história de Dassanta. Desse modo, a moça viveu, lá pelas paragens do sertão baiano, em qualquer período em que a moeda corrente brasileira era ―Réis‖, plural de Real, moeda corrente em ouro, prata e bronze usada em todo o período colonial no Brasil até 1833. No canto II, intitulado ―Dos labutos‖, o narrador apresenta Dassanta já crescida, a moça tornou-se uma pastora de cabras. Além de auxiliar nos trabalhos da família, em tempo de seca, quando não há o que se plantar, e muito menos o que se colher, a fascinante sertaneja parte para terras mais distantes, a fim de trabalhar em propriedade alheia pastoreando cabras. Dassanta burrega marrã33 Passa vigiando o rebain de seu siô todas manhã etomém as tarde intera. (MELLO,1983, p. 15).

Este canto demonstra a dura realidade dos sertanejos que em tempos extremos de estiagem precisam trancar suas próprias criações nos chiqueiros, fecharem as suas casas e saírem à procura de trabalho em terras de pessoas mais afortunadas. Mais uma vez, vemos a repetição do problema da peregrinação do sertanejo, como um ―judeu errante‖, aproveitando outra vez a expressão de Graciliano Ramos quando fala de Fabiano e sua família sendo tangido pela seca. Sempre sem perder a esperança, continuamente, acreditando que conseguirá fugir da ―tirania‖ do sol. botava água na cumbuca e o balaizin‘ de custura ispidurava na cintura e rumpia facêraboian‘ boian‘ chiquê chiquê minhas cabrinha lambancera. (MELLO, 1983, p.15).

Na época de extrema seca, Dassanta junta os poucos pertences que lhe resta e segue a jornada para o ―Campo de sete Estrelo‖, região em que as condições de vida são mais favoráveis. O conteúdo do Auto da Catingueira é rico em detalhes 33

A expressão denota carinho. Dassanta é comparada a uma cabrinha travessa e formosa.

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sobre o gênero desafio, típico de violeiros e cantadores. Como temos visto, e veremos ainda, nos outros cantos do auto estes aspectos são fartamente abordados, mas neste aqui, o autor faz um parêntese, a fim de destacar o problema histórico da seca que proporciona inúmeras agruras aos nordestinos mais pobres. Assim, ao falar dos trabalhos de Dassanta, Elomar evidencia a vida ―tirana‖ que a maioria do sertanejo aprende a conviver, desde o nascimento até a morte. No canto intitulado ―Das Visage e das Latumia‖ o auto se projeta como um palco natural para as manifestações do fantástico. A caatinga, a vida, o festejo, o trabalho, e a morte, tudo se integra com o referencial geográfico identificável, mas gradativamente é sucumbido por outro espaço, bem mais imenso e intrigante que rompe com a ordem natural das coisas, todavia permanece familiar. É a simbiose entre o sertão geográfico e sertão mítico que, no auto, assim como em Sertanílias, é aceito pelas personagens como uma ligação harmônica entre o real e o mítico. Pastora piligrina nas quebrada vô guardano as cabra de meu pai e siô [...] nas minha andança dent‘ do serrado já vi coisa do malassombrado Coisas de fazêarrepiá os cabêlo [...] já vi coisa do invisivevisage e latumia patumia e parição de quem tá morto e quem vive istripulia de Rumão. (MELLO, 1983,p. 23).

Este canto deixa evidente a relação harmônica da personagem com os seres insólitos que povoam o imaginário sertanejo. Dassanta convive com estes seres maravilhosos como se eles fossem a extensão do seu cotidiano durante o labor no campo. Nada a assusta. A moça não se surpreende em encontrar pelos caminhos do sertão as ―visage‖ as ―latumia‖, as ―istruipilia‖ de Rumão. As coisas do ―malassombrado‖ não lhe perturbam, pois as ―patumia‖ e as ―parição‖ são livusias com as quais convive em seu cotidiano campesino pastoreando suas cabras, desde a mais tenra idade. Ao citar ―Rumão‖, Elomar recupera uma entidade conhecida pelos sertanejos por seu caráter maléfico, Romãozinho. Sua história circula nas terras do sertão desde tempos muito antigos. Trata-se da triste história de um menino travesso que

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foi assassinado pelo próprio pai. Como toda história oral, a do Romãozinho apresenta várias versões, mas em todas, o malvado menino tem um final ignóbil. Apresentaremos aqui a variante coletada por Unger (1978). Segundo os relatos colhidos por ela nas comunidades ribeirinhas, Romaõzinho ou Rumão era um menino ―maldoso e travesso‖. Todos os dias, quando sua mãe terminava de preparar o almoço, conferia ao filho a tarefa de levar o ―farnel do marido lavrador‖. No caminho, o travesso devorava toda a comida que havia sido reservado para o pai ―carne do tatu ou do preá‖. Cheio de perversidade, entregava para o pai apenas os ossos, ao tempo que dizia: ―Que mãe mandou p‘ra vosmicê‖. Segundo o que relataram a Edyla Mangabeira Unger, um dia, enraivecido com a situação, o pai matou a mãe e em seguida, o levado menino. Desde então, ele vive a fazer travessuras, nas noites mais escuras do sertão: ―invade as casas. E apaga lenha do fogão, e joga as coisas arrumadas na prateleira da sala, e enxota os porcos, que se enfiam grunhindo pelo mato.‖ (UNGER, 1978, p. 44). A respeito da história de Romãozinho, a autora ressalta que todos que lhe relataram a história acreditam de fato na existência desse ser travesso que vive nas noites escuras a fazer peraltices com os moradores do sertão. Algumas versões da lenda contam que, antes de morrer, a mãe do pernicioso peralta amaldiçoou-o, e outras versões, segundo assinala Lins (1983), em O Médio São Francisco, uma sociedade de pastores e guerreiros, o menino explodiu e, depois disso espalhou-se pelo ar um cheiro muito forte de enxofre. Desde então, o perverso virou bicho e vive pelas paragens rurais assustando pessoas e animais. Fazendo toda sorte de ―istripulia‖ como diz Dassanta. Estes contos folclóricos disseminados no sertão são imbuídos de valores moralizantes. Geralmente, são historietas de costumes que advertem às pessoas do perigo da usura, calúnia e até da falta de higiene com a casa. Em suma, as latumia e as pantumia aparecem com o intuito de instigar o medo e inibir determinados costumes que desviam os filhos de Deus dos ―caminhos do bem‖. No canto IV, Do Pidido, Dassanta já aparece não mais como uma ―burrega marrã‖, ou seja, uma cabrinha nova. Ela já se entregou a ―febre perdedêra‖, porque se apaixonou por um tropeiro, que na ―bespa‖ de São João, chegou ao ―rancho do Sete Estrelo‖, local em que a moça encontrava-se com a família em busca de trabalho. Pela boca do cantador que narra a saga de Dassanta ao público, a narrativa não deixa claro se ela se casou oficialmente. O relato do cantador deixa

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apenas pistas de que a moça era a ―companheira‖ do tropeiro: Uns conta quêles caso Otrôs qui si junto Otrôs qui si imbrechô Já ôtro qui num caso não. (MELLO, 1983, p. 17).

Provavelmente, é ao seu companheiro, ―seu amigo‖ que o pedido é dirigido. Ela quer garantir seus aparatos de beleza. Certamente, eles lhe serão úteis nos dias de folguedos no sertão. já que tu vai la pra fêra traga de lá para mim água da fulô que chêra,um novelo e de carrin trais um pacote de missi [...] Passa naquela barraca Daquela mulé reizêra Onde almuçamo a paca panela e frigidêra [...] trais pra mim u‘asbrividade Que eu quero matá sôdade Faiz tempo qui fui na fera Ai sôdade (MELLO, 1983, p. 25).

Neste canto, os aparatos sensoriais são bem explorados pelo autor. No fragmento acima, percebemos elementos como ―água de fulô que cheira‖ e ―paca, panela e frigidêra‖. Tais recursos permitem-nos compreender a feira não apenas como um lugar de comércio, mas também uma possibilidade de lazer, de apreciação das iguarias locais e também de entretenimento do povo, uma vez que neste espaço, ao tempo que experimenta as iguarias da região, pode também ouvir desafios dos cantadores. Cascudo (2000, p. 161) assim define o ato da cantoria ―é o conjunto de regras, de estilos e de tradições que regem a profissão de cantador‖. Quanto ao cantador ele assinala: ―são profissionais vivem de feira em feira cantando sozinhos os romances amorosos ou as aventuras de Antonio Silvino ou Virgolino Lampião.‖ (CASCUDO, 2000, p. 161). Na realidade do nordeste, os cantadores são homens simples, até pouco tempo, havia entre eles muitos iletrados. Em sua grande maioria são trabalhadores braçais que ganham a vida prestando serviços em terras alheias ou em suas pequenas propriedades. Há também, entre eles, os portadores de deficiência física, cegos, aleijados etc. Em alguns casos, pode-se encontrar até os andarilhos e

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mendigos que em troca de comida fazem suas apresentações em feiras livres. No Auto da Catingueira, o cego cantador de feira é uma figura importante, pois funciona como um profeta que prediz a má fortuna das personagens. Geralmente, os cantadores têm um público tradicional, a saber: lavradores, vaqueiros, cortadores de cana, mascates, camelôs, barqueiros e mulheres simples, desprovidas de instrução formal, geralmente donas de casa, lavadeiras e/ou trabalhadoras rurais. O prognóstico para Dassanta e para seu companheiro era a morte prematura. Estes foram os prenúncios que os cegos cantadores das feiras livres sentenciaram para ambos. Dassanta parece pressagiar um acontecimento trágico em relação a sua sorte. Por isso, deseja que o seu ―amigo‖ encontre o cego cantador de feira que no passado predisse sua morte ainda muito jovem: Meu amigo ah se tu visse Aquele cego cantado Um dia ele me disse Jogando mote de amo Qui eu avera de vivê Pur esse mundo E morrê ainda em flô (MELLO, 1983, p. 25).

A bela sertaneja já havia sido advertida sobre sua vida ―tirana‖: ser peregrina, fugindo das agruras do sertão e morrer prematuramente. Quando deseja que o seu companheiro encontre o cego, provavelmente a moça espera que o cantador da feira desminta este destino ou então que saiba da falha do seu prognóstico nefasto, uma vez que ela estava viva e ao lado de seu companheiro. O canto encerra-se com as inserções de elementos fantásticos no cotidiano da personagem. Todos os aparatos de beleza pedidos pela moça ao seu companheiro têm uma finalidade específica: serão usados na próxima festa de que o casal irá participar na fase da lua cheia: Nóis vai brincá na quermesse Lá no Riacho D‘Arêa Na casa daquele home Feiticêro e curado Qui o dia intero é home Filho de Nosso Sinhô Mais dispois as mêa noite É lubisome cumedô. (MELLO, 1983, p.25).

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3.7 DAS VIOLAS DA MORTE: O CÓDIGO DE MACHEZA NO SERTÃO O ponto alto da maléfica beleza de Dassanta ocorre no quinto canto, ―Das violas da morte‖, quando o violeiro recém-chegado encanta-se pela moça, e duela pela sua posse com Chico das Chagas, companheiro da fascinante sertaneja. A disputa que se inicia pelas violas termina pelos tinir dos facões no terreiro. Em Sertanílias, esta parte da história de Dassanta é recuperada no capítulo Un Chevalier Dans La Tempête. Após contemplar a presença de seu sósia em uma noite tempestuosa, Sertano segue seu caminho, cortando o sertão profundo, para além das terras de Ofir. Ao passar por uma pequena vila, Sertano e seus companheiros de viagem resolvem descansar. No local em que chegam, está acontecendo um desafio entre dois cantadores abrasados de desejo pelo o amor de uma mulher de ―grande beleza‖. No romance, não é citado o nome de nenhuma das personagens do Auto da Catingueira, mas a história trágica é recuperada. Sertano resolve partir, porque pressente que haverá violência entre os dois cantadores: ―– Vamos Chegando amigos... Não gosto de violência... Muito menos com derramamento de sangue‖ (MELLO, 2008, p. 97). Vejamos como este episódio do duelo das violas da morte ocorre no Auto da Catingueira e como algumas partes dele serão recuperadas em Sertanílias. Desde que conheceu Dassanta, lá no rancho dos Sete Estrelo, o tropeiro Chico das Chagas disse que começou a morrer um pouquinho a cada dia, tendo em vista que tinha consciência de que muitos homens a cobiçavam e queriam roubá-la. Devido ao fascínio exacerbado da sua companheira, o tropeiro sabia que enfrentaria muitos perigos para mantê-la ao seu lado. Este último canto do auto, que como já vimos, é recuperado em Sertanílias, mostra com riqueza de detalhes o desafio dos cantadores, umas das práticas culturais mais recorrentes nas pequenas cidades, vilarejos e arraiais espalhados pela região nordeste do Brasil. Quando Dassanta chegou com seu companheiro a uma festa em noite de lua cheia, já se encontrava por lá, um afamado cantador de outras bandas do nordeste. A partir daí, toda a trama projeta-se para a disputa dos cantadores. A chegada de Dassanta a uma festa é o prelúdio do canto fúnebre, do pranto materno, o ceifar da

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vida de algum homem perdido de paixão. É noite de lua cheia. Segundo as narrativas fantásticas populares, a lua neste estágio é elemento imprescindível para a aparição do lobisomem e outras entidades que gostam de ―latumias‖ nas noites enluaradas. Provavelmente, a festa está acontecendo na casa do ―velho rezador‖, citado no Canto IV, ―O Pidido‖. O ambiente já está preparado para a inserção dos acontecimentos sinistros. As pessoas mais velhas advertiam aos homens mais jovens que ―Dassanta tinha nos olhos a febre perdedêra‖. Seu olhar era mais nocivo do que cobra peçonhenta. Sua sedução matava mais que cobra de lajedo. já pois dela na fêra os cantado dizia que a dor e alegria na sombra dela andava e adonde ela tivesse, a véa da foice istava a véa da foice istava in toda brincadeira adonde ela ia iantes dela chegava na frente as aligria dipois só se uviaera o trinca dos ferro as mães soltando berro chorano maldizia e triste no ôtro dia era só choro e interro. (MELLO, 1983,p. 13).

A partir do trecho acima, é possível perceber que a trama passa a ser direcionado para o trágico. A beleza da moça é nefasta, ―véspera da mortandade‖. A moça fascinante é a parte antagônica dos folguedos e das alegrias reinantes nos festejos do sertão. Sua chegada é o sinônimo de derramamento de sangue. Em Sertanílias, como vimos, Sertano retira-se da festa, contudo mesmo distante, prevê a chegada da morte para aquele duelo, confirmando assim o que já se sabe de Dassanta, sua beleza é o convite para a ―véa da foice‖, a morte, visitar a festa: ―Com os primeiros fios brancos d‘aurora/no quadrilátero d‘ua grande toalha/Sentado na calçada vejo agora/O Anjo da morte tecendo uma mortalha.‖ (MELLO, 2008, p. 98). Sua presença transforma o riso em pranto. Os dias festivos e alegres, logo se revertem em noites chuvosas e céu coberto de trevas, tal como ocorrera na noite do seu nascimento, e depois, na ocasião do seu sacramento de batismo na Vila do Poção. A descrição de Dassanta deixa indícios de que a moça era um laço para qualquer homem que se encantasse por ela. Sua beleza, mais nociva que a picada

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das áspides. Seu fascínio não estava apenas nos olhos, antes, ela possui outras riquezas, muito embora tivesse sempre as mãos vazias, a moça era rica em segredos de sedução: Os pé piqueno e os cabelo cumprido imbaixo do vestido um bando de segredo. (MELLO, 1983, p.14).

Nesta descrição, o narrador explora os atributos físicos da sertaneja. O modo como a moça é descrita denuncia seus mistérios, segredos e encantos, não só os explícitos tais como: olhos sedutores, pés pequenos e cabelos compridos, como também os implícitos ―imbaixo do vestido‖, expressão que sugere desejo, sedução, fascínio. Sua beleza é perniciosa, pois envolve os homens para a morte como algo irremediável. Conscientes do fascínio que a bela exerce sobre eles, os homens apaixonados, vítimas da ―febre perdêdera‖, preferem desafiar seus rivais em duelos, a perdê-la. Foi exatamente isso que aconteceu com o cantador visitante que desafiou o companheiro de Dasssanta para um duelo das violas. Depois de alguns momentos mais amenos do desafio, o homem, já tomado de paixão pela admirável mulher, parte para um ataque direto e declara-se ardente de paixão pela companheira de Chico da Chagas: A febr‘ do amô feláriúna se inroscô bem cá dentro do meu peito e adispôs que entro viro pé duro turuna cascavé craúna qui se ofende ô mata ô cega ô dexa o cabra com defeito. (MELLO,1983,p. 45).

Deste ponto, o cantador visitante deixa explícito seu interesse pela mulher do tropeiro. Perante tal afronta, este último não vê outra saída que não seja a de aceitar o desafio dos facões. O código de ―macheza‖, portanto predominou sobre o cantador. Nem o clamor sensato de Dassanta relembrando-lhe que em casa tinham deixado os filhos pequenos sem alimento e sem agasalho, faz seu ―amigo‖ recuar:

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Meu amigo e cumpãiero cum licença de miscê num pidido derradêro assunta o que vô dizê nos campo do sete estrelo fico tanto bem-quer dexemos lá tris bichim drumindo na inucença inté mêi disprivinido de pano e subrivivênça dêxa de cabeça dura pra quê guadá pinião. (MELLO, 1983, p. 45).

Esta parte tensa do desafio também é observada por Sertano como inevitável. Depois de sofrer uma afronta moral, não resta ao tropeiro a decisão de partir para o duelo de facões: ―– [...] pelo caráter da ofensa, o código de valores e, sobretudo, pela estonteante beleza daquela mulher que mal parece ser um ser humano, minha intuição me diz que todo o chão amarelo daquele terreiro vai ficar tingido de vermelho.‖ (MELLO, 2008, p.98). O ato de levar o duelo às últimas consequências evidencia um indicador de ―macheza‖ dos antigos cantadores, que entendem a derrota, ou o empate, em um duelo, como uma derrota pessoal, uma desonra que só poderá ser resolvida no tinir dos facões. No caso do tropeiro, somou-se ao empate a afronta do cantador visitante quando se revelou ardente de paixão por Dassanta. Portanto, melhor morrer a levar para sempre o estigma de ter perdido a própria mulher. Assim, o tropeiro entende que seu destino pessoal fugia à sua própria vontade e determinação. Por isso, a violência torna-se algo admissível porque será realizada com vistas a defender a ordem e os códigos sociais violados. Desse modo, compreende-se que: A violência faz parte, aí da própria afirmação de um código de moralidade, da própria afirmação de uma ordem social regida pelos homens, que têm entre seus deveres a proteção das mulheres, a defesa da honra destas, pois a honra feminina é base da honra da própria família e dos homens que a elas se ligam. (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 1999, p.183).

Resignado com o destino de matar ou morrer pela mulher, o tropeiro sentencia: é hora de trocar a viola pelas ferramentas e decidir nas armas aquilo que ficou indefinido nas violas. Sua morte já havia sido prognosticada também por um

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cego cantador na feira: pru essa aqui do meu lado pru essa mia compãiêra meus dia já tão contado canto um cego na fera de cá meu faço afiado pois nunca fui disfeitado na vida dessa manêra. (MELLO, 1983, p. 45).

Como vimos nos versos acima, mais uma vez, há referência da feira como um lugar de cantoria. Neste canto, semelhante ao que acontece no canto quatro, ―Do Pidido‖. O cantador cego prediz o destino do tropeiro, assim como o outro cego cantador já havia prenunciado o destino de Dassanta. Como se verifica, o código de macheza é imprescindível para se ratificar a virilidade. O falocentrismo é flagrante nestas literaturas, toma-se como exemplo o Canto V do Auto da Catingueira, em que a violência, a peleja com o facão é perfeitamente justificável. Consoante afirma Albuquerque Júnior (1999, p.185): ―A mulher é o pretexto, não o texto da história‖. Assim, Dassanta é a causa da intriga, a ―macheza‖ de Chico das Chagas foi posta em ―xeque‖ pelo cantador visitante. Isso precisa ser resolvido, pois o que está em jogo é a sua identidade de ―cabra macho‖ perante o grupo a que ele pertence. A agressividade, violência e competição são elementos justificáveis à preservação da ordem social. De acordo com Albuquerque Júnior (1999, p. 175-176): ―Ser ‗cabra macho‘ requer ser destemido, forte, valente corajoso. Nesta sociedade, o frouxo não se mete, não há lugar para homens ―fracos‖ e ―covardes‖. Há, pois, na tradição de narrar atitudes de violência na produção cultural popular.‖. O duelo dos cantadores do auto segue a tradição dos inúmeros cordéis que narram histórias de desventuras, amores, honras e desonras, todos regados aos altíssimos gritos do fazer justiça pela honra masculina afrontada. Sendo assim, o autor enfatiza: Se nos detivermos na análise do discurso da literatura de cordel, umas das poucas formas populares de narrativa de que temos acervos, notaremos a presença constante de imagens de violência. A violência é neste discurso um componente de sociabilidade do Nordeste, uma característica da própria forma de ser do nordestino, e mais acentuadamente, um dos elementos que comporiam os atributos da masculinidade nesta região (ALBUQUERQUE JÚNIOR,

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1999, p. 175-176). .

O mesmo prenúncio de mortandade vislumbrado por Sertano é confirmado por Chico das Chagas em O Auto da Catingueira: ―Com os primeiros fios brancos da aurora [...] vejo O Anjo da Morte tecendo a mortalha.‖ (MELLO, 2008, p. 98). No auto, para encerrar seu discurso antes da peleja com o facão, o companheiro de Dassanta lamenta ter cruzado o ―‗camim‘ da caiopora‖. Ele sabe que esta entidade é portadora de agouro para todos que cruzarem seu caminho pelas estradas do sertão.

Valei-me Nossa Siora Siora mãe do Siô qui essa noite iãntes da aurora eu vô. (MELLO, 1983, p. 49, grifo nosso)

Mais uma vez, o encontro com um ser sobrenatural é tido na obra como algo corriqueiro. Não há espanto por encontrar a caipora, apenas lamento, porque ao cruzar o seu caminho, a livusia transferiu-lhe má sorte. Câmara Cascudo define a caipora como criatura que habita no mato: Caipora, caa, mato, pora, morador, habitante [...] O CAAPORA (vulgarmente Caipora) veste as feições de um índio anão de estatura, com armas proporcionadas ao seu tamanho [...] os vagalumes são os seus batedores; é tão forte o seu condão que o índio que por desgraça o avistasse era mal sucedido em todos os seus passos (CASCUDO, 1984, p. 115).

