UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE COMUNICAÇÃO E EXPRESSÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA ANA LUCIA MATIELLO

January 31, 2020 | Author: Juan Beltrão Casqueira | Category: N/A
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE COMUNICAÇÃO E EXPRESSÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA

ANA LUCIA MATIELLO

UMA LEITURA ANACRÔNICA DE OS CONDEMNADOS

FLORIANÓPOLIS 2012

ANA LUCIA MATIELLO

UMA LEITURA ANACRÔNICA DE OS CONDEMNADOS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Literatura Brasileira. Orientadora: Prof.a Dr.a Susana Célia Leandro Scramim

FLORIANÓPOLIS 2012

TERMO DE APROVAÇÃO TROCAR PELO TERMO ASSINADO PELOS MEMBROS DA BANCA

Dedico este trabalho à família, aos amigos, aos colegas, ao meu cônjuge, enfim, a todos os que colaboraram para que eu construísse esta reflexão, principalmente pelo apoio incondicional e pelas palavras doces. Por terem me incentivado a continuar sempre, passar por cima dos imprevistos e seguir o meu caminho, apesar das saudades (e das crises) que a distância muitas vezes provocou.

AGRADECIMENTOS

Agradeço principalmente ao Criador, por me permitir estar aqui. Ao meu esposo, Rubens, pelo carinho, atenção e compreensão durante o processo de produção deste trabalho. À minha família, pelo apoio incondicional desde a tomada de decisão de ingresso até hoje, sempre com palavras de conforto, e por acreditar em meu potencial quando eu mesma não acreditava. À minha orientadora, Susana Scramim, com quem pude ver e rever o texto, pela paciência e dedicação; e, com ela, a todos os professores que me acompanharam nesta trajetória, seja por meio das disciplinas ministradas, seja pela participação na banca de qualificação e na banca avaliadora. Aos colegas-amigos do Núcleo de Estudos Literários & Culturais (Nelic), pelos cafés e conversas, trocas de livros e indicações de leituras, apoio e consolo. À Capes, pelo apoio financeiro que fez possível a escrita deste trabalho.

Sólo en los folletines vulgares o en los cuentos infantiles, la palabra “Fin” cierra el relato, tras de leerse en él que “Se casaron y tuvieron muchos hijos”. Pero, tanto en la vida real como en la ideologia aunténtica, cualquier conclusión es un recomienzo. Eugenio D’Ors

RESUMO

Este trabalho apresenta uma leitura do primeiro volume da obra A trilogia do exílio – Os condemnados, do escritor paulista Oswald de Andrade, publicada no ano de 1922. Através de um método que prevê anacronismo como possibilidade de aproximação entre tempos cronologicamente distantes das obras de arte (método embasado em estudos de Didi-Huberman e Walter Benjamin, além de Eugenio D´Ors e Lili Litvak), esta leitura tem como objetivo estabelecer relações entre a obra de Oswald de Andrade, o decadentismo e o barroco, por meio da observação das personagens (Alma e João do Carmo) e das características textuais do romance, como a fragmentação e a aproximação entre prosa e poesia. Para tanto, são recuperadas obras como O perfeito cozinheiro das almas deste mundo, do próprio Oswald de Andrade, e As flores do mal, do poeta francês Charles Baudelaire. Palavras-chave: Oswald de Andrade; barroco; modernismo.

ABSTRACT

This work presents a reading of the first volume of the literary work The Trilogy of the Exile – The Condemneds (A triologia do exílio – Os condemnados), from the writer Oswald de Andrade, published in 1922. Through a method that provides anachronism as possible approach between chronologically distant times of the artworks (method based on studies of Didi-Huberman and Walter Benjamin, besides Eugenio D'Ors and Lili Litvak), this reading aims to establish relationships between the work of Oswald de Andrade, the decadence and the Baroque, through the characters observation (Alma and João do Carmo) and textual features of the novel, as the fragmentation and the approach between prose and poetry. For this, there have been recovered works as The perfect Cook of Souls of this World (O perfeito cozinheiro das almas deste mundo), also from Oswald de Andrade, and The Flowers of Evil, from the French poet Charles Baudelaire. Keywords: Oswald de Andrade; Baroque; Modernism.

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Capa da primeira edição (1922) ................................................. 21 Figura 2 – Primeira contracapa ................................................................... 22 Figura 3 – Primeira folha de rosto ............................................................... 23 Figura 4 – Dedicatória 1.............................................................................. 25 Figura 5 – Dedicatória 2.............................................................................. 26 Figura 6 – Epígrafe ..................................................................................... 27 Figura 7 – Abertura do livro Pau Brasil ...................................................... 39 Figura 8 – Ilustração do verso ..................................................................... 86

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ...................................................................................... 19 2 APRESENTAÇÃO DA OBRA ............................................................. 21 2.1 A crítica da hora .................................................................................... 31 2.2 A crítica posterior e as obras posteriores de Oswald de Andrade ......... 34 2.3 Pré-modernismo .................................................................................... 45 3 CONSIDERAÇÕES SOBRE A HISTÓRIA, O TEMPO E A LEITURA DAS OBRAS – ALMA........................................................... 53 4 JOÃO DO CARMO ............................................................................... 79 5 CONCLUSÃO ........................................................................................ 97 REFERÊNCIAS ...................................................................................... 101

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1 INTRODUÇÃO

Este trabalho pretende apresentar uma leitura do primeiro volume d’A trilogia do exílio – Os condemnados, de Oswald de Andrade. A obra é a primeira publicada pelo autor paulista, no ano de 1922; no entanto, o projeto da publicação de uma trilogia aconteceu no decorrer dos anos subsequentes. Em 1927, deu-se a publicação do segundo volume e, no ano de 1934, a obra que encerraria o projeto. No ano de 1941, Oswald de Andrade reuniu as três obras e as republicou em apenas um volume, ao qual denominou Os condenados: a trilogia do exílio. O primeiro contato que tive com a prosa oswaldiana foi por meio de uma edição do ano de 2003 d’A trilogia, publicada pela Editora Globo. Como nota do editor, estava o aviso: esta publicação segue fielmente a organização do autor no ano de 1941, portanto, continha os três volumes. No entanto, o livro que mais me chamou a atenção foi o primeiro, que naquele volume continha o nome de Alma. Precisei, então, fazer um recorte, separar do tomo o primeiro livro. Esse era o romance de estreia de Oswald de Andrade que fora publicado separadamente dos outros dois livros. Encantada com a personagem Alma e seus conflitos e também orientada pela banca de qualificação, fui à busca da primeira edição. Depois de muito trabalho, encontrei-a em um acervo de livros raros e adquiri a obra, um pequeno livro de 200 páginas, com as folhas amareladas e até corroídas pelo tempo. Apesar de esta pesquisa não abarcar a questão do cotejamento das edições, realizei um trabalho, mesmo que superficial, de leitura das duas edições, a baseada na edição de 1941 (que contempla os três volumes d’A trilogia, da Editora Globo, 2003) e a de 1922. Pude perceber que as edições eram muito semelhantes. Apesar do formato diferente (a edição de 1922 apresenta-se no formato 10 x 15 cm e a de 2003, no formato 15 x 21 cm), a apresentação do texto é basicamente a mesma. A edição de 2003 mantém o espaçamento entre os “blocos” de texto da edição de 1922, respeitando a organização dos diálogos e das “frases” soltas. As únicas diferenças significativas dizem respeito à ortografia, que foi atualizada em 2003, sob responsabilidade do supervisor editorial Jorge Schwartz. O livro impresso tipograficamente em 1922 traz um português arcaico e, por vezes, palavras escritas de maneira divergente

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da ortografia oficial (podemos citar como exemplo a palavra “citadino”, que na edição de 1922 está grafada como “cidadino” por duas vezes e na edição de 2003 está grafada como “citadino”). Por não abranger uma análise filológica pautada pelas regras ortográficas vigentes na época, optamos por manter a ortografia da primeira edição em todas as citações da obra. O trabalho de análise está dividido em três partes: a primeira faz uma breve apresentação da obra e de seu contexto de publicação, bem como uma síntese do enredo e a recepção dada pela crítica da época e pela crítica posterior. Discute também uma questão abordada pelo professor Raúl Antelo diante de uma obra “clássica” de história da literatura brasileira, escrita pelo crítico José Guilherme Merquior. Na obra, Merquior destaca os movimentos literários brasileiros excluindo a categoria de pré-modernismo, na qual a obra em questão estaria “localizada”, tendo em vista o período cronológico no qual foi escrita. A segunda parte apresenta o caminho teórico seguido para a análise, que tem como base o tempo anacrônico. Para tanto, são analisados estudos de filósofos e historiadores. O conceito de Giorgio Agambem de contemporâneo, seguido dos conceitos de imagem e de tempo abordados por Georges Didi-Huberman nos levam aos estudos de Walter Benjamin e também de Eugênio D’Ors sobre o barroco, visto como categoria da cultura; além disso, conta com a análise da personagem principal do romance, Alma, como uma constante barroca, uma mulher fatal que emerge em um contexto que, cronologicamente, já seria de vanguarda, mas que ainda preserva muito do decadentismo do final do século. A terceira parte analisa o personagem João do Carmo, o telegrafista apaixonado por Alma, poeta e admirador de Charles Baudelaire. É estabelecida uma relação entre seus anunciados poemas (que não aparecem no livro) e alguns poemas do poeta francês, determinando pontos de contato com características do personagem e da estrutura da obra. Enfim, este trabalho é o resultado de leituras, estudos, muito esforço e, principalmente, da paixão pela literatura e pela obra de Oswald de Andrade.

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2 APRESENTAÇÃO DA OBRA

O presente trabalho tem como objetivo propor uma leitura do primeiro volume d’A trilogia do exílio – Os condemnados, de (José) Oswald de (Sousa) Andrade, nascido no ano de 1890 e morto em 1954. Trata-se da primeira publicação do escritor paulista, datada de 1922 e editada pela Off. Graphicas Monteiro Lobato & C, que lança a obra no ensejo da Semana de Arte Moderna, com capa de Anita Malfatti.

Figura 1 – Capa da primeira edição (1922) Fonte: ANDRADE, 1922.

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Figura 2 – Primeira contracapa Fonte: ANDRADE, 1922.

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Figura 3 – Primeira folha de rosto Fonte: ANDRADE, 1922.

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O escritor foi um dos principais mentores do movimento de vanguarda brasileiro denominado modernismo. A essa época e desde muitos anos antes, trabalhava na imprensa como editor de O Pirralho e repórter do Jornal do Commercio, e, como isso, estabelecia “diálogos” com outros colunistas (prática comum à época), debatendo ideias inovadoras em contraponto às difundidas no ramo das artes e da cultura paulistanas. Além disso, passa um ano (1912) na Europa e traz consigo marcas da revolução cultural europeia, principalmente da França e da Itália. O romance propõe, como parte de uma movimentação cultural que aconteceu em São Paulo entre as décadas de 1910 e 1920, inovações no campo dos procedimentos textuais. Um grupo de artistas que envolvia, além de literatos, pintores e escultores estava disposto a propor novos ideais para a arte brasileira. Estabelece contato com as propostas artísticas do futurismo italiano (e a publicação do Manifesto Futurista por Marinetti). Oswald de Andrade traz a conhecimento de um grupo de brasileiros a necessidade da renovação proposta pelas vanguardas que já acontecia no Velho Mundo e, com sua primeira publicação, apresenta inovações no campo do romance. Porém, como veremos na análise proposta neste trabalho, o romance oswaldiano carrega consigo uma relação direta com outros “tempos”, uma vez que o analisaremos partindo de uma concepção de tempo anacrônico. A consolidação e a apresentação dos ideais vanguardistas no Brasil deram-se a partir de 1922, ano em que intelectuais e figuras públicas realizaram a Semana de Arte Moderna em São Paulo, ocasião na qual fragmentos do primeiro volume d’A trilogia do exílio foram lidos por Oswald de Andrade. Em sua apresentação, a obra contém duas dedicatórias: “A memoria de meus paes consagro A Trilogia do Exilio”, em uma página, e “Aos olhos que choram, ás esperanças castigadas, aos lutos obscuros”, em outra.

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Figura 4 – Dedicatória 1 Fonte: ANDRADE, 1922.

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Figura 5 – Dedicatória 2 Fonte: ANDRADE, 1922.

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Na página da sequência, há um fragmento bíblico em latim que traz como referência o versículo 24 do capítulo 3 de Gênesis, primeiro livro do Antigo Testamento: “24. Eiecitque Adam: et collocavit ante paradisum coluptatus Cherubim, et flammeum gladium atque versaiilem, ad custodiendam vian ligni vitae. Genesis, C.3”.

Figura 6 – Epígrafe Fonte: ANDRADE, 1922.

O fragmento bíblico relata o pecado de Eva, que foi seduzida pela serpente e acabou desobedecendo às ordens de Deus, comendo e

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oferecendo a seu marido o fruto da árvore proibida. Como castigo, Deus os expulsou do paraíso e colocou anjos com espadas de fogo para proteger o local do homem. O tema do capítulo apresentado apenas por seu fragmento é a expulsão do paraíso pelo cometimento do Pecado Original, que, segundo a Bíblia, fez com que todos os homens precisassem viver fora do jardim perfeito, sujeitos a sofrimentos e à vida dura de um mundo pecador. Desse lamento apresentado pela expulsão do paraíso parece advir o título do volume: Os condemnados. São muitas as passagens, principalmente se referindo à personagem Alma, em que o narrador apresenta uma lamúria ao simples fato da existência terrena. Todos os personagens, com exceção de Mauro Glade, vivem uma espécie de condenação, marcada por sofrimento e abandono, como podemos perceber nesta passagem em que o narrador exprime os pensamentos de Alma: Alma caminhava como uma pessoa ferida. Não via ninguem nas ruas populosas. Carregava um amargor de predestinada dentro do pequeno coração. O gosto suffocante da vida invadira-lhe a bocca, a garganta, as narinas. Entregara-se já a tres homens differentes. E agora Mauro exigia que ella sahísse de casa. Era de certo mesmo a tola, a estupida, que elle dizia, aos berros e as soccos [...]. (ANDRADE, 1922, p. 23)

A título de ilustração, podemos perceber nesta outra passagem, na qual o narrador também relata os pensamentos de Alma, novamente essa característica: Se, ao menos, Mauro a amasse. Se encontrasse nelle a correspondencia dos exaltados sentidos. Sabia que o adunco caften a trahia. Ao atravessarem agora o largo claro do Paysandú, no demorado occaso azul, vira-o sorrir para uma sacada. Tivera ímpetos de gritar alli mesmo. Mas uma vergonha absurda, cheia da sua virgindade invencida, contivera-a, dissuadira-a. Seria possível então! Tudo no mundo era trahição premeditada, engano maldoso! (ANDRADE, 1922, p. 25)

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O narrador onisciente acompanhará toda a história, em terceira pessoa, abrindo espaço para o uso do discurso direto, em que os personagens assumem a voz da narrativa. O enredo é dividido em cenas, com a separação de apenas um espaço em branco; entretanto, esse procedimento não nos permite afirmar que constitua capítulos diferentes. Os fatos são narrados em blocos. Características dos personagens, sejam físicas ou psicológicas, estão dispostas no texto de maneira não organizada. A trama tem a participação de três personagens principais, que formam um triângulo amoroso: Alma d’Alvelos, João do Carmo e Mauro Glade. Alma é uma moça ruiva, de olhos verdes, com mais ou menos 20 anos, que mora com seu avô Lucas. Sobre o avô, temos poucas informações. Sabe-se que tinha um altar em casa com santos trazidos do Amazonas, onde vivera, que tinha dívidas a pagar e vergonha de Alma, por saber que já havia se entregado a vários homens. O avô morre no decorrer da história. Alma trabalha em uma rendez-vous, e são descritas várias cenas em que ela se encontra no cabaré atendendo clientes. Sustenta um amor por Mauro Glade, que é seu cáften e a mantém no emprego, além de “tomar” dela o dinheiro recebido. Ele a maltrata física e psicologicamente, mas mesmo assim Alma sempre volta para os braços dele. Já na primeira cena do livro, Alma está na casa do avô, pensativa. “Pensava: porque será que quando uma porta me machuca, me faz soffrer; quando bato a cabeça numa janella, choro de dor; e elle póde me cortar a navalha, não dóe: é delicioso” (ANDRADE, 1922, p. 16). O envolvimento de Alma com Mauro é doentio e a acompanha até o final do romance, mesmo permeado por desencontros. Mauro Glade, filho de um merceeiro do Brás, era “Adunco, metallico, dansava nas ceias nocturnas como um deus decahido” (ANDRADE, 1922, p. 20). Era casado em Buenos Aires e esperava, em São Paulo, o divórcio para, segundo ele, legitimar a situação com Alma, o que nunca acontece. Mauro é descrito como um homem violento, e são narradas várias cenas em que ele ofende fisicamente Alma, com socos e pontapés. No outro vértice do triângulo amoroso está João do Carmo, telegrafista da Estação da Luz. Ele morava sozinho em um quartinho da estação, sua família era de Pernambuco, tinha um irmão padre e uma irmã louca. Praticava natação no Rio Tietê para relembrar sua infância

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no Recife. “Depois da infância livre, tivera uma educação confusa num collegio francez” (ANDRADE, 1922, p. 28). Estabeleceu relações com “tres latagões que faziam parte berrante da joven literatura cosmopolita da cidade” (ANDRADE, 1922, p. 29) e com eles (Dagoberto Lessa, Telles Aguilar e Pinto Pé de Anjo) firmou uma relação de amizade e de encontros nos quais debatiam assuntos relacionados à literatura e às relações amorosas (cada um trazia seus escritos). João do Carmo também era poeta, “Perambulava confusamente por estheticas e religiões. Compunha versos e tinha receio de mostral-os” (ANDRADE, 1922, p. 29). Sobre sua cabeceira estavam um retrato do poeta francês Charles Baudelaire, do qual era admirador, e uma foto de sua mãe morta. Alma nega o amor de João do Carmo por várias vezes, mas o telegrafista não desiste de tê-la como sua. Ele fica sabendo da profissão da moça, mas mesmo assim não a renega. Alma o ignora até descobrir que está grávida de Mauro Glade. Ao lhe dar a notícia, ela é agredida fisicamente e obrigada por Mauro a fazer um aborto. Como discorda, ela foge da rendez-vous onde trabalhava e procura João do Carmo, que aluga um quartinho para que ela pudesse ter o filho. Alma tem seu filho, mas acaba não aceitando mais a presença de João do Carmo no quartinho alugado. Luquinhas (mesmo nome do avô) cresce sem muitos recursos, mas a mãe sustenta por ele uma profunda adoração. Ele é filho de Mauro Glade, seu grande afeto. Em todas as cenas que relatam Alma com seu filho, ela é referida como Maria, passando pelos mesmos dramas com que a Mãe de Jesus passara com seu filho. Alma reencontra Camila Maia, uma velha conhecida, que lhe apresenta um homem, Teles Melo, que tinha uma garçonnière na Rua da Boa Morte. E com ele vai morar. Alma instalara-se com Luquinhas num bungalow atarracado das Perdizes. Possuía joias e moveis, louça frisada de ouro, uma aia alleman para o pequerrucho. E o automovel verde do electricista passeou, nas tardes quentes, a sua renovada belleza pelo Triângulo cheio. (ANDRADE, 1922, p. 145)

Porém, logo Mauro descobre que ela está vivendo com Teles e começa a frequentar a casa. No segundo encontro, Teles surpreende-os e a expulsa de casa. E Alma volta a se prostituir.