Conforme verificamos, a descrição que Câmara Cascudo traz sobre a caipora é de um ser portador de mal agora para todos que lhe cruzam o caminho. Ao passar por este ser nefasto, Chico das Chagas logo soube que sua vida teria um enorme revés. É comum a presença da caipora na literatura que trata do sertão. Vejamos a sua recorrência no livro Sertão em Flor. O trecho que selecionamos destaca a maneira que as pessoas encontram para agradá-la, a fim de que a criatura não lhe cause nenhum dano. Segundo a lenda, agradando-lhe com uma porção generosa de fumo, sua iguaria predileta, a entidade pode simpatiza-se com quem a presenteou e poupar-lhe da má sorte. Segundo a lenda: Não se ria meu patrão! um dia de sexta-fêra,

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não se deve andar de noite nos mato lá do sertão. [...] Quando nos ia quebrando o mato arto da estrada, nós úvido um assobio prás banda da incruziada. Era ele!... Eu já sabia!... O caipora meu patrão, que é o mais grande caçadô [...] se elle recebe um favô do caçadô do sertão, não hày caça mais que escape do tiro do caçadô Apois bem. O cabôquinho pediu fumo prô Texêra, e,despois, fogo pra mim. (CEARENSE, [...], p. 231).

Voltando a má fortuna de Chico das Chagas, ao encontrar a caipora, seu destino foi selado, irremediavelmente, a partir daquele momento, caminhava para a morte. Em Sertanílias, também já tinha sido feito o prenúncio do trágico: ―[...] já é muito tarde, maktube, não podemos alterar o que já estava escrito! Selada já foi a sorte. Duelos de facões se resolvem muito rápido. Se voltarmos agora será tão somente para guardarmos os corpos e prantear em litanias as incelenças.‖ (MELLO, 2008, p. 99). Vemos, na última parte da citação, o resgate da tradição fúnebre: cantar os mortos com ―litanias e incelenças‖. O fatalismo, imprescindível no código de macheza, está posto de modo irremediável. O cantador que estava narrando a história de Dassanta encerra sua missão revelando o desfecho daquela triste peleja: Mia vó contô Cuan‘ meu avô morreu Dindinha conto cuan‘ vovô morreu Qui foi triste aquela fonção Lá na Cabeceira Qui Dassanta a burrenga marrã Foi encontrada num canto do terrêro Junt‘ c‘uns violêro Mortos naquela manhã. (MELLO, 1983, p. 52).

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Assim como os cegos cantadores da feira tinham prenunciado, Dassanta e o seu companheiro morreram. A narrativa termina sem esclarecer como a tríplice morte aconteceu. Sabe-se apenas que ao lado do corpo de Dassanta estavam os dois violeiros mortos. O apaixonado Chico das Chagas saiu dos braços da fascinante mulher para o seio da ―véa da foice‖. Morreu ―dignamente‖, porque cumpriu seu papel de ―macho‖, defendeu-se da afronta pública. Sua morte já havia sido decretada, restava-lhe apenas escolher entre a morte física ou a morte simbólica moral/social. Ignorar o insulto do cantador visitante era aceitar esta última morte. Nas palavras de Albuquerque Júnior: O ser homem se afirma à medida que se é capaz de subjugar o outro, de vencê-lo em qualquer disputa, de dominá-lo. Ser homem se afirma em última instância com a própria morte. A morte é preferível ao viver desonrado e ao deixar de ser homem, na visão do grupo a que pertence, porque neste caso, já estaria morto simbolicamente (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 1999, p.186).

Como prenunciou Sertano assim que se retirou do salão dos desafios: ―Daqueles três pouca coisa vai sobrar‖. (MELLO, 2008, p. 98). Dassanta cumpre a sina funesta de sua beleza e também descansa no seio da ―véa da foice‖, a morte. Como na maioria das histórias de tradição oral do sertão, a figura feminina dependeu de um ―macho‖ para protegê-la, mesmo que esta proteção tenha custadolhe a própria vida. Sobre isso cito: ―A mulher é a figura pelo discurso do cordel como um ser frágil, dependente do homem, um ser para ser protegido e orientado pelas figuras masculinas de sua família.‖ (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 1999, p.183). Depois morta, a moça de beleza nefasta transformou-se em um pássaro que entoa seu canto de lamento nas veredas do sertão, desde tempos remotos: ―passo das asa marela jaçanã‖. Isto, efetivamente, já havia sido anunciado no primeiro canto de O Auto da Catingueira.

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4 O REFERENTE E O IMAGINÁRIO SOB O FIO DA NAVALHA

A linguagem literária é uma linguagem convencional em que a prova da verdade é impossível: a verdade é uma relação entre as palavras e as coisas que estas designam; ora em literatura, estas ―coisas‖ não existem. (TODOROV, 2004, p. 91).

Falar do fantástico na literatura contemporânea é aceitar o desafio de andar sob um terreno instável. Sem dúvida, uma tarefa complexa dada as bases teóricas heterogêneas desde as suas primeiras definições no século XIX. A etimologia da palavra ―fantástico‖, segundo Selma Calasans Rodrigues, está no latim phantasticus, que por sua vez, têm suas raízes etimológicas no grego phantasia. O significado dessa palavra liga-se a elementos criados a partir da imaginação, pois inexistem na realidade. Suas raízes têm relação com o fabuloso (RODRIGUES, 1988, p. 9). Segundo assinala Ana Luiza Camarani, apesar dos muitos estudos desenvolvidos há décadas acerca da literatura fantástica, ainda existem muitas questões a se discutir sobre essa modalidade. Sobre isso afirma: ―há certa flutuação no que se considera como narrativa fantástica no sentido estrito do termo, isto é, uma modalidade literária muito bem definida.‖ (CAMARANI, 2014, p. 56). O problema de criar uma conceituação exata para o termo fantástico em literatura, provavelmente, deve-se ao fato de que ela possui barreiras delgadas com o romance gótico (em que o sobrenatural revela-se explicitamente e não há lugar para as dúvidas), e o realismo mágico (em que o jogo binário natural/sobrenatural está posto, mas que não se exclui, eliminando, assim, a contradição‖, nos dizeres de Camarani (2004, p. 8), no realismo mágico ―há a naturalização do sobrenatural ou a sobrenaturalização do real‖. Em se tratando da literatura da América Latina, ainda temos o realismo-maravilhoso cujas temáticas centram-se em ―crenças étnicas‖. Como assinala Camarani (2004), essas modalidades demandam em seu processo de construção duas configurações distintas, a saber, uma de cunho ―realista‖ e outra ―não realista‖, em que há a manifestação do sobrenatural ou insólito. Os problemas acerca das definições mais precisas sobre o fantástico agravam-se no século XX, conforme aponta a autora: ―Contribui para dificultar essas distinções a questão do desenvolvimento do fantástico a partir do século XX, indicado como fantástico atual, contemporâneo ou neofantástico.‖ (CAMARANI, 2004, p. 8). Neste trabalho, propomos buscar algumas perspectivas teóricas que visam

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definir o conceito de fantástico, a fim de compreendermos a sua potencialização no referente em que o romance de Elomar insere-se. De imediato, é necessário que algumas definições desse gênero sejam expostas e devidamente analisadas, para que, posteriormente, dialoguem com a construção do fantástico na obra propriamente dita. Se falarmos dos princípios da Literatura Fantástica é necessário mapear um solo instável, explicar o fantástico na construção da obra de Elomar é tarefa bem mais árdua. A presença de tal gênero, em sua obra, foge em muitos pontos, das terminologias usuais encontrados nos primeiros escritos literários no século XIX, e que qualificavam um evento como pertencente aos domínios do fantástico. No percurso de nossa análise consideramos imprescindível conceitualizar o gênero fantástico e suas vertentes, a fim de elucidarmos alguns pontos obscuros sobre esta categoria literária. Primeiro iremos analisá-lo a partir do posicionamento de Todorov, em seguida, faremos a explanação do conceito de Realismo Mágico segundo a ótica de Willian Spindler, e para finalizarmos nossas considerações, a respeito das terminologias do fantástico, exploraremos as definições do Realismo maravilhoso, do Fantástico e do Maravilhoso, respectivamente, a partir dos posicionamentos teóricos de Irlemar Chiampi (2008) e Selma Calazans Rodrigues (1988). Como já dissemos, estamos cientes de que os romances da literatura Latinoamericana, em muitos aspectos escapam das conceituações que os teóricos dispensam para este gênero tão complexo e de fronteiras tão delgadas com outros gêneros vizinhos, como o estranho, o maravilhoso e o realismo mágico. Sendo assim, procuramos não apenas conceituar o fantástico, como também compreendêlo na construção da linguagem ficcional nas obras de Elomar. Para isso, buscamos explicitar as afinidades e as arestas conceituais entre as teorias sobre o fantástico produzido na Europa, no século XIX, e os textos fantásticos que tratam do fantástico na América Latina. Ao longo dos anos, os estudos que se ocupam de analisar este gênero têm criado inúmeras nomenclaturas a fim de entender a fusão do verossímil e do inverossímil na construção narrativa, sobretudo, as terminologias desenvolvidas na literatura hispano-americana.

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4.1 PERCURSOS HISTÓRICOS DO FANTÁSTICO Publicada em 1965, a obra de Louis Vax La séduction de l’étrange delineia a definição do fantástico, ao tempo que também aponta os contrapontos desse gênero com o ―conto popular ou feérico‖. Vejamos como Vox apreende este gênero e suas implicações:

A narrativa fantástica, pelo contrário, gosta de nos apresentar, habitando o mundo real onde nos encontramos, homens como nós, postos de súbito em presença do inexplicável. [...] o fantástico nutrese dos conflitos do real e do possível (VAX, 1974, p. 08 apud CAMARANI, 2014, p. 43).

Segundo aponta Ana Luiza Camarani, com o intuito de delimitar o campo de atuação do fantástico, Vax (1974 apud CAMARANI, 2014) afirma que o surgimento do fantástico está vinculado à ―ruptura da constância do mundo perceptivo‖. Ana Luiza Camarani diz que Vax delimita esta atuação em três planos: o do mundo físico (gigantes, mortos vivos), o do mundo moral (perversidades) ou do mundo estético (monstros). Para o crítico francês, estas rupturas atraem-se (CAMARANI, 2004, p. 50). Assim, efetiva-se a propagação do fantástico diante da ―afronta‖ feita aos ―valores estabelecidos‖ erigidos sob as bases de ―leis rigorosas e imutáveis‖, gerando, desse modo, uma sucessão de regras. Está assim criado o fantástico: Um incidente insólito ganha progressivamente o mundo e o ―eu‖. A afronta feita a um dos valores estabelecidos atinge todos os outros, até o ponto em que a exceção se torna a regra; e o mundo cotidiano oscila em direção ao fantástico, o qual se enraíza na banalidade do dia a dia. (CAMARANI, 2004, p. 50).

Portanto, para Vax (1974 apud CAMARANI, 2014), o fantástico tem um caráter ―movente‖. Sendo assim, sob sua ótica, não pode ser circunscrito com precisão, pois não deve ser entendido unicamente a partir de uma forma. A incerteza e a ambiguidade serão sempre os pressupostos maiores para se defini-lo. Estes problemas evidenciados por Vax serão retomados, em 1966, por Roger Caillois, quando aponta algumas oposições entre os contos de fadas, as narrativas fantásticas e as de ficção científica. Para Callois (1966 apud CAMARANI, 2014, p. 56), enquanto o conto de fadas é desprovido de inquietação, porque o ―encantamento é natural e a magia é a regra‖; no fantástico, o ―encantamento‖

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inexiste, antes, o que há são puramente acontecimentos aterrorizantes, tendo em vista o rompimento e a desconsideração de ―uma organização imutável, inflexível e que parece ser a garantia da razão‖. Desse modo, o fantástico faz uso da ―solidez do mundo real, para melhor devastá-la‖. E causar a ―danação do herói‖ atacado por forças ―irreconciliáveis, noturnas, demoníacas‖. (CAMARANI, 2004, p. 54; 58). A outra oposição posta por Callois (1966 apud CAMARANI, 2014, p. 56), frente ao fantástico, é o que ele denomina de ―pseudo-fantástico‖, tal modalidade diz respeito à narrativa pautada em pressupostos científicos. Ana Luiza Camarani diz tratar-se da narrativa que: Recorre ao emprego de metamorfoses decorrentes de experiências científicas, paralelamente à categoria de contos misteriosos que se dedicam a utilizar dados das ciências psíquicas como telepatia, espiritismo, levitação, ectoplasmas, sonhos premonitórios. (CAMARANI, 2004, p. 56).

Para Callois, a literatura fantástica situa-se no ―plano da ficção pura‖. Segundo observa Camarani (2004), o crítico concebe o fantástico como ―um jogo com o medo‖, daí a necessidade da descrença do escrito fantástico nos próprios ―espectros‖ que inventa. Em síntese, podemos compreender a partir do posicionamento de Callois (1966 apud CAMARANI, 2014, p. 56) que as três modalidades literárias, a saber: os contos de fadas, as narrativas fantásticas e as narrativas de ficção científica buscam cada uma a sua maneira, explicitar as ―preocupações latentes das épocas em que se desenvolvem‖. Do primeiro Callois (1966 apud CAMARANI, 2014, p. 57) diz que ―exprimia os ingênuos anseios de um homem diante de uma natureza que não sabia ainda como dominar‖; sobre a segunda, pontua que uma vez rompida à harmonia do mundo e instaurada o terror, estas narrativas: Traduziam o pavor de se ver, de repente, a regularidade, a ordem do mundo tão dificilmente estabelecida e afirmada pela investigação metódica e pela ciência experimental, ceder ao ataque das forças irreconciliáveis, noturnas, demoníacas. (CAMARANI, 2014, p. 56).

Acerca da última modalidade narrativa, a ficção científica ou ―narrativa de antecipação‖, Callois aponta nela a reflexão e a angústia de uma época que ―se mostra atemorizada face aos progressos da teoria e da técnica.‖ (apud CAMARANI, 2004, p. 58).

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Com a publicação de Introduction à la littérature fantastique, de 1970, Todorov aborda a literatura fantástica não mais como seus antecessores Louis Vax e Roger Callois que a consideravam uma ―modalidade narrativa‖. Segundo Ana Luiza Camarani (2004, p. 58), Todorov é ―o primeiro teórico do fantástico a abordar o estudo dessa modalidade literária em uma perspectiva de gênero e a tentar uma abordagem estruturalista de importância.‖. Consoante Todorov, o fantástico teve uma curta presença, ou seja, manifestação relativamente breve que se deu prioritariamente no século XIX, tendo em vista que no século subseqüente a narrativa fantástica afastou-se visivelmente do fantástico tradicionalmente conhecido. Todorov (2004, p. 30) pergunta: ―Em que se transformou a narrativa do sobrenatural no século XX?‖ Para o teórico, a literatura fantástica do século XIX caracteriza-se pela má consciência do século positivista, ou seja, o homem acredita em uma literatura que transcreve a realidade tal qual ela se apresenta, daí o motivo de estranhamento ante ao sobrenatural. Contudo, o sobrenatural que aparece na narrativa do século XX não exerce mais a mesma reação que o extraordinário apresentado na literatura do século que o antecedeu. Na narrativa fantástica do século XX, o homem ―aparentemente normal‖ é precisamente um ser fantástico; o fantástico torna-se regra, não exceção. Ana Luiza Camarani (2014) aponta que acerca do ―gênero fantástico‖, Todorov considera três aspectos diretamente relacionados à estrutura da obra, a saber: o verbal, sintático e semântico. No aspecto verbal, que reside nas frases concretas constituintes do texto, Todorov (2004) assinala dois grupos de questões; o primeiro refere-se às propriedades do enunciado, o segundo aparece ligado à enunciação, isto é, ao autor e ao leitor implícitos. O aspecto sintático diz respeito às relações que as partes da obra mantêm entre si: lógicas, temporais e espaciais; o aspecto semântico, por sua vez, refere-se aos temas do livro (CAMARANI, 2014, p. 59). Segundo Todorov (2004), a narrativa fantástica produz acontecimentos que não podem ser explicados pelas leis do mundo familiar. Muitas vezes, as ações das personagens são incompreensíveis para si mesmas, pois estas questionam se o que estão presenciando não passa de um sonho. Geralmente, na narrativa fantástica o episódio possível e o impossível imbricam-se irremediavelmente. O questionamento é inevitável: - o acontecimento é verdadeiro, o mundo que circunda o personagem de fato é realidade, ou se trata de uma ilusão que muitas vezes toma a forma de

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sonhos? Este é um dos questionamentos que o teórico faz acerca da relação ilusão/realidade instaurada no âmago da narrativa fantástica. A resposta, raramente satisfatória nas narrativas, tenciona o ponto central do gênero, estruturado através da ambigüidade, que se mantém firme até o fim da narração. Esta é uma das marcas mais importantes da narrativa fantástica. O personagem indaga o tempo inteiro acerca dos acontecimentos: realidade ou sonho, verdade ou ilusão? Consoante salienta Todorov, o sujeito da percepção deve optar por duas soluções possíveis: ―ou se trata de uma ilusão dos sentidos, um produto da imaginação; ou o acontecimento de fato ocorreu, mas é regido por leis desconhecidas por nós.‖ (TODOROV, 2004, p. 30). Para Todorov (2004), o fantástico caracteriza-se por inserir de modo brutal, no mundo sensível, acontecimentos misteriosos, inexplicáveis e inadmissíveis. O gênero fantástico é um gênero provido de um caráter diferencial do estranho e do maravilhoso. Estes dois últimos são gêneros vizinhos ao primeiro conforme será explanado mais a frente nessa análise. Por ora, basta-nos enfatizar que sob a ótica de Todorov (2004), quando é dada uma explicação racional para acontecimentos sobrenaturais, a narrativa é transferida dos limites do gênero fantástico para o estranho, ou quando o acontecimento sobrenatural é aceito, sem nenhuma hesitação, estamos no âmbito do maravilhoso. Como temos posto, a hesitação é o que mantém a narrativa fantástica viva, a sua supressão coloca fim ao gênero. Torna-se necessário também que no decorrer da narrativa fantástica ocorram novos acontecimentos sobrenaturais, para que sejam reavivadas continuamente as dúvidas do leitor/personagem que passa a narrativa inteira esforçando-se por encontrar uma explicação realista para os mais inusitados acontecimentos. Desse modo, Todorov lembra-nos que o elemento gerador do espírito fantástico é o ―quase acreditar‖. Assim o crítico adverte: ―A fé absoluta como a incredulidade total nos leva para fora do fantástico; é a hesitação que lhe dá vida.‖ (TODOROV, 2004, p. 36).

4.2 O FANTÁSTICO NA LITERATURA DA AMÉRICA LATINA

Selma Calasans Rodrigues (1988), ao tratar do fantástico nas literaturas da América Latina, discorda do termo realismo mágico empregado à literatura. Segundo a observação da autora, os romances de origem hispano-americana e os brasileiros

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escapam a uma única conceituação de fantástico. Este gênero apresenta tênues limites com outros gêneros vizinhos, e por isso, deve ser muito bem pensado em termos de conceituação sobre o realmente é o fantástico, o mágico e o maravilhoso quando se trata de narrativas oriundas da América Latina. Ademais, ressalta que a magia é inerente ao fantástico, e imbrica-se aos ―efeitos e fenômenos extraordinários‖. A autora ressalta: ―A literatura pode usar causalidade mágica que se opõe à explicação oferecida pela lógica científica, mas ela não é mágica.‖ (RODRIGUES, 1988, p. 9). Em consonância com o posicionamento de Todorov (2004), Rodrigues (1988) também defende que a ambiguidade é a mola-mestra da narrativa fantástica. A exposição de acontecimentos fantásticos é engendrada a partir de uma relação dialógica da ―razão com a desrazão‖. O leitor entra em uma zona de constante debate entre o verossímil e o inverossímil. Nas palavras da autora: ―o homem circunscrito à sua própria realidade, admitindo o mistério, entretanto, e com ele se debatendo‖ (RODRIGUES, 1988, p. 11). O fantástico nutre-se da incerteza, da hesitação face ao fato extraordinário. Quanto à abordagem do assunto, a autora entende que o romance fantástico deve ser rigoroso; na narrativa em que os elementos sinestésicos: calafrios, medos, deleites são imperativos para a construção do horror, todo e qualquer detalhe supérfluo deve ser suprimido. Sobre isso, sentencia: ―As ligações entre os motivos da narrativa fantástica, como já foi dito é a magia.‖ (RODRIGUES, 1988, p. 15). Para que a hesitação persista deve haver também a transposição de fronteiras entre o real e o irreal incessantemente na trama, um objeto é sempre utilizado a fim de que a narrativa desloque-se das regras de verossimilhança para o inverossímil, mantendo, portanto um alto nível de ambiguidade e ficcionalidade no texto narrativo. O objetivo dessa intermitência entre verossímil versus inverossímil é estabelecer a ambiguidade necessária do jogo entre o real/irreal, mantendo até o final da narrativa o leitor preso ao ambíguo. Como bem aponta Todorov (2004), o fantástico é a literalização daquilo que aparece como figurativo na narrativa. Acerca da construção do ambiente de terror do fantástico, é importante observar que todos os detalhes apresentados parte do cotidiano e gradativamente envereda para a construção de um ambiente cheio de tensões que beira ao terror. Como já assinalamos no início desse tópico, Rodrigues (1988) faz algumas ressalvas acerca do termo realismo mágico para se referir ao campo da literatura,

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porém, isso não a faz desconsiderar a inexistência do termo, tampouco que não mereça análise. Ela apenas ressalta a inapropriação da expressão ―realismo mágico‖ para definir eventos fantásticos no campo literário. Para a discussão dessa terminologia, realismo mágico, além das considerações de Calasans (1988), analisamos o artigo de Spindler (1993), e para a conceituação de maravilhoso buscamos suporte nas definições que Chiampi (1993) faz do termo. O ―realismo mágico‖ é um termo utilizado para descrever não só a literatura como também a pintura. Apresenta problemas terminológicos e conceituais quando abordado por diferentes teóricos; a sua definição tanto quanto a do fantástico é bastante controversa. Diante da necessidade de abordar de modo diferente o mundo dos objetos, como se o artista descobrise-o pela primeira vez. O realismo mágico, segundo Spindler (1993), estrutura-se como uma maneira artística de desnudar a realidade cotidiana dos objetos ordinários e revelar os mistérios contidos neles. Splinder (1993) afirma que o termo realismo mágico foi usado pela primeira vez pelo o alemão Franz Roh, referindo-se à pintura. Roh e outros pintores propunham um retorno à realidade, mas sob uma nova luz. Segundo aponta Splinder (1993), na literatura, o realismo mágico parece surgir entre 1940-1950, constituindo-se a sua fase áurea somente a partir de 1955. A nova tendência, na literatura romanesca proporcionou uma ruptura com o esquema tradicional do discurso realista, que deixara fortes resquícios no século XX. Essa nova estética é o reflexo da renovação ficcional iniciada no século XX e que aos poucos foi estabelecendo-se e avançando em direção a um terreno que nos anos 40 e 50 era de domínio do realismo-naturalismo. Esta tendência caracteriza-se por uma composição crítica interpretativa que engendra a narrativa sob uma nova visão da realidade, a saber, a visão mágica. Esta nova ―renovação ficcional‖ será mencionada por Irlemar Chiampi como um momento de ruptura com a estética realista-naturalista: A constatação de um vigoroso e complexo fenômeno de renovação ficcional, brotado entre os anos de 1940 e 1955, gerou o afã de catalogar suas tendências e encaixá-las sob uma denominação que significasse a crise do realismo que a nova orientação narrativa patenteava. Assim, o realismo mágico veio a ser um achado críticointerpretativo, que cobria de um golpe só, a complexidade temática (que era realista de um outro modo) do novo romance e a necessidade de explicar a passagem da estética realista-naturalista para a nova visão (―mágica‖) da realidade [sic].(CHIAMPI, 1980, p.19).