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Luquinhas morre de colerina. As cenas que envolvem o funeral dão à Alma o título de Santa. Alma então volta a procurar João do Carmo, que sente que ela não é mais a mulher que ele amou. Decepcionado, ele se suicida. A cena do suicídio, porém, não está no livro. Nas últimas páginas, o narrador dá indícios do suicídio referindose a João do Carmo: “O desequilibrio em que corriam os seus dias anunciavam-lhe uma especie de exame final, em que seria fatalmente reprovado” (ANDRADE, 1922, p. 193). E a última cena apenas relata: “Na manhã do Tietê, o club de natação içou sua bandeirola, triangular e vermelha, a meio-pau” (ANDRADE, 1922, p. 200).

2.1 A CRÍTICA DA HORA

Segundo Mário da Silva Brito (apud ANDRADE, 2003a, p. 10), o lançamento do primeiro volume d’A trilogia do exílio deixou “a crítica tradicional – ou os que emitiam opiniões sobre livros pelos jornais e revistas – perplexa, aturdida mesmo”. A publicação de estreia de Oswald de Andrade gerou muita discussão entre a crítica literária da época, assim como a própria Semana de Arte, uma inovação que dividia opiniões e era recebida tanto com vaias quanto com aplausos. Enquanto alguns defendiam a nova técnica, elogiando o avanço trazido pelo escritor paulista, outros frisavam que sua obra estava fadada ao fracasso, pois não seria aceita pelo público leitor e, portanto, não teria a repercussão esperada para uma obra literária. Monteiro Lobato, o editor da obra, faz uma breve crítica ao romance na Revista do Brasil, da qual era um dos diretores. O texto, intitulado “Ache o seu trilho”,1 faz uma apresentação do romance que pode ser considerada mais uma espécie de rejeição que elogio. Lobato, ao abordar a forma do romance, considera que essa deveria estar de acordo com a “psicologia média dos leitores”, enfatizando que Oswald não atinge esse formato com seu primeiro volume d’A trilogia do exílio. Nas palavras de Lobato (apud BOAVENTURA, 2000, p. 155), o escritor faz o movimento inverso ao que lhe traria reconhecimento do público: 1

Artigo publicado originalmente na Revista do Brasil, São Paulo, em setembro de 1922.

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Quando, ao invés disso, arrastado por preocupações de escola, vai contra ela, na vã tentativa de inovar em vez de causar a impressão visada causa uma impressão defeituosa, incompleta, “empastelada”, muito diferente da que pretendeu. Tenha isto em vista o jovem romancista, faça experiências in anima nobile, abandone teorias, escolas, corrilhos “ache seu trilho” – e sua obra corresponderá na aceitação pública ao muito que se espera do seu magnífico talento.

E tece uma breve apresentação psicológica dos três personagens principais, Alma, Mauro Glade e João do Carmo: [...] Neste primeiro tomo a heroína, Alma, surgenos como espezinhada flor da lama. Sua vida é um puro inferno – é o inferno moderno da prostituição forçada. Ainda na aurora dos anos, a sina má fê-la cair nas mãos de um cáften. O cáften! Não criou a civilização monstro mais completo, e mais incompreensível. Entretanto, se penetrarmos bem no fundo da alma feminina, veremos que ele prende raízes justamente no que a mulher possui de mais sublimado: a capacidade infinita de dedicação, a dedicação levada ao sadismo. Mauro é, no romance, esse monstro, que traz empolgada a triste mártir. [...] Inutilmente aparece para salvá-la do abismo o amor puríssimo de João do Carmo, feito de infinitos de ternura e dedicação. Alma não consegue arrancar-se às garras de Mauro. Foi dele, é dele, será dele. (LOBATO apud BOAVENTURA, 2000, p. 154)

Feitas essas considerações, chega à conclusão de que toda a psicologia dos personagens pode ser resumida por uma condição de vida “rigorosamente lógica dentro das premissas do temperamento e da fatalidade”. E, além disso, frisa a condição de vida de Luquinhas, filho de Alma com Mauro, “triste criança que passou pela vida para completar na alma de sua mãe o ciclo inteiro da dor”, como personagem

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que tem sua vida na obra “primorosamente cinematografada numa série de quadros a Griffith” (LOBATO apud BOAVENTURA, 2000, p. 154). A técnica de corte e fragmentação leva o nome do diretor de cinema estadunidense D. W. Griffith, introdutor de inovações na forma de fazer cinema nas duas primeiras décadas de 1900. Para Lobato, o romance trazia a técnica da fragmentação, inovadora; porém, o uso desse procedimento apenas afastava o autor de seu público, o que para o editor não era visto como uma característica favorável. Reconhece as boas qualidades de escritor de Oswald de Andrade, mas não as visualiza na obra em questão, deixando claro que esse romance estava “fora do trilho”, longe de representar o que era esperado de uma obra literária proveniente do paulista nessa época. A utilização da técnica cinematográfica, de corte e montagem, assim como para Lobato, também foi tema do texto publicado por Antônio Carlos Couto de Barros na revista do grupo modernista Klaxon: Mensário de Arte Moderna, de outubro de 1922, na coluna “Livros e Revistas”, dedicada a apresentar publicações recentes e receber contribuições frequentes também de Mário de Andrade. Ao apresentar Os condemnados, Couto de Barros (apud KLAXON, 1922, p. 17) ressalta: “O livro inaugura em nosso meio technica absolutamente nova, imprevista, cinematographica. Ao leitor é deixado adivinhar o que o romancista não diz, ou não deveria dizer”. Quanto ao enredo, o resenhista destaca que os personagens estão alinhavados a um núcleo, porém de maneira maleável, o que acaba levando-os a extremos, como o suicídio de João do Carmo e a paixão de Alma por Mauro Glade. O romance conta a tragédia de seres actívos, que querem agir, precisam agir, mas que estão presos, não por correntes, mas por elásticos, – força centrifuga que os faz desequilibrados, dando-nos a sensação physica de um esforço sempre contrariado. E os elásticos, ás vezes, pela propriedade que os caracteriza, os empurram além do limite que aquelles seres desejariam attingir. Dahi o suicídio do telegraphista. Dahi, a mórbida paixão de Alma. (BARROS apud KLAXON, 1922, p. 17)

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Para ele, no entanto, o principal do romance não é o enredo, mas sim os detalhes em que Oswald de Andrade se revela prodigioso, por construir personagens “inchados de miséria e fatalidade”. Apesar de elogiar em parte a publicação do paulista e a considerá-la uma obra de arte, Couto de Barros (apud KLAXON, 1922, p. 17) não deixa de reconhecer que muitos “erros” permeiam o texto, sem desvalorizar o escritor, uma vez que para ele não há artista que não tenha defeitos e não os deixe visualizar em sua obra. Obra de arte?! Sim, apezar dos defeitos. Felizmente, o livro tem defeitos. Nunca soube de artista que fosse prudente, que não errasse. O que ha de divino nos artistas é justamente esse "élan" estouvado, esse eterno caminhar, que os impedem de parar e reflectir si o caminho que seguem é certo, bom, firme e valioso, como uma escriptura publica...

De maneira similar à apresentada por Monteiro Lobato, a crítica de Couto de Barros enaltece a técnica do romance e também aponta defeitos; no entanto, os erros são tomados como “divinos”, pois para ele não há artista que não cometa erros e essas falhas servem para enaltecer o trabalho. O elogio à obra é evidente, uma vez que os “defeitos” são atenuados em detrimento do procedimento inovador da obra.

2.2 A CRÍTICA POSTERIOR E AS OBRAS POSTERIORES DE OSWALD DE ANDRADE

Em seu projeto historiográfico denominado A literatura do Brasil, Afrânio Coutinho, em 1955, analisa o primeiro romance de Oswald de Andrade. No prefácio à primeira edição de sua obra, abordando os critérios de organização dos volumes, Coutinho (1986, p. 42, v. 1) afirma: Suas divisões correspondem aos grandes estilos artísticos que tiveram representação no Brasil, desde os primeiros instantes em que homens aqui

35 pensaram e sentiram, e deram forma estética a seus pensamentos e sentimentos.

Os volumes apresentam os movimentos barroco, neoclassicismo, arcadismo, romantismo, realismo, naturalismo, parnasianismo, simbolismo e modernismo. O quinto volume é dedicado à Era Modernista. Essa é apresentada tendo como base as principais publicações da época, agrupadas por suas características similares e, portanto, por pertencerem a um mesmo período literário (segundo critérios do autor). Referindo-se ao primeiro volume d’A trilogia do exílio, o crítico afirma que a estreia do escritor paulista constitui-se em um romance que se caracteriza pela técnica original de narrativa e uma constante procura de estilo. Mas, além do estilo pessoal, cheio de surpresas, vale-se de maneira imprevista de dizer, parente dos processos cinematográficos.

Passa a uma brevíssima descrição dos personagens que aparece entre parênteses: “(o romance gira em torno da prostituta Alma, do caften Mauro Glade e do apaixonado e suicida João do Carmo)” (COUTINHO, 1986, p. 24, v. 6). Torna-se evidente a questão da exaltação da técnica cinematográfica também por Afrânio Coutinho. O que nos parece relevante é ressaltar que a obra ganha apenas um pequeno espaço no volume destinado ao modernismo brasileiro; é apenas uma menção rápida, de um parágrafo, em que o autor tece um comentário sem adentrar nas relações intrínsecas dos personagens e no enredo do romance. O uso da técnica cinematográfica, como a crítica da época ressaltava, identificada no primeiro romance publicado por Oswald de Andrade, passa a ser uma marca nas leituras que a obra do escritor irá receber. A publicação do primeiro volume d’A trilogia do exílio seria um anúncio do que caracterizaria outros dois romances do escritor, dos anos posteriores de 1924 e 1933, e que fariam uso de tal técnica: Memórias sentimentais de João Miramar e Serafim Ponte Grande. Memórias sentimentais de João Miramar é considerado por Haroldo de Campos (apud ANDRADE, 2004a, p. 20) “o primeiro cadinho de nossa prosa nova”. Haroldo de Campos, em ensaio que

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prefacia a segunda reimpressão da quinta edição da obra pela Editora Globo, aproxima o efeito paródico utilizado por Oswald de Andrade a outras duas obras importantes: Ulysses, de James Joyce (1922), e Macunaíma (1928), de Mário de Andrade, especialmente no fragmento “Carta as Icamiabas”. A junção de pequenos episódios, o uso da colagem e da sobreposição são características presentes nessas duas obras. Tal estilo é esmiuçado por Campos (apud ANDRADE, 2004a, p. 54): Uma vez que a ideia de uma técnica cinematográfica envolve necessariamente a de montagem de fragmentos, a prosa experimental do Oswald dos anos 20, com a sua sistemática ruptura do discursivo com a sua estrutura fraseológica sincopada e facetada em planos díspares, que se cortam e se confrontam, se interpenetram e se desdobram, não numa sequência linear, mas como partes móveis de um grande ideograma crítico-satírico do estado social e mental de São Paulo nas primeiras décadas do século, esta prosa participa intimamente da sintaxe analógica do cinema.

Haroldo de Campos (apud ANDRADE, 2004a, p. 22) estabelece uma sequência entre Memórias sentimentais de João Miramar e Serafim Ponte Grande, escritos quase uma década após o primeiro; no entanto, com o mesmo projeto. Para o crítico, o Serafim leva às “consequências necessárias” o experimento do Miramar, sendo uma continuação do primeiro romance em que a técnica é ainda mais aprimorada, uma “espécie de continuum da invenção” (apud ANDRADE, 1985, p. 148). E, insistindo na questão da técnica de montagem, afirma: O Serafim é um livro compósito, híbrido, feito de pedaços ou amostras de vários livros possíveis, todos eles propondo e contestando uma certa modalidade do gênero narrativo ou da assim dita arte da prosa. (apud ANDRADE, 1985, p. 149)

A técnica aplicada ao romance surgia como forma de discutir as questões da cidade de São Paulo, não apenas artísticas, mas sociais e culturais de maneira geral. A proposição era promover o debate em prol

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da mudança, uma vez que o romance já não era capaz de acompanhar o pensamento que a industrialização e o desenvolvimento da década traziam à cidade. O desenvolvimento da cidade não estava acontecendo de maneira sequencial, obedecendo a um ordenamento lógico, e as obras de arte não poderiam continuar no ritmo estabelecido pelos romances do período pré-industrialização. O procedimento corte–montagem surgia como uma opção de contestação, como um apelo à renovação. O procedimento utilizado por Oswald de Andrade nos dois romances e elogiado por Haroldo de Campos também pode ser visto nos livros de poemas publicados entre as décadas de 1920 e 1930. O escritor inova em seus poemas, trazendo à tona discussões provenientes do interesse da renovação das artes nacionais. Pau Brasil, o primeiro livro de poesias do autor, é uma coletânea de pequenos poemas divididos em nove partes, cada qual composta de números distintos de poemas: “História do Brasil”, “Poemas da colonização”, “São Martinho”, “RP1”, “Carnaval”, “Secretário dos Amantes”, “Postes da Light”, “Roteiro das Minas” e “Loide Brasileiro”, ilustrados por Tarsila do Amaral. É uma poesia, segundo Haroldo de Campos (apud ANDRADE, 2003b, p. 9), radical em que o autor consegue transpor a inquietação do homem brasileiro novo diante das evoluções industriais de São Paulo por meio da radicalização da linguagem. A época “exigia” uma tomada de postura crítica, de mudança. E, para Campos (apud ANDRADE, 2003b, p. 8), [...] os poemas-comprimidos de Oswald, da década de 20, dão um exemplo extremamente vivo e eficaz dessa poesia elíptica de visada crítica, cuja sintaxe nasce não do ordenamento lógico do discurso, mas da montagem de peças que parecem soltas.

Como podemos perceber, é novamente na questão da formatação dos poemas, na utilização de novos procedimentos (poemas curtos, sintaxe de montagem), que se localiza o elogio de Haroldo de Campos, mais uma vez ordenando paralelamente as questões literárias e as inovações da cidade. Paulo Prado (apud ANDRADE, 2003b, p. 91), na apresentação do livro quando de sua publicação (1925), considera Poesia Pau Brasil “o primeiro esforço organizado para a libertação do verso brasileiro”. Nesse sentido, corrobora com a ideia de Haroldo de Campos sobre o

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trabalho do poeta paulista, enfatizando que o momento da vida moderna exigia um novo vocabulário e a criação de uma prática literária que se afastasse cada vez mais da literatura portuguesa. Nas palavras de Prado (apud ANDRADE, 2003b, p. 91), Encaixar na rigidez de um soneto todo o baralhamento da vida moderna é absurdo e ridículo. Descrever com palavras laboriosamente extraídas dos clássicos portugueses e desentranhadas dos velhos dicionários, o pluralismo cinemático de nossa época, é um anacronismo chocante, como se encontrássemos num Ford um tricórnio sobre uma cabeça empoada, ou num torpedo a alta gravata de um dândi do tempo de Brummel. Outros tempos, outros poetas, outros versos.

Poesia Pau Brasil foi publicado inicialmente em Paris, indicação que podemos ver na folha de rosto do livro: “Impresso pelo ‘Sans Pareil’ de Paris 37, Avenue Kléber”. Interessante pensarmos nessa condição proposta por Oswald de Andrade: publicar na França um livro chamado Poesia Pau Brasil, cujos poemas propunham uma leitura da história do Brasil. E, nessa mesma página, podemos encontrar mais uma questão contraditória: um “poema vanguardista” dá abertura ao livro. O poema apresenta-se como uma sucessão de letras maiúsculas, organizadas de maneira a ficarem juntas sete letras por linha, sem obedecer à correta separação silábica da língua portuguesa, em que se pode ler:

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Figura 7 – Abertura do livro Pau Brasil Fonte: ANDRADE, 2003b.

Apesar de apresentado pelo autor como um cancioneiro, uma coletânea de canções, tradição iniciada em meados do século XIII, com a junção de cantigas trovadorescas galaico-portuguesas, não é o que podemos encontrar no livro. Não temos nessa obra poemas da tradição popular que possam ser acompanhados por instrumentos musicais, até porque o projeto oswaldiano tinha outros objetivos, como a desconstrução da forma tradicional. No livro de poesia que sucede o Pau Brasil, Primeiro caderno do aluno de poesia Oswald de Andrade, podemos encontrar a mesma dinâmica do primeiro livro de poesias. Segundo Augusto de Campos (apud ANDRADE, 2006, p. 22), não há diferenças em termos de linguagem, apenas em termos de grau. É o “poema-minuto” que habita também esse livro. Embora não apresente divisões em partes, como o

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primeiro livro, para Raúl Antelo (apud ANDRADE, 2006, p. 33), é possível identificar na grafia dos poemas do livro quatro locais, gares, em que se desdobram os tempos “infância”, “adolescência”, “maturidade” e “velhice”. A identificação desses locais, topos, é possível, segundo Antelo, devido à apresentação dos poemas no “caderno”. Da tipografia advém a topografia. Os poemas, mesmo sem apresentarem a divisão em sua organização, estão divididos em quadros pelos temas abordados, e novamente aqui encontramos a questão do procedimento de corte e montagem. Segundo João Ribeiro (apud ANDRADE, 2006, p. 7), o livro foi marco definitivo de uma época da poesia nacional, sendo Oswald de Andrade considerado o melhor crítico da ênfase nacional que o Brasil já conheceu. Pelo seu caráter gráfico (embora não tenhamos uma edição fac-símile do original, sabemos que foi escrito em duas cores, com todos os títulos em vermelho), foi considerado por Augusto de Campos (apud ANDRADE, 2006, p. 15) “o mais belo enquanto conjunto coerente de poemas, risco e ousadia de linguagem associados à concepção plástica e material de livro”. E foi com esse livro, ainda segundo o poeta e crítico, que Oswald de Andrade passou a fazer parte da “corrente sanguínea de nossa poesia. Já somos todos oswaldianos” (p. 19). O exercício transformado em livro, intitulado de maneira a enfatizar o caráter de caderno de criança, vem com a apresentação de abertura: ESCOLA: Pau Brasil CLASSE: Primária SEXO: Masculino PROFESSORA: A Poesia.

O autor deixa claro que se trata de uma poesia experimental, vindo da linha de Pau Brasil, firmando com isso uma nova leitura da poesia nacional, da visão de nação, poética e criticamente. Interessante se faz, a partir da breve apresentação das obras de Oswald de Andrade pela crítica, perceber que grande parte dos textos citados sobre as obras do escritor, que elogiam seu procedimento de escrita, é de autoria dos irmãos Campos. Augusto e Haroldo de Campos, juntamente a Décio Pignatari, assinam a publicação do Plano piloto para poesia concreta, no ano de 1958. Nesse “documento”, os poetas dão por “encerrado o ciclo histórico do verso” (CAMPOS;

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PIGNATARI; CAMPOS, 1975, p. 156) e, para isso, elegem uma série de escritores que adotaram os procedimentos por eles defendidos, como Apollinaire, Mallarmé, Pound e muitos outros. Ao encerrar a apresentação dos estrangeiros, continuam o texto abordando um “paideuma” brasileiro: “no brasil: oswald de andrade (1890-1954): ‘em comprimidos, minutos de poesia’” (p. 156). O projeto do escritor paulista, iniciado na década de 1920, é retomado pelo grupo na década de 1950. Os poemas curtos são defendidos, uma vez que representam essa ruptura com a estrutura do verso proposta pelos Campos e por Pignatari. Com a citação de Oswald de Andrade no documento norteador da prática da “nova poesia brasileira”, incitou-se, no campo nacional, a valorização de sua obra, sem reedições até esse período. Haroldo de Campos relembra um episódio emblemático acompanhado por ele quatro anos antes da morte de Oswald. Em ocasião do aniversário de 60 anos do escritor, no ano de 1950, foi oferecido um almoço de homenagem no Automóvel Clube, em São Paulo. O escritor, recebendo homenagens em diversos discursos que estavam sendo proferidos por escritores, críticos e jornalistas, responde, incisivamente, ao que se esperava que fossem grandiosos agradecimentos: “vê-se que estou no fim” (apud CAMPOS, 2003/2004, p. 46). E, para Campos (2003/2004, p. 47), tal postura demarcava notadamente sua posição na literatura brasileira de então: Seus livros não estavam reeditados, suas ideias pareciam não ter eco, era antes como um polemista e um agitador inveterado que ele parecia sobreviver, como um fóssil vivo, um abominável homem dos trópicos que a sociedade e a comunidade cultural – através de representantes os mais díspares e contraditórios –, ao celebrá-lo com um ato público, pareciam antes dispostas a conjurar e a exorcizar do que a compreender [...]. A comemoração preparava o enterro simbólico, assecuratório do silêncio final e do olvido rápido do truculento desmancha prazeres que era Oswald, na cena literária então dominada pela neoparnasiana Geração de 45 da qual destoava por berrante oposição.

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Foi somente no ano de 1971 que a obra completa de Oswald de Andrade foi reeditada, no Rio de Janeiro, pela Civilização Brasileira, através da coleção Vera Cruz de Literatura Brasileira. Podemos afirmar, nesse sentido, que o grupo concretista foi responsável, pelo menos em parte, pelo “reaparecimento” da obra oswaldiana no contexto da literatura brasileira e, portanto, poderíamos creditar ao grupo a difusão da obra do paulista, visível inclusive na apresentação dos livros escritos por Haroldo e Augusto de Campos. Apesar de termos como objeto de estudo o primeiro volume da edição de 1922 d’A trilogia do exílio – Os condemnados, o primeiro livro publicado por Oswald de Andrade, não podemos ignorar que o projeto dos três romances foi concluído, nos anos de 1927 e 1934, respectivamente, em que publicou A estrela de absinto e A escada de Jacó, e que, portanto, atravessa temporalmente o trabalho com a poesia de Oswald de Andrade, por isso é importante não perder de vista a relação entre a prosa e a poesia do autor em questão. Após a publicação dos três volumes separadamente, o projeto é retomado em 1941, praticamente uma década antes de sua morte, em que Oswald de Andrade republica-os em apenas um volume, o qual chamou de Os condenados. Esse volume respeitou a ordem de publicação das edições anteriores, porém os títulos passaram a ser Alma, A estrela de absinto e A escada. O fato da republicação, incitada pelo autor, nos remete à importância dada por ele a essa obra, que foi praticamente “ofuscada” pela crítica e até mesmo pelo público em detrimento dos romances de invenção (Serafim e Miramar) e dos livros de poesia (Pau Brasil e Primeiro caderno), publicados entre os anos 1920 e 1930, os mesmos d’A trilogia. Apenas a título de informação, pois o projeto de análise de toda A trilogia não será objeto desta pesquisa, podemos afirmar que o estilo que rege os três volumes é praticamente o mesmo: o texto é formado por frases curtas, os fatos estão narrados em discursos diretos e indiretos e a divisão entre as cenas se dá apenas por um espaço em branco, o que não chega a constituir capítulos diferentes. As cenas passam e retornam, porém cada quadro está ligado pelo sentido e as frases, embora curtas, seguem a sintaxe da língua portuguesa, agregando em sua grande maioria a estrutura: sujeito–objeto–complementos. Partindo de tais constatações estruturais, seja das obras d’A trilogia, seja de suas publicações subsequentes (citadas anteriormente), deparamo-nos com uma condição peculiar. Oswald de Andrade,

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produzindo de maneira diferente, inovadora e fragmentária (seja na estrutura formal, seja na sintaxe das sentenças), mantém o estilo no seu projeto de três romances, em que, apesar de ser visto pela crítica de 1922 como precursor da nova técnica, não se aproxima das inovações de sintaxe e semântica do Miramar e do Serafim, bem como dos “poemasminuto” de Pau Brasil e Primeiro caderno de poesia. Oswald de Andrade, ao sustentar tal postura da publicação d’A trilogia, assume uma atitude paradoxal não apenas com a “sequência” de sua obra, mas também com a própria crítica. Analisando o depoimento de Mario da Silva Brito, tal postura significa um rumo duplo da sua produção literária, diverso mas simultâneo, em que nenhuma produção exclui a outra e nem tem, para o autor, graus de importância distintos. Para Brito (apud ANDRADE, 2003a, p. 9), Assim, no conjunto da obra oswaldiana, aparecida nesses doze anos (1922 a 1934), há duas direções, dois ritmos, dúplice inventiva: a que caracteriza os recursos estilísticos e estéticos de A Trilogia do Exílio, e a que, em prosa e em poesia, marca a sua visão de extremada avant-garde e lhe confere lugar à parte no quadro das letras nacionais e mesmo do Modernismo. São diretrizes que coexistem no espaço e no tempo, mas brigam entre si, se opõem uma a outra, contradizem-se em vários pontos e aspectos. Mas, saindo da mesma pena, da mesma inteligência inquieta e criativa, guardam entre si, no fundo, um parentesco subterrâneo, se assim se pode dizer, uma área comum de crítica e análise de vida e do mundo.

Antonio Candido divide a obra prosaica de Oswald de Andrade em três fases distintas: a primeira abarca A trilogia do exílio; a segunda, o par Miramar/Serafim; e a terceira, Marco zero. Distingue também o problema da publicação esparsa dos três romances d’A trilogia, considerando que há uma contradição presente entre os textos e também entre o gesto de publicá-los ao longo de mais de uma década. Para Candido (1977, p. 43), tal gesto pode ser lido como uma atitude também pessoal: “Parece que Oswald de Andrade quis respeitar as contradições que sentia nele próprio, porque ainda não percebera claramente como resolvê-las”. Como sabemos, a relação entre Antonio Candido e Oswald

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de Andrade foi também de intimidade pessoal, e o crítico deixa claro, em diversas ocasiões (publicação de ensaios e estudos da obra do autor), que considera a vida do autor diretamente ligada às suas publicações. Essa hipótese não será aqui discutida, uma vez que temos como objetivo a análise dos personagens oswaldianos, até porque precisamos levar em consideração que o material que temos sobre o escritor paulista é literário, mesmo no primeiro volume de suas memórias (Um homem sem profissão: sob as ordens de mamãe) é do personagem Oswald de Andrade que temos informações. O intuito de promover essa discussão é o de pensarmos como essa atitude paradoxal mas simultânea está presente na obra escolhida para análise, o primeiro volume d’A trilogia do exílio – Os condemnados. Esses conflitos antagônicos vão permear os personagens do livro e todo o enredo, de forma a ressaltar ainda mais as oposições presentes na constituição do romance. Segundo Eugenio D’Ors (2002, p. 37), em seu estudo Lo barroco, quando nos deparamos com o processo de construção que trabalha com a simultaneidade de oposições, estamos diante de uma intenção barroca: Siempre que encontramos reunidas en un solo festo varias intenciones contradictorias, el resultado estilístico pertenece a la categoría del Barroco. El espiritu barroco, para decirlo vulgarmente y de una vez, no sabe lo que quiere. Quiere, a un mismo tiempo, el pro y el contra.

O espírito barroco de que nos fala o filósofo catalão pode ser observado na obra em questão em vários aspectos, os quais variam desde a constituição dos personagens (principalmente de Alma) até a própria escrita do texto, inclusive pela opção de escrita de um romance composto de fragmentos. Dessa maneira, o que se busca é abrir o “leque” de leitura, aproximando épocas distintas que apresentam pontos internos de ligação fortes (e aqui se explica a relação estabelecida com o barroco). Essa aproximação tem como base os estudos de Eugenio D’Ors e também de Walter Benjamin, que nos apresenta (principalmente n’A origem do drama barroco alemão) a possibilidade de aproximação de “períodos” distanciados pelo tempo cronológico, porém com fortes afinidades internas capazes de justificar a análise. Benjamin considera as características antecessoras e as sucessoras dos tempos como pré e pós-

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históricos, definição que não leva em consideração o distanciamento cronológico. Além disso, defende que não há uma origem, única e intocável, dos feitos históricos: eles estão em um eterno vir-a-ser e declinar, surgindo ao longo da linha do tempo sem linearidade. Nesse sentido, concatena com o pensamento de Eugenio D’Ors, para quem o barroco é considerado como um “éon”, ou seja, uma categoria cultural prestes a emergir a qualquer momento, independente do tempo cronológico. Tem-se a pretensão, a partir dessa síntese de ideias e conceitos apresentados (eles serão mais bem discutidos no decorrer deste estudo), de analisar o romance de Oswald de Andrade com a intenção de perceber de que maneira as concepções de tempo e de ambivalência barrocas estão presentes na obra, de modo a propor uma leitura que “costure” características e estabeleça relações por meio de afinidades internas, não levando em conta as especificações e as periodizações literárias.

2.3 PRÉ-MODERNISMO

A presente discussão rejeita o estudo das correntes literárias de maneira separada pelo tempo cronológico. Defende-se que não é possível dividirmos essas manifestações levando em consideração apenas a data em que foram escritas, pois, apesar de apresentarem uma relação com o contexto da publicação, não estabelecem com ele uma relação de causa–consequência, isto é, não temos como traçar uma relação direta e única entre obra e sociedade. “Encaixar” uma obra em um período sem levar em conta as características textuais, de forma e conteúdo, seria diminuir seu poder de expansão, restringir seus significados e, de maneira mais ampla, impossibilitar a presente leitura. Tendo em vista a data de publicação do primeiro volume d’A trilogia do exílio – Os condemnados, a obra estaria situada no movimento denominado pré-modernismo, que abrangeria os anos que antecederam a Semana de Arte Moderna (1922) e que já haviam ultrapassado o simbolismo, movimento anterior na questão cronológica. No entanto, analisaremos uma discussão proposta pelo professor Raúl Antelo que tem como ponto de partida a postura do crítico José

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Guilherme Merquior perante essa questão como justificativa para a leitura que este trabalho propõe. Em 1977, o ensaísta e crítico literário carioca José Guilherme Merquior lança o estudo De Anchieta a Euclides: breve história da literatura brasileira. Dividido em quatro partes – “A literatura da era barroca no Brasil”, “O neoclassicismo”, “O romantismo” e “O segundo oitocentismo” –, propõe uma leitura submetida a três preceitos críticos: “acessibilidade, seletividade, senso da forma” (MERQUIOR, 1979, p. VIII). Já pelo título podemos intuir que constrói seu estudo a partir de uma seleção especial de escritores, não levando em conta apenas os períodos literários convencionados cronologicamente. No seu prefácio à obra, datado de 1974 e intitulado “Ao leitor”, Merquior (1979, p. IX) traça seu objetivo: [...] pretendeu-se focalizar a interpretação crítica na estrutura mesma do texto literário. Daí a abundância de passagens em prosa e verso reproduzidos no corpo da exposição; e daí, principalmente, o cuidado em caracterizar cada obra, ou conjunto de obras, a partir de suas peculiaridades de escrita e de estilo, já que o conteúdo da obra literária transparece na intimidade de sua forma.

“O segundo oitocentismo” (quarto capítulo do livro, abordado aqui por sua importância no contexto desta análise) é entendido por Merquior (1979, p. 101) como “o período cultural que se estende até o âmbito histórico da Grande Guerra de 1914-1918, pois só então se pode falar, do ponto de vista espiritual, de fim de século XIX”. O crítico parte dessa distinção pois reconhece que, embora a ascensão da arte moderna já estivesse sendo preparada por fenômenos decisivos desde o final do século, é apenas a partir do final da década de 1910 e início de 1920 que se consolida nas artes plásticas, na música e na literatura. Propõe, nesse sentido, uma leitura da modernidade do século XIX em detrimento do modernismo proclamado na década de 1920, excluindo de seu parecer a categoria do pré-modernismo, que estaria situada exatamente nos anos antecedentes à Semana de Arte Moderna e, portanto, abarcaria a publicação da primeira obra de Oswald de Andrade. Em vez dessa categoria, uma fase “superada” pelo modernismo, Merquior fala de impressionismo.