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Vemos que o realismo estereotipado, os conflitos do homem contra as desigualdades, as injustiças e as opressões sociais automatizaram a relação da literatura com sujeito; a estética realista-naturalista já não lhe causava mais o tão almejado impacto; na melhor das hipóteses, adquirira um tom panfletário, e, incapaz de absorver uma realidade mutante e heterogênea. Diante disso, o homem do século XX procura outro tipo de relacionamento com a realidade que o circunda. Sobre isto, a autora comenta: Os conflitos do homem na sua luta contra a natureza ou as forças da opressão social perdiam o impacto inicial devido a um simbolismo estereotipado; as boas intenções de denúncia das estruturas econômicas e sociais arcaicas inrijeciam-se no tom panfletário de gasta antinomia ‗exploradores VS explorados‘.(CHIAMPI,1980, p.20).

Consoante Spindler (1993), o realismo mágico constitui-se como um ato de percepção, uma nova estética que tenciona buscar outras dimensões da realidade, mas sem escapar do visível e do concreto. Esta nova estética visa representar as coisas concretas e palpáveis para tornar visível o mistério que as oculta. O autor nos sugere a compreensão do realismo mágico em três categorias, a saber: o realismo mágico metafísico, o realismo mágico antropológico e o realismo mágico ontológico. O primeiro parece mais aplicado à pintura e consiste em produzir efeitos surpreendentes em objetos comuns por meio de truques ou ilusões óticas: ―apresenta um mundo reconhecível como dentro dos limites do real [...] o tempo e a geografia dos acontecimentos são incertos.‖ (SPINDLER, 1993, p. 5). No segundo, o narrador tem dupla voz, ora narra acontecimentos do ponto de vista racional, ora do ponto de vista irreal, ou seja, incorporando à narrativa, elementos mágicos. Geralmente estes elementos são oriundos dos mitos presentes no inconsciente coletivo de cada povo. Spindler destaca que tais manifestações estão mais presentes na literatura latino-americana que buscam seu material de ficção, sobretudo, nas culturas ameríndia e africana. Sob a ótica desse autor, a importância dos mitos coletivos para a construção do realismo mágico recorre à perspectiva cultural particular que revela a identidade nacional de um povo. Em maior ou menor grau, cada nação convive com ecos de crenças oriundas da consciência mítica do seu povo. Por fim, Spindler (1993) discorre sobre o realismo mágico ontológico, conforme salienta, diferente do

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antropológico, que apresenta o sobrenatural lançando mão da cultura popular ou crenças mágicas, e do fantástico, porque não produz a dúvida, ante ao bizarro e grotesco. Esta modalidade de realismo descreve o sobrenatural como se fosse um acontecimento usual do cotidiano: ―o leitor é simplesmente convidado a aceitar a realidade ontológica do acontecimento.‖ (SPINDLER, 1993, p. 8). Como já ressaltamos, Rodrigues (1988) faz algumas restrições acerca do termo ―realismo mágico‖. Devemos ressaltar que a conceituação do realismomágico foi e continua sendo usada com amplas e diversificadas significações. Spindler (1993) assevera que os vários tipos de obras podem ser classificados como mágico-realistas, podendo até as obras de um mesmo autor pertencer a diferentes tipos de realismo mágico.

4.3 A ESCRITA FANTÁSTICA E SUAS VERTENTES NA OBRA DE ELOMAR

Anteriormente examinamos o caráter multifacetado e controverso do gênero fantástico. A partir deste ponto, vale a reflexão acerca de seus limites, enquanto gênero. Procuraremos analisar o fantástico e suas vertentes sempre que possível, utilizando exemplos de Sertanílias. Consoante assegura Todorov (2004), o fantástico encontra-se entre o maravilhoso e o estranho; gêneros adjacentes e, intimamente imbricados a ele. É pertinente destacar, porém, que entre o fantástico e cada um destes outros gêneros intercalam-se dois subgêneros: o fantástico-estranho e o fantástico-maravilhoso. O primeiro compreende o sobrenatural explicado racionalmente no desfecho da narrativa. Neste caso, ocorre a passagem do fantástico para o estranho, sendo elucidadas as fraudes e ilusões. O segundo compreende a aceitação natural da personagem e do leitor diante de fatos que fogem à compreensão racional. Sobre a definição do realismo-maravilhoso, Irlemar Chiampi comenta: A definição de maravilhoso facilita conceituação do realismo maravilhoso, baseada não na contradição com o natural. Maravilhoso é o ‗extraordinário‘ o ‗insólito‘, o que escapa ao curso do ordinário das coisas e do humano. Maravilhoso é o que contém maravilha, do latim mirabilia, ou seja, coisas admiráveis (belas ou execráveis, boas ou horríveis) contrapostas à naturalia. Em marabilia está presente o ‗mirar‘. Olhar com intensidade, ver com atenção, ou ainda ver através. O verbo mirare também se encontra na etimologia de milagre- portanto- contra a ordem natural- e de miragem- efeito óptico, engano dos sentidos. O maravilhoso recobre, nesta acepção,

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uma diferença não qualitativa, mas quantitativa com o humano; é um grau exagerado ou inabitual do humano, uma dimensão de beleza, de força ou riqueza, em suma, de perfeição que pode ser mirada pelos homens. (CHIAMPI, 2008, p. 48).

Para Chiampi (2008), o maravilhoso apresenta duas acepções acerca da ―essência do humano‖. A primeira, longe de refutá-la, ratificá-a, ou seja: a relação entre o humano e o extraordinário fundamenta-se na ―frequência ou densidade com que os fatos ou objetos exorbitam as leis físicas e as normas humanas‖ (CHIAMPI, 2008, p. 45). Já em sua segunda acepção, o maravilhoso rompe de modo abrupto com tudo que é humano. Sob este prisma, Chiampi (2008, p. 46) entende o maravilhoso como: ―tudo o que é produzido pelas intenções dos seres sobrenaturais‖. Olhando por esta perspectiva, nota-se que a autora concebe a relação entre a essência do humano e do extraordinário, não como ―afastamento da ordem natural, mas da própria natureza dos fatos e objetos.‖ (CHIAMPI, 2008, p. 47). Neste caso, o extraordinário pertencente a outra esfera e configura-se como uma atividade: ―(não humana, não natural) e não tem explicação racional‖ (CHIAMPI, 2008, p. 48). De posse dessas informações, entendemos o porquê, no romance a história sobre o ferreiro termina, e a ambivalência de sua identidade persiste. Não há um esclarecimento na narrativa sobre a verdadeira identidade desta personagem. Não se pode limitar em que ponto termina a ação do homem e começa a do tinhoso. Demarcar com precisão o limiar da ―essência humana‖ do ferreiro pode ser no mínimo uma ação falaciosa. Como Todorov (2004) adverte-nos: a mola mestra do fantástico é o quase acreditar. O acreditar condicionalmente ou o não acreditar totalmente elimina o jogo do leitor com a obra. Extingue a possibilidade da existência do fantástico. Na narrativa fantástica contemporânea estas linhas tênues, entre o possível e o impossível, tornam-se mais delgadas ainda, uma vez que aparecem sobrepostas, imbricando-se entre a realidade e o absurdo, e com isso, produzindo confluências narrativas de mundos distintos. Todos estes fatores favorecem as condições de possibilidade do surgimento de um evento desconcertante e ao mesmo tempo aceitável dentro da proposta estética do jogo do fantástico. Sobre isso, cito:

O fantástico entretecido na ficção contemporânea permite a perspectiva de um olhar crítico e paradoxalmente realista a respeito

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da cultura e da história, ainda que elaborada pelo viés da construção de uma realidade desconcertante, absurda e transgressora. Observando como são construídas algumas imagens insólitas é possível discutir os contextos multiformes da atualidade, perceber a construções de novos heróis em suas trajetórias urbanas e cotidianas e identificar os tempos sobrepostos nas narrativas como formas de relatar experiências de deslocamentos e de confluências de memórias passadas. (TREVISAN; ATIK, 2014, p. 36).

Em Sertanílias o fantástico maravilhoso pode ser localizado na passagem que já mencionamos, quando o protagonista faz a travessia do Rio São Francisco sobre os lombos de uma gigante cobra. (MELLO, 2008, p. 140). Consideramos esta passagem como uma manifestação de um ―fantástico-maravilhoso‖ levando em consideração a aceitação total das personagens e a ausência de medo delas diante do que estão vivenciando. Todorov (2004, p. 41), no entanto, diz que o sentimento de medo não é algo imprescindível na literatura fantástica: ―o medo está frequentemente ligado ao fantástico, mas não como condição necessária.‖. Segundo assinala Todorov (2004), a narrativa fantástico-maravilhosa é a que mais se aproxima do fantástico ―puro‖. Isto se justifica pelo fato de ambas terminarem a história aceitando a presença do sobrenatural. A diferença consiste em que, na primeira, o extraordinário não é questionado, enquanto que, na segunda, o questionamento não cessa. Outro subgênero, que transita pelo fantástico, é o maravilhoso-puro; este também não apresenta limites claros, e não oferece nenhuma justificativa. Para delimitá-lo importa, antes, diferenciá-lo de outros tipos de maravilhoso cujas classificações podem ser: ―maravilhoso hiperbólico‖, maravilhoso exótico e o maravilhoso instrumental. O primeiro é caracterizado por não violentar a razão de modo excessivo. Neste tipo de narrativa ocorre apenas um exagero com a linguagem, completamente compreensível a partir de uma interpretação alegórica ou poética, este maravilhoso não ―viola excessivamente a razão‖ (TODOROV, 2004, p. 61). A segunda modalidade de maravilhoso é o que Todorov denomina de ―maravilhoso exótico‖: neste caso tanto a personagem quanto o leitor implícito desconhece as regiões em que os acontecimentos desenrolam-se, portanto não podem questionar o princípio da verossimilhança. O acontecimento incomum é posto em xeque. Esta categoria de maravilhoso é encontrada em Sertanílias na passagem em que o canoeiro às margens do Rio São Francisco conta a Sertano sobre sua origem e como foi salvo de um massacre de que sua família fora vítima em tempos remotos:

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Eu tinha sete anos de idade, minha mãe, juntamente com uma tabuleta que ainda conservo, onde se encontram estes curtos relatos - me pôs dentro da casca do único ovo da Cobra Grande, tendo antes disto matado o filhote que ali se encontrava por nascer ainda. E eis que aqui estou sem mais entender e nem explicar coisa alguma. (MELLO, 2008, p. 139).

Observem que neste trecho extraído do romance de Elomar, tanto o protagonista quanto o próprio leitor empírico desconhecem o espaço em que se passou o acontecimento, por conseguinte, fica difícil de compreender como uma criança sobreviveu depois do ataque dos inimigos, porque foi escondida pela própria mãe no interior do ovo de uma cobra gigante. O ―Maravilhoso instrumental‖ é a terceira categoria apontada por Todorov (2004) em seu quadro metódico. Trata-se da apresentação de artigos/ objetos engenhosos, aperfeiçoamentos técnicos impensáveis para a época em que a narrativa desenrola-se, contudo que podem ser perfeitamente possíveis. Para elucidar melhor seu posicionamento acerca dessa categoria de maravilhoso, Todorov faz uso do seguinte argumento: Na história do príncipe Ahmed As Mil e uma noites, esses instrumentos maravilhosos são, no inicio, um tapete voador, uma maçã que cura, um tubo de longa visão; em nossos dias, os helicópteros, os antibióticos ou o binóculo, dotados da mesma qualidade, não são absolutamente do domínio do maravilhoso (TODOROV, 2004, p. 62).

No século XIX, na França, o Maravilhoso Instrumental era denominado de maravilhoso científico. Na literatura contemporânea, este maravilhos é conhecido como science-fiction, e o acontecimento sobrenatural é explicado pelas vias da razão, mas a partir de leis que a ciência contemporânea desconhece. Um exemplo claro disso seria a presença do autômato Olímpia por quem o protagonista Natanael apaixona-se, no conto Homem de Areia, do escritor alemão E.T. A Hoffmann (1816 apud TODOROV, 2004). Voltando às discussões do fantástico e suas vertentes em Sertanílias, na Prefala o narrador menciona da existência de um ―portal‖, uma espécie de ―corredor de passagem entre os mundos‖. (MELLO, 2008, p. 10). Como vimos, ele explica que a existência desse portal só é possível pela compreensão da teoria de Hoerbiger sobre Mundos Paralelos. Elomar pauta-se na Teoria dos Universos Paralelos que pressupõe a existência de mundos paralelos regidos a partir das leis da mecânica

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quântica, ramo da Física. Esta teoria poderia explicar acontecimentos sobrenaturais sob a ótica puramente pelo crivo da razão, porém a própria teoria que trata da existência de mundos paralelos não consegue firmar-se cientificamente. Com o advento do cinema, este tipo de ficção sobrenatural, pautada nas explicações científicas, ganha mais força, conforme podemos constatar nas considerações de Maria Luiza Guarnieri Atik: No âmbito da literatura de ficção cientifica e no domínio cinematográfico, escritores, roteiristas e diretores vêm ao longo do século XX povoando o nosso imaginário coletivo com a profusão de criaturas artificiais (ATIK, 2015, p. 177).

Sobre a diferença entre as criaturas fantásticas e as criaturas artificiais, Maria Luiza Guarnieri Atik explica que estas últimas representam técnicas científicas bem à frente do tempo do escritor. Desse modo, a respeito delas a autora diz: ―Elas são concebidas pelos homens à imagem do homem. As ciências da informática e as tecnologias mais modernas constituem um campo privilegiado para a criação de criaturas artificiais‖ (ATIK, 2015, p. 176). Segundo Todorov (2004), estes tipos de ―maravilhoso‖ são variedades que se opõem ao maravilhoso puro, que não se explica em hipótese alguma. Ciente da complexidade de entender o maravilhoso em toda sua inteireza, Todorov vale-se das considerações que Pierre Mabille faz em Le Miroir du Merveilleux para definir o sentido de maravilhoso: Para além da satisfação, da curiosidade, de todas as emoções que nos dão as narrativas, os contos e as lendas para além da necessidade de distrair de esquecer, de buscar sensações agradáveis ou terrificantes, a finalidade real da viagem maravilhosa, é, já estamos em condição de compreender a exploração mais total da realidade universal. (TODOROV, 2004, p. 63).

Terminada a análise sobre as variedades de maravilhoso apontadas por Todorov (2004), prosseguiremos observando o que este teórico nos diz a respeito de outro gênero vizinho do fantástico, a saber: o alegórico34 que, por sua vez, opõe-se ao literal ou sentido próprio. A oposição entre o sentido literal e o sentido alegórico consiste justamente no fato de que, no segundo, diz-se uma coisa para significar

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Todorov (2004, p. 66) caracteriza alegoria como um gênero literário. ―[...] deveremos precisar as relações com dois gêneros vizinhos: a poesia e a alegoria.‖

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outra. Eis a definição que Todorov (2004, p. 69) nos apresenta de alegoria: ―a alegoria é uma proposição de duplo sentido, mas cujo sentido próprio (ou literal) se apagou inteiramente.‖ Quando em um dado texto, o sentido primeiro das palavras tende a desaparecer completamente, diz-se que está ocorrendo um processo de alegorização do texto, pois se tenciona falar de algo além do objeto primeiro enunciado: ―a alegoria implica na existência de pelo menos dois sentidos para as mesmas palavras [...] este duplo sentido é indicado na obra de maneira explícita: não dependendo da interpretação (arbitraria ou não) de um leitor qualquer.‖ (TODOROV, 2004, p. 71). No capítulo O Ferrêro, Sertano passa pela casa do artífice, conforme veremos detalhadamente no prosseguir da análise. Neste trecho a seguir será possível percebermos a presença da alegoria de que fala Todorov: Saindo o Ferrêro para ver o cavalo, Sertano e os companheiros intrigadíssimos pelo linguajar, fazem menção de irem junto. Pelo que o Ferrêro repreende: - Não. Permaneçam aqui e deixem que eu cuido sozinho. Após alguns instantes, retorna diante dos olhos esbugalhados dos quatro com a pata dianteira do cavalo na mão [...] Ali enfiou a parte do casco dentro de um fogo vermelho com bordas verdes [...] em seguida, quando o casco da pata chegou ao rubro azulado, o Ferrêro trazendo-a para a bigorna acoplava-lhe uma placa metálica com as próprias mãos sem auxílio de tenazes, luvas ou outra coisa qualquer que lhe protegesse [...] e a fornalha laborava mais e mais [...] Com o casco já quase pronto, mas ainda em brasa [...] sai lá fora, coloca a peça no cavalo e vem com a outra pata dianteira (MELLO, 2008, p.121-122).

É importante observar que, segundo os princípios teóricos de Todorov (2004), para que o acontecimento fantástico seja instaurado na história, é necessário que o primeiro sentido das palavras desapareça completamente. Sendo assim, é preciso eliminar a ideia de que o Ferrêrro entrou com o cavalo inteiro, e segurando na pata do animal, ou em última instância, é preciso descartar a hipótese de que o Ferrêro segurava a pata de um animal que, já sem vida, teve parte do corpo retirada. Só eliminando estas duas primeiras possibilidades é possível compreender o acontecimento na casa do artíficie como uma ação regida pelos vieses do fantástico, ou seja, é preciso que o segundo sentido seja levado em conta, para que a manutenção do fantástico efetive-se. Desse modo, torna-se importante considerar que o Ferrêro arrancou a pata do animal vivo, colocou a ferradura, manuseou-a na

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fornalha sem nenhum instrumento que protegesse suas mãos das labaredas da fornalha. Para eliminar qualquer ambiguidade na estranha ação do ferreiro, o narrador deixa evidente que o cavalo ficou lá fora, e o ferreiro só entrava no interior da casa carregando as patas do animal, conforme podemos verificar nas duas últimas linhas da citação que aqui tornamos a transcrever: ―Sai lá fora, coloca a peça no cavalo e vem com a outra pata dianteira.‖ (MELLO, 2008, p. 122). Depois de discorrer sobre o fantástico e os gêneros (maravilhoso e alegórico), Todorov (2004) prossegue explanando sobre o discurso fantástico propriamente dito. Para ele, são vários aspectos que corroboram para o aparecimento do sobrenatural em uma narrativa, tais como: as imagens figuradas quando alcançam seu último estágio; por exemplo, uma hipérbole em seu último grau, neste caso o sobrenatural surgirá como um prolongamento de uma figura retórica, que pode ser uma hipérbole ou outra figura qualquer. Segundo Todorov (2004), a hipérbole é a fonte do elemento sobrenatural, pois é nela que o fantástico encontra sua origem. Outra possibilidade de instaurar-se o sobrenatural são as expressões idiomáticas, expressões figuradas ou corriqueiras, quando tomadas ao pé da letra. O teórico faz a seguinte observação acerca do fantástico e as condições para sua existência: ―Nem toda ficção, nem todo o sentido literal está ligado ao fantástico, mas todo fantástico está ligado à ficção e ao sentido literal. Estas são duas condições essenciais para a existência do fantástico.‖ (TODOROV, 2004, p. 83-84). Vejamos um fragmento de Sertanílias que pode ilustrar esta relação entre o fantástico e sua construção interpretativa pelo leitor empírico: ―Ás vezes alçamos voos, sempre que preciso [...] – intonces eu fico aqui isperano o cavalêro voltá nas asas da Ventania.‖ (MELLO, 2008, p. 23). Se a expressão dita por Sertano for levada ao pé da letra, logo entenderemos que, em algumas ocasiões, esta personagem e outras que fazem parte da trama do romance voam. Segundo a ótica de Todorov (2004) a interpretação literal instaura o fantástico na narrativa. Tratando dos temas do fantástico, o crítico conduz-nos a discussão dos aspectos semânticos no texto. Sobre isso, afirma que os eventos estranhos são elementos imprescindíveis à concretização do sobrenatural: ―sem acontecimentos estranhos, o fantástico não pode nem aparecer.‖ (TODOROV, 2004, p. 100). Estes acontecimentos são caracterizados pela transgressão de um, ou vários elementos. Assim, Todorov (2004) os divide em três grupos: o primeiro deles são personagem, matéria e consciência; o segundo liga-se ao mundo dos objetos, matéria e espaço;

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por fim, o terceiro relaciona a ação, a causalidade/objetivo e o tempo. A partir do ato de transgressão desses elementos abre-se espaço para a manifestação de seres comumente utilizados nas narrativas fantásticas, tais como indivíduos metamorfoseados e seres sobrenaturais. Segundo os pressupostos teóricos de Todorov (2004), a metamorfose constitui-se por uma infração, a saber, separação entre matéria e espírito. Quanto ao sobrenatural, pode-se destacar que este elemento é uma das constantes da literatura fantástica, a existência de seres sobrenaturais mais poderosos que os homens; para o teórico, tais seres simbolizam um sonho de poder, pois são criaturas que representam acontecimentos que no nosso cotidiano reconhecemos como o acaso, mas que na verdade, são as intervenções de seres e de forças sobrenaturais ignorados por nós. Um ser ou um objeto

sobrenatural

causa

uma

mudança

no

mundo

sensível;

logo,

os

acontecimentos terrestres estão intimamente ligados aos do mundo invisível. Em Sertanílias, verificamos isso nos atos do ferreiro procurado por Sertano para cuidar das patas de Russo Pombo. As ações desenvolvidas pelo ferreiro ao trocar as ferraduras da pata do cavalo causam desordem no mundo real, pois transgridem uma lei pré-estabelecida por este mundo: o estranho homem não leva a ferradura até a pata do cavalo, antes, leva (apenas) a pata do cavalo até a ferradura que está sendo forjada no fogo, enquanto o cavalo aguarda na parte externa da casa, conforme podemos constatar, esta ação é um elemento transgressor de uma lei préestabelecida: ―Sai lá fora, coloca a peça no cavalo e vem com a outra pata dianteira.‖ (MELLO, 2008, p. 123). Outros atos de transgressão que, segundo Todorov (2004) contribuem para a construção do fantástico são os arrebatamentos ou deslocamentos de seres e objetos no espaço. Neste trecho de Sertanílias, o protagonista desloca-se de um espaço a outro em seu cavalo alado: Nas patas de Russo Pombo muitas mil léguas cortadas. Nascente dos quatro ventos, bem depois do derradeiro horizonte, nas camarinhas da aurora [...] Para bem dizer, estive na esquina do mundo, lá onde os grandes conquistadores choraram por não haver mais terras para conquistar. (MELLO, 2008, p.22, grifo nosso).

Na citação acima, fica claro que o autor faz uso de duas locuções adverbiais que sugerem uma ação hiperbólica do sujeito. Sob as patas do cavalo, o protagonista foi ―nas camarinhas da aurora‖ e ―na esquina do mundo‖. Se as duas

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locuções forem tomadas ao pé da letra, consequentemente ficaremos perante um acontecimento fantástico. Sob a perspectiva de Todorov (2004), na narrativa fantástica ocorre o apagamento do limite entre sujeito e objeto, aniquilando-se a separação abrupta entre seres que no mundo empírico parecem tão dicotômicos. Nas narrativas dessa natureza, há um jogo incessante entre o sonho e o real, espírito e matéria. Neste contexto, toda a aparição de um elemento sobrenatural é acompanhada pela introdução paralela de um elemento pertencente ao domínio do olhar, tais como espelho, luneta, binóculo etc. É válido destacar que a ruptura da matéria e do espírito até o século XIX, em especial, era considerada como a primeira característica da loucura, por conseguinte, na concepção da sociedade oitocentista, só o homem psicótico confunde o mundo sensível e o mundo imaginário, não conseguindo separar, com sucesso os domínios da realidade e do imaginário. Todorov (2004) destaca que em se tratando de literatura fantástica, o limite entre matéria e espírito não é ignorado, antes, proporciona o pretexto para as transgressões contínuas do gênero. Como já mencionamos reiteradas vezes, Sertanílias traz explícita em sua trama esta vontade de transgressão: ―Eu percebi muito apertado o sertão político-geografico para caber e conter certos meus personagens transgressores de espaços, tempos e ordens préestabelecidas.‖ (MELLO, 2008, p. 11). Acerca do fantástico e suas vertentes, percebemos que a realidade criada será negada sempre. Ela (a realidade) precisa tornar-se misteriosa e indefinida para assim criar a tensão, o questionamento e a ambiguidade são indiscutivemente, elementos imprescindíveis à existência do fantástico.

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5 O TEMPO NA CONSTRUÇÃO DA HISTÓRIA E DA TRAMA DE SERTANÍLIAS

Neste capítulo, veremos como é construída a noção de tempo em Sertanílias. Baseado nos estudos desenvolvidos por Gerard Genette (1979), Franco Júnior tece suas considerações sobre o ―fluxo temporal‖ da narrativa. Segundo assinala Franco Junior (2009, p. 46), Genette "propõe uma distinção básica entre o tempo da coisa contada e o tempo da narrativa". Partindo de suas reflexões sobre o tempo, investigamos como este elemento estrutural inscreve-se na construção do romance de Elomar. A primeira categoria analisada foi o "tempo objetivo cronológico": a marcação objetiva do tempo, que segundo Genette: ―Pode ser mensurado pela passagem dos dias, das estações do ano" (apud FRANCO JÚNIOR, 2009, p. 46). Temos em Sertanílias o exemplo de semelhante tempo: Após algum tempo na postura estática, prosseguem em profundo silêncio, só se ouvindo o açoite do vento e o barulho da chuva. E logo em uma curva desponta aonde chegam: um pátio de um casão senhorial. É quando entra em cena um cavaleiro da tempestade. (MELLO, 2008, p.89).

Neste trecho, podemos perceber que os tempos verbais são dispostos de modo a entender uma ação que se prolonga de forma contínua, marcada pelos verbos ―prosseguem, desponta, chegam‖. A segunda categoria apontada por Franco Junior (2009), segundo os estudos de Genette, é o ―tempo subjetivo-psicológico". Apesar de manter vínculo com o tempo cronológico, o tempo psicológico difere-se dele, pois se vincula muito mais: às ―memórias‖, às ―fantasias‖ e também às ―expectativas". No capítulo ―Grande abertura‖: Sempre fui sem regresso, e se algum dia eu voltasse, com certeza pediria ao Senhor Deus para me encerrar entre canteiros, nos sagrados jardins da minha infância, onde de sonhos é o ar que respiramos e a flor da inocência flagelo de Satanás. (MELLO, 2008, p. 24).

A respeito da ordem que os fatos aconteceram (diegese), e a ordem que foram apresentados ao leitor, muitas vezes, falta a sincronia. Franco Júnior define o conceito de ordem, bem como, explica os desencontros entre a diegese e o

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discurso. Vejamos: Ordem compreende a relação entre a ordem (disposição) dos acontecimentos da diegese (história) e a ordem de apresentação desses mesmos fatos no discurso, (história construída). Como a ordem dos acontecimentos na diegese e no discurso raramente coincide, criam-se anacrônicos-desencontro entre a ordem dos acontecimentos na diegese e a ordem de sua apresentação no discurso narrativo. (FRANCO JUNIOR, 2009, p. 47).

O crítico apresenta um quadro metódico contendo quatro tipos de ―anacronias". À medida que forem expostos estes desencontros narrativos, verificaremos suas possíveis ocorrências em Sertanílias. O primeiro exemplo de anacronismo apontado por Franco Júnior (2009) é a ―Narrativa in media res", já explicada nas páginas anteriores. Conforme pontua o autor, neste discurso a narrativo tem início a partir de um "acontecimento que pertence ao desenvolvimento da diegese". Este exemplo é encontrado no trecho a seguir quando Sertano revela ao seu interlocutor o porquê da viagem urgente: ―– Vou para libertar meus irmãos que, sendo vencidos em combate, foram vendidos como escravos em terras distantes, longe, muito longe dos termos de Ofir.‖ (MELLO, 2008, p. 21). Como se sabe, a libertação dos irmãos do cativeiro será a mola mestra de toda a peregrinação de Sertano. Este acontecimento só será revelado a partir da analepse conforme veremos no decorrer dessa explanação. O segundo exemplo de que o autor trata é a narrativa in última res: trata-se do desencontro entre a diegese e a trama. O desfecho da história é apresentado nas páginas iniciais do discurso. Não encontramos este exemplo em Sertanílias, entretanto, ocorre uma sugestão do desfecho desejável pelo protagonista: ―Quando os meus irmãos estiverem livres, os abraçarei apertado junto ao coração, beijarei o rosto amado de cada um; então empreenderei o regresso.‖ (MELLO, 2008, p. 24). A conjução subordinativa temporal ―quando‖ marca a condição para que os abraços e os beijos fraternos sejam realizados na trama. A terceira anacronia, apresentada por Franco Júnior, é a analepse: retorno temporal dos acontecimentos. O recuo no tempo está presente em Sertanílias, quando os companheiros de viagem narram a briga em que os irmãos de Sertano envolveram-se antes de tornarem-se cativos. A peleja da qual os ex-bandidos foram testemunhas aconteceu em uma festa de casamento. Terênço e seus irmãos relataram a Sertano como os fatos ocorreram:

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Foi um sirviç‘ brabo maiso muint‘ bonit‘ de manêra que já na mãicença do dia os dois fugaro dexan‘ pra traiz muita ferida e sãingo isparramad‘ pulo qui foi de sala, corredô, calçada e terrêro daquêl‘ bunito casarão [sic]. (MELLO, 2008, p. 76).

A última anacronia apontada pelo autor é a prolepse: marcação temporal que segundo Franco Junior, antecipa o plano do discurso. Desse modo, um fato que no plano da diegese será desvendado apenas no final da narrativa, é revelado ao leitor no início da narrativa, quando o autor faz uso desse recurso em Sertanílias não percebemos a recorrência da prolepse.

5.1 A CÂMERA E O ROTEIRO

Neste ponto do trabalho, vamos analisar a complexidade de Sertanílias, com vista a compreender, no tocante à técnica narrativa, a opção do autor em tecer sua trama a partir de um processo interdiscursivo da literatura com o cinema. A escolha do tema deve-se ao alto grau de dificuldade que sentimos quando nos debruçamos para analisar o foco narrativo. As perguntas que nos nortearam na investigação desse ponto foram as seguintes: a inserção do roteiro de cinema na obra Sertanílias não apaga a presença do narrador na trama? A câmera e o roteiro apenas se constituem como uma pseudo-supressão de um narrador que persiste latente na condução da trama? Cientes de que este romance é dotado de uma organização textual complexa que engloba diversificados gêneros discursivos, optamos por fazer um recorte que evidenciasse as múltiplas posições dos focos narrativos adotados pelo autor. Procuraremos discutir e analisar os motivos possíveis da sua preferência pelo uso do roteiro em alguns trechos da obra, bem como analisar em Sertanílias o processo dialógico entre literatura e cinema. Conforme já foi ressaltado, antes de ser transformado em um romance, Sertanílias foi pensado como um roteiro de cinema; posteriormente tal projeto foi substituído pela construção de um romance. Nesse processo de adaptação do roteiro cinematográfico para livro ficcional, o autor conservou, todavia o primeiro intercalado à narrativa. Como veremos ao longo das discussões, muitas vezes, o roteiro substituirá o foco narrativo. Isso se configura como um caso atípico na literatura, pois geralmente, o processo de adaptação acontece do livro para o roteiro de cinema.

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João Batista Brito (2006, p. 145) assinala que o elemento ―catalisador‖ do diálogo entre a arte literária e a arte cinematográfica não estabelece uma relação totalmente pacífica, pois ambas possuem elementos que ora se entrecruzam, ora se desarmonizam. O autor assinala que a linguagem cinematográfica ainda no início do século XX alcança um público bem mais amplo do que o dos romances de folhetins, dos finais do século XVIII e XIX, cujos leitores restringiam-se a classe burguesa, ao passo que o cinema ampliava seu acesso e ―atingia todas as classes sociais‖. Mesmo assim, esta arte preferiu seguir as convenções romanescas do século XIX: [...] quando o cinema surgiu e ensaiava seus primeiros passos semióticos, todas as outras artes já eram caducas, e pior, vivenciavam, com as vanguardas do começo do século XX, uma grave e generalizada crise da representação. Ao invés de seguir essas vanguardas, o cinema ficou na retaguarda e preferiu seguir o modelo convencional do romance do século anterior, contando uma estória com começo meio e fim, e assumindo ser três coisas, ao mesmo tempo: ficcional, narrativo e representacional. (BRITO, 2006, p. 148).

Em Sertanílias, a substituição ocorre por meio inverso, como já enfatizamos, o roteiro que foi transformado em romance. Efetivamente, não seria prudente pensarmos neste procedimento de substituição do narrador pela câmera como algo simples em que o autor não pretendia oferecer ao leitor uma gama de possibilidades interpretativas. Menos prudente ainda seria acreditarmos que o roteiro de cinema foi posto na estrutura do romance despretensiosamente. Seria uma falácia analítica não nos atentarmos ao roteiro na obra como mais um método a explorar o ponto de vista sob os vários planos que o autor faz uso na confecção da trama. A inserção do roteiro, não anula o foco narrativo e continua a oferecer ao leitor a oportunidade de desvendar de modo privilegiado, as camadas de interpretações do texto, a saber: pelos vieses da intervenção narrativa e pelos vieses do roteiro cinematográfico. Conforme vimos no capítulo I, Elomar em entrevista a Mônica Loureiro (2003), justifica a preservação do roteiro na estrutura do romance, simplesmente por preocupações vindouras, em preservar o projeto original do seu roteiro como uma crítica direcionada ao cinema contemporâneo. Discorreremos

a

partir

desse

ponto

sobre

a

inserção

do

roteiro

cinematográfico na estrutura do romance e as relações deste elemento às técnicas narrativas de Sertanílias. Tais discussões serão norteadas pelos posicionamentos teóricos de João Batista Brito, no tocante ao roteiro cinematográfico, e por Alfredo

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Carvalho, no concernente ao foco narrativo e o fluxo de consciência.

5.2 O OLHAR CINEMATOGRÁFICO DO AUTOR

Antes de prosseguirmos as discussões sobre o foco narrativo e o roteiro cinematográfico, consideramos procedente falar dos gêneros que respectivamente os integram, a saber, a literatura e o cinema. Segundo Antoine Compagnon (2003), o desenvolvimento histórico e semântico do termo literatura construiu-se e constrói-se através de um processo que é, ao mesmo tempo, histórico e social. A ideia moderna de literatura como arte particular diferenciada da música, da pintura, da escultura etc, só veio a ser formulada a partir das últimas décadas do século XVIII, e desenvolvida de modo mais complexo, no início do século XIX, quando adquire sentido estético, e passa a ser relacionada à ideia de gosto e sensibilidade. Segundo Compagnon (2003, p. 30), anterior ao século XIX, o termo literatura designava ―as inscrições, a escritura, a erudição, ou conhecimento das letras.‖. Quanto ao cinema, em uma perspectiva ampla Bernardet (2000, p.32) defineo como: ―uma força de dominação ideológica e comercial‖. Da câmera fixa aos movimentos bem mais complexos favorecidos pelos ―trevilling‖, a história do cinema passa por várias evoluções de técnica, desde a sua gênese 1896, com Lumière quando registrar ―o que estava à frente‖, até os nossos dias com o cinema ―6 D‖, capaz de projetar imagens extremamente realistas. Nos primeiros anos do cinema, quando ainda era ―mudo‖ até o início da ―maturidade linguística‖ a relação que esta arte estabelecia com o espectador era a mesma posta pelo teatro, conforme salienta Bernardet (2000, p.32): ―A câmara filmava uma cena como se ela estivesse ocupando uma poltrona na plateia de um teatro [sic].‖ Mais à frente, a linguagem cinematográfica desenvolveu-se, o projeto gradativamente toma corpo, o cinema passa a contar estórias. Diante disso, nasce na primeira metade do século XX o ―herdeiro do folhetim do século XIX‖. Segundo assinala o crítico, com a evolução da imagem cinematográfica, a linguagem da ficção sobrepôs-se à linguagem científica e ensaística. Ainda sob a ótica de Bernardet (2000, p. 33-4), a supremacia da linguagem ficcional foi favorecida pela criação da estruturas narrativas e da relação com o espaço, e com o ―deslocamento da câmara‖. A respeito da concepção do conceito de cinema como linguagem, Aumont e Marie (2003, p. 289-290) afirmam

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que: ―A assimilação do cinema a uma linguagem foi, a princípio, simplesmente uma metáfora, e ela só foi examinada com rigor a partir de 1960.‖ Este exame da linguagem cinematográfica foi desenvolvido a partir das bases da linguística e das bases na poética. Talvez, por isso, seja tão recorrente este diálogo entre o cinema e narrativa. Claro que a narrativa de Elomar caminha à contramão das adaptações, tendo em vista que são as literaturas que se transformam em roteiro de cinema e não o contrário do que aconteceu com seu romance. Na Prefala, o autor justifica esta hibridez de linguagem como um projeto de transposição da linguagem narrativa para a cinematográfica que poderá realizar-se no futuro. Sendo assim, a respeito disso diz: É urdido numa forma levemente roteirada para cinematógrafo, crendo eu que num futuro bem remoto, quem sabe, lá algum, algum estoporado do quengo- desses que em plena Avenida Paulista numa segunda-feira a cinco da tarde, que tendo a competência de conseguir ver e assistir ali morrendo de medo, mas seguro nas mãos do guerreiro Anhanguera, bem por ali na porta do Banco Japonês, um jaguar devorando a carcaça de uma queixada ensaguentado resolva levar para as telas. (MELLO, 2008, p. 13).

Desse modo, vemos que em Sertanílias fica a possibilidade de um dia este roteiro, por hora preso ao romance, ser efetivado nas telas de cinema; transformando a linguagem literária em imagens imbuídas de ações e sentimentos das personagens do romance, sobretudo, os atos, e pensamentos do vaqueiro culto, Sertano, o cavaleiro destemido que, com seu facão cimitarrado, cruza o sertão profundo.

5.3 O FOCO NARRATIVO EM XEQUE

Seguindo a exposição do quadro metódico dos diversificados conceitos de ponto de vista e / ou foco narrativo, Carvalho (2012) evidenciará o posicionamento de Norman Friedman (1967) acerca do tema. Conforme Carvalho (2012), Friedman amplia as categorias narrativas já tratadas por Brooks e Warren, bem como sistematiza os problemas concernentes a este assunto questionando os seguintes aspectos: quem remete ao leitor? Qual o ângulo adotado pelo narrador? Que tipo de canal o narrador serve-se para transmitir a história ao leitor? Qual a distância que o

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narrador põe entre leitor e história. Sem dúvida, todos estes questionamentos são pertinentes e precisam ser analisados a fim de que cheguemos a um entendimento razoável sobre uma determinada obra literária. O problema torna-se mais complexo quando o autor opta por substituir o narrador por um roteiro de cinema e uma câmera filmadora. Pautar-nos-emos nas questões levantadas por Friedman para compreendermos melhor o foco narrativo em Sertanílias. De acordo ainda com as definições de Norman Friedman, a narrativa pode ser conduzida de forma ―absolutamente passiva‖ e não "interferente‖. Em um primeiro momento, poderíamos pensar que, sob sua ótica, a condução da narrativa a partir do uso de uma câmera cinematográfica acaba por eliminar o autor, porque a um só tempo solapa a presença deste como entidade ficcional e da ficção como arte narrativa. Vejamos que o crítico menciona o método de substituição em 1967 e cita um exemplo que consta na obra de Christopher Isherwood, publicada em 1939, intitulada Adeus a Berlim. Eis o trecho citado no referido livro: Sou uma câmera, com o obliterador aberto, registrado de maneira absolutamente passiva, sem pensar. Registrando o homem que se barbeia na janela oposta e a mulher de quimono que lava os cabelos. Algum dia isso tudo deverá ser revelado, cuidadosamente impresso, fixado. (FRIEDMAN apud CARVALHO, 2012, p 15).

Após essa citação, Carvalho (2012, p, 15) salienta que este método apontado por Norman Friedman ainda é pouco praticado: ―Ao que sabemos, nunca ninguém adotou tal processo de maneira sistemática, num romance [sic].‖ De fato, a técnica aludida pelo crítico é pouco usual nos romances. O que há de se observar é que o processo de substituição do narrador pela câmera não coloca a primeira em uma posição passiva em relação à última. Na verdade, o que há é tão somente uma pseudo-―passividade‖ da pessoa do narrador, mas ele persiste na cena dando suas preferências de foco implicitamente. A seguir, exemplificaremos isso com trechos do próprio livro Sertanílias: Câmera à altura de um metro do chão mostra o ferrão descaído, respingando sangue que se empoça junto aos pés do bandido tremulante chocado. No canto esquerdo da câmera veem-se as pernas de dois bandidos e um no direito. Ambos saindo do mato encarabinado pondo cerco mortal a Sertano. (MELLO, 2008, p. 72).

A partir das considerações de Norman Friedman sobre a câmera como

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recurso narrativo, fica perceptível a ―exclusão do autor‖ apenas como algo ―aparente‖, tendo em vista que em última instância quem escolhe o ponto a ser focalizado na câmera nada mais é que o autor. Em Sertanílias, constatamos a substituição do foco narrativo pela câmera; não obstante, este método não foi capaz de neutralizá-lo, tendo em vista que a câmera foi direcionada exatamente para a posição em que o autor desejava explorar a cena. Tais direcionamentos espaciais ficam evidentes nas expressões que compõe o roteiro, a saber: ―câmera à altura de um metro do chão / no canto esquerdo da câmera‖. Estas orientações em que a câmera deve ser posicionada nada mais são do que a escolha do foco que precisa ser posto em destaque na narrativa. Certamente, se houvesse um narrador no lugar da câmera, as ―imediações emocionais‖ apareceriam de modo claro nas ações e, por conseguinte, os respingos de sangue junto aos pés dos bandidos trêmulos seriam priorizados na narração. Sendo assim, em Sertanílias, com o uso da câmera, o autor continua apresentando os fatos, a partir de seu ponto de vista. O aparato cinematográfico opera segundo um comando específico: a prescrição contida no roteiro.

5.4 A ONISCIÊNCIA NARRATIVA NO ENREDO Em termos estruturais, não há nada que marque o início do primeiro capítulo do livro Sertanílias. Nas duas páginas subseqüentes à Prefala, encontram-se as ilustrações de um cavaleiro e de um cavalo35, Sertano e Russo Pombo. Assim é o início de ―Grande Abertura‖, primeiro capítulo do romance. Em termos textuais, o início do capitulo é marcado pela Cena I, em que teremos a descrição do ambiente; em seguida na Cena II, anuncia-se a presença de uma personagem, um cavaleiro vindo a galope. O que se percebe é a evolução da narrativa em forma de roteiro e condução da câmera. Cena I começa com a descrição do ambiente; a evolução do passeio da câmera favorece o surgimento do cavaleiro e, finalmente, na Cena III teremos a aparição de outra personagem e o relato da ação que ela está desenvolvendo; posterior a isso, tem início a descrição física do cavaleiro. Assim acaba a sequência das três cenas que abrem o primeiro capítulo. Segundo o Dicionário Teórico e Crítico de Cinema, a palavra ―cena‖ tem sua origem no teatro grego e designava uma ―construção de madeira, a skêné, no meio da área da 35

Vide figuras no Anexo A

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encenação‖, posteriormente a palavra adquire uma extensão de sentido e passa a ser compreendida como ―um fragmento de ação dramática que se desenrola como parte unitária de uma ação.‖ (AUMONT; MARIE, 2003, p. 45). A seguir, analisaremos como ocorrem dois recursos cinematográficos na estrutura do romance: o deslocamento da câmera e a prescrição do roteiro em uma série de escalas e de planos. No início da Cena I, em se tratando da posição da câmera, ocorre o Plano geral (Long shot). Esta posição destaca a topografia do Sudoeste da Bahia, lugar onde, inicialmente, a narrativa desenrola-se. Este plano também é conhecido como ―plano de ambientação‖. Segundo Bernardet (2000, p. 38), a câmera nesta posição: ―mostra um grande espaço que as personagens não podem ser identificadas.‖ Vejamos a Cena I: Manhã de sol. Do topo da Serra dos Pombos na rodovia ConquistaBrumado, a câmera apanha nos confins da Chapada Diamantina, chamada para sim as lonjuras de trinta léguas, deslocando-se numa velocidade média ate chegar lá, no leito seco do rio. (MELLO, 2008, p. 16).