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O professor Raúl Antelo, na ocasião da abertura da Semana de Letras, em 26 de maio de 2010, da Universidade Federal de Santa Catarina analisa as questões abordadas por Merquior no estudo citado para promover um debate acerca do significado de estudar as disciplinas literárias atualmente. Na fala, intitulada O velho e o novo: a superação nos estudos de letras, Antelo estabelece um paralelo entre a educação medieval e a atual e chega à conclusão de que pouca coisa mudou, pois os projetos contemporâneos possuem um cunho tão minimalista (pela apresentação de resumos e de antologias) quanto o manual quadrivium (manual que reunia aritmética, geometria, música e astronomia) utilizado para a educação dos bárbaros pelo Império Romano na Era Medieval. A crítica literária Flora Sussekind tocava nessa questão, segundo Antelo, em 2010, ocasião na qual argumentava que a experiência crítica parece estar barrada pela homogeneização impositiva da atualidade, uma vez que não há exterior ao sistema e, portanto, acabaram-se as situações de conflito e as cisões necessárias a essa crítica do presente. Utilizandose do pensamento de Jacques Rancière a respeito de escritores contemporâneos, deixa claro que estamos em um período de interrupção da relação de contribuição que a literatura oferecia às ciências humanas até meados do século XX. A literatura não seria mais capaz de inventar, hoje, categorias de decifração da experiência comum. Torna-se necessário, tendo em vista a nova situação imposta pelos textos literários, refletir sobre as questões referentes à relevância do estudo das obras literárias; para tanto, Antelo resgata algumas “cinzas” do estudo já citado de Merquior, considerando que, para sua geração, o crítico carioca era visto como um retrógrado, pois chegou a atuar como ghost writer do general Golbery e a escrever o discurso de posse do presidente Collor, e os compara com os estudos de Antonio Candido, considerado progressista por seu engajamento com a revolução cubana. Ao propor uma leitura da modernidade brasileira, Merquior distingue a modernidade do século XIX em contraponto ao alto modernismo dos anos 1920. Para Antelo, essa relação estaria caracterizada por vários pontos em que podemos destacar a passagem de uma concepção mágica para uma concepção lúdica da arte. A questão da arte–jogo era reivindicada por Merquior num plano dúplice: tanto no conteúdo, aproximado ao fundador da lírica realista, Baudelaire, que incorporou o vulgar cotidiano a poemas de tom sério e problemático,

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quanto na questão da forma, uma vez que, a partir do impressionismo, a percepção do tempo e os ritos da memória são motivos essenciais na ficção, quase sempre como lembrança crítica e compreensão do sentido da experiência passada. Segundo Merquior, assim como a poesia de Baudelaire, também o romance impressionista elabora uma penetrante denúncia ao estilo existencial moderno. Da mesma forma que a lírica em Baudelaire, “o romance impressionista parece estar profundamente ligado ao senso da perda de qualidade da existência” (MERQUIOR, 1979, p. 152). Os romances impressionistas apresentam um estilo refinado e dirigido a um público sofisticado, o que aumenta o distanciamento entre arte e público. Esse distanciamento, segundo Antelo (2010), “é a manifestação mais rigorosa de uma tendência geral da cultura artística da elite no século XX”. O romance impressionista, segundo Merquior (1979, p. 151), “privilegia a análise psicológica em detrimento da narrativa centralizada nas peripécias exteriores”. Essa tipologia funda o romance psicológico de tipo moderno, ou seja, de estrutura não-linear. O relato de narrador impessoal e onisciente, usado pelos realistas e naturalistas, é substituído pela história contada do ponto de vista do herói autor [...]. Elaborando a técnica do ‘discurso vivido’, o romancista procura captar a vida interior dos protagonistas (MERQUIOR, 1979, p. 151).

Nesse sentido, podemos encontrar nesses romances o recuo da visão trágica do destino, o qual resultou, segundo Antelo, na morte do herói lukacsiano e no consequente aparecimento de anti-heróis. No Brasil, o representante máximo dessa categoria é, para Merquior, Machado de Assis. Ao referir-se aos seus contos, chega a afirmar que a técnica machadiana é uma das melhores e mais geniais do gênero nas literaturas latinas e que somente Jorge Luis Borges, em termos contemporâneos, “exibe um domínio comparável da narrativa curta” (MERQUIOR, 1979, p. 175). Quanto aos romances, Merquior (1979, p. 173) exalta a retórica utilizada pelo autor, frisando que seu estilo retórico não deve ser confundido com ornamentalismo gratuito. “Retórica, é claro, no melhor, no verdadeiro sentido, ou seja: de consciência da natureza artificial e técnica da frase literária”. A

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utilização dessa frase literária construída pela boa técnica, para o crítico, seria responsável por engrandecer ainda mais o romance machadiano: Machado é um escritor em quem o aspecto fortemente retórico do estilo, longe de lesar, reforça a energia mimética da linguagem, o seu poder de imitar, de fingir (ficção) efetivamente a variedade concreta da vida. (p. 174)

Antelo (2010) define Merquior como um “ardoroso defensor da erudição”, o que podemos perceber nessa defesa da técnica empregada na frase literária, repleta de recursos retóricos, além da abordagem realizada da arte moderna como meio de distanciamento do público em detrimento do que se buscava na arte oitocentista, que visava à empatia. Esse distanciamento do público massificado (produzido pela Era Industrial) juntamente à atitude de manter a soberania da língua literária são considerados, por Merquior (1979, p. 152), como uma combinação única de esteticismo e oposição cultural legada à arte moderna, “dentro da qual tem florescido o que há de melhor na literatura do nosso tempo”. Considerado como a melhor manifestação literária brasileira, o romance impressionista representado por seu ícone máximo, Machado de Assis, ainda possuiu outro caráter de suma importância para o crítico carioca: “Foi com Machado de Assis que a literatura brasileira entrou em diálogo com as vozes decisivas da literatura ocidental” (MERQUIOR, 1979, p. 155). A partir dessas duas questões colocadas por Merquior (a mundialização/globalização da literatura e a questão do público massificado), Antelo justifica a atualidade dos estudos do crítico, considerado, por uma geração do passado recente, como um retrógrado em detrimento das ideias arrojadas de Antonio Candido.2 Segundo 2

Antelo analisa a obra de Merquior tendo como contraponto o trabalho de Antonio Candido. Cita como fato importante dessa postura arbitrária e “retrógrada” de Candido (como já dito anteriormente, pelo estudo de algumas “cinzas” dos textos já considerados clássicos dos dois) o seguinte fato (dentre outros apontamentos): no ano de 1965, ao ministrar aulas na Sorbonne e no Institut des Hautes Études de l’Amérique Latine, em Paris, Antonio Candido acatou o programa desenvolvido pelo Ministério da Educação da França, submetendo-se ao ensino de autores objetos de concursos. Para Antelo (2010), “O materialismo fez Candido aderir à realidade limitada, dos seres e das coisas, sem precisar desdobrá-los para além de suas fronteiras”.

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Antelo, Merquior previu, em 1977, que o futuro da poética é planetário, além de apenas moderno, ponto que toca o essencial do debate contemporâneo, a emergência da world literature, proclamada por inúmeros estudiosos como Fredric Jameson ou Stuart Hall. Além disso, também foi capaz de perceber que “a estandartização da arte de elite, aquilo que ele chamava de alto kitsch, acabaria por transportar, para o santuário da ‘grande arte’, as categorias da estética massificada” (ANTELO, 2010). Antelo frisa também que Merquior foi capaz de perceber certa postura anacrônica dos escritores dos romances impressionistas ao determinar que a literatura acompanha apenas em parte os hábitos cosmopolitas e as tradições nacionais. Não são estabelecidas, nesses romances, relações de causa e consequência, de leitura da sociedade tal qual se apresenta. E complementa: nem Pound nem Joyce, nem Kafka nem Broch, nem Borges nem Guimarães Rosa poderiam ter escrito o que escreveram sem familiaridade sistemática com o acervo polifônico da biblioteca literária do Ocidente – para não falar a área extraocidental. (ANTELO, 2010)

Trazendo esse debate para as questões abordadas pela leitura da primeira obra publicada por Oswald de Andrade, podemos encontrar pontos de contato entre esse “grupo” criado por Merquior, que une os romances impressionistas, e características do primeiro volume d’A trilogia do exílio – Os condemnados, de Oswald de Andrade. Conforme Merquior, os romances impressionistas primavam por um público específico, pois apresentavam uma escrita mais elaborada; por esse motivo, nem sempre as obras escritas sob esse viés, de distanciamento do público, foram bem recebidas pela massa leitora do final do século XVIII e dos primeiros anos do século XIX. Conforme vimos na crítica elaborada por Lobato ao primeiro volume d’A trilogia logo após a sua publicação, no ano de 1922 (por sua editora), o texto aborda o distanciamento que o romance de Oswald de Andrade apresenta do público. É o caminho errado, segundo Lobato, está fora da “psicologia média dos leitores” e não atinge o sucesso esperado por essa característica. Porém, se pensarmos no que nos aponta Merquior, percebemos que o distanciamento do público massificado foi um ato consciente do autor. Além disso, em diversas entrevistas ou

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textos jornalísticos de Oswald de Andrade, ele faz referência à “opção” favorável a esse distanciamento. Em texto publicado pela primeira vez na revista Ritmo (São Paulo, 1935), denominado “Hora H”,3 o escritor paulista afirma: “A massa, meu caro, há de chegar ao biscoito fino que eu fabrico” (ANDRADE, 1992a, p. 49). Em outro texto emblemático, desta vez uma entrevista a Silveira Peixoto no ano de 1941,4 o autor reitera sua postura diante do público; ao se referir a seus romances, afirma: “Não são livros para o grande público” (ANDRADE, 2009, p. 113). Outro ponto importante que pode ser destacado está na constituição interna do romance. Para Merquior, como já citado, o romance impressionista privilegia a análise psicológica dos personagens, além de apresentar uma estrutura não linear. É o que encontramos no primeiro volume d’A trilogia. Um relato centrado nas características psicológicas dos personagens, que são muitas vezes relatadas por um narrador que “lê” os pensamentos deles e os transcreve ao leitor. Os fatos não obedecem a uma ordem linear; só é possível construir a figura do personagem por meio da leitura completa do romance, pois a cada página novas questões são trazidas, seja a complementação das características físicas, seja mais informações sobre atos e pensamentos dos personagens. Com o romance impressionista, segundo Merquior, ocorre o advento de um outro tipo de herói, diferente do herói épico. Anti-heróis passam a ser o centro das narrativas. No romance em questão, não nos parece pertinente essa categoria de anti-herói, pois João do Carmo não chega a ser um “avesso” ao que tínhamos nos romances épicos. Ainda temos a figura de um herói que comete suicídio por amor; no entanto, é a figura de um herói decadente, desconfiado do amor de Alma, que consegue perceber as atitudes desviadas de sua amada, enfim, a imagem de herói ideal sofre um apagamento no romance oswaldiano, o que enfatiza o caráter de conexão da obra com as obras do final do século e suas características de decadência. 3

Publicado na coletânea de textos do autor denominada Estética e política (Editora Globo, 1992), organizada por Maria Eugenia Boaventura. O título deste artigo foi atribuído pela organizadora. 4 Publicado na coletânea Os dentes do dragão (Editora Globo, 2009), organizada também por Maria Eugenia Boaventura. Esta entrevista foi publicada na Gazeta de Notícias, em São Paulo, em 21 de setembro de 1941.

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Nesse sentido, torna-se pertinente a discussão proposta, pois sabemos que, apesar da distância cronológica e das diferenças textuais que podem ser encontradas entre as obras de Machado de Assis (as melhores representantes do período, segundo Merquior) e o romance oswaldiano em questão, algumas afinidades podem ser estabelecidas entre os textos, como a questão do distanciamento do público e da retórica apurada. Aproximação por afinidades internas entre as obras de arte no sentido proposto por Walter Benjamin, teoria que será discutida no próximo item do trabalho.

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3 CONSIDERAÇÕES SOBRE A HISTÓRIA, O TEMPO E A LEITURA DAS OBRAS – ALMA

A presente análise pretende utilizar como método a leitura anacrônica do primeiro volume d’A trilogia do exílio, de Oswald de Andrade, ou seja, busca-se identificar afinidades internas entre obras e movimentos literários que estão separados cronologicamente, porém que não cessam de deixar suas marcas em outros textos. Para construir o caminho, uma reflexão será preciso, a qual será responsável pelo embasamento teórico desta leitura. Filósofos e historiadores da arte que acreditaram ser possível a leitura anacrônica das obras de arte serão a base para a construção a que o presente trabalho se propõe. Giorgio Agamben (2009, p. 58), ao proferir a lição inaugural do curso de Filosofia Teorética da Faculdade de Arte e Design de Veneza (2006-2007), orienta seus alunos sobre o andamento do seminário: “O ‘tempo’ do nosso seminário é a contemporaneidade, e isso exige ser contemporâneo dos textos e dos autores que se examinam”. E lança as seguintes questões: “De quem e do que somos contemporâneos? E, antes de tudo, o que significa ser contemporâneo?”. O filósofo salienta que, apesar de trazer para as discussões textos que podem estar há séculos de distância do tempo em que o curso será ministrado, se torna essencial que de alguma maneira os alunos sejam contemporâneos desses textos. A contemporaneidade “é uma singular relação com o próprio tempo” (AGAMBEN, 2009, p. 59). Para chegar a essa primeira conclusão, Agamben retoma a seguinte anotação de Roland Barthes: o contemporâneo é o intempestivo, que tem como base os estudos de Friedrich Nietzsche, que publica em 1874 seu estudo Considerações intempestivas. Nas palavras de Agamben (2009, p. 5859), Nietzsche situa a sua exigência de “atualidade”, a sua “contemporaneidade” em relação ao presente, numa desconexão e numa dissociação. Pertence verdadeiramente ao seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com este, nem está adequado às suas pretensões e é, portanto, nesse sentido, inatual; mas, exatamente por isso, exatamente através desse deslocamento e desse anacronismo,

54 ele é capaz, mais do que outros, de perceber e apreender o seu tempo.

A relação com o tempo deve-se dar através do anacronismo, da dissociação, pois, como frisa o filósofo, quem adere aos aspectos da época em que vive plenamente não é capaz de manter um olhar fixo sobre ela e, portanto, não pode ser contemporâneo a ela. A segunda definição apresentada do conceito de contemporaneidade parte de um poema do russo Osip Mandel’stam, de 1923, chamado “O século”, em que o poeta apresenta o século XX como uma fera que está com o dorso quebrado e ainda que é o poeta o único capaz de interferir nessa fratura. Nas palavras de Agamben (2009, p. 62), Não apenas a época-fera tem as vértebras fraturadas, mas vek, o século recém-nascido, com um gesto impossível para quem tem o dorso quebrado quer virar-se para trás, contemplar as próprias pegadas e, deste modo, mostra o seu rosto demente.

E cabe ao poeta, nesse sentido, manter fixo o olhar no seu tempo, e dessa constatação o filósofo sugere mais uma definição para a contemporaneidade: “Contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro”. E, erroneamente, poderíamos intuir que ver essa obscuridade seria apenas se mostrar passivo diante dos acontecimentos por estarmos diante de algo que não mostra nada, pelo contrário, obscurece o olhar. Mas Agamben busca na neurofisiologia da visão argumentação para explicitar seu conceito: quando nos deparamos com o escuro, algumas células da região periférica da retina entram em atividade e produzem uma espécie de visão a que chamamos de escuro. O escuro não é, portanto, um conceito privativo, a simples ausência da luz, algo como uma nãovisão, mas o resultado da atividade das off-cells, um produto da nossa retina. Isso significa, se voltamos agora à nossa tese sobre o escuro da contemporaneidade, que perceber esse escuro não é uma forma de inércia ou de passividade, mas implica uma atividade e uma habilidade particular que, no nosso caso, equivalem a neutralizar as

55 luzes que provêm da época para descobrir as suas trevas, o seu escuro especial, que não é, no entanto, separável daquelas luzes. (AGAMBEN, 2009, p. 63)

Ser contemporâneo, portanto, exige perceber nesse escuro uma luz que, por mais que busque, não consegue nos alcançar. Agamben transpõe o conceito em termos de uso na pesquisa histórica, ao qual o pesquisador precisa estar atento para que possa realizar uma leitura do objeto de maneira a reconhecer essa luz dos tempos, o que significa que uma junção de tempos distintos pode estar contida em um objeto e que a profusão de tempos pode contribuir para uma leitura possível anacronicamente. Para Agamben (2009, p. 72), Isso significa que o contemporâneo não é apenas aquele que, percebendo o escuro do presente, nele apreende a resoluta luz; é também aquele que, dividindo e interpolando o tempo, está à altura de transformá-lo e de colocá-lo em relação com outros tempos, de nele ler de modo inédito a história, de “citá-la” segundo uma necessidade que não provém de maneira nenhuma do seu arbítrio, mas de uma exigência à qual ele não pode responder.

Seguindo essa linha de pensamento, deparamo-nos com o estudo Ante el tiempo, de Georges Didi-Huberman. O historiador de arte francês propõe um trabalho com a história da arte tendo em vista um tempo não linear, ou seja, trata a disciplina de maneira anacrônica. Baseado em estudos anteriores de Aby Warburg, Walter Benjamin e Carl Einstein, constrói uma reflexão voltada ao tempo, principal fator em questão quando se pensa o anacronismo. Didi-Huberman nos propõe, logo no início de suas reflexões, um paralelo: “Ante la imagem: ante el tiempo”. Pontua, nesse sentido, uma relação intrínseca entre a observação de uma imagem e a relação que ela sempre estabelece com o tempo. Diante de uma imagem, “mirarla es desearla, es esperar, es estar ante el tiempo” (DIDI-HUBERMAN, 2006, p. 11). Nos estudos do historiador, nesse sentido, o conceito de imagem é tão importante quanto as reflexões sobre o tempo. Para a construção do conceito de imagem, Didi-Huberman recorre a uma obra que

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considera um dos pontos de partida5 da história da arte, um fragmento da Histoire naturelle, de Plinio, o Velho, cuja primeira edição data do ano de 1977. O fragmento analisado é o que encerra a carta na qual Plínio dedica sua obra ao imperador Vespasiano. Ele pensa o estatuto do objeto figurativo segundo uma categoria chamada imago (que o autor opta por traduzir “modestamente” como imagem). Esse conceito, segundo a análise de Didi-Huberman do início do livro XXXV, não se refere à pintura no sentido de pintura de quadros nem a nenhum outro gênero artístico (no sentido usual), mas se aproxima do que poderíamos chamar de um gênero jurídico. Sua constituição dar-se-ia por meio de máscaras moldadas em cera sobre o rosto do membro da família morto para que um registro pudesse ser criado e os triunfos do cadáver fossem lembrados eternamente. Para Didi-Huberman (2006, p. 94), [...] la noción romana de la imago supone uma duplicación por contacto del rostro, un processo de impresión (el molde en yeso que “toma” el rosto como tal, luego “expresión” física de la forma obtenida (la tirada positiva en cera realizada a partir del molde). La imago no es una imitación en el sentido clásico del término; no es fáctica e no requiere ninguna ideia, ningún talento, ninguna magia artísticas. Por el contrario, es una imagem matriz producida por adherencia, por contacto directo de la materia (el yeso) com la materia (el rostro).

Desse contato entre o molde (o próprio rosto do morto) e a técnica (o gesso ou a cera aplicados ao rosto) surge a imagem. Nesse sentido, a imagem estabelece uma relação direta com o corpo, pois se constitui apenas nesse contato e também com o tempo, pois apreende o momento em que a pessoa está prestes a “desaparecer” e guarda dela sua 5

Didi-Huberman deixa clara sua posição quanto ao conceito de origem, que vai ao encontro dos estudos de Walter Benjamin (que serão discutidos a seguir), considerando a origem como uma irrupção que ultrapassa a ordem cronológica. Nas palavras do historiador, “Ni en esse dominio ni en ningún outro busquemos el ‘origen original’. No existe la fonte absoluta” (DIDIHUBERMAN, 2006, p. 84). Portanto, ao fazer referência ao ponto de partida, não está levando em consideração o início, primeiro e único, dos estudos sobre história da arte.

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impressão facial. E neste ponto podemos estabelecer a vinculação entre o conceito de imagem proposto por Didi-Huberman e a literatura. O molde, nesses termos, seriam o autor e a máscara, advinda do contato com o rosto, o texto. O espaço entre o molde e a máscara poderia ser comparado às possibilidades de leitura que o texto literário apresenta, propostas pelo sujeito leitor, que estariam nessa brecha, nessa abertura entre autor e texto; e, portanto, por estar situado em um espaço, o texto seria aberto a muitas possibilidades que poderiam ser construídas. Como vimos, o conceito de imagem de Didi-Huberman ultrapassa o conceito da imagem plástica e singular. Esse conceito será transportado para a análise literária exatamente por entendermos que há um espaço aberto no texto literário e, por isso, ele é capaz de sobreviver aos tempos, pois, a cada contato do leitor, uma nova possibilidade de leitura aparece. A cada leitura, seja de um quadro, seja de uma obra literária, se levarmos em consideração que são imagens nos termos apresentados, podemos propor leituras diferentes, temos o poder de fazer ressignificar, dar novos sentidos, criar novas relações, estabelecer novas proximidades e afinidades com outras obras. As obras apresentam como característica a capacidade de sobreviverem ao passar do tempo (assim como as máscaras-imago) e permanecerem atuais a cada presente de leitura, em que seus sentidos são reestruturados de acordo com o leitor, participante ativo na construção de sentidos do texto literário. Nesses termos, esta leitura do primeiro volume d’A trilogia do exílio tem sua justificativa, uma vez que o objetivo é dar uma nova significação no presente da leitura. O tempo da obra será pensado a partir de um método anacrônico que abranja textos de referência de diferentes épocas, mas que sejam aproximados por suas afinidades internas, sem se fixar na sequência cronológica em que foram escritos e publicados. Didi-Huberman analisa, para dar suporte a seu conceito de imagem, parte de um muro do Convento de São Marco, em Florença, pintado nos anos 1440 por um habitante do local conhecido como Bento Angelico. Depois de inúmeros estudos sobre o Renascimento Florentino, Didi-Huberman se depara com a imagem e com o desejo de compreender a necessidade intrínseca e figurativa de tal pintura, por muitos estudiosos classificada como arte abstrata. Para grande parte dos historiadores, a concordância eucrônica (a busca de uma concordância de tempos na imagem) seria capaz de apresentar a solução para a

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observação de uma imagem. Se ela foi constituída no passado, no passado estaria a “chave” de compreensão; o passado deveria ser interpretado com as categorias do passado. Porém, segundo o historiador, esse ideal de interpretação nos dá apenas informações sobre a recepção da obra. Sobre esse muro, Didi-Huberman afirma ter encontrado uma “interpretação eucrônica” realizada por Cristoforo Landino, datada de 1481. Esse estudo está “historicamente pertinente”, pois leva em consideração a civilização italiana que recebeu a obra, a recepção humanista que a obra teve na época de sua execução. Porém, as informações não seriam suficientes para dar um juízo da obra, não seriam capazes de dizer praticamente nada quanto ao objeto da investigação. O texto de Landino, em um primeiro momento, é considerado interessante por ser contemporâneo da pintura; no entanto, a partir do estudo das datas, pode-se perceber que foi escrito há mais de 30 anos depois da finalização dos muros. Enquanto Landino estudava o latim clássico e defendia a língua vulgar, Fra Angelico conhecia apenas o latim medieval, o que demonstra uma diferença não apenas de tempo, mas também de cultura que os separava, e esses dados bastam para considerar que Landino mesmo fez uma leitura com divisão anacrônica. Além disso, Fra Angelico também parece ter sido anacrônico em relação a seus contemporâneos de pintura, a exemplo de Leon Battista Alberti, que teorizava sobre a pintura enquanto Fra Angelico trabalhava no corredor, “donde las superficies rojas se cubrían de manchas blancas arrojadas a distancia” (DIDI-HUBERMAN, 2006, p. 18). Ambos eram temporalmente contemporâneos, Alberti e Fra Angelico, no entanto, estavam trabalhando com a arte de maneiras diferentes. Baseado nesse exemplo da leitura de Landino sobre o muro de Fra Angelico, Didi-Huberman (2006, p. 8) anuncia: Sacamos la impresión de que los contemporâneos a menudo no se comprenden mejor que los individuos separados por el tiempo: el anacronismo atraviesa todas las contemporaneidades. No existe – casi – la concordancia entre los tiempos.

A situação anacrônica pode, nesse sentido, ser analisada de duas maneiras: por um lado, como fatalidade, negativa e destrutiva, por não

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ser capaz de projetar uma visão ideal da história ou, por outro lado, como uma qualidade: Es más válido reconocer la necesidad del anacronismo como una riqueza: parece interior a los objetos mismos – a las imágenes – cuya historia intentamos hacer. El anacronismo sería así, en una primera aproximación, el modo temporal de expresar la exuberancia, la complejidad, la sobredeterminación de las imágenes. (DIDI-HUBERMAN, 2006, p. 18)

Estão nesse muro de Fra Angelico, segundo a leitura de DidiHuberman, pelo menos três tempos heterogêneos e anacrônicos que se apresentam relacionados uns aos outros. O primeiro fator observado é a utilização da técnica trompe-l’oeil, em que a noção de perspectiva é apresentada, noção atribuída ao século XV florentino do primeiro Renascimento. O segundo indica a função memorativa da cor utilizada no muro, que supõe uma noção de figura tomada pelo pintor dos escritos dominicanos dos séculos XIII e XIV. E o terceiro diz respeito à dessemelhança que existe na totalidade da pintura, que é proveniente de duas tradições: uma textual, recebida da biblioteca de San Marco, e outra figurativa, que está na Itália desde Bizâncio e passou à arte gótica de Giotto, tudo isso voltado à questão da repetição litúrgica do momento mítico da encarnação. O muro se apresenta, a partir de tais constatações, como “extraordinario montaje de tiempos heterogêneos que forman anacronismos” (DIDI-HUBERMAN, 2006, p. 19). Noções históricas fundamentais como estilo e época acabam ganhando, segundo o historiador, uma “perigosa plasticidade”, e pensar nos anacronismos é, então, interrogar essa plasticidade fundamental e a mistura dos tempos diferentes que habitam cada imagem. O anacronismo, diante dessas reflexões, “[...] podría ser pensado como un segmento de tiempo, como un golpeteo rítmico del método, aun cuando fuese su momento de síncopa. Aun siendo paradojal o peligroso, como lo es toda situación de riesgo” (DIDI-HUBERMAN, 2006, p. 25). Mesmo demonstrando a convivência desses tempos distintos na imagem de Fra Angelico e acreditando que a história das imagens deve ser lida por meio do caminho do anacronismo, Didi-Huberman deixa claro que é um caminho perigoso. Sua hipótese é assim formulada: “[...] la historia de las imágenes es una historia de objetos temporalmente impuros,

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complejos, sobredeterminados. Es una historia de objetos policrónicos, de objetos heretocrónicos o anacrónicos” (p. 26). E conclui por meio de um questionamento: “¿Esto no implica decir que la historia del arte es en si mesma una disciplina anacrónica, para peor, pero también para mejor?” (p. 26). A história da arte segue, nesse contexto, a lógica da história das imagens e deve ser lida pelo ponto de vista da junção de tempos distintos. Atualmente, os debates sobre o fim da história e sobre o fim da arte, afirma Didi-Huberman, estão mal fundamentados, pois estão ancorados em definições de tempo não dialéticas e inconsistentes. Uma das virtudes principais do anacronismo é seu caráter dialético, e é esse o caráter defendido pela concepção de história que nos apresenta o historiador. En primer lugar, el anacronismo parece surgir en el pliegue exacto de la relación entre imagem e historia: las imágenes, desde luego, tienen una historia; pero lo que ellas son, su movimiento proprio, su poder específico, no aparece en la historia más que como un sintoma – un malestar, una desmentida más o menos violento, una suspensión. Por el contrario, sobre todo quiero decir que la imagem es “atemporal”, “absoluta”, “eterna”, que escapa, por esencia, a la historicidad. (DIDI-HUBERMAN, 2006, p. 2829)

E, diante da aceitação da imagem como objeto dialético, o historiador é enfático: “Solo hay historia anacrónica” (DIDIHUBERMAN, 2006, p. 42). Por considerar a palavra “anacronismo” insuficiente para designar esse duplo caráter da imagem, “arrisca” utilizar outros termos: “Solo hay historia de los síntomas” (p. 43). A noção de sintoma, continua a explanação, denota pelo menos um duplo paradoxo: visual e temporal. O paradoxo visual é o da aparição: “un sintoma aparece, un sintoma sobreviene, interrumpe el curso normal de las cosas según la ley – tan soberana como subterránea – que resiste a la observación banal” (p. 44). E o paradoxo temporal é o do anacronismo: “un síntoma jamás sobreviene en el momento correcto, aparece siempre a destiempo, como una vieja enfermedad que vuelve a importunar nuestro presente” (p. 44). A imagem-sintoma é capaz de romper o curso

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normal da representação, enquanto o sintoma-tempo interrompe o curso da história cronológica. Partindo desse caráter dialético, todo objeto histórico conteria em si uma junção de tempos que seria capaz de irromper a qualquer momento, aflorando um novo paradoxo a cada olhar perante a imagem. Nesse sentido, afirma Didi-Huberman (2006, p. 46): [...] es necesario comprender que en cada objeto histórico todos los tiempos se encuentram, entran en colisión o bien se funden plásticamente los unos en los otros, se bifurcan o bien se enredan los unos en los otros.

E se admitimos que só se pode construir uma história tendo em vista o tempo anacrônico e, consequentemente, dialético, a noção de “origem original”, de fonte primeira e absoluta, é excluída por completo. Não faz sentido supor que exista uma fonte primeira considerando que o tempo é capaz de emergir e romper seu curso cronológico e representacional a cada novo olhar lançado sobre o objeto. História e origem necessitam de um sentido diferente, e esses conceitos foram repensados por Walter Benjamin n’A origem do drama barroco alemão. Em suma, segundo Didi-Huberman (2006, p. 109), o estudo do filósofo alemão consistiu em tratar “la historia en términos de origen, y la cuestión del origen en términos de novedad”. A questão da origem é confrontada com a história não em termos de fonte (gênese), mas considerada como um turbilhão dinâmico que surge imprevisivelmente no curso do rio da história e se faz presente em cada objeto. Nas palavras de Benjamin (1984, p. 64), teórico que serve como base para o estudo de Didi-Huberman, A origem, apesar de ser uma categoria totalmente histórica, não tem nada que ver com a gênese. O termo origem não designa o vir-a-ser daquilo que se origina, e sim algo que emerge do vir-a-ser e da extinção. A origem se localiza no fluxo do vir-aser como um torvelinho, e arrasta em sua corrente o material produzido pela gênese. O originário não se encontra nunca no mundo dos fatos brutos e manifestos, e seu ritmo só se revela a uma visão dupla, que o reconhece, por um lado, como

62 restauração e reprodução, e por outro lado, e por isso mesmo, como incompleto e inacabado. Em cada fenômeno de origem se determina a forma com a qual uma ideia se confronta com o mundo histórico, até que ela atinja a plenitude na totalidade de sua história. A origem, portanto, não se destaca dos fatos, mas se relaciona com sua pré e pós-história.

E é utilizando esses preceitos, nos quais a origem é tratada de maneira a não representar a gênese, mas o momento em que se dá o vira-ser do objeto histórico, sempre incompleto e inacabado, que o autor lê o drama barroco alemão. A tarefa do pesquisador, e esse foi o método de análise escolhido por Benjamin, prevê buscar no objeto sua estrutura interna de tal modo que seja revelada com tanta essencialidade que se mostre como origem. E para a origem, por ser a emergência de uma ideia intemporal, não há passado e futuro; os fatos anteriores a ela são reconhecidos como pré-história e os posteriores, como pós-história. Para Walter Benjamin, a investigação filosófica só se dá por meio da representação, que acontece apenas na ordem das ideias, as quais, por sua vez, permanecem obscuras até que não sejam aproximadas dos fenômenos. Caberia ao filósofo, nesse sentido, investigar os fenômenos e aproximá-los das ideias para que possa salvá-las da dispersão e do esquecimento. Para estabelecer tal salvação, Benjamin (1984, p. 57) considera necessário preservar as diferenças entre as ideias, que podem ser encontradas pela análise dos pontos extremos de cada uma, pois “[...] as ideias só adquirem vida quando os extremos se reúnem à sua volta”. Benjamin considera que a ideia contém em si uma totalidade do mundo das ideias e, nesse sentido, utiliza-se do conceito do filósofo alemão Gottfried Leibniz de mônada, em que cada mônada contém em si e está presente em todas as demais. Os gêneros literários são vistos por Walter Benjamin como ideias. E, portanto, esse tratamento difere do que caracteriza a história da literatura, antes de mais nada, pela circunstância de que o primeiro pressupõe a unidade, e o segundo está obrigado a demonstrar a existência da multiplicidade. (BENJAMIN, 1984, p. 60)

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E cabe ao historiador dialético, o único que vê a história sob a perspectiva descontínua, libertar o objeto histórico do fluxo da história contínua, fazendo-o ressignificar. Uma investigação que considerasse o tempo contínuo poderia prever para o objeto o passado e o futuro, o antes e o depois, mas não a sua pré e pós-história, pois essas categorias não respeitam a ordem cronológica dos acontecimentos, mas sim as afinidades internas entre os objetos, qualquer que seja a distância entre as épocas que as separam. Sendo assim, o drama barroco não é aproximado, em termos de préhistória, ao movimento que o antecedeu cronologicamente (a tragédia renascentista), mas ao diálogo socrático e, nesses mesmos termos, sua pós-história não é o teatro classicista, mas o drama expressionista. Segundo Sergio Paulo Rouanet (apud BENJAMIN, 1984, p. 26), em sua apresentação à tradução da tese de Walter Benjamim ao português (pela editora Brasiliense), o interesse do filósofo alemão pelo tema do barroco (movimento artístico e cultural que teve seu ápice nos séculos XVI e XVII) foi motivado pela “redescoberta” do barroco pela cultura e principalmente pela literatura alemã ocorrida no final da Primeira Guerra Mundial (a partir de 1919). Desde o após-guerra, começaram a circular inúmeras antologias sobre a lírica alemã do século XVII. Esse entusiasmo resultava, no fundo, da profunda afinidade que os críticos e leitores alemães sentiam entre o período de desolação posterior à guerra dos trinta anos, e seu próprio presente, marcado pela derrota e pela miséria, assim como entre as literaturas das respectivas épocas: a mesma dicção torturada, a mesma violência verbal, a mesma temática do pessimismo.