Conforme vimos no trecho citado, há toda uma prescrição dos pontos topográficos selecionados pelo autor a fim de ―descrever‖ ao leitor, o cenário em que a trama desenrola-se. Na cena II é utilizado o ―Plano Médio/ Medium Shot‖, a câmera posiciona-se numa distância média do objeto para descrever o figurino do cavaleiro. Esta posição do equipamento cinematográfico possibilita além da descrição do objeto, a visualização do cenário e de algumas ações que estão acontecendo com outra personagem, enquanto o cavaleiro aproxima-se. Desse modo, constrói-se a seguinte orientação no roteiro: A câmera, situada no pátio do chiqueiro da sede das Duas Passagens, apanha o cavaleiro vindo de frente em galope ralentando até o paripassu. Aproxima-se do chiqueiro, desmonta lentamente do cavalo, chega junto à cerca e saúda o vaqueiro Guezin que no chão de joelhos trabalha o casco de um pai-de-chiqueiro36 bem sujegado, desencravando-lhe um espinho. O cavaleiro em trajes de vaqueiro leva sobre os ombros uma capa à guisa de gibão de couro curtido. Na cabeça um chapéu de mateiro de abas largas. Calça de brim em tecido fornido, calçando um rolo de cano longo [sic].(MELLO, 2008, p. 16).

Na Cena III, o roteiro indica um posicionamento da câmera denominado 36

Pai-de-chiqueiro é o macho da cabra, também conhecido por chibato.

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―contra-plongée‖. Tal posição ocorre quando o objeto é filmado de baixo para cima, isso possibilita um ―engrandecimento do objeto filmado‖, no caso da Cena III, o aumento da figura do vaqueiro, objeto que está no foco da câmera. A expressão ―La longe na curva‖ denuncia a distância da câmera que já capta a figura do cavaleiro. Ao se aproximar, o plano ―contra-plangée” é substituído, gradativamente, pelo ―plano de detalhe‖ quando o foco é direcionado para as costas do referido cavaleiro. A câmera, no entanto fica pouco tempo neste plano, logo é feita a substituição para ―plano geral/ou‖ ―bigshot‖. O trecho a seguir exemplifica cada um desses planos: No nível da areia no leito do rio, no jusante, montada de dentro de uma vala, ao rés do chão, a câmera apanha no final, lá longe na curva, um cavaleiro que galopa em marchas de cruzeiro. Ao aproximar-se, o cavaleiro passa de largo, ao lado sendo apanhado então pela câmera de costas, ate ao longe da outra curva do rio, a montante. (MELLO, 2008, p. 16).

O conjunto desses posicionamentos da câmera propicia um cenário que sugere movimento contínuo e domínio de visão tanto ampla quanto restrita do espaço e das personagens. Esta sensação de movimento contínuo é flagrante nos trechos ―a câmera apanha no final lá longe/ o cavaleiro passa de largo, ao lado‖. Fica claro este jogo de movimento pelos dêiticos adverbiais ―la longe/ ao lado‖. Estas alternâncias de planos permitem que o leitor tome o mesmo conhecimento que um espectador tomaria no caso de um filme, no tocante não só ao espaço, mas também a descrições e ações das personagens. Após a Cena III, o roteiro segue com uma advertência. Trata-se da preocupação do roteirista em evitar o ―Plano Fechado‖. Segundo as orientações do roteiro, o rosto do herói Sertano, jamais, deverá aparecer nitidamente. Não pode ser filmado frontalmente pelo plano ―close-up‖. Sendo assim, segue orientação: ATENÇÃO: ao desapiar do cavalo ou antes até, e antes do rosto de Sertano, o cavaleiro começa a ser definido em traços, a câmera evita filmar-lhe de frente. No nível inferior, apanha-o do peito para baixo. Não só nesta como em todas as outras situações de cena, o rosto de Sertano jamais será mostrado em definição. Sempre será filmado de costas, de perfil, de longe; sempre, no máximo, do queixo para baixo; quando de perfil ou de frente mais próximo, na chamada ‗hora mágica‘, de madrugada ou ao amanhecer [sic]. (MELLO, 2008, p. 17).

O escritor deixa registrado em seu romance, por meio do roteiro, a

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preocupação pessoal em não revelar o rosto do protagonista. Como já vimos, o posicionamento de Elomar justifica-se pelo cuidado de apresentar Sertano como um anti-herói. Desse modo, a construção do protagonista visa à desconstrução do herói moderno, ―mocinho‖ de cinema ―enlatado‖ que toma sobre si os holofotes da cena e desvia o público do conteúdo da obra. Na Prefala, o projeto de transpor Sertanílias para a tela do cinema é uma possibilidade, ainda que longínqua e provavelmente, póstuma: ―Quem sabe algum dia [...] num futuro bem remoto [...] alguém não resolva levar seu romance pré-roteirizado ―para as telas.‖ (MELLO, 2008, p.13).

5.5 O FOCO NARRATIVO EM SERTANÍLIAS A crítica literária não tem poupado esforços para entender todo o problema que há em torno do ponto de vista ou foco narrativo e da construção da personagem de ficção, especialmente, no romance contemporâneo. Enquanto o termo ―ponto de vista‖ foi alcunhado, pela primeira vez, na arte pictórica, o termo ―foco‖, segundo assinala Alfredo Carvalho (2012, p. 3), teve sua concepção oriunda do campo da Física. Assim, no sentido científico, a palavra ―Foco‖ designa aquele ponto do qual convergem ou divergem ―os eixos de ondas sonoras ou luminosas que se refletem ou refratam‖ (CARVALHO, 2012, p.3). Rosenfeld (2012), ao discutir o problema geral da ficção, trata da concepção de literatura e personagem de ficção, e apresenta a obra literária a partir de três problemas: o antológico, o lógico, e o epistemológico. Conforme já foi exposto nas partes introdutórias desse trabalho, no romance de Elomar, um dos aspectos mais difíceis de análise é o foco narrativo, sobretudo, pela supressão do narrador e a inserção do roteiro ou da câmera filmadora no lugar do primeiro. A partir do posicionamento destes teóricos procuraremos compreender a construção do mundo imaginário e das personagens ficcionais em Sertanílias e perceber como estas problemáticas são trabalhadas pelo autor no cerne de sua trama. Iniciaremos então as discussões tratando do ponto de vista narrativo. O critico literário Carvalho (2012) procura trazer à discussão este problema e suas aplicações na estrutura de uma narrativa. A fim de explanar o tema sob os variados olhares da crítica literária, Carvalho (2012) sumaria um quadro metódico e confronta as terminologias do foco narrativo. Desse modo, o autor submete o problema à apreciação de muitos críticos literários, entre os quais Brooks e Warren (1959) e

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Norman Friedman (1967) citados por Carvalho (2012). Muitas vezes, as teorias coletadas por Carvalho (2012) são divergentes, não obstante, em muitos casos, algumas delas convergem-se, principalmente, no que concerne à problemática do foco narrativo. Para explanar acerca dos variados tipos de foco narrativo, Carvalho (2012) segue quatro sistemas básicos desenvolvidos por Brooks e Warren (1959 apud CARVALHO, 2012). A primeira categoria de foco que estes últimos tratam é a do narrador personagem/ narrador protagonista. Carvalho (2012) assinala que, em se tratando de narrativa em terceira pessoa, o autor e o narrador são termos análogos em alguns contextos. Diante disso, explica: Nas narrativas em terceira pessoa, autor e narrador são termos equivalentes, desde que se entenda por autor não a sua figura humana, em carne e osso, mas o autor da obra, o homem que assume uma posição literária, que afivela uma mascara para se dirigir ao leitor. Por isso que são aceitas expressões como autor onisciente, interferência do autor, ou intrusão autoral- para indicar os comentários que este faz na onisciência interpretativa- e outras semelhantes. (CARVALHO, 2012, p. 51).

A segunda categoria apontada pelos autores é a do personagem-observador. Este tipo de narrador pode participar amplamente do enredo ou ter apenas uma discreta participação, deixando depois a narrativa transcorrer sem uma atuação efetiva de sua parte. Tal categoria não se faz presente no romance de Elomar. Prosseguindo a exposição de categorias narrativas de Brooks e Warren (1959 apud CARVALHO, 2012), o terceiro tipo de narrador é o ―autor-observador‖. Sua função restringe-se a relatar ―fatos externos‖ e ―eventuais diálogos‖. Segundo observa Carvalho (2012) esta categoria narrativa não nos coloca a par dos pensamentos e sentimentos das personagens, tendo em vista que não consegue penetrar na mente deles. Esse método narrativo nos interessa, pois é um dos adotado em Sertanílias, conforme podemos verificar no capítulo intitulado O Ferrêro: Num canto mais escuro sentado em um toco de madeira escura também, depois de grande busca com os olhos, com muita dificuldade conseguiram divisar um rosto escuro tisnado, numa roupa escura sobre um fundo escuro e parede onde apenas ressaltaram em diferenciação de planos, dois olhos vermelhos quase que sanguinolentos e totalmente isentos de branco esclerótico. (MELLO, 2008, p. 119).

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Como se pode observar, no trecho acima, o narrador atém-se apenas a relatar os aspectos exteriores tanto do ambiente quanto do dono da casa que os viajantes estão chegando a fim de contratar o serviço do artífice. Os pensamentos e os sentimentos do dono da casa não foram revelados no texto. Finalmente, o último ponto de vista que Carvalho (2012) destaca como categoria apontada por Brooks e Warren (1959), é o do autor onisciente ou analítico. Este é ponto de vista mais recorrente no romance de Elomar. Trata-se da penetração do autor na mente dos personagens com o propósito de desvendar seus pensamentos e sentimentos. Carvalho (2012, p. 15) adverte-nos de que, sob a ótica de Brooks e Warren (1959), existem dois tipos de autores oniscientes, a saber: os dotados de ―onisciência neutra ou objetiva‖ e os de ―onisciência crítica ou interpretativa‖. Procuraremos desdobrar estes dois tipos de autores e ilustrar as distinções entre ambos a partir de exemplos retirados do corpus em análise. Vejamos como Carvalho (2012) explica estes dois tipos de onisciência; e como estas divisões podem ser proveitosas para entendermos a narrativa engendrada por Elomar. Na onisciência neutra ou objetiva, o narrador limita-se aos processos mentais das personagens, e revela quais são os sentimentos e/ou os pensamentos delas, contudo não emite juízo de valor sobre o que se passa na mente da personagem; na onisciência crítica e/ou interpretativa, por seu turno, o autor executa o mesmo método da primeira, não obstante, é acrescido nessa a sua opinião acerca dos pensamentos e sentimentos da personagem. No trecho a seguir, é possível perceber que prevalece o posicionamento do autor observador, pois o narrador limita-se a relatar os acontecimentos externos da cena. Na última parte da citação, ocorre a mudança de foco, e o narrador dotado de onisciência crítica passa a expor o sentimento que afligiu os peões e Sertano diante de um bestiário sertanejo. O estado de ânimo das personagens é revelado pelos vocábulos ―assombro‖ e ―mortificação‖: De repente, as águas foram se abrindo e apareceu do gigante, lombo e após, a enorme cabeça com a bocaça escancarada, fauces mostrando as por completo: A cobra grande. Indescritível. Foi o assombro dos peões e do próprio Sertano que mal conseguira disfarçar a mortificação. (MELLO, 2008, p. 134).

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5.6 A EXPRESSÃO CONCEITUAL DO AUTOR

Prosseguindo suas explanações acerca dos planos narrativos que o autor pode adotar no processo de criação, Carvalho (2012) ressalta que a seleção de um foco narrativo em uma obra pode revelar um ou mais planos do autor: Na condução da trama, é comum que o narrador, para fins de caracterização, trace motivos livres ou expressões avaliativas em que se oculta, ou mesmo que se entremostra, o conteúdo político e ideológico do autor. Esse discurso mensurado de valores denuncia o ponto de vista do narrador conforme o caso do autor que usa a expressão do personagem como sua própria afirmação conceitual. No entanto, outras camadas significativas podem ser desvendadas no ato da leitura. (CARVALHO, 2012, p. X).

Este aspecto abordado por Carvalho (2012) pode ser percebido em muitos trechos de Sertanílias, contudo aparece de modo bem mais significativo, no capítulo ―O Justo‖, quando Sertano discorre sobre muitos pontos das narrativas bíblicas para seus companheiros acerca do caráter irrepreensível de Jesus Cristo, o Deus encarnado para a salvação de todas as almas perdidas. Pelos relatos bíblicos, o vaqueiro culto procura exemplificar a índole mentirosa do Diabo cujo maior objetivo é levar ao fogo eterno as almas recalcitrantes à graça redentora de Jesus Cristo: ―Apenas lhe importa ser mentirosa quando se trata da natureza de Deus Pai Celestial [...] Se você lhe indagar quem é Jesus Cristo, certamente também ele retumbará: ‗Não sei desse homem, nunca ouvi falar dele‘.‖ (MELLO, 2008, p. 126). Nesse trecho, é flagrante o conteúdo religioso do autor a respeito da natureza das duas personagens bíblicas. Na medida em que o capítulo desenrola-se, o posicionamento do autor vai ficando mais manifesto. Como já foi apontado anteriormente, Sertano coloca-se na posição de detentor do discurso bíblico e faz em vários pontos do seu discurso ―afirmação conceitual‖ sobre Deus, Diabo e perdição eterna, a partir de sua ótica religiosa. O protagonista da trama procura meios didáticos de discipular seus companheiros de viagem: [...] toda essa podridão começou quando Adão pecou se afastando de Deus. Imagine ali, olhe o fruto do umbuzeiro, enquanto o fruto está preso no talo, à árvore, ele só faz crescer até a maturação. Se uma mão ou um vento forte o retira da árvore para um lugar outro qualquer, a partir desse instante, ele começa a perecer, até a putrefação. (MELLO, 2008, p. 148).

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Conforme já mencionado, Elomar é de família com formação religiosa protestante, durante a vida adquiriu o repertório dos textos canônicos sagrados. Sem dúvida, a linguagem erudita dos textos bíblicos a os hinários influenciaram-no: ―Ouvi desde criancinha o hinário da Igreja Batista. Ali tem música de Bach, Haydn‖ (BASTOS, 2006, p. 161). Desse modo, em Sertanílias, as influências dos textos bíblicos tornam-se explicitas a partir do posicionamento das personagens, sobretudo, Sertano. Todo o discurso do protagonista é enviesado no intuito de convencer os ex-salteadores de que o ―maligno‖, desde a fundação do mundo tem por principal objetivo afastar o ―Criador‖, Deus, de suas ―criações‖, os homens: Adão, que vivia no paraíso, foi afastado da árvore do Pai por um vento maligno vindo da boca de Satanás, abandonado-o em seguida fora do jardim num mundo tempestuoso de dor e sofrimento, sem receber a seivada arvores mãe que alimentava a sua alma antes da maturação. Razão esta porquanto veio a apodrecer no erro e no pecado. (MELLO, 2008, p. 149).

Os dois últimos trechos citados ratificam os aspectos concernentes ao projeto de doutrinamento bíblico revelado no discurso do protagonista. O ―fruto do umbuzeiro‖ é recuperado, neste último trecho, como metáfora de Adão, figura bíblica cuja representação, em última instância, acaba sendo a de todos os seres humanos que devido à desobediência foram derrubados da ―árvore‖. Esta seria a metáfora do próprio Deus, única fonte de redenção do Adão ―caído‖. O umbu representa o homem, o umbuzeiro é o próprio Deus redentor. Antes de prosseguirmos a discussão religiosa na construção da trama, faremos uma sucinta análise da presença do umbuzeiro como ilustração das explicações bíblicas de Sertano aos companheiros. No capítulo O Justo, a presença do umbuzeiro é fundamental para que o discurso da redenção cristã seja entendido por homens rudes, sem nenhuma instrução formal. Desse modo, é perceptível que Elomar recupera a própria metodologia que Jesus Cristo usava, segundo os relatos dos evangelhos, para doutrinar as multidões; pois muitas vezes, nos quatro Evangelhos são recuperados elementos da cor local dos povos para os quais os sermões eram dirigidos. Eles eram usados para fins de ilustrações, conforme o exemplo extraído do evangelho de Matheus, capítulo 4, versículo 18, texto atribuído a autoria de Jesus Cristo:

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Andando à beira do mar da Galileia, Jesus viu dois irmãos: Simão, chamado Pedro, e seu irmão André. Eles estavam lançando redes ao mar, pois eram pescadores. E disse Jesus: ‗Sigam-me, e eu os farei pescadores de homens‘. (BÍBLIA. N.T., Matheus 4-18).

O fragmento acima indica que Jesus em seu discurso religioso fez uso de um elemento próprio da comunidade de pescadores, o peixe, para ilustrar seu sermão. De modo semelhante, Sertano faz uso de um elemento da cor local sertaneja, o umbuzeiro para ilustrar o seu discurso. Esta árvore é comum nas paragens da caatinga baiana. Em outras obras, Elomar também recorre à imagem de um umbuzeiro. Ela se destaca por oferecer sombra e certo conforto a quem nela procura abrigo em períodos de inclementes dias calorosos no sertão do nordeste brasileiro. Essa planta possui uma resistência inestimável nas grandes e severas estiagens, e suas raízes têm a capacidade de armazenar muita água, porquanto em períodos de extensas secas, o pé de umbu é uma das últimas vegetações da caatinga a sucumbir perante o ―tirano astro‖, o sol. Não bastasse tudo isso, o umbuzeiro, em épocas de rigorosa seca pode ser útil como fonte de alimento, porque, quando todos os seus frutos cessam, as suas raízes produzem uma espécie de batata que pode ser consumida. Não é por acaso que Sertano usa a planta como metáfora da ―árvore da vida‖. Por isso, nossa análise do umbuzeiro, como metáfora do próprio Deus, assim como na Bíblia a videira é Deus, conforme relata o Evangelho de (João): Eu sou a videira verdadeira, e meu Pai é o agricultor.Nenhum ramo pode dar fruto por si mesmo se não permanecer na videira. Vocês também não podem dar fruto se não permanecerem em mim. Eu sou a videira; vocês são os ramos. Se alguém permanecer em mim e eu nele, esse dará muito fruto; pois sem mim vocês não podem fazer coisa alguma. (BÍBLIA. N.T. JOÃO. 15: 1-5).

Eis ai a relação entre as duas árvores: ambas são capazes de produzir vida abundante aos seus frutos enquanto estes estiverem ligados aos seus respectivos galhos/ramos. O discurso de Sertano torna-se didático a partir da substituição do fruto bíblico, (uva) (provavelmente) desconhecido dos seus companheiros para o (umbu). O umbuzeiro é algo familiar para o homem do sertão, no contexto, a uva seria algo desconhecido, por conseguinte, dificultaria a compreensão da mensagem de ―redenção‖ que Sertano pretendia transmitir aos homens. Em Fantasia Leiga para um Rio Seco (MELLO, 1981), obra que já analisamos

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aqui, Elomar dá ênfase às relações do sertanejo com a terra e faz referência ao umbuzeiro: Mais o sol malvado quemô os imbuzêro os bode e os carnêro toda a criação tudo o sol quemô Cadê os pé do imbuzêro qui flora todo ano nas baxada e nas vereda mana mia cadê os pé d‘imbu meu mano adeus pé dos imbuzêro

Voltando ao discurso religioso de Sertano, percebemos que utilizando o umbuzeiro como ilustração, seu projeto evangelístico surte efeito, e pelo visto, os companheiros dele acabam por entender a metáfora do fruto e da árvore. O trecho a seguir revela que efetivamente, Terênço, Cilistrino, Tinga e Caçula entenderam que Deus (a árvore) é a única possibilidade de remissão de seus pecados. Depois de Sertano discorrer sobre a ―queda do primeiro homem, Adão; o ex- salteador, Cilistrino conclui: - É iss‘ merm‘patrão! Inconto‘ o imbu tá agarrad‘ no gai el‘ num purdece, só cresce pruqui êl‘ veve da dicumiduria qui o pé de árr‘ dá inté madurá.‖ (MELLO, 2008, p. 148). Nesse sentido, Elomar recupera na figura da personagem Sertano, o cavaleiro medieval que entre muitas funções incluía a de disseminar as doutrinas cristãs a todos os povos com quem mantivesse contato durante a sua jornada. O propósito do cavaleiro medieval durante as ―Grandes Cruzadas‖ era aniquilar as doutrinas nefastas dos gentios à fé dos cristãos. No capítulo ―O Justo‖, os diálogos desenrolam-se pelo discurso direto. As falas das personagens são demarcadas por rubricas, pequenos comentários, ou pequenas frases que indicam o ânimo e/ou a fala de personagem durante o diálogo. Esta técnica, recuperada como recurso narrativo pelo autor, costuma ser usada no roteiro do cinema ou nas peças teatrais. Pela rubrica, é possível o autor assinalar os gestos ou movimentos dos atores na cena: vejamos a inserção das rubricas em alguns pontos do diálogo entre Sertano e seus companheiros de viagem:

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Cilistrino - Meu patrãozin, o que é um Just? Sertano - Por que quer saber? ― Pru qui is‘ mim dêxa muint‘ purtubado ― É todo aquele que se apresenta perfeito diante deDeus. [...] Cilistrino bem intrigado - Mas cuma se nóis tud‘, nium de nóiscarrega um farel‘ de lain de just‘. Tinga - Intonc‘ que dizê qui Adão é cum‘ um imbu que foi cuid‘ pelo Tiôs iantes de madurá? Caçula: ― Aina verdo! [...] Sertano acudindo ante o embaraço - Adão, que vivia no paraíso, foi afastado do pai por um vento maligno vindo da boca de Satanás [...] Tinga mais que interessado - intonç‘ Sertano― Então, ele, Filho de Deus, o Senhor dos Exércitos [...] desceu ao monturo, à região pantanosa, a casa da concupiscência, à mansão da dor e morada vergonhosa da luxúria e da morte e veio habitar num corpo perecível sujeito a toda sorte de dores e enfermidades por longos trinta e três anos [...]. (MELLO, 2008, p. 143-150).

Conforme temos salientado, o uso da rubrica, no lugar de um narrador convencional, indica mais uma vez o caráter híbrido do texto de Elomar no romance Sertanílias. Pelo discurso direto é possível também perceber as expressões conceituais cujos processos argumentativos são engendrados, marcando o ponto de vista do autor camuflado no ponto de vista da personagem.

5.7 O DISCURSO RELIGIOSO DE SERTANO

A trama de Sertanílias emerge de um contexto de produção ficcional composto por uma visão narrativa tríplice em que autor, realidade histórica e tradições (religiosas e culturais) dialogam-se, complementam-se e em alguns casos, refutam-se. Este processo dialógico ajusta-se e toma forma ficcional. Neste universo da ficção de Elomar, o mundo real é sempre o ponto de partida, mas nunca o suficiente para abarcar toda a gama do imaginário que o permeia, pois este mundo, criado por ele, repousa sobre as bases de uma cultura plurissignificativa que a um só tempo abrange aspectos de uma religiosidade pautada em princípios doutrinais cristãs protestantes, injunções de cunho folclórico nordestino e histórias da tradição ibérica. Tudo isso forma uma linguagem provida por teor moralístico e/ou religioso. Conforma assinala Costa Melo:

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Elomar tem uma relação estreita com a religião. Homem místico e temente a Deus- dono de uma fé inabalável- É formado sob a doutrina do protestantismo luterano. Embora não mantenha vínculos institucionais. (COSTA MELO, 1989, p. 51).