Nesse período e por esse motivo, Rouanet ressalta que Benjamin não estava sendo pioneiro no estudo do barroco, apenas sensível e sintonizado com o espírito alemão da época, uma vez que já havia sido publicado o estudo do filósofo e historiador de arte Heinrich Wölfflin, Renascença e barroco, de 1888, em que o movimento é analisado em oposição à Renascença, por orientações formais e culturais. O tempo cronológico de análise é situado entre 1520 e 1630, e o local

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determinado foi a Itália, especificamente Roma, de onde são retirados os exemplos arquitetônicos e pictóricos que suscitaram as análises de Wölfflin. No prefácio à tradução da obra Renascença e barroco (pela editora Perspectiva), Regina Helena Dutra Rodrigues Ferreira da Silva situa o estilo barroco fazendo uma pequena rememoração da “má fama” do movimento. Durante muito tempo, segundo ela, o barroco teve um destino ingrato. “A origem do vocábulo ‘barroco’ é incerta e esteve vinculada à idéia de decadência, ou, no mínimo, de estranheza, distorção, exagero, conceitos quase sempre pejorativos” (SILVA apud WÖLFFLIN, 2000, p. 14). O barroco nunca foi visto como um estilo próprio, pelo contrário, foi admitido como responsável pela dissolução das formas conquistadas no período anterior. Com o avanço nos estudos científicos, enfatiza Silva, principalmente com as descobertas de Galileu, a doutrina da Renascença (que dominara os séculos XV e XVI em que o artista trabalhava com temas como a valorização do homem, a análise e a interpretação da natureza) estava superada e, portanto, era natural que surgisse na arte uma nova forma de representação. Embora muito diferente da anterior, a nova forma de representação foi analisada por Wölfflin distante do aspecto pejorativo. Nas palavras do historiador de arte, com o advento do barroco, “[...] Sente-se um certo prazer pelo raro e que estivesse além das regras. O fascínio pelo informal começa a operar” (WÖLFFLIN, 2000, p. 34). Wölfflin (2000, p. 76) analisa as construções religiosas arquitetadas sobre esse estilo como portadoras de um efeito eficaz: A tranquilização total (da construção) é reservada ao interior, e é precisamente esse contraste entre a linguagem exacerbada da fachada e a paz serena do interior que constitui um dos efeitos mais poderosos que a arte barroca exerce sobre nós.

Em sua pesquisa, o historiador deixa claro que não considera o movimento como a decadência da Alta Renascença, mas uma arte especificadamente diversa decorrente do movimento considerado antecessor, em que os efeitos, embora distintos dos enquadramentos renascentistas, eram válidos. Em sua obra, destina um capítulo exclusivamente à evolução que o movimento apresentou no seu período

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de culminação, “O grande estilo”, no qual atribui ao barroco o “efeito poderoso” de instabilidade e insatisfação que a obra provoca: O barroco se propõe outro efeito. Quer dominarnos com o poder da emoção de modo imediato e avassalador. O que traz não é uma animação regular, mas excitação, êxtase, ebriedade. [...] O barroco exerce momentaneamente um efeito poderoso, mas em breve nos abandona, deixandonos uma espécie de náusea. Ele não evoca a plenitude do ser, mas o devir, o acontecer; não a satisfação, mas a insatisfação e a instabilidade. Não nos sentimos remidos, mas arrastados para a tensão de um estado apaixonado. (WÖLFFLIN, 2000, p. 48)

Ao considerar o estilo como a junção da expressão de uma época, de um sentimento nacional e de um temperamento pessoal, Wölfflin afirma que as formas artísticas obedecem aos mesmos critérios de expressão: arquitetura, pintura e escultura são como irmãs e manifestam um mesmo pensamento subjacente em período determinado. Embora traga exemplos de expressões pictóricas e esculturas, igrejas e praças, sua análise estende-se a todas as representações artísticas. Tranquilização e exacerbação, instabilidade. Por meio desses adjetivos, aplicados à arquitetura barroca por Wölfflin, podemos estabelecer a base de constituição da personagem literária Alma, uma referência barroca no primeiro volume d’A trilogia do exílio – Os condemnados. Alma é, ao mesmo tempo, uma prostituta que vende seu corpo em casas de prostituição (e entrega o pagamento a Mauro Glade), mas também é considerada santa, seja por seu admirador João do Carmo, seja pelo narrador da obra na ocasião da morte de seu filho. Uma personalidade instável, duas “faces de uma mesma moeda”: sagrado e profano são colocados como características de uma mesma mulher em um mesmo contexto. O romance vai abordando em diversas cenas a vida de Alma na prostituição, seja em quadros que se passam na rendez-vous, seja quando o narrador refere-se à vida da personagem. A cena descrita a seguir se passa na casa de prostituição, em uma noite de muitos clientes:

66 A menina de vinte annos, que tinha o extranho nome de Alma, centralizava as attenções, fazia momices ao musico, jogava as pernas para o alto. O rapaz de monóculo, que se levantara, passoulhe a boca duas vezes pelos cabellos desgrenhados e côr de labareda. (ANDRADE, 1922, p. 57)

Pelas descrições, podemos perceber que Alma era muito solicitada; e, no fragmento que segue, a preferência por ela está embasada na “raridade” de mulheres com suas características na prostituição: [...] Elles iam todos, os vadios da sociedade chic, os velhos vermelhos do São Paulo Club, os arrivistas commerciaes, levados na volupia de possuir num leito rendado de casa suspeita, a desvirginada do bairro distante, cuja innocencia a senilidade tremula e ingenua do velho avô garantia. Era um caso raro: uma menina de família brazileira, educada para as devotações burguezas dos lares obscuros, e que rolava num esbandalhamento de gritos e surpresas, pela rampa mirifica das prostituições sensacionais. (ANDRADE, 1922, p. 45-46)

As noites em seu local de trabalho são sempre descritas como alegres, banhadas a bebidas, música e muitos frequentadores. Porém, apesar de o narrador nos mostrar que Alma escolheu se prostituir (pois ela chega a ser acolhida tanto por João do Carmo quanto por Telles Melo, que oferecem a ela uma vida diferente, mas ela acaba sempre voltando à prostituição), geralmente se refere a ela com adjetivos que frisam a tristeza da moça, como nesta passagem: “Ella ficava á espera de outro, entre as demais asyladas, quieta, tetrica, na sua juventude doirada” (ANDRADE, 1922, p. 48). Por outro lado, Alma é descrita como santa, primeiramente em uma passagem que relata o pensamento de João do Carmo: “E o coração do homem bom badalava que sim, que ella não era a debochada que queriam: era santa, era santa, era santa!” (ANDRADE, 1922, p. 81). No entanto, é a partir do nascimento de seu filho que a comparação com Maria, mãe de Jesus, acontece de maneira incisiva. Na cena do seu parto, são relatadas as visitas por ela recebidas:

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Vieram os reis magos trazer-lhe presentes. O capitão, luzido como um sequito, deu-lhe uma camisinha branca de cambraia. Seu Julinho comprou uma grande touca de nanzoug. E o telegraphista trouxe humildemente uma medalha de Christo menino. (ANDRADE, 1922, p. 114115)

Como sabemos, essa cena está baseada na entrega de presentes feita por três reis magos na ocasião do nascimento de Jesus, em que ofereceram ouro, incenso e mirra ao recém-nascido. Após Luquinhas ser atingido por uma “cholerina” grave, com aproximadamente cinco anos de idade, o menino morre e o sofrimento de Alma é aproximado ao de Maria ao perder seu filho: Era o seu drama aquelle, o drama obscuro de Maria em Jerusalém, de que as gentes da terra, numa condemnação de remorsos, fixava num calendário implacável, renovavam o angustiado mysterio por noites extáticas de lua. (ANDRADE, 1922, p. 171)

E a lamentação continua ainda em comparação com o drama da Mãe de Jesus: “[...] E ella era como Nossa Senhora porque tinha experimentado, do coração aos olhos, o gume das sete espadas! E sua creança não tivera, como o filho de Maria, senão o desprezo dos diabos felizes da terra” (ANDRADE, 1922, p. 171). Como podemos perceber, Alma pode ser lida como uma figura representativa do barroco no texto de Oswald de Andrade, uma vez que sintetiza as características do movimento, estabelecendo uma tensão entre os opostos que não pode ser resolvida, ou melhor, não pretende uma solução. É a insatisfação e a instabilidade, segundo as palavras de Wölfflin, que marcam a presença do estilo barroco. O barroco é revisitado também pelo filósofo catalão Eugenio D’Ors, que, em 1935, publica o estudo Du baroque em Paris. E, nessa obra, a revalorização do barroco atingiu seu auge. Sugere-nos Rouanet que, mesmo partindo do improvável conhecimento da obra um do outro por esses anos, D’Ors e Benjamin cultivam praticamente as mesmas concepções sobre o movimento barroco. Enquanto Benjamin lê o drama

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barroco em termos de ideia, cuja atualização dá-se na história, D’Ors recupera o termo “éon” da Escola de Alexandria, que significa categoria intemporal, mas desenvolvida por uma maneira histórica. “Éon” foi o termo escolhido pelo filósofo para nomear a sucessão que se dá na história humana e que difere do tempo cronológico. Segundo Alfonso E. Pérez Sánchez (apud D’ORS, 2002, p. 10), em seu prólogo à edição espanhola da editora Technos/Allianza de 2002, na obra de Eugenio D’Ors Lo barroco, Lo barroco – no ya el barroco histórico – se presentaba brillantemente como algo supratemporal; como una constante, una categoría, un éon en la terminología orsiana, que permitía presentar – con vestiduras diversas en diversos momentos de la Historia – una realidad presente y renovada, en contraposición perpetua al éon clásico, su contrafigura.

Assim como Benjamin localiza o drama alemão mais próximo do movimento barroco e, por isso, “temporalmente deslocado” das manifestações artísticas que o antecederam e o sucederam, D’Ors pensa essas relações da mesma maneira. Utiliza, para explicitar seu raciocínio, as lições de anatomia que para ele servem como exemplo para pensarmos os tempos – as culturas ao longo do tempo cronológico. Antes da dissecação do corpo, poderíamos dividi-lo em partes: cabeça, tronco e membros; e cada parte tinha suas características. Depois dos avanços da ciência e do início das práticas de dissecação, ele passou a ser agrupado em sistemas. Assim também acontece na história, ela pode ser agrupada em sistemas nos quais diversas partes têm a mesma função, sem estarem localizadas no mesmo “bloco”, expostas ao longo do tempo. E é por meio desse exemplo, a partir do qual cunha o termo “constantes históricas”, que determina que essas passagens estão em todos os fatos históricos, independentemente do tempo cronológico, surgindo e ressurgindo ao longo da história, em períodos de maior e menor presença dominante: Las realidades históricas intimas, estas objetivas sintesis que reúnem a los personajes, a las obras y a los acontecimientos más disociados cronológicamente, las llamaremos nosotros

69 “constantes históricas”. Estas “constantes históricas” entram en la vida universal de la humanidade y en su pluralidad uniforme, instaurando una invariabilidad relativa y una estabilidad, allí donde lo demás es cambio, contingencia, fluir. La trama compleja de la historia deja paso a la presencia de estas “constantes”; presencia manifiesta y dominante en ciertas ocasiones; en otras, subordinada y oculta. (D’ORS, 2002, p. 65)

Porém, alerta-nos para uma leitura sem enganos desse vir-a-ser dos fatos históricos. Não se trata, segundo D’Ors, de uma lei que prevê normas de regularidade no processo de ressurgimento das características, como se fosse um ciclo histórico. Pelo contrário, o filósofo compara sua concepção com um sulco por onde a água pode escorrer, um canal de fruição. No se trata, nótese bien, en esta concepción de la historia, de afirmar la existencia de ciclos, de aquellos famosos ricorsi, que imagino Giambatista Vico, o de formular como ley aquel “eterno recomenzar de las cosas” del sueño platónico del Año perfecto o del Ring des Ringes nietzscheano. No abordamos aquí el problema de la regularidad del proceso ni el de la periodicidad del retorno. No imaginamos un círculo, sino un canal; creemos en la presencia de elementos fijos, que limitan u dan cauce al curso de los acontecimientos históricos, proporcionando así a la razón por encima del torrente de la vida, puntos de apoyo y de referencia. (D’ORS, 2002, p. 65)

A partir da análise da questão da origem como um fluxo de vir-aser e da constatação de D’Ors a respeito da não regularidade da emergência das questões históricas, podemos continuar analisando a personagem Alma, figura central do primeiro volume d’A trilogia do exílio – Os condemnados. Alma pode ser considerada a emergência de uma personagem da obra anterior ao primeiro volume d’A trilogia do exílio. Estamos nos referindo à primeira figura feminina oswaldiana, presente em um diário

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que só se torna público anos após a morte do autor. O perfeito cozinheiro das almas desse mundo, um caderno grande com 200 páginas, medindo 36 centímetros de altura por 24 de largura, é o cenário do diário escrito por Oswald de Andrade e seus amigos entre os anos de 1918 e 1919. Tal diário tinha como morada a Rua Líbero Badaró, número 67, 3º andar, sala 2, onde estava instalado o ponto de encontro entre Oswald de Andrade e seus amigos, local batizado como garçonnière. A primeira menção ao diário aconteceu em um artigo de Mário da Silva Brito, no ano de 1968, no suplemento literário de O Estado de S. Paulo. E foi o próprio Brito quem primeiro buscou desvendar as pessoas que estavam por “detrás” dos apelidos dados aos personagens que deixavam recados, anotações ou mesmo pequenos poemas registrados no caderno de autoria coletiva. Dentre os frequentadores da garçonnière oswaldiana, segundo suas pesquisas, estavam Monteiro Lobato, Menotti del Picchia, Léo Vaz, Guilherme de Almeida, Ignácio da Costa Ferreira, Edmundo Amaral, Sarti Prado, Vicente Rao e Maria de Lourdes Castro. O grande caderno exposto no ponto de encontro dos amigos torna-se um diário dos frequentadores e vai reunir, em tinta roxa, verde, vermelha, às vezes a lápis, inúmeros escritos de várias espécies e gêneros. Sintetizando, Brito (apud ANDRADE, 1992b, p. VII) afirma: [...] há de tudo. Pensamentos, trocadilhos (inúmeros), reflexões, paradoxos, pilherias com os habitués do retiro, alusões à marcha de guerra, a fatos recentes da cidade, a autores, livros e leituras, às músicas ouvidas (das eruditas às composições populares americanas), a peças em representação nos palcos de São Paulo, às companhias francesas em tournée pelo Brasil. Há mais porém: há colagens, grampinhos de cabelo, pentes, manchas de batom, um poema préconcreto de Oswald, feito com tipos de carimbo, cartas de amigos grudadas em suas páginas, afora charges da imprensa com legendas adaptadas para zombarias com os integrantes do grupo, enigmas pitorescos, recortes de jornais. [...] Soltas entre as páginas do caderno, flores murchas e uma pequena bandeira norte-americana de seda.

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A primeira edição do diário da garçonnière foi publicada em 1987, em tiragem limitada pela editora Ex-Libris e com o apoio do Instituto Moreira Salles. Teve uma cópia fac-similar que mais tarde, em 1992, foi transcrita por Jorge Schwartz e ganhou uma edição diagramada. Interessante perceber que todos os frequentadores que registram no livro têm um ou mais pseudônimos, o que os faz criarem personagens para estarem no diário. Oswald de Andrade assina os escritos com o pseudônimo Miramar ou Garôa e Maria de Lourdes com Deisi ou Miss Cyclone. Brito, no texto de apresentação citado anteriormente, estabelece um paralelo entre o livro de memórias de Oswald de Andrade e o diário, determinando pontos de contato entre a vida pessoal do autor na época de escrita do diário e as anotações encontradas. Seu texto sugere um envolvimento amoroso e o documentado casamento do escritor com a normalista (Maria de Lourdes) no ano de 1919. O diário é encerrado com o recorte da nota de falecimento de Maria de Lourdes Castro de Andrade, ocorrido em 25 de agosto de 1919. Mulher descrita como misteriosa e que encanta Miramar pela inteligência, “esquelética e dramática, com uma mecha de cabelos na testa” (ANDRADE, 1974b, p. 108), Deisi desperta amor e mantém com Miramar uma relação de muito mistério. Ainda no seu diário de memórias, o personagem Oswald de Andrade relata saídas da moça rumo ao Brás, chega a segui-la até uma “pensão de rapazes” e desconfia que se encontre com “um sujeito esquisito do Brás”. Em junho de 1919, Maria de Lourdes conta a Oswald de Andrade que está grávida e, não explicando e nem se defendendo, concordam no aborto. Porém, o procedimento traria graves consequências para a saúde da moça, que acabaria morrendo por complicações em 25 de agosto do mesmo ano. Uma semana antes da morte, Oswald de Andrade se casa com ela. Tinha na época 19 anos e foi sepultada no túmulo dos Andrades. Alma seria, sob esse viés, uma espécie de revivência de Deisi. Elas não são a mesma mulher, mas podemos ler em Alma “puntos de apoyo y de referencia” na personagem de O perfeito cozinheiro das almas desse mundo. Nas palavras de D’Ors, os fatos históricos não advêm como em um círculo, com periodicidade e regularidade, e por isso não podemos afirmar que se trata da mesma figura feminina. Porém, não há como ignorarmos a presença dessa personagem em duas obras escritas praticamente na mesma época (sendo o diário publicado apenas décadas depois, como já citado).

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Alma, assim como Deisi, descobre uma gravidez, porém está certa de que seu filho é de Mauro Glade, o cafetão, por quem ela mantém um amor doentio, cercado de violência, maus-tratos psicológicos e desprezo. Mauro Glade opta pelo aborto, mas Alma quer ter o filho, um pedaço do seu grande amor. A cena em que Alma anuncia a gravidez a Mauro deixa clara a opinião do cáften com relação ao aborto: Num divan, Alma supplicava ao lado de Mauro. Elle permanecia impassível, fumando. – Que bom ter um filhinho, um filhinho teu! Deixa-o viver... – Tens certeza de que é meu? – De quem pode ser? Erguera-se muito seria; deitou de novo a cabeça e ficou quieta. – Não custa nada, disse elle. Conheço uma italiana que faz isso. – Não quero, não quero, Mauro. – Mas eu quero. Houve um silêncio. – Eu morro d’isso, murmurou Alma, num pressentimento. E Mauro disse: – Se morresse! (ANDRADE, 1922, p. 58-59)

Alma decide ter o filho, porém o destino de Luquinhas é trágico. O menino acaba morrendo de doença ainda bem criança, com cinco anos de idade. Além disso, é uma mulher descrita como muito bela, elegante, que vive da prostituição e se relaciona com diversos homens, alguns até mesmo sem descrição no livro, mantendo certo mistério que também está presente na história relatada no diário O perfeito cozinheiro das almas deste mundo entre Miramar e Deisi. Outro ponto de contato entre Deisi e Alma pode ser encontrado em uma passagem do diário, localizada na página 11, assinada por João de Barros. A questão da dupla personalidade da personagem, já apontada anteriormente, está em ambas. “A Cyclone é o bem, porque é mulher; a Cyclone é o mal, porque é mulher. A Cyclone é o bem e o mal, que Eva trouxe da Arvore da dupla sciencia e transmitiu á mulher” (ANDRADE, 1992b, p. 11). Bem e mal: novamente características paradoxais convivendo na mesma face. Importante salientar também a

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questão da representação de Deisi/Cyclone como destinatária da herança de Eva. Como vimos na apresentação da obra, uma das epígrafes do texto diz respeito a um versículo bíblico do livro de Gênesis, passagem que narra a expulsão de Adão e Eva do paraíso por conta do pecado cometido pela mulher. Pode-se estabelecer um diálogo entre as duas obras nesse sentido, tendo como base o tema do pecado, abordado no diário com relação à Deisi e para dar abertura ao primeiro volume d’A trilogia. A expulsão de Adão e Eva do paraíso remete ao problema do pecado original, cometido pela mulher, e parece estar presente na constituição dos personagens, no curso do enredo e até no título do volume, Os condemnados. Os personagens foram condenados a uma vida ínfima, repleta de problemas, indigna, e, nesse ponto, se analisarmos a citação de início, podemos intuir que estariam “pagando” pelo pecado cometido pela mulher. Como já dito, a obra de estreia de Oswald de Andrade, o primeiro volume d’A trilogia do exílio – Os condemnados, foi publicada no ano de 1922 (e escrita a partir de 19176). Se considerarmos a determinação do crítico José Guilherme Merquior, estaríamos ainda, nesse período, sob forte influência artística do final do século XIX, pois foi somente com o final da Primeira Guerra Mundial, segundo o crítico, que as artes e a literatura brasileiras iniciaram seu efetivo contato e posterior difusão da vanguarda. Nesses termos, podemos encontrar em todo o enredo, mas principalmente em Alma, aspectos marcantes do espírito decadentista do final do século. Lily Litvak, em sua obra Erotismo y fin de siglo, dedicase a estudar diferentes topoi, ou seja, os lugares comuns que habitaram as obras desse período e construíram a simbologia do erotismo do final do século. A autora analisa a presença de topos como os jardins, a necrofilia, o satanismo, o fetichismo e a mulher fatal. Litvak comenta que as manifestações artísticas desse período variavam entre a mulher de imaculada pureza e a mulher fatal. Segundo Litvak (1979, p. 148), “el mito de la mujer fatal materializó en las grandes cortesanas de aquellos anos”. Para ilustrar suas afirmações, relembra de diversas personagens, seja na literatura, 6

Segundo Brito (apud ANDRADE, 2003a, p. 8), Oswald de Andrade faz uma advertência na ocasião da publicação dos três volumes d’A trilogia no ano de 1941, afirmando que toda a obra havia sido escrita de 1917 a 1921 e publicada em três volumes, espaçadamente.

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seja na pintura, que ilustram a mulher fatal: Heródias, Cleópatras, Salomés. De Rubén Darío analisa o poema “Divagación”, no qual mulheres estrangeiras são apresentadas, ardentes e morenas, como capazes de dominar os homens com seus poderes eróticos. Essas figuras de mulheres fatais são muito poderosas. Segundo Litvak (1979, p. 149), são aquelas que, mesmo sendo vistas apenas uma vez, se tornam inesquecíveis. “Son mujeres que venden el placer [...]. Esas mujeres son desastres de los cuales quedam siempre vestígios en el cuerpo y en alma. Hay hombres que se matan por ellas, otros se extravían”. Nesse contexto, Alma pode ser vista como uma mulher fatal. Ela é uma figura que vende prazer, como destacou Litvak, pois é uma prostituta, e, além disso, ela foi capaz de causar a morte de João do Carmo, o homem que a amava. Alma é descrita no romance como uma linda jovem disputada pelos clientes nas cenas em que trabalha na rendez-vous, dona de uma beleza comparada a uma “animalidade lasciva”, comparada, inclusive, a uma “gata” ruiva. Há cenas em que sua sensualidade é destacada, principalmente, nos momentos em que está pensando no amor de Mauro Glade: O seu leito pequenino, o confessionario entontecedor dos seus sonhos... Alli, no roçar dos travesseiros alvos, ella aprendera a embellezar a vida... Desmanchava as tranças vermelhas pelas fronhas, alimentando a voragem intima. Xingavao, rolando. Era uma tristeza, no emtanto, que pedia mais, esse soluço de ternura divina que a inundava num fluido cálido. Chamava-o com as pernas. Era uma gata ruiva... E esticava-se retesada de sensações para adoral-o. Vinha-lhe á cabeça uma tonteira gostosa e sentia as pancadas sublimes do seu amor... sim... não... sim... não. (ANDRADE, 1922, p. 19)

Mesmo após a maternidade, a sensualidade da personagem continua em destaque. Na cena a seguir, Alma está no quartinho alugado por João do Carmo em que vive com seu filho. O vizinho, oficial de polícia, tinha seus olhos “acesos” pela beleza de sua “desenvoltura”:

75 Num estonteamento ruivo, de cabelos despenteados, e numa desenvoltura de toilette que revoltava João e accendia os olhos mortos do official de policia, Alma corria pela casa, levando panellas, trazendo caldos, pondo leite a ferver. A sua belleza era esplendida, dadivosa, naquella semi-nudez. A maternidade completara-a. No vestido leve, tinha as pernas roliças e perfeitas, as ancas curvas e cheias, os seios retesos. (ANDRADE, 1922, p. 120)

Assim como Litvak, Eliane Robert Moraes, em sua tese de doutoramento denominada O corpo impossível, também discute, entre outros temas, a figura da mulher fatal presente na cultura do final do século. Segundo Moraes (2010, p. 29), referindo-se à imagem da mulher fatal, “para além dos gêneros, dos estilos e mesmo das autorias, é antes o tema que persistiu no imaginário da época”. Cita em seu estudo, assim como Litvak, uma infinidade de personagens que apresentaram características semelhantes: “Dalilas, Cleópatras, Evas, Elenas, Circes e Armidas proliferaram nas artes e na literatura finisseculares” (p. 30). No entanto, dá destaque à Salomé, que, para ela, “mais que um personagem literário ou iconográfico, Salomé foi figura emblemática de uma sensibilidade que a época viveu com intensidade e inquietação” (p. 30). A retomada da lenda bíblica de Salomé foi, segundo Moraes, como uma febre que parece ter iniciado por volta dos anos 1870. Salomé foi considerada a “fêmea fálica preferida do fin-de-siècle” (MORAES, 2010, p. 27). Sua história foi recontada por diversos autores, dentre eles podemos destacar a peça Salomé, de Oscar Wilde (1893), o conto “Heródias”, de Flaubert (1877), e o poema “Herodíade”, de Mallarmé (1866). Conforme a lenda bíblica contada nos Evangelhos de Mateus e Marcos, o profeta João Batista havia sido preso pelo Rei Herodes a pedido de Herodíade. A mulher, antes de ser esposa de Herodes, havia sido esposa de seu irmão Felipe, com quem teve uma filha chamada Salomé; a união de Herodes e Herodíade era difamada por João Batista, que afirmava não ser lícito um irmão ter a mulher de outro. A mulher demonstrava o desejo de matar Batista, porém seu marido sempre se esquivava, pois sabia que o homem era justo. Tendo Batista no cárcere, Herodes não pensava em matá-lo. No entanto, em ocasião de um jantar, Herodes pede para que Salomé mostre sua encantadora dança a ele e

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insiste na apresentação, oferecendo a realização de qualquer desejo em troca da dança. Salomé baila para o rei e em troca, influenciada por sua mãe Herodíade, pede a decapitação de João Batista, que é realizada, sendo a cabeça do profeta entregue a ela em um prato. A lenda bíblica não apresenta nenhuma descrição a respeito da dança de Salomé, porém enfatiza o caráter poderoso de sedução que a dança provocara em Herodes, capaz de oferecer qualquer coisa em troca da apresentação. Uma dança com esse nome também está presente no romance oswaldiano. Na ocasião de uma festa na rendez-vous, na ampla sala descrita pelo narrador com a presença de muitos homens alegres e um rapaz tocando piano, O rapaz curvo annunciou que ia tocar a Salomé, aos berros; voltou de novo as costas; começou uma escala no teclado. Esganando-se de gozo da vida, o velho disse que era São João. Então, ante a alegria tocada de furia sensual da disparatada assembléa, com grandes risadas de abandono, as faces em tijolo, os verdes olhos mortiços, Alma dansou a versão lasciva de Oscar Wilde. (ANDRADE, 1922, p. 58)

Não há novamente descrições dessa dança, porém podemos intuir, pela ocasião da dança (uma festa em um prostíbulo em que mulheres exibem seus corpos para “venda”), que era uma dança sensual capaz até de fazer um velho, não denominado, dizer que era São João, isto é, João Batista, o decapitado por desejo da dançarina. Além disso, o texto evoca a versão da Salomé descrita por Oscar Wilde. No ano de 1893, a peça Salomé – drama em um ato foi escrita por Oscar Wilde em francês. Na peça, o escritor retoma o enredo da lenda bíblica, porém com uma diferença: em vez de a decapitação ser proveniente da ordem da mãe Herodíade, na peça de Wilde ela é motivada por uma paixão de Salomé por Iokanaan, nome pagão de João Batista. A dança, assim como na obra de Oswald de Andrade, não é descrita, apenas anunciada pela própria dançarina: “Que as escravas me tragam perfumes e os sete véus, e me desatem as sandálias” (WILDE, 2009, p. 77). Segundo Moraes (2010, p. 33), apesar dessa ausência de detalhes sobre a apresentação de Salomé, “a dança permitiu, como

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nenhum outro topos, a exaltação dos infalíveis poderes de sedução da bailarina”. Ao percebermos em Alma características da figura de mulher fatal, podemos verificar que o primeiro volume d’A trilogia estabelece uma relação com esse topos finissecular, muito importante para pensarmos que, mesmo buscando alguns procedimentos de vanguarda, como o romance-fragmento, Oswald de Andrade não quebrou por completo sua ligação com a literatura do final do século e, nesse sentido, utilizando as denominações propostas por Benjamin, a obra desse início de modernismo estaria muito mais próxima da visão decadentista e barroca que propriamente “ao lado” das propostas vanguardistas. Do decadentismo, por apresentar características do período como a visão pessimista abordada pela “condenação” dos personagens por suas existências, além da presença da figura da mulher fatal, representada pela personagem Alma; do barroco, pela simultaneidade de opostos, representada em vários tópicos abordados no romance: por Alma (santa e prostituta), pela condição do personagem João do Carmo (telegrafista e poeta – de sonetos), além das características condizentes à apresentação do texto, que serão discutidas no próximo capítulo.

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4 JOÃO DO CARMO

João do Carmo é um dos principais personagens do primeiro volume d’A trilogia do exílio. Atravessa todo o enredo em busca de Alma, por quem sustenta uma paixão, e mantém, além da profissão de telegrafista na Estação da Luz, uma carreira literária: é poeta e chega a compor um livro de poesias. Tem com a linguagem, portanto, uma relação muito próxima, seja no seu trabalho, seja no trato com a poesia. João do Carmo tinha como profissão a operação do telégrafo, importante meio de comunicação da época, que servia como instrumento para transmitir mensagens por meio da utilização do código Morse, uma espécie de decodificação de palavras que estabelecia, por meio de pontos, traços e espaços, um sistema de transmissão de curtas mensagens. Em um jogo de sinais e intervalos, tal código internacional poderia ser entendido e transmitido para qualquer lugar do mundo. Nas cenas do romance que descrevem o trabalho de João do Carmo, estão inclusive onomatopeias que representam o som do trabalho com o telégrafo: “E na gare accesa, ao tlin-tlin-toc-toc do ganha-pão, perscrutava inutilmente a janellinha de grades verticaes, doiradas, onde vira pela primeira vez passar Alma d’Alvellos” (ANDRADE, 1922, p. 30). O uso da figura de linguagem para representar o trabalho é repetido adiante no relato: “E na sala do telegrapho, o toc-toc-toc de cem vozes anonymas e dispersas falou, emquanto o servente negro enchia as chicaras da bandeja” (ANDRADE, 1922, p. 37). Podemos estabelecer uma relação entre a profissão do personagem, que utiliza a escrita sucinta para a transmissão de mensagens, e as publicações da década de 1920 de Oswald de Andrade (Memórias sentimentais de João Miramar, de 1924, Pau Brasil, de 1925, e Primeiro caderno do aluno de poesia Oswald de Andrade, de 1927), nas quais encontramos características, seja na prosa de Miramar, seja nos pequenos poemas dos outros dois, uma escrita fragmentária, com poucas palavras, “poema-minuto”, enxuto, técnico. O personagem Machado Penumbra assina o prefácio de Memórias sentimentais de João Miramar e afirma: “Esperemos com calma os frutos dessa nova revolução que nos apresenta pela primeira vez o estilo telegráfico e a metáfora lancinante” (ANDRADE, 2004a, p. 70). A adoção de um novo estilo literário, de uma nova estética e inclusive a criação de um grupo de vanguarda brasileiro, os modernistas,

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surgem baseadas na movimentação vanguardista europeia do início do século XIX e da revolução do proletariado russo (1917), que, aliadas ao crescimento em larga escala da cidade de São Paulo, influenciaram a busca de uma nova “identidade” para a cultura brasileira. O movimento teve sua apresentação oficial em um evento promovido por um grupo de artistas e intelectuais no Teatro Municipal de São Paulo, encabeçado por Oswald de Andrade, que aconteceu nos dias 13, 15 e 17 de fevereiro de 1922. Já em 1912, uma década antes do evento, Oswald de Andrade volta de viagem da Europa com a notícia da premiação de Paul Fort como príncipe dos poetas franceses. A premiação de Fort foi um anúncio de que a importância da métrica estava sendo questionada, notícia que vai ao encontro das aspirações do jovem Oswald de Andrade, um adepto do verso livre que era até então renegado pelas artes nacionais. Além desse fato, traz consigo o Manifesto Futurista, publicado no jornal francês Le Figaro no dia 20 de fevereiro de 1909, escrito pelo poeta Filippo Tommaso Marinetti, e a repercussão das palavras do italiano na Europa da época. O Manifesto exaltava o “destemor, audácia e a rebeldia” (MARINETTI apud SCHWARTZ, 1995, p. 352)7 como essenciais para a poesia, em detrimento de uma literatura que estava composta de “imobilidade contemplativa, o êxtase e o sonho” (p. 352). O objetivo era louvar a velocidade, acabar com museus e bibliotecas e ser a poesia “um assalto violento contra as forças desconhecidas, para lhes impor a soberania do homem” (p. 353). Por volta de 1920, a palavra “futurismo” circulava na cidade de São Paulo, principalmente entre as elites intelectuais, que estabeleciam uma espécie de diálogo por meio de artigos nos principais jornais que circulavam na cidade (podemos citar Oswald de Andrade, no Jornal do Commercio, Monteiro Lobato, em O Estado de S. Paulo, Menotti del Picchia, no Correio Paulistano, entre outros). Mário da Silva Brito (1997, p. 157-158) analisa os acontecimentos anteriores à Semana de Arte Moderna da seguinte maneira:

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A tradução utilizada está na seção ISMOS da obra de Jorge Schwartz Vanguardas latinoamericanas: polêmicas, manifestos e textos críticos, precisamente no artigo intitulado “Marinetti e o futurismo”, de Rubén Darío, que teve sua primeira publicação no jornal La Nación no mesmo ano de 1909, em que o Manifesto foi lançado.