A produção artística de Elomar não está à mercê de uma classificação polarizada e, por conseguinte, excludente: popular e erudito. Sobre isso, Costa Melo (1989, p. 56) ressalta: ―Elomar como erudito não se deixa apreender por categorização que se querem absolutas e excludentes, como por exemplo, as tipificações sociológicas cantor/ cantador e popular/erudito.‖ O que se nota no conjunto da obra do referido autor é que seu ―discurso fala daquilo que é do outro, (muitas vezes, dos vaqueiros, peões, cantadores iletrados) mas fala de dentro‖, ele é porta-voz de um ―sub campo intelectual‖ debruçado sobre o campo sertanejo. Nas palavras de Costa Melo (1989, p. 56): ―ele vai lá, ele vive lá‖, conhece tudo não por um olhar de pesquisador, mas por experiência. Com efeito, Elomar não fala do sertão e nem do sertanejo ―como um intelectual debruçado sobre o universo sertanejo‖. Ele não está atrelado a esta figura de pesquisador, de estrangeiro que analisa os hábitos e costumes do povo sertanejo, visitante com ―sotaque de visitante e postura de pesquisador‖. Como frisa Costa Melo (1989, p. 57): ―ele conhece a vida sertaneja, seus problemas, sua cultura, não por informações, por fazer parte dela.‖ Então, não é pertinente compreendê-lo como um intelectual do sertão, antes, é procedente entendê-lo como ―um artista do sertão‖. Embora, muito o desagrada a designação de ―artista‖. Em consonância com o posicionamento de Costa Melo (1989), entendemos que Elomar busca revelar o sertão não a partir de conhecimento enciclopédico. A intimidade que o referido escritor tem em construir um sertão ficcional, com muitas peculiaridades, advém de seu contato cotidiano com a terra inóspita, com os vaqueiros, os lavradores e trabalhadores braçais acostumados com o cotidiano impiedosos de uma região historicamente castigada por extensos períodos de estiagem e pela falta de assistência político-econômica à população de baixa renda que vive pelas paragens do sertão baiano. A linguagem, as crenças e as manifestações culturais às quais estão inseridas nos diálogos de suas personagens são elementos que fazem parte de seu cotidiano. Histórias e expressões vocabulares ditas de maneira espontânea, tudo isso é acoplado ao universo ficcional do escritor. Muitos de seus personagens foram inspirados em relatos que quando

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criança ele ouvia dos tropeiros que passavam pela fazenda de seus pais. Em seu processo de criação, muitas vezes, colhe o material de suas obras, e depois, transforma-o em ficção. Devemos observar, no entanto que esta realidade do sertanejo não é transposta para a ficção com a ―crueza‖ do sertão real. Os ideais do homem e do sertão são incorporados à poética de Elomar pela junção do erudito e popular, do sagrado e do profano, dos mitos universais e lendas brasileiras. As injunções morais e cristãs reverberam nos diálogos das personagens, especialmente, do protagonista Sertano. O tropeiro, o cantador-violeiro, o cavaleiroandante, o retirante e os andarilhos, todos recuperam a imagem dos peregrinos que circulavam pelo sertão nos primeiros anos de suas ocupações. Todos estes tipos, restaurados na obra de Elomar, estão em constante busca de algo que lhes traga esperança de dias melhores. Esta busca pode ser motivada pelo ―bem‖ ou pelo ―mal‖, mas existe. No caso do protagonista, há uma busca ostensiva pela salvação dos irmãos cativos. A saga de Sertano é impulsionada por aventuras constantes, marcadas por encontros com seres de origem humana duvidosa, ou então por ambientes que parecem pertencer a outras eras. Nas suas andanças, ele corta estradas cujos destinos vão desde castelos medievais, casas de enigmáticos seres até as margens do Rio São Francisco onde se encontra com o príncipe de um povo extinto há milhões de anos. O motivo principal de suas andanças, pelo ―sertão profundo‖ é salvar seus irmãos, mas como temos visto, enquanto caminha para alcançar este propósito, não perde a oportunidade de disseminar para todas as pessoas com as quais tem contato a fé cristã com bases na doutrina protestante. É importante pontuarmos, no entanto que esta fé unicamente pautada na salvação em Jesus Cristo parece prestes a sucumbir, inúmeras vezes diante da força da fé em entidades da tradição pagã que povoam o imaginário do sertanejo. Em O Sertão do Velho Chico, a pesquisadora Edyla Mangabeira Unger aponta as possíveis causas do sincretismo religioso que acomete povo sertanejo: O sincronismo religioso do brasileiro persiste, mesmo entre as classes mais privilegiadas. É um misto de catolicismo trazido de Portugal pelos descobridores e dos rituais africanos que os escravos transmitiram ao nosso povo e aqui criaram novas raízes, sobretudo no litoral. O trabalho inicial de catequese confiado aos jesuítas no período colonial, limitou-se quase exclusivamente aos índios. Os

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ensinamentos da igreja eram transmitidos dos pais aos filhos no seio da religiosidade sem base sólida, a que se juntou toda sorte de superstições e crendices que criavam facilmente raízes no solo árido da alma sertaneja, imbuída de misticismo, ligada à natureza e afeita a solidão [sic].(UNGER, 1978, p.48).

O sincretismo religioso é uma realidade bem presente na vida da maioria dos sertanejos até hoje. Diante do sincretismo dos seus companheiros de viagem Sertano não desiste de convencê-los de que um mundo de justiça e paz só é possível para as pessoas cujos corações rendem-se unicamente a fé em Jesus Cristo. Só estas podem resistir aos ardis do ―tinhoso‖ e não se desvirtuarem dos caminhos da salvação. Desse modo, tudo em Sertanílias passa pelo crivo da fé nos textos bíblicos. Elomar concede à sua personagem Sertano o papel de disseminador da fé genuína, única capaz de oferecer um mundo mais justo e digno aos filhos de Deus. Se, por um lado, o protagonista não ignora a existência desse sincretismo de que falamos, por outro, ele faz questão de aniquilá-lo, dando às crenças populares do sertão o papel de impedimento da perfeita comunhão entre Deus e os homens. Em Sertanílias, o protagonista é o detentor do discurso bíblico e dele se apropria para convencer os ex-salteadores de seus pecados e chamá-los ao arrependimento. Em A Ordem do Discurso, Michel Foucault (1999) supõe que em toda sociedade a produção do discurso é submetida a um controle, uma seleção, uma organização e redistribuição. Partindo desse posicionamento, é possível observarmos em certa medida que o ―discurso‖ de Sertano tenta inibir as atitudes religiosas de seus companheiros de viagem. A partir da seleção de exemplos que se referem aos atos sobre a vida de Jesus. Ele procura convencê-los da importância de sermos continuamente ―ramos‖ ligados à ―árvore‖ para que não venhamos apodrecer. Neste sentido, a figura do protagonista revitaliza a do cavaleiro medieval que disseminava a fé cristã. Ele cumpre o papel de ―selecionar‖ e ―redistribuir o discurso‖ da redenção pelo sacrifício de Jesus. Para Sertano, permanecer ligado a ―arvore‖ é a única possibilidade de reconciliação com o ―Criador‖. Esta é a única ―verdade‖ para o protagonista. Sob a ótica de Foucault (1999, p. 16), a força da verdade organiza-se em torno de contingências históricas, que não são apenas modificáveis, antes, estão em perpétuo deslocamento, sustentadas por todo um sistema de instituições que as impõem e as reconduzem. Foucault (1999), explica que semelhante a outros

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sistemas de exclusão tais como, separação, sujeição e segregação, a vontade de verdade apóia-se sobre um suporte institucional. Na Idade Média, o suporte institucional que se apropriará do discurso revelando a vontade da verdade é a Igreja Católica. No contexto medieval, havia a rarefação do sujeito, ou seja, só entrava na ordem do discurso o indivíduo que atendesse algumas exigências discursivas e se mostrasse qualificado a manter, de acordo com as circunstâncias, a manutenção, modificação ou apropriação dos discursos. Era necessário que ele possuísse os mecanismos de controle e coerção do discurso. Sendo assim, só os sujeitos que tinham as preceptivas necessárias para interpretarem os textos sagrados tinham seus discursos reconhecidos como válidos. Em Sertanílias, a figura do protagonista atende a todos os critérios de um sujeito capaz de fazer parte desta dita ―ordem do discurso‖. Ele é um ―vaqueiro culto‖, exímio leitor de todos os poetas latinos, poliglota e profundo conhecedor dos textos sagrados. Sendo assim, no decorrer da narrativa, o discurso de salvação para os pecadores e a promessa de um mundo perfeito, pós-morte para os fiéis são algumas ideias proferidas por ele e aceitas pelos quatro ex- salteadores cujos intuitos eram os mais terríveis possíveis antes de conhecê-lo. Perante tais constatações, podemos compreender as sociedades do discurso, os grupos doutrinários e as apropriações sociais como entidades às quais garantem a distribuição dos sujeitos que mantém a ordem discursiva. Como temos afirmado, em Sertanílias, o protagonista representa esse ―sujeito qualificado‖, todavia, seu discurso não é verticalizado para os vieses da liturgia Católica, como na Idade Média, contudo isso não lhe impede de propagar à fé cristã sob base do protestantismo, conforme podemos verificar na sua conversar doutrinária quando fala a respeito da representação, mãe de Jesus: Maria, a Virgem Mãe do Senhor daqui da terra, a mãe do Filho do homem. Alguns anos após a partida d‘Ele para o seu lugar nos altos céus, ela morreu, foi sepultada e está descansando num lugar especial aguardando a volta do Seu Salvador para está com Ele novamente e para sempre. (MELLO, 2008, p. 243).

Conforme exposto no trecho acima, percebemos que os princípios doutrinários apresentados por Sertano aos seus companheiros são distintos em alguns pontos dos princípios disseminados pela Igreja Romana que tem por dogma de fé a ascensão de Maria aos céus. Sertano não acredita na intercessão de Maria

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para o homem, mas na proteção constante do ―Espírito Santo‖ de Deus: Antes de sua partida, por muitas vezes, Ele asseverou aos seus discípulos que, após sua morte, ressuscitaria em um corpo especial isto é, incorruptível, iria para o altíssimo e ali se sentaria ao lado do Pai. Então enviaria o Paráclito- o Espírito Santo- para consolo e para nos conferir autoridade sobre demônios, doenças, enfermidades, serpentes, escorpiões e sobre toda criação. Sobre o bem e sobre o mal. (MELLO, 2008, p. 242).

Durante seu diálogo, Sertano é indagada por um de seus companheiros, sobre a autoridade que os filhos de Deus têm sobre o diabo, o ―Tiôs”, conforme podemos verificar nos trechos dos diálogos que seguem: Cilistrino - inté o tiôs? ― Ainda mais sobre este e suas legiões de demônios. Terênço: Maiso iss‘ Êl falô só aspena pros dissip‘? ― Não. Para estes, para mim e para todo aquele que compõe o corpo da sua Igreja aqui na terra. Cilistrino: Coli ingrejaa dos crento ô a dos catolco? ― A dos fiéis, aqueles que temem, obedecem, adoram, servem e louvam (tendo o Senhor Jesus como seu salvador único) ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo e a ninguém mais [sic]. (MELLO, 2008, p. 242-243).

Sertano, priorizando o discurso bíblico, concebe apenas como integrante da ―Igreja de Cristo‖ aquelas pessoas que só reconhecem Jesus Cristo como única fonte de salvação. Como vimos, repele a autoridade que os cristãos católicos atribuem a Maria como um ser capaz de intervir na salvação da alma dos homens. No

decurso

de

suas

andanças,

Sertano

estabelece

parâmetros

comportamentais dos quais as recompensas serão colhidas num mundo vindouro que nada tem a ver com as agruras encontradas nesse mundo, principalmente, nas assolações encontradas em algumas partes do sertão. Só os fiéis serão poupados dos apuros vindouros: fome, peste, calor intenso, apenas a ―Noiva‖ escapará de tamanhos infortúnios reservados para os últimos dias: – A Noiva do Senhor dos Exércitos, a Igreja do Senhor Jesus, isto é, os crentes, os Filhos de Deus. Os que fazem a Sua vontade e Lhe são fiéis, os homens de boa vontade. (MELLO, 2008, p. 40).

A Terra, corrompido pelo pecado, é apenas parte de uma etapa da caminhada do homem, para outro mundo, pleno de regozijos. Mundo em que, o único rei é Deus e os homens fiéis aos seus princípios: seus eternos súditos. Como vimos em Visão do Paraíso, Sergio Buarque de Holanda discorre sobre a queda do homem e a

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corrupção do mundo, e enfatiza que esta ideia está arraigada no ―pensamento e sentimento cristão‖, bem como nas ―Sagradas Escrituras‖ (HOLANDA, 2000, p. 229). Em linhas gerais, a teoria da decadência do homem e da natureza corrompidos pelo pecado, é uma temática constante na Idade Média. Segundo destaca Sérgio Buarque de Holanda: A Constante reiteração da Ideia de uma Natureza em declínio ou francamente corrupta pelo contágio do Pecado Original, pode sugerir, mesmo em obras de pura imaginação, que esse pensamento seria largamente partilhado, e tanto pelos autores como pelos leitores de tais obras. (HOLANDA, 2000, p. 231).

Desse modo, percebemos que Elomar recupera os paradigmas do pensamento medieval no que concerne a degradação do homem como decorrente da desobediência perante Deus, o seu criador. O ―pecado original‖ praticado por Adão causou a morte espiritual da criatura. A ressurreição do espírito humano ocorreu com a obediência do ―segundo Adão‖, o filho de Deus. Em Sertanílias, percebemos que as concepções de paraíso como galardão aparecem em concordância com o pensamento de São Tomás de Aquino. Segundo Sergio Buarque, o filósofo rejeita a possibilidade de um sítio do paraíso terrestre. Para ele, a redenção do homem é de cunho ultraterreno, pois, efetivamente, não há um paraíso terreal: ―O próprio São Tomás de Aquino entendia alegoricamente a teoria eminentíssima do jardim.‖ (HOLANDA, 2000, p. 197). Nesse sentido, o céu é o lugar de redenção, a terra é corrompida pelo pecado, por isso, não merece apego. Semelhante ao discurso de Santo Agostinho, o posicionamento religioso de Elomar concebe a terra como parte transitória da vida que Deus preparou para seus filhos. O verdadeiro regojizo do cristão está na pósmorte. Isto está posto não apenas em Sertanílias, mas também em Fantasia Leiga para um Rio Seco, quando o retirante que caminha sozinha pelo sertão fugindo da seca, depois da morte da mulher e do filho, consegue vislumbrar este mundo sem dor, um ―mundo glorioso‖. A tragédia já anunciada no início do poema efetiva-se no último canto quando transpassado de fome, sede e cansaço o retirante contempla seus entes queridos descansando na glória de Deus: Vejo o céu se abrino Ela e o minino Tão drumino

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Na Santa Glória de Deus

O céu para o sertanejo aparece como parada final, como recompensa por nunca ter perdido a fé em Deus guiando seus caminhos até um mundo perfeito, o paraíso celeste.

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6 AS RECORRÊNCIAS DO DUPLO NA CONSTITUIÇÃO DA TRAMA

Nada menos de duas almas. Cada criatura humana trás duas almas consigo: uma que olha de dentro pra fora, outra que olha de fora para dentro [...] Quem perder uma das metades, perde naturalmente metade da existência. Machado de Assis

Ao longo da história da arte, o tema do duplo é bastante recorrente não apenas nas artes literárias, mas também em outras criações artísticas em cujas construções evidenciam a presença de fantasma, imagem no espelho, sombra, sósia entre outros. Conforme afirma Maria Luiza Guarnieri Atik: A temática do duplo, tão explorado por escritores e artistas da modernidade, sempre esteve presente na cultura ocidental e suas manifestações na literatura e nas artes plásticas variam de acordo com o momento histórico e o pensamento filosófico (ATIK, 2011, p. 249).

É importante ressaltar que o tema do ―desdobramento do eu‖, vai muito além do campo das criações artísticas, também é recorrente em distintas áreas de conhecimento como Psicanálise, Psicologia, Filosofia, entre outras. Podemos assim, então entendê-lo como uma categoria multimodal. Particularizando o duplo para nossa área de interesse, a saber, a Literatura, é importante assinalar que este tema começa a ser recorrente apenas a partir do século XIX com o advento do Romantismo. São as narrativas de cunho fantástico as primeiras a tratarem do assunto. Haja vista La morte amoureuse de Theóphile Gautier (1836 apud TODOROV, 2004) que narra a vida dupla do monge Romuald, jovem dividido entre as obrigações celibatárias durante o dia e suas visitas apaixonadas durante a noite à casa de Clarimond, uma cortesã supostamente imortal. Conforme assinala Todorov:

La morte amoureuse é a historia de um monge que no dia de sua ordenação apaixona-se pela cortesã Clarimonde. Depois de alguns encontros fugidios, Romuald assiste a morte de Clarimonde. A partir desse dia ela começa a aparecer em seus sonhos. Esses sonhos tem aliás uma propriedade estranha: em vez de se formarem a partir das impressões do dia, constituem uma narrativa contínua. Nestes sonhos, Romuald não leva mais a existência altera de um monge, mas vive em Veneza, no fausto de festas ininterruptas. (TODOROV, 2004, p. 58).

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A narrativa de Theóphile Gautier (1936apud TODOROV, 2004) é um dos exemplos clássicos que podemos compreender como a manifestação do duplo. Romuald sente-se confuso ao perceber que sua existência desdobrou-se em duas, um monge durante o dia, um jovem dissoluto, entregue às paixões de uma cortesã durante a noite. Neste capítulo, temos o objetivo de analisar a recorrência do duplo, a fim de apreender seu desdobramento e o sentido que ele adquire na narrativa Sertanílias. Com bases nos fundamentos dos textos reunidos no livro Leituras dos Duplos (LOPONDO; ALVAREZ, 2011), procederemos à análise do capítulo ―Un Chavalier Dans La Tempête‖ e ―Anactória‖ e nas entrevistas em que os fragmentos aparecem intercalados à narrativa. De acordo com os posicionamentos de Lopondo e Alvarez: Na cultura ocidental, o tema do duplo tem suas raízes tanto na Antiguidade Clássica, encontrando lugar privilegiado nos escritos de Sófocles, Eurípedes, Plauto e Ovídio [...] quanto na cultura judaicocristão, especialmente nos textos bíblicos. (LOPONDO; ALVAREZ, 2011, p.7).

O romance de Elomar transita tanto pelas raízes clássicas quanto pela linguagen vinculada ao campo judaico – cristã. Em Sertanílias, em alguns momentos percebemos que há uma tentativa de desdobramento do eu a partir da figura do protagonista Sertano; que se divide em outros ―eus‖ travestidos da figura de outras personagens: o Cavaleiro da tempestade, o Elomar entrevistado e o Elomar entrevistador. O autor não faz muito caso de separar para o leitor o posicionamento dele enquanto escritor e o pensamento de Sertano, sua personagem. As entrevistas aparecem misturadas à trama em vários pontos. Do nosso ponto de vista, é imprescindível entender tanto o entrevistado quando os entrevistadores como personagens de Sertanílias, mesmo que apareçam nomeados como pessoas reais, como é o caso do Elomar entrevistado pelos jornalistas que estão inseridos no romance e, o caso do Elomar entrevistador e entrevistado, no capítulo ―Anactória‖. A partir dos pressupostos de Cândida Vilares Gancho podemos compreender com maior clareza a personagem como entidade ficcional:

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A personagem ou o personagem é um ser fictício que é responsável pelo desempenho do enredo; em outras palavras, é quem vai fazer a ação. Por mais real que pareça a personagem é sempre invenção, mesmo quando se constata que determinados personagens são baseados em pessoas reais. (GANCHO, 1991, p. 14).

No decorrer da discussão desse capítulo, a respeito da recorrência do duplo em Sertanílias, voltaremos a expor de que modo a duplicação de Sertano ocorre nas entrevistas. Antes analisaremos a recorrência do desdobramento do ―eu‖ em Un Chavalier Dans La Tempête. No referido capítulo, a construção do duplo ocorre na figura de um cavaleiro cuja aparição sucede em uma noite tempestuosa quando este procura abrigo no casarão de uma senhora aparentemente desprovida de companhia masculina. O texto sugere que a referida senhora encontra-se em casa em companhia apenas de algumas donzelas protegidas em suas alcovas. O capítulo tem seu início mediado por um aparente narrador que anuncia a presença de uma espécie de ―sósia de Sertano‖. Eis o início do capítulo: ―Do lado de fora belo e estranho cavaleiro, uma espécie do sósia de Sertano. Só com uma diferença montando um corcel negro e sem portar qualquer tipo de arma na noite tempestuosa‖ (MELLO, 2004, p. 91). A partir do trecho citado, compreendemos que, fisicamente, Sertano é figura bela e possui comportamento estranho, pois assim é o seu sósia. Este tem uma montaria distinta do primeiro e também é desprovido de armas, ao contrário de Sertano que porta um ―facão cimitarrado‖. Tomando como ponto de referência o posicionamento de Carla Cunha podemos entender o duplo como: ―[...] tendo sido originário a partir de um indivíduo, adquire qualidade de projeção e posteriormente vem se consubstanciar numa entidade autônoma que sobrevive ao sujeito do qual fundamentou a sua gênese.‖ (GOLÇAVES NETO, 2001 apud CUNHA, 2009, p. 25). Voltando à análise do capítulo, em nenhum momento, há um encontro entre Sertano e seu sósia, aquele só se limita, ao lado de seus companheiros, protegidos em uma rancharia, a assistir ao ato do outro, cujo discurso está voltado à senhora que se mostra cautelosa quanto aos perigos de ―bandidos‖ que vagueiam procurando a quem possam ―fazer mal‖. O início do capítulo faz-se por dêitico adverbial de lugar ―do lado de fora‖, que situa o espaço em que o diálogo passará entre a senhora e o cavaleiro. A partir dessa localização, é possível perceber que o cavaleiro está separado da senhora e tenta persuadi-la a dar-lhe abrigo. Sertano e

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seus companheiros assistem a um canto os atos do cavaleiro, sem que nenhum contato seja estabelecido entre Sertano e o dono do corcel negro. Logo se vê que ambos são personagens autônomas em suas ações, mas em se tratando da forma física, o segundo seria prolongamento do primeiro. A senhora não toma o sósia de Sertano por pessoa confiável, indefere o pedido de abrigo, e para ratificar sua negativa, alega: ―em forma de anjo os demônios com ardis mais medonhos nos tenta enganar.‖ (MELLO, 2008, p. 90). Aqui aparece um traço bem recorrente na construção do discurso do duplo, o caráter opositivo entre o eu e seu desdobramento, a sua duplicação. Esta oposição está explícita pelo uso dos vocábulos anjo/demônio. O cavaleiro apresenta-se como alguém bem intencionado cujo propósito é apenas buscar abrigo durante a tempestade, não por fraqueza sua, mas pelos temores do seu animal; por sua vez, a senhora não se convence; tomada por uma ―temeridade‖, recusa-se abrigar o viajante que define a si mesmo e o seu cavalo como ―guardiães da vida‖. Para o cavaleiro, a negativa de guarida a ambos configurou-se como um ato negativo para: ―a Fé, a Esperança e a própria Caridade‖. A possível suspeita da senhora revela que as referências entre Deus e o Diabo serão sempre duais. Sob a ótica cristã, o Diabo sempre será o ―anverso‖ de Deus, o oponente do projeto de reconcialição entre o ―Supremo Criador‖ e sua vulnerável criação, o homem. Para aniquilar os filhos de Deus, o Diabo é capaz de arquitetar os mais diversificados ardis, inclusive passar-se por mensageiro da fé, esperança e caridade divina. Com efeito, para Luciano de Souza: [...] a presença de Satã está profundamente arraigada na mentalidade ocidental [...] desde os primórdios do Cristianismo o Diabo representa um dos dogmas do pensamento filosófico-religioso que erigiu as estruturas do mundo ocidental. (SOUZA, 2001, p.150).