81 Os modernos não se declaram dentro da escola de Marinetti, e há, mesmo, os que a combatem, mas são todos considerados futuristas pelos inimigos das novas tendências. Os modernos são encaixados à força – e até contra a vontade – dentro do futurismo. Nem sempre são oponentes sistemáticos da renovação os que assim agem ou procedem. São, antes, representantes das ideias aceitas que põem sob o denominador comum – futurismo – tudo quanto lhes pareça diferente, inusitado. Basta que o crítico – ou simplesmente observador – depare com uma novidade, com algo um nada fora do comum para que, logo, se ponha de sobreaviso e denuncie o fato estranho, colocando, assim, o artista à margem da corrente geral. E então é aplicada a etiqueta – futurista – que tem sentido pejorativo e significa, no mínimo, falta de equilíbrio; está ligada à ideia de loucura, de patológico. Tudo é futurismo e todos são futuristas. É necessário somente que o artista se afaste um milímetro dos padrões convencionais vigentes.

Como podemos perceber, o título “futurista” acabou virando um rótulo para qualquer artista que estivesse disposto a repensar a arte e a literatura no Brasil de 1920, contra qualquer que fosse a inovação na escrita (oposição ao passado literário, ao movimento realista e às escolas romântica, parnasiana e regionalista). Menotti del Picchia, no início de 1921, no jornal Correio Paulistano, publica os primeiros poemas “futuristas” segundo seu conceito, alguns escolhidos de Agenor Barbosa, algumas traduções do italiano Govoni, além de fragmentos do próprio Marinetti. Com isso, praticamente aceita para o grupo a denominação de futuristas, que, para Brito (1997, p. 221), “é adotada por eles mais por motivos polêmicos do que por uma filiação absoluta e profunda à escola lançada pelo italiano”. O fato é que ideias vanguardistas estavam sendo incorporadas pelo grupo de intelectuais brasileiros promotores do modernismo e Oswald de Andrade, pertencente a esse rol, apresenta características da vanguarda em sua obra de estreia, o primeiro volume d’A trilogia, seja no corpo da obra, seja nas características dos personagens.

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Além da profissão de João do Carmo, operador de telégrafo, podemos verificar o uso da nova estética no ritmo da narrativa, que obedece a um código de frases curtas que formam pequenos períodos separados por espaços. Não temos divisões por capítulos na obra, apenas espaços em branco, separações de poucas frases, e alguns casos que chegam a separar frases de uma a uma. A prosa oswaldiana do primeiro volume d’A trilogia, por apresentar essas divisões, pode ser lida como uma série de poemas. Entre os espaços em branco, encontramos, em alguns fragmentos, frases soltas que não participam da continuidade da narrativa, o que pode ser visto na “frase-verso” retirada do texto: “Um navio destaca-se do caes... a vida. Um navio destaca-se do caes...” (ANDRADE, 1922, p. 103). Recursos da poesia são utilizados na maioria dos “fragmentos”, como no citado anteriormente, em que a vida está metaforicamente representada como um navio a sair do cais do porto, rumo ao desconhecido do oceano ou do destino. Na questão da pontuação, também temos um recurso poético: o uso das reticências. A palavra “reticência” tem sua origem no latim reticentia [ae], que significa silêncio obstinado. Além de dar ideia de silêncio após cada afirmação, o uso desse sinal de pontuação também deixa o sentido em suspenso. Segundo Almeida (2011, p. 1), em seu estudo das reticências, [...] as reticências são fundamentais, sobretudo naqueles casos [...] de duplo sentido, nos muitos subentendidos das conversas vagas, nas promessas indefinidas, nas situações pouco claras, nas esperanças falsamente criadas, nas aberturas ao contraditório, nos convites a “algo mais”, enfim, em todas as circunstâncias nas quais a precisão e o cuidado com o verdadeiro não figuram entre as prioridades do autor do discurso ou de seu eventual interlocutor.

Por meio das reticências, o autor dá voz ao leitor, que é capaz de intuir que os versos/frases deixam seus sentidos suspensos, estando suscetíveis à complementação e à expansão, esse “algo a mais” do poema que nunca pode ser esgotado. Analisando as características do personagem, encontramos João do Carmo sendo descrito, logo no início do romance, como um conhecedor da língua francesa: “[...] Depois da infância livre, tivera uma

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educação confusa num collegio francez” (ANDRADE, 1922, p. 29). E é um poeta francês que estampa seu quarto: “Sobre o leito, pendia uma gravura destacada de livro. Era Charles Baudelaire. Tinha um velho retrato da mãe morta, sobre a mesa desordenada” (ANDRADE, 1922, p. 28). Em outras duas cenas, podemos verificar a predileção e o conhecimento que o personagem possuía da obra do poeta francês. Em um primeiro momento, após uma cena de desprezo por parte de Alma, João do Carmo está diante do pequeno espelho localizado na parede de seu quarto e repete, fitando a foto de Baudelaire localizada na parede ao lado: “L’amourex panteland, incline sur as belle / A l’air d’un moribond caressant son tombeau”. Trata-se dos dois últimos versos da quinta estrofe do poema “Hino à beleza”, d’As flores do mal, em que podemos ler, segundo a tradução de Ivan Junqueira: “O arfante namorado aos pés de sua bela / Recorda um moribundo ao túmulo abraçado” (BAUDELAIRE, 1985, p. 155). São as palavras do francês as escolhidas para refletir seu estado de tristeza pelo desprezo da amada, tal qual um agonizante diante da sepultura. O relato seguinte em que encontramos a citação do poeta dá-se no primeiro encontro amoroso entre João do Carmo e Alma. A moça o procura em seu quarto. “Numa sinceridade de confiança, acolhera-se na cama, ao lado d’elle, a cabeça vermelha recostada ao seu largo peito athletico que fremia. E contava-lhe historias da vida” (ANDRADE, 1922, p. 76). Ao longo da conversa, João do Carmo aponta para o retrato de Baudelaire preso à parede: – Você conhece aquelle? Alma levantou a cabeça surpresa, olhou: João mostrava a photographia arrancada de livro que se suspendia a um prego, na parede sobre o leito. – É Baudelaire. – Seu amigo? – Não. Um poeta. Um grande poeta... – Parece um padre. – Você sabe francez? – Um pouco. Elle ficou numa lastima vexada, certo de que um soneto de Baudelaire, cantado pela sua voz cava, resolveria, melhor que tudo, a hora tentadora. (ANDRADE, 1922, p. 77-78)

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Então o telegrafista recita: “Car j’eusse avec ferveur baisé ton noble corps”, verso que inicia o segundo terceto do soneto XXXII, também d’As flores do mal. “Pois com fervor teu nobre corpo eu beijaria” (BAUDELAIRE, 1985, p. 181), diz o apaixonado telegrafista à Alma, que escolhe apenas esse verso do soneto inominado, definido na edição de consulta por seu primeiro verso, “Certa noite bem junto a uma horrenda judia” (p. 181). O poeta Charles Baudelaire é admirado pelo telegrafista, que anuncia fazer uso, inclusive, da forma do soneto, principal gênero utilizado por Baudelaire. “João do Carmo compoz um livro todo de sonetos” (ANDRADE, 1922, p. 147). É interessante pensarmos nessa escolha de João do Carmo pela forma clássica do soneto. Apesar de o livro não apresentar nenhuma composição do telegrafista, é paradoxal a ideia da escrita de poemas “longos” – soneto petrarquiano formado por dois quartetos e dois tercetos e por versos geralmente compostos de decassílabos ou alexandrinos. O uso dessa forma faz com que os versos fiquem longos, estendidos, e esse efeito nos faz supor que estamos diante de um texto narrativo. Ivan Junqueira (apud BAUDELAIRE, 1985, p. 69), no prefácio à sua tradução d’As flores do mal, enfatiza o efeito causado pela escolha da forma: O verso baudelairiano – esse alexandrino impecável e infinito, cuja ondulante durée se prolonga para além dos limites físicos da palavra – envolve um mistério jamais até hoje de todo decifrado. Baudelaire surpreende a cada instante, e essa eterna e mágica surpresa deve muito ao sortilégio resultante das tensões que se polarizam em seu verso.

Estamos diante de um limiar entre prosa e poesia, fator que encontramos também no primeiro volume d’A trilogia, romance que “costura” prosa e verso. Se por um lado temos um romance de Oswald de Andrade fragmentado, composto de curtas frases, e um personagem que é telegrafista e também escritor de sonetos e admirador de Baudelaire, por outro temos o poeta francês que faz uso do alexandrino, do verso estendido e longo para dar suporte aos seus poemas. No poema “A uma madona – Ex-voto ao gosto espanhol”, por exemplo, que está na

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seção “Spleen e ideal” d’As flores do mal, podemos perceber a amplitude deste verso que se estende: A ti, Madona e amante, eu quero consagrar, Na mais funda miséria, um subterrâneo altar, E nos confins mais tenebrosos de meu peito, Bem longe do prazer mundano e do despeito. Cavar um nicho de ouro e azul todo esmaltado, Onde terás, Estátua, o que te for do agrado. (BAUDELAIRE, 1985, p. 249)

Os versos apresentam uma continuidade, em tom narrativo, em que uma consagração é feita à “Madona e amante” em versos repletos de descrições que seguem uma linearidade. Há uma evidente aproximação com a prosa. E, por outro lado, no primeiro volume d’A trilogia, temos um texto fragmentado, repleto de figuras de linguagem como metáforas e onomatopeias, como se a narrativa fosse um grande poema. Inclusive nas divisões do texto isso pode ser percebido, uma vez que não há, como citado anteriormente, divisões em capítulos. São espaços em branco que separam frases ou pequenas sequências, mais próximas de estrofes que de parágrafos. O fragmento a seguir encontra-se no meio da página, deslocado do período anterior e do posterior: “Plou! Plou! Um pedaço de pau na torrente da vida!” (ANDRADE, 1922, p. 52).

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Figura 8 – Ilustração do verso Fonte: ANDRADE, 1922, p. 53.

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A relação do personagem João do Carmo com o poeta francês Charles Baudelaire será muito importante para a análise da obra em questão. N’As flores do mal (1857), publicação do francês já citada anteriormente, temos uma denominação que extrapola o lugar-comum da flor, usado para falar da beleza na poesia; a flor é a imagem da poesia lírica. As flores de Baudelaire são do mal. Uma tensão é proposta já no título, acentuando o caráter da propensão a uma nova lírica. Ao longo dos poemas, temos muitos casos de elementos díspares que convivem. A proposição proveniente de todo o trabalho do poeta acabou por fechar um ciclo na história da poesia lírica, segundo avalia Walter Benjamin (1984, p. 143) na sua análise Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo: As Flores do Mal foram a última obra lírica a exercer influência no âmbito europeu; nenhuma outra posterior ultrapassou as fronteiras mais ou menos restritas de uma língua. [...] O lírico de auréola tornou-se antiquado para Baudelaire.

O crítico analisa a obra do poeta francês e o vê como o último dos líricos por uma junção de fatores, desencadeados pelo desfavorecimento das condições de receptividade da poesia lírica, uma vez que, para Baudelaire, não há como pensar a lírica sem estabelecer uma relação com o leitor (e demonstra logo no primeiro poema d’As flores do mal, que encerra com o verso “– Hipócrita leitor, meu igual, meu irmão!” (BAUDELAIRE, 1985, p. 102), precedido de travessão, marca do diálogo, declarando essa relação de igualdade e reciprocidade. Como o crítico alemão enfatiza, “Baudelaire teve em mira leitores que se vêem em dificuldades ante a leitura da poesia lírica. [...] Baudelaire pretendia ser compreendido; por isso dedica seu livro àqueles que lhe são semelhantes” (BENJAMIN, 1989, p. 103). Nesse contexto, Benjamin complementa que, na Paris do final de 1800, era impossível pensar em uma experiência que não levasse em consideração as mudanças da cidade, que já havia, pelas condições de industrialização e consequentes modificações na paisagem, sido muito modificada e, com isso, alterado a experiência do choque. Segundo Benjamin, a recepção do choque pode ser atenuada por meio de um treinamento no controle de estímulos. E esse controle é uma das consequências da sociedade moderna que acabam promovendo

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fatores que anestesiam o choque, o que, nas palavras do crítico, “tornaria estéril a experiência poética”, já que quanto mais indiferença a assimilação do choque produz, mais estará clara a falta de predisposição para a angústia desse sujeito e dessa sociedade que o produz. A partir de tal debate, surge a interrogação: De que modo a poesia lírica poderia estar fundamentada em uma experiência, para a qual o choque se tornou a norma? Uma poesia assim permitiria supor um alto grau de conscientização, evocaria a ideia de um plano atuante em sua composição. Este é, sem dúvida, o caso da poesia de Baudelaire [...]. (BENJAMIN, 1984, p. 110)

Segundo a análise de Walter Benjamin, podemos constatar que Baudelaire, ao publicar As flores do mal, demonstrava-se consciente das condições adversas de receptividade da poesia e de sua incapacidade em provocar o choque. Para tanto, desenvolve uma singular possibilidade de escrita em que um sujeito é simultaneamente sujeito e objeto, eu e outro, uma poesia baseada em princípios de interação com o leitor, de cumplicidade e comunicabilidade. O advento da sociedade moderna trazia consigo a impossibilidade de dizer “eu” e, nesse sentido, o poeta francês busca outras formas de poder expressar o sujeito da poesia, formas de provocar a indagação e a angústia desse contexto alheio ao choque. Enquanto a experiência anterior ao advento da sociedade moderna estava pautada na vivência, no empirismo, exatamente por sua relação com o choque, a produção de estímulos para conter o choque é que passa a ser a norma da sociedade moderna; temos, portanto, uma nova experiência que, em vez de pautada na vivência, se constrói através da proteção que o sujeito elabora para se defender dos choques. Uma nova configuração de experiência é apresentada por Baudelaire. Sua obra conseguiu, por meio de uma poesia que estabelecia uma relação de simultaneidade entre sujeito e objeto, captar e produzir o drama do outro. Quanto mais estímulos eram produzidos, maior o esforço de proteção contra eles e, portanto, mais lirismo era expresso. Partindo dessa reflexão, podemos destacar a importância da obra de Charles Baudelaire para a análise do romance de Oswald de Andrade e também da poesia moderna, pois o aspecto dramático abordado pelo poeta francês pode ser visto nessa leitura e na poesia moderna. Estamos

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diante da experiência de atenuação de choques e de uma sociedade “protegida”, mas que, para se proteger, cria um novo tipo de experiência e, portanto, ainda dá condições de pensarmos a lírica. A linguagem da poesia de Baudelaire se consolida na questão da relação entre os termos contrapostos por meio do princípio da equivalência, em que não há posicionamento favorável ou desfavorável, apenas a expressão dos opostos lado a lado. Walter Benjamin, em seu estudo O drama barroco alemão, identifica o método de construção por extremos como um procedimento barroco e cujo princípio ele mesmo elege como método para a construção de sua análise do drama barroco. Para Benjamin, (1984, p. 57), “[...] as ideias só adquirem vida quando os extremos se reúnem à sua volta” e percorrer os extremos é a única maneira