Fica evidente no percurso da análise que todo o argumento sobre a separação entre Deus e o homem provém da malignidade inerente ao Diabo. Posto isto, vemos a construção argumentativa do romance pautada na visão teológica cristã enraizada na cultura ocidental. No capítulo do cavaleiro da tempestade, a misteriosa figura apresenta-se como mensageiro de algo nobre e certamente conhecido da senhora do interior do casarão: a ―Palavra do Sagrado Mestre‖. Isto, não obstante, parece ser aos olhos da mulher um possível ardil de um anjo das trevas travestido de anjo de luz.

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O corcel negro, Coronel, também aparece como a duplicação de Russo Pombo, cavalo de Sertano; ambos transportam os seus donos por ―tempos, espaços e eras‖. A partir das descrições sobre Coronel, percebemos que ele tem ―medo‖ de raios e trovões. Tais temores não são atribuídos a Russo Pombo, as definições feitas dele revelam sempre coragem diante dos desafios enfrentados por Sertano. Nesse sentido, há também um antagonismo nas atitudes dos dois animais, entendidos aqui como prolongamento de seus donos. É pertinente assinalar que na descrição feita sobre o cavaleiro da tempestade e seu cavalo ocorre uma espécie de ancestralidade indefinida cronologicamente de algo do qual não pode ser contado por séculos, temporalidade. Quanto à dimensão mensurável, esta parece ser anulada, cedendo lugar à ideia de que o tal cavaleiro e seu corcel são criaturas envoltas em uma atemporalidade mítica: ―O coronel que transporta-me através de tempos, espaços e eras.‖ (MELLO, 2008, p. 90). Nesse sentido, cavaleiro e cavalo são idênticos também respectivamente a Sertano e a Russo Pombo. Semelhantes ao primeiro, este também viaja por eras e tempos nas asas de seu cavalo. Em suas peregrinações pelo sertão profundo, uma mulher pediu-lhe que a levasse consigo ao que ele retrucou: ―Russo Pombo é alado, se vais na garupa ele não poderá abrir asas [...] às vezes alçamos vôos, sempre que preciso.‖ (MELLO, 2008, p. 22). Vê-se que os dois cavaleiros movimentam-se em suas respectivas montarias rumo a uma bifurcação temporal. Observa-se que o tempo da enunciação é um tempo irrestrito, pois o espaço narrativo ultrapassa a dimensão física e adentra a dimensão simbólica cronológica e espacialmente indefinida.

6.1 O DUPLO: A EXTENSÃO DO SUJEITO DESDOBRADO

Podemos compreender a partir desses pontos abordados acima que o duplo define-se como o desdobramento do ―eu‖ cuja personalidade resultante é algo contraditório de sua gênese. O elemento duplicado é a antítese do ser duplicador, porém de um modo ou de outro este caráter inverso do duplo não é suficiente para destruir, entre os duplicados, a ―harmonia‖ e a ―cumplicidade‖. O duplo só tem sentido diante de seu original. É este último que dá sentido a sua extensão de sujeito desdobrado. Desse modo, entendemos que há uma relação de subordinação entre os dois ―eus‖, Sertano e o seu sósia são dois sujeitos fisicamente iguais,

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divididos por duas atitudes antagônicas. O primeiro toma a posição de observador e o segundo de um viajante que pede abrigo em noite tempestuosa. Sob as perspectivas da psicanálise percebemos nesta cena a expansão da ―ideia de fragmentação da identidade‖. Sertano um cavaleiro que diante da tempestade procura abrigo em uma rancharia, o seu prolongamento, seu duplo procura insistentemente abrigo junto à senhora, aparentemente, sem a proteção de um cavaleiro no interior de sua casa. De acordo com Carla Cunha (2000 apud ATIK, 2011, p.250-251) existem dois tipos de duplo, o endógeno e o exógeno. O primeiro, enquanto extensão do sujeito partilha com o segundo ―traços evidentes que exaltam este seu estatuto de sombra‖. Há, pois, entre ambos, ora uma ―relação de harmonia e cumplicidade‖, ora uma relação ―bilateral de adversidade e oposição‖. O duplo exógeno por seu turno estabelece entre os ―dois eus‖ o compartilhamento da ―identificação anímica‖, nesse tipo de duplicação o ―eu se vê no outro como se este outro fosse um espelho que lhe devolve a sua imagem‖. O segundo aspecto de abordagem do duplo em Sertanílias aparece na relação complexa entre a personagem Sertano e a suposta presença do autor Elomar como protagonista das entrevistas, no interior do romance, com um jornalista chamado José Newmanne. Dentro da estrutura da entrevista, é possível observarmos reiteradas vezes a relação de contigüidade entre ambos. Deita-se um no catre, levanta-se outro. Não é demais lembrarmos que Genette (2010) concebe as entrevistas como parte paratextual do suporte da arte. Elomar não segue este princípio, inserindo-a livremente na parte interna do romance, junto à narrativa. A nosso ver, esta inserção nos desobriga a compreender tais entrevistas como pertencentes ao mundo real, sendo assim, tanto os jornalistas quantos os entrevistados são entendidos nesta análise como personagens ficcionais. Do ponto de vista estético e literário poderíamos entender esta contigüidade entre ambos como o desejo de revelar o nivelamento de pensamento ideológico entre o mundo do autor e o do protagonista. Assim, Sertano seria a projeção do modelo de mundo que Elomar concebe como referencial de perfeição, a saber, o mundo medieval. Esta seria uma das hipóteses para se compreender a opção do autor em colocar sua figura e a do protagonista em um mesmo lugar, ao mesmo tempo, promovendo a substituição de um pelo outro, a partir do deslizar da lente da câmera sob os corpos de ambos, conforme aparece neste exemplo:

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Câmera de frente para o jornalista Newmanne, apanhando Elomar, deitado no catriclínio, onde e na mesma posição em que estava Sertano. E apanhando a mesa com toda a tralha de música, instrumentos, partituras etc. Pelas costas, mostrando as botas, com os pés estirados. (MELLO, 2008, p. 27, grifo nosso).

Percebe-se no trecho que a imagem do ―suposto autor‖ é substituída gradativamente pela da personagem deitada no catre. Isso nos deixa a possibilidade de entender o entrevistado como uma personagem de ficção que se duplica na imagem do próprio protagonista da história. A própria estrutura do livro apresenta este prolongamento entre Sertano e o ―autor‖, entretanto parece que o próprio Elomar não faz muito caso de distinguir um do outro no interior de sua trama. Estruturalmente no texto, não há uma quebra entre as ações de Sertano e a inserção da entrevista. Mais uma vez podemos perceber esta relação de contigüidade espacial entre Sertano e ―Elomar‖, novamente o roteiro prescreve a substituição da imagem de um pelo outro: Ao começar este parágrafo, a câmera divaga pelos currais, apanhando gado, peões, campos até se esbarrar em Sertano já recostado no lugar de Elomar, na mesma posição, com ênfase nas botas. Sertano se levanta dirigindo-se à porta, vai saindo do clarear do dia, montando Russo Pombo. (MELLO, 2008, p. 3839,grifo nosso).

A partir do trecho citado, é impossível não concebermos o entrevistado e o jornalista como personagens integrantes da trama. Há uma contigüidade entre autor e personagem a partir do catre. É lá, deitado (no catre) que as cenas mudam entre um e outro, e a narrativa evolui ou pára. Se tais personagens não fazem parte da trama a ponto de interferirem nas ações das demais personagens, nela (na trama), também não são neutras, pois alguns pontos de vistas do entrevistado são coincidentes com o ponto de vista de Sertano. Conforme podemos verificar, especialmente, no que tange ao seu posicionamento religioso: Tudo que faço fá-lo (!) por conta da intuição pura e dos dotes a mim presenteado por Elohim [...] Lá atrás, escolhi o que cantar. Decidi que cantaria primeiramente em louvor de quem me ensinou a cantar, isto é meu Deus Criador, Javeh, o Senhor dos Exércitos de Israel. (MELLO, 2008, p. 105-106).

Este é um trecho da entrevista que no romance aparece atribuído ao autor de

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Sertanílias, e não à sua personagem protagonista. Agora veremos um trecho do último capítulo intitulado ―O Combate‖. Trata-se do diálogo entre Sertano e o Mestre budista que mantem seus irmãos ―cativos‖ na doutrina budista. Nele, o protagonista assume o mesmo posicionamento religioso do autor: Brahma, o vosso ser supremo, é um ser bastante etéreo e distante da criatura humana. Elohim, Jeová, Emanuel, nosso Deus, é infinitamente mais humano. Ele conversa com o homem, discute e até mesmo autoriza este, nos autoriza a prová-lo e testá-lo. (MELLO, 2008, p.263).

Como podemos observar em ambas as citações, há um pensamento uníssono acerca do relacionamento de Deus com os homens. Ele não é apenas o criador, mas também é um ser que dialoga com sua criação. Tanto no posicionamento do entrevistado Elomar quanto no posicionamento de Sertano aparecem a referência a Elohim, ―Deus Criador‖, aquele que não vive distante e nem alheio aos anseios do seu povo, ele é Emanuel, o ―Deus Conosco‖. Ele habita entre o seu povo. É constante a presença de Javeh/Jeová, ―Senhor‖, na vida de seus filhos. Tomando por base este enfoque, é plausível nos desvencilharmos de uma visão falaciosa de que o Elomar intercalado à narrativa é o autor da obra. É mais prudente, se não pudermos entendê-lo completamente como uma personagem integrante à trama, pelo menos, considerá-lo como entidade ficcional de que fala Antonio Cândido. Em determinadas circunstâncias, o que se verifica é a ausência total da figura da personagem Sertano na entrevista. Nesses momentos, é possível vislumbramos todo o constructo utilizado pelo entrevistado para falar de sua vida e obra, enfim de seu processo de criação artística, não apenas literária, mas também na música. É possível observarmos que no trecho: ―Decidi que cantaria primeiramente em louvor de quem me ensinou a cantar‖ (MELLO, 2008, p. 105-106), o posicionamento sobre a matéria de suas músicas é atribuído a Elomar e não a Sertano. O primeiro está sendo entrevistado pelo jornalista, no entanto este trecho, como muitos outros, estão no corpo do romance. Palavras idênticas a estas aparecem em entrevista que o próprio Elomar concedeu à revista Veja em 1983: "Nunca estudei música. Aprendi sozinho, pedi a Deus para ele me ensinar e ele me ensinou." Em ambos os trechos é visível que o dom de cantar emana de uma inspiração divina. Desse modo, durante

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o desenrolar da narrativa, percebemos que há certa contiguidade ideológica entre a personagem ―autor entrevistado‖, protagonista Sertano e o autor Elomar. Depreende-se dessa contigüidade, uma espécie de consciência história do autor que busca aflorá-la no pensamento medieval de sua personagem. No catre, há um homem dual (o autor) em conflito com seu mundo contemporâneo e o homem mítico (Sertano) que tem o privilégio de viver em um tempo e lugar impossível de ser habitado pelo autor. O catre produz uma relação baseada no oxímoro, e por isso, pode ser entendido como o objeto que possibilita a junção do ―eu‖ e do ―outro‖, e a um só tempo os transformam em duas figuras distintas, criador e criatura. Encerrando nossas reflexões a respeito da recorrência do duplo em Sertanílias, veremos como mais uma vez aparece esta contigüidade entre a figura de Sertano e do suposto autor no capítulo intitulado Anactória. Neste capítulo, há uma recuperação da literatura clássica quando ocorre à referência da poetisa grega Safo de Lesbos (século VII A.C). O título do capítulo traz o nome da amada predileta da poetisa. No contexto de Sertanílias, Anactória é uma moça sertaneja que ―entrevista‖ o autor das canções ―Campo Branco e Arrumação‖. Toda a entrevista é feira a partir do ―dialeto roçariano‖. O capítulo é engendrado como uma entrevista informal entre o autor dessas canções e Anactória, moça órfã que vive sob a tutoria de um tio, desde a morte do seu pai, supostamente, um jornalista assassinado na época da didatura militar. Se por um lado, em nenhum momento, o nome de Elomar é textualmente mencionado no capítulo, por outro, a figura de Sertano também desaparece, muito embora o capítulo inicia-se sem nenhuma advertência de que aquele ponto do livro trata de uma entrevista e não da continuidade da narrativa. Tais informações vão sendo espalhadas no decorrer do desenvolvimento do capítulo. Existe a presença de uma estrutura narrativa no encontro entre a jornalista caatingueira e o autor das canções, contudo não aparece de modo explícito. O diálogo desenrola-se como se a moça tivesse ido conversar com Sertano. No decorrer das argumentações do texto, passamos a perceber que a jovem tinha desejo de conhecer não Sertano, mas o autor de várias músicas que ouve no rádio, na casa dos vizinhos. O capítulo tem toda a narrativa estruturada sob o discurso direto livre e começa pela indagação da jornalista falante do ―dialeto roçariano‖. A moça que saber os motivos pelos quais Sertano quis vê-la: ―― O siôro mim mandou chamá

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prum pusitiv‘. Que eu Vince inté aqui assim pru modi quê?‖ (MELLO, 2008, p. 195). Seu interlocutor justifica o interesse em conhecê-la: ― Não sei se por isto ou se por que me fico muito curioso com seu nome que coincide com uma certa personagem minha em um concerto de piano e orquestra,ou se- quem sabe?- por causa de uma certa bela grega esposa que habitou a Ilha de Lesbos há mais de dois mil e seiscentos anos, na Grécia, nos dias de Safo e de Erina, quem sabe lá?! (MELLO, 2008, p. 195).

A moça insiste em saber mais sobre o interesse do seu interlocutor em ser entrevistado por ela, qual a razão dela fazer o ―pringutório‖? Quando o ―entrevistado‖ revela-lhe que o seu propósito é uma entrevista mútua, os diálogos começam a se desenvolver e gradativamente todo o contexto da conversa sugere um espaço diferente daquele em que as ações de Sertano desenrolaram-se: ―― Lá no Riachão, nos toca disc‘ de meus amig‘ vizin‘. E eu ach‘ qui já iscutei foi tud qui é musga sua e tombém mais veiz nas radias.‖ (MELLO, 2008, p. 205). Efetivamente, Sertano não parece ter contato com um mundo com ―disco e radias‖; contudo, a suposta entrevista está posta lá, no interior do capítulo, sem nenhuma advertência de sua inserção para o leitor. Desse modo, temos uma recorrência muito mais complexa de ―duplicação do eu‖ dentro da estrutura do romance, porque não há nenhum elemento demarcando textualmente a substituição de gênero narrativo de Sertanílias para o gênero jornalístico da entrevista. O catre, o roteiro e a câmera não aparecem neste capítulo. Para um leitor que não conhece Elomar compositor e operista, o argumento engendrado no texto não deixa indícios de que se trata de uma entrevista com o autor e uma pessoa admiradora de sua obra. Se o leitor de Sertanília não conhecer o Elomar cantor, operista etc, certamente irá compreender Sertano como autor das músicas intituladas O Pidido, Campo Branco, Arrumação, e também, como um escritor de ―romance de cavalaria‖ (MELLO, 2008, p. 205). Por outro lado também, como já enfatizamos o nome de Elomar não é citado textualmente em parte alguma do capítulo. Sua interlocutora dirige-se a ele pelo pronome de tratamento senhor: ―Ah, sim, o siôro vai cunsertá mias fala iant‘s de ponhar no jornal ô no livr‘? (MELLO, 2008, p. 210). Conforme verificamos, a recorrência do duplo faz-se de modo repetido em várias partes do romance. Consciente ou não disso, o fato é que o autor constrói um

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protagonista que é praticamente extensão de sua concepção de mundo. Em alguns momentos, o romance parece ganhar um caráter autobiográfico, principalmente, no aspecto religioso e na aversão ao mundo contemporâneo: ―Sou pouco dado aos costumes urbanos. Não tenho hábito de estar lendo jornal, revista, televisão. Isto não me causa espécie alguma.‖ (MELLO, 2008, p. 212). Compreender a inserção de Elomar e dos entrevistadores como apenas um recurso inovador de apresentar a entrevista sobre a vida do autor, intercalada à narrativa, sob nosso ponto de vista, seria fazer uma análise muito simplificada da estrutura narrativa disposta no romance, e dos recursos estilísticos utilizados pelo autor quando da elaboração de sua trama. Por isso, optamos por considerar tanto entrevistado quanto entrevistadores como personagens de ficção assim como é o cavaleiro da tempestade. Sob nossa ótica, todos eles, sósia e entrevistado do Jornalista e o entrevistado/entrevistador de Anactória são imagens duplicadas de Sertano.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quando escolhemos um objeto para estudo, é imprescindível estarmos cientes do quanto será preciso desmembrá-lo e confrontar as ideias contidas nele, com outros saberes, outras opiniões, para depois disso, compreendemos seu sentido. Entre muitas obras de Elomar, escolhemos como corpus Sertanílias. A motivação primária foi explorar uma obra relacionada ao tema do sertão. No decorrer das investigações, entendemos o quão necessário é para o pesquisador desvencilhar-se de suas preferências pessoais e criar um distanciamento afetivo do objeto posto em análise. Nas primeiras análises do romance, já constatamos que a temática é difusa, pois o enredo exige do leitor um conhecimento de mundo amplo. Sendo assim, o primeiro desafio que tivemos foi selecionar os aspectos que seriam analisados. A tese foi dividida em seis capítulos, cada um deles procura tratar de um aspecto que julgamos mais pertinente para responder a pergunta do trabalho, e também confirmar ou refutar a hipótese sobre a qual nos debruçamos ao iniciarmos a análise do corpus selecionado. No primeiro capítulo, atentamos para os seguintes pontos: a criação do imaginário, a concepção do termo sertão profundo, a construção do tempo e do espaço da narrativa, o olhar do artista, a partir do referente, o ―Sertão da Ressaca‖, e a etimologia da palavra sertão. No segundo capítulo, enfatizamos as relações transtextuais do romance. Executamos a leitura iconográfica da capa, pesquisamos os princípios da heráldica, a fim de compreendermos a transposição de um elemento medieval, o brasão, para o projeto do romance; investigamos a construção do vaqueiro como recurso de recuperação do herói mítico, o cavaleiro medieval. No terceiro capítulo, analisamos os aspectos gerais da construção ficcional, a fim de entendermos o processo de criação das personagens, a partir da proposta do autor: revitalizar o mundo medieval no sertão profundo; estudamos os mitos que envolvem o Rio São Francisco; cotejamos Sertanílias com outras duas obras do autor, Fantasia Leiga para um Rio Seco e Auto da Catingueira, neste ponto da pesquisa, reservamos nosso olhar para o problema histórico da seca, na região do Nordeste, além dessas duas obras, também dialogamos Sertanílias com as obras

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Vidas Secas, O Quinze e Os Retirantes, respectivamente, de Graciliano Ramos, de Rachel de Queiroz e de Candido Portinari. No quarto capítulo, discutimos o modo que o autor constrói a relação entre o referente e o imaginário; além disso, analisamos os diversificados conceitos de fantástico, depois, verticalizamos as discussões para o fantástico na América Latina, e por fim, para as recorrências do fantástico em Sertanílias. No penúltimo capítulo, desenvolvemos as discussões sobre um dos aspectos mais intrigantes do romance: a substituição do narrador pelo roteiro de cinema e a câmera cinematográfica; também analisamos o discurso religioso do autor inserido no discurso do protagonista. No último capítulo, tratamos do problema do duplo, como extensão do sujeito. Em Sertanílias, notamos o desdobramento do eu, na figura do protagonista divido em outros ―eus‖: o Cavaleiro da tempestade, o Elomar entrevistado e o Elomar entrevistador. Vejamos, em termos gerais, os resultados discursivos que obtivemos desses aspectos. O romance e o auto cotejam elementos medievais com as lendas locais: a cobra grande, a caipora, o Rumão, tudo parece fazer parte de um mesmo mundo, de um mesmo mistério, de uma mesma matriz. Desse modo, compreendemos a obra de Elomar como provida de um núcleo mítico que aponta simultaneamente para o universal e para o local. Verificamos, em Sertanílias, a criação de uma técnica narrativa que escapa dos padrões do romance tradicional. Elomar engendra seu discurso, de modo a desviar, e desmentir um modelo de romance pré-estabelecido. Quando insere a técnica do roteiro cinematográfico e a entrevista jornalística na estrutura do romance, sem dúvida, o autor está criando uma nova forma de narrar inovadora. As personagens têm suas ações ambientadas em um espaço bucólico. As diferenças, circunscritas entre elas, repousam em dois aspectos: no social e no religioso. O primeiro aspecto diz respeito à distinção entre os indivíduos, a partir da divisão de classe: patrão e empregados, servos e senhor. O segundo aspecto está pautado nos princípios teocráticos, cristãos e não cristãos. Isso deixa a narrativa com um tom maniqueísta. Durante o processo de pesquisa, verificamos na obra a ausência de questionamentos sobre os paradoxos socioeconômicos que afligem o sertanejo. Por outro lado, notamos no discurso do protagonista a preocupação exacerbada com a

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vida celestial. Desse modo, a mistura do sagrado e do profano, do humano e do divino, do primitivo e do civilizado; do rico senhor e do andarilho, tudo isso aponta para outra dimensão: um reino de justiça e de comunhão eterna entre Deus e o homem regenerado. Quando produz a transposição da literatura medieval para a literatura do sertão, o autor constrói a matéria de seu fazer literário, consciente do objeto que deseja captar. Assim, seleciona a temática de sua composição romanesca, sabendo exatamente o material que precisa obter para alcançar os propósitos ideológicos e estéticos que pretende. Desse modo, a literatura oral é justaposta aos princípios da física quântica, na teoria dos mundos paralelos, e os princípios da literatura universal são recuperados nas figuras de clássicos antigos. Tudo isso, faz da obra de Elomar uma produção inédita, tanto do ponto de vista temático, quanto do ponto de vista estrutural e ideológico. Conforme já salientamos, em termos gerais, Sertanílias apresenta seu argumento de modo amplo, composto por uma linguagem complexa e de difícil compreensão. Não existe uma temática homogênea, na proposta discursiva do autor. De modo que, uma personagem pode recuperar várias fontes matriciais. Sendo assim, a referência à Cobra Grande tanto pode direcionar o leitor para um mito universal, o leviatã, criatura horrenda, muito recorrente nas fontes bíblicas, e nos relatos históricos e ficcionais da Idade Média, como também, pode revitalizar para o leitor as lendas da cobra grande e/ou minhocão, mitos recorrentes nas comunidades ribeirinhas das regiões dos Rios Amazonas e São Francisco. Na construção da linguagem de Sertanílias, os princípios medievais não são apenas reinventados, também são ressignificados. O conhecimento de mundo do autor é amalgamado ao saber do povo simples do sertão. Constatamos que Elomar não visita o sertão, ocasionalmente, para entender o modo de vida do sertanejo, pelo olhar do pesquisador. Sua concepção de sertão não é a de um sujeito estrangeiro. Ele vive no sertão, e naquelas paragens, busca inspiração para a matéria de sua obra. Seu projeto artístico ultrapassa o intuito de preservação ou resgate da cultura sertaneja, pois cria uma nova forma de entender o sertão, como fonte inesgotável de bens culturais, imateriais e inalienáveis. No projeto artístico, o autor foca seu argumento na construção dos conceitos que evidenciam a relação do sujeito com o seu espaço, sua cultura e a sua história. Em Sertanílias, as personagens deslocam-se de modo bilateral, no tempo e no

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espaço da narrativa. Isso permite a contemplação do mundo medieval que transita entre o universal e o local-regional. Desde o princípio de nossas investigações, tivemos como propósito focalizar o âmago temático do romance. Cuidamos de considerar o referente do sertão como baliza para compreendermos os caminhos do sertão profundo desbravado por Elomar. Considerar o referente inicial da obra foi um ponto imprescindível para entendermos a concepção de sertão que o autor propõe para seu projeto artístico e cultural. Com o intuito de apreender sua concepção de sertão e o modo que constrói a figura do sertanejo, julgamos como tarefa útil a pesquisa sobre o processo de ocupação do Sertão da Ressaca e as lendas do Sertão do Médio São Francisco. Percebemos que as dificuldades dos sertanejos, o drama do vaqueiro que sai de sua terra para fugir da fome e da seca, também são temas presentes nas obras de Elomar. As agruras da vida do homem do campo, bem como, o espaço inóspito à sobrevivência desse indivíduo aparecem não só em Sertanílias, mas também, no álbum Fantasia Leigas para um Rio Seco. Observamos, não obstante, que a abordagem feita pelo autor sobre a vida acre do sertanejo não traz nenhuma reflexão sociológica aguçada. Constatamos que apenas pontua a situação precária do homem do sertão. Em síntese, examinamos que nenhum discurso engajado é detectado no romance. Nada enfático acerca da contribuição do homem no processo de segregação social do seu semelhante. Nesse sentido, tanto na ópera, como no romance, a seca é exclusivamente resultante da tirania do sol inclemente. É válido destacar que as dificuldades de sobrevivência do sertanejo não são capazes de ofuscar as tradições religiosas e culturais dele. Antes, em tempos festivos, celebra seus padroeiros. É desse sertão contraditório, em que a vida e a morte parecem andar de mãos dadas, que Elomar concede vida às suas personagens, seja para falar do sertão físico como vimos em Fantasia Leiga para um Rio Seco, seja para falar do sertão mítico como constatamos na ópera o Auto da Catingueira e em Sertanílias. O projeto de Elomar é construir um sertão poético desvencilhado de qualquer compromisso com os limites da razão. Seus personagens são transgressores dos tempos, espaços e da lógica humana. Ao analisarmos a construção textual que transita entre o sertão físico e o simbólico, acabamos por compreender o projeto artístico dele como um desafio, não o de inventar uma linguagem para o sertanejo, mas o de ratificar esta linguagem: viva, dinâmica e atuante na comunidade sertaneja do ―sertão da ressaca‖.

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Observarmos que poeticamente, Elomar acaba amalgamando o erudito e o popular e os transforma em um projeto único, de valorização da cultura sertaneja sedimentada nas raízes medievais. A relação hierárquica entre Sertano e seus companheiros de jornada está posta de modo claro. Em toda a construção discursiva do romance, os exsalteadores aparecem em posição de servo do cavaleiro. As relações de poder são estabelecidas de cima para baixo. Expressões como: ―meu patrãozinho‖, ―não ouviu o que o nosso patrão disse‖, ―respeita o patrão‖ são indícios encontrados na narrativa que revelam a relação servil dos segundos com o primeiro. A respeito do mapeamento dos eventos fantásticos, constatamos que em Sertanílias, esta modalidade literária evita qualquer definição usual, por isso, cada evento insólito recorrente na trama foi analisado levando em consideração a possibilidade de em muitos casos nem encontrarmos uma teoria adequada capaz de classificá-lo como fantástico ou como algumas de suas vertentes: realismo fantástico, realismo mágico, realismo maravilhoso etc. No processo de análise da literatura fantástico e seus prolongamentos, julgamos

pertinentes

os

seguintes

aspectos.

Os

pressupostos

teóricos,

desenvolvidos por Willian Splinder contribuíram para que entendêssemos a gênese do termo realismo mágico, habitual nas literaturas oriundas da América Latina. Constatamos que, entre os críticos literários, este termo apresenta controvérsias terminológicas e conceituais. Selma Calasans Rodrigues, por exemplo, discorda dessa expressão para definir o conceito de fantástico nos romances da América Latina. Sob sua ótica, a magia é algo inerente à arte, por conseguinte, realismo mágico não deve ser usado para ressaltar um aspecto da obra, no caso das literaturas latino-americanas, o aspecto fantástico. Para tratarmos das definições da literatura fantástica no romance latino-americano, buscamos suporte teórico no posicionamento de Irlemar Chiampi que defende o seguinte ponto de vista: em uma narrativa, o maravilhoso é instaurado não pela contradição com o natural, mas pela posição do inabitual que se instaura no terreno do habitual. De posse de todos estes pressupostos teóricos, acerca das definições do fantástico e suas vertentes, consideramos que, no seu percurso histórico, houve um progressivo desdobramento sobre suas definições. As associações que fizemos entre as teorias estudadas e as manifestações do fantástico, em Sertanílias, permitiram-nos entender o qão falacioso seria identificar apenas uma unidade fantástica neste romance. Cada

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acontecimento sobrenatural apresentado na narrativa necessita de análise cuidadosa, e por isso, notamos que os eventos sobrenaturais em Sertanílias podem ser compreendidos como: fantástico puro e fantástico maravilhoso e outras vertentes de fantástico que foram tratados no decorrer dessa pesquisa. Sobre a construção da linguagem informal, entendemos que há no romance o esforço de ratificar o dialeto sertanejo como uma língua genuína, não afetada pela linguagem das pessoas dos grandes centros urbanos. Elomar considera a linguagem falada pelo homem iletrado do sertão: bonita e pura. Por isso, defende a ideia de que o sertanejo deveria sentir orgulho do seu modo de expressão. No romance, em alguns diálogos, postos em discurso direto, aparece o dialeto que o autor define como ―sertanez‖. Ressaltamos, no entanto que a proposta de transcrição literal desse dialeto compromete, em parte, a leitura do romance. A respeito dos mitos das comunidades ribeirinhas do São Francisco, verificamos que eles são utilizados como recurso expressivo por Elomar, a fim de evidenciar a linha tênue entre o real e o imaginário em Sertanílias. Todas essas ações endossam seu projeto de valorização da cultura do sertão. Boa parte da narração é erigida sob os temas pautados nos mitos universais, modificados pela transmissão oral e adequados à linguagem e realidade social sertaneja. Estes mitos tratam da origem do eterno, do céu, do inferno, do bem e do mal, e, por conseguinte, revelam a forma que o sertanejo entende o mundo. É importante ressaltar que, se por um lado, Elomar não ignora as lendas e o imaginário sertanejo, e delas se vale, a fim de evidenciar o universo cultural cravado no sertão; por outro lado, como já enfatizado, seu argumento religioso, sempre pautado na soberania da doutrina cristã, anula toda possibilidade de redenção espiritual que não esteja atrelada aos princípios fundamentados nos textos bíblicos. Desse modo, podemos compreender que o autor não ignora o sincretismo religioso do sertanejo, todavia invalida-o como caminho de acesso a Deus. Nesse processo, ratifica-o como parte integrante dos princípios dogmáticos dos sertanejos, ao tempo que também, contraditoriamente, refuta-o como fonte de fé genuína. De modo que coloca os mitos e as lendas, do nordeste, em evidência, não para endossá-las, mas para questioná-las como fontes de fé. Estes são os meandros narrativos que captamos na elaboração da criação literária de Elomar. Verificamos que em Sertanílias a cultura sertaneja encontra seus fluxos e seus refluxos no curso da história e preserva a construção ficcional do

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sertão como manifestação imaterial de toda tradição advinda dos seus sucessivos anos de povoamento. No tocante às tradições orais, as análises foram desenvolvidas a partir do posicionamento de Câmara Cascudo, em suas obras Literatura oral no Brasil e Vaqueiros e Cantadores, o autor aponta os princípios e definições das fontes culturais populares do Nordeste brasileiro. Sob sua ótica, estas produções preservam ecos da literatura ibérica. São manifestações culturais centradas na figura dos vaqueiros e cantadores. Representam uma sociedade de gênese coriácea. Para tratarmos sobre o gênero romance de cavalaria, optamos por analisar as considerações que Medeiros faz sobre a composição da figura do cavaleiro, como herói e defensor do reino celeste. Sobre a reconstrução do sertão, a partir das bases medievais, observamos as considerações que Jerusa Pires Ferreira tece a respeito da figura do cavaleiro medieval revitalizada na obra de Elomar. Quanta à análise do roteiro do cinema, inserido no corpo do romance, buscamos apoio teórico nas considerações de João Batista Brito. A partir de seus pressupostos, entendemos que a arte literária e a arte cinematográfica não possuem relações pacíficas, pois, são compostas por elementos que, ora se entrecruzam, ora se desarmonizam. Em Sertanílias, o princípio de transposição está posto de modo inverso ao convencional. Enquanto, pela tradição cinematográfica, o romance é adaptado para o roteiro, no romance de Elomar, existe a adaptação do roteiro para o romance. Constatamos que, inicialmente, isto causa certo estranhamento para o leitor, mas, no decorrer da leitura, as informações contidas no roteiro a respeito das personagens, do tempo e do espaço acabam ampliando os subsídios de que o leitor precisa para entender a narrativa. Em suma, podemos averiguar que a leitura do livro Sertanílias requer do leitor uma ampla dose de generosidade de interpretação, nas palavras de Reno Viana, por se trata de uma obra onírica, este romance exige um ―trabalho exegético‖. A nosso ver, a compreensão da narrativa de Elomar não está condicionada apenas à leitura onírica, o texto mostra maior complexidade, tendo em vista, a sua multiplicidade temática e estrutural. Ao final da pesquisa, entendemos que o processo de composição do romance não é destinado a um leitor comum. Nesse sentido, parece meio difícil que esta obra alcance, nos próximos anos, um público popular

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desprovido das preceptivas necessárias para compreender um projeto literário de exacerbada complexidade. Se bem que, este não parece ser também o objetivo do autor: fazer uma narrativa de fácil interpretação. Em Sertanílias, fica evidenciado o projeto artístico original e criativo que procura retratar a gênese da sociedade coriácea. Observamos, entretanto, que a proposta de fazer um romance original, por vezes, é ofusca pela qualidade discursiva da obra. A inserção do dialeto ―sertanez‖ e de termos em latim e de francês sem as respectivas traduções, nos diálogos entre o protagonista e algumas personagens, compromete a clareza dos argumentos. Nas partes pretextuais do romance, não há notas explicativas, a respeito desses itens. Ao finalizar a pesquisa, compreendemos que a obra de Elomar resiste ao modismo contemporâneo. Sertano é a constituição do anti-herói. Nesse sentido, concordamos com o autor que afirma haver em Sertanílias uma inconformidade com a cultura cinematográfica, sobretudo, ―os enlatados americanos‖ que exploram a figura dos seus heróis, tiram o foco da história, e, por conseguinte, direciona os holofotes para os mocinhos da ação. Tomando por empréstimo as palavras de Siscar (2011, p. 8), estamos cientes de que: ―as interpretações do campo das análises literárias são múltiplas, conflitantes e mesmo irreconciliáveis.‖ Diante disso, encerramos esta pesquisa, deixando as possibilidades de novas discussões que poderão ser retomadas, questionadas, ampliadas e buriladas, em futuros trabalhos acadêmicos acerca de Sertanílias. Sabemos que a criação literária tem como pressuposto fundamental a liberdade no ato da representação, não sendo da responsabilidade do autor preocupar-se com o modo de interpretação ou crítica que farão do resultado do seu trabalho ficcional. Seu projeto é maior do que qualquer pressuposto histórico, estético ou social. É assim que deve ser, caso contrário, sua arte tornar-se-ia enfadonha. Efetivamente, este nunca foi, e por certo, nunca será o objetivo do ato criador de nenhum autor de obra literária. Assim, entendemos que a criação ficcional exposta em Sertanílias desfruta de uma imensa ―carga de liberdade‖ (tomando por empréstimo uma expressão de Antonio Cândido). A explicação do produto final do romance de Elomar desvencilha-se de qualquer teoria que queira entendê-la completamente. Sendo assim, resta-nos compreender este romance apenas em suas nuances. O projeto artístico de Elomar é uma fonte inesgotável de pesquisa. Perante a

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vastidão de análises que poderiam ser feitas, optamos por uns aspectos e, obrigatoriamente, deixamos outros tantos sem análise. Esperamos que as discussões iniciadas, aqui, possam ser retomadas, seja para ampliá-las ou refutálas. No mais, sentimo-nos honradas por termos adentrado, durante quatro anos, o ―Sertão Profundo de Elomar Figueira Mello, o príncipe da caatinga‖.

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ANEXOS

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ANEXO A - Registro de obras de Elomar Figueira Mello

Figura 4 - O romance

Figura 5-Imagemde Sertano e do seu cavalo alado Russo Pombo

Fonte: Mello (2008).

Fonte: Mello (2008).

Figura 6 - A Cobra Grande

Figura 7 - Russo Pombo

Fonte: Mello (2008).

Fonte: Mello (2008).

233 Figura 8 - A viola da morte. Intertexto com o Auto da Catingueira

Figura 9 - A história do carpinteiro que enganou o Diabo

Fonte: Mello (2008).

Fonte: Mello (2008).

Figura 10 - A mulher estranha

Fonte: Mello (2008).

Figura 11 - Convite para o Concerto Elomar Cancioneiro. O evento foi promovido pela Caixa Cultural, entre os dias 10 e 12 de Janeiro de 2014, na Praça da Sé, em São Paulo

Fonte: Mello (2008).

234 Figura 12 - Estandarte da Festa do Divino na cidade de Poções no Estado da Bahia

Figura 13 - Encenação do Auto da Catingueira combonecos manipulados.

Fonte: Arquivo pessoal. Festa do Divino, Poções, maio 2016.

Fonte: Google

Figura 14 - Encenação do auto. Canto V- Da Viola da morte.

Figura 15 - A caipora encenação do auto.

Fonte: Google

Fonte: Google

235 Figura 16 - Partitura do Auto da Catingueira e encenações com atores

Fonte: Google

Figura 17 - Elomar

Fonte: Google

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ANEXO B - Letras de músicas de Elomar Figueira Mello

Música 1 Incelença pra terra que o sol matou Levanto meus olhos pela terra seca só vejo tristeza qui disolação e u'a ossada branca fulorano o chão e o passu-Rei, rei do manjá deu bença à Morte prá avisá prus urubú de ôtros lugá qui vince logo pru jantá do Rei do Fogo e do luá do lûá sizudo do Ri Gavião Mais o sol malvado quemô os imbuzêro os bode e os carnêro toda a criação tudo o sol quemô é qui tão as era já muito alcançada a palavra vea reza qui havéra de chega um tempo só de perdedera qui só havéra de iscapá burro criôlo e criação qui prá cumê levanta as mão e qui um irmão pra ôtro irmão saudava c'essa pregação

lembra qui a morte te ispera meu irmão e o sol da má sorte rei da tribusana popô sussarana carcará ladrão isso o sol popô mais num há de sê nada na função dos bêsta purriba da festa pirigrina a fé sei qui ainda resta cururú-têtê na minha casa hai um silenço a tuia pura e o surrão penso o meu cachorro amigo menso deitô no chão ficô in silenço e nunca mais se alevantô inté os olhos-d'água chorô qui secô e o sol dessas mágua quemô os imbuzêro os bode e os carnêro toda a criação tudo o sol quemô no Ri Gavião tudo o sol quemô toda a criação

Música 2 NANINHA Certa veiz um certo prinspe paxonô-se prua donzela intiada de um rei lá do rêno de Castela mala sorte a qui li foi moreeno de amô pru ela pru modi das Arma o rei li negô intão a mão dela

umbuçado cum um velo com o semblante ocultado pelas porta do castelo mindingava paxonado té qui um dia essa princeza desceu feito um Sarafim ele intonce pidiu ela que li insinasse o camin

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rompe mais Naninha mais um bucadin vê qui o pobre cego nun inxerga o camin vê meu peito sua ó siora mia pela sina tua triste sina é a mia de vivê atôa de pená assim eu só sem Naninha

e Naninha sem mim olha pra lagoa tua camaria vê o lençol qui a lua teceu pra Naninha nessa noite tua tu serás só mia junto da lagoa ó noiva do céu amada perdoa sou o princ'pe teu

Música 3 ASA BRANCA Quando olhei a terra ardendo Qual fogueira de São João Eu perguntei a Deus do céu, ai Por que tamanha judiação

Se espalhar na plantação Eu te asseguro não chores não, viu Que eu voltarei, viu Meu coração

Que braseiro, que fornalha Nem um pé de plantação Por falta d'água perdi meu gado Morreu de sede meu alazão

Hoje longe muitas léguas Numa triste solidão Espero a chuva cair de novo Pra mim voltar pro meu sertão

Até mesmo a asa branca Bateu asas do sertão Então eu disse adeus Rosinha Guarda contigo meu coração

Quando o verde dos seus olhos Se espalha na plantação Eu te asseguro Não Chores não, viu? Que eu voltarei, viu meu coração

Quando o verde dos teus olhos

Música 4 A Triste Partida Meu Deus, meu Deus Setembro passou Outubro e Novembro Já estamos em Dezembro Meu Deus, que é de nós, Meu Deus, meu Deus Assim fala o pobre Do seco Nordeste Com medo da peste Da fome feroz Ai, ai, ai, ai A treze do mês

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Ele fez experiência Perdeu sua crença Nas pedras de sal, Meu Deus, meu Deus Mas noutra esperança Com gosto se agarra Pensando na barra Do alegre Natal Ai, ai, ai, ai Rompeu-se o Natal Porém barra não veio O sol bem vermelho Nasceu muito além Meu Deus, meu Deus Na copa da mata Buzina a cigarra Ninguém vê a barra Pois barra não tem Ai, ai, ai, ai Sem chuva na terra Descamba Janeiro, Depois fevereiro E o mesmo verão Meu Deus, meu Deus Então o nortista Pensando consigo Diz: "isso é castigo não chove mais não" Ai, ai, ai, ai Apela pra Março Que é o mês preferido Do santo querido Senhor São José Meu Deus, meu Deus Mas nada de chuva Tá tudo sem jeito Lhe foge do peito O resto da fé Ai, ai, ai, ai Agora pensando Ele segue outra trilha Chamando a família Começa a dizer Meu Deus, meu Deus Eu vendo meu burro Meu jegue e o cavalo Nós vamos a São Paulo Viver ou morrer Ai, ai, ai, ai Nós vamos a São Paulo

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Que a coisa está feia Por terras alheias Nós vamos vagar Meu Deus, meu Deus Se o nosso destino Não for tão mesquinho Pro mesmo cantinho Nós torna a voltar Ai, ai, ai, ai E vende seu burro Jumento e o cavalo Até mesmo o galo Venderam também Meu Deus, meu Deus Pois logo aparece Feliz fazendeiro Por pouco dinheiro Lhe compra o que tem Ai, ai, ai, ai Em um caminhão Ele joga a família Chegou o triste dia Já vai viajar Meu Deus, meu Deus A seca terrível Que tudo devora Ai,lhe bota pra fora Da terra natal Ai, ai, ai, ai O carro já corre No topo da serra Olhando pra terra Seu berço, seu lar Meu Deus, meu Deus Aquele nortista Partido de pena De longe acena Adeus meu lugar Ai, ai, ai, ai No dia seguinte Já tudo enfadado E o carro embalado Veloz a correr Meu Deus, meu Deus Tão triste, coitado Falando saudoso Com seu filho choroso Exclama a dizer Ai, ai, ai, ai De pena e saudade

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Papai sei que morro Meu pobre cachorro Quem dá de comer? Meu Deus, meu Deus Já outro pergunta Mãezinha, e meu gato? Com fome, sem trato Mimi vai morrer Ai, ai, ai, ai E a linda pequena Tremendo de medo "Mamãe, meus brinquedo Meu pé de flor?" Meu Deus, meu Deus Meu pé de roseira Coitado, ele seca E minha boneca Também lá ficou Ai, ai, ai, ai E assim vão deixando Com choro e gemido Do berço querido Céu lindo e azul Meu Deus, meu Deus O pai, pesaroso Nos filhos pensando E o carro rodando Na estrada do Sul Ai, ai, ai, ai Chegaram em São Paulo Sem cobre quebrado E o pobre acanhado Procura um patrão Meu Deus, meu Deus Só ver cara estranha De estranha gente Tudo é diferente Do caro torrão Ai, ai, ai, ai Trabalha dois ano, Três ano e mais ano E sempre nos planos De um dia voltar Meu Deus, meu Deus Mas nunca ele pode Só vive devendo E assim vai sofrendo É sofrer sem parar Ai, ai, ai, ai Se alguma notícia

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Das banda do norte Tem ele por sorte O gosto de ouvir Meu Deus, meu Deus Lhe bate no peito Saudade de mói E as água nos olhos Começa a cair Ai, ai, ai, ai Do mundo afastado Ali vive preso Sofrendo desprezo Devendo ao patrão Meu Deus, meu Deus O tempo rolando Vai dia e vem dia E aquela família Não volta mais não Ai, ai, ai, ai Distante da terra Tão seca mas boa Exposto à garoa A lama e o baú Meu Deus, meu Deus Faz pena o nortista Tão forte, tão bravo Viver como escravo No Norte e no Su

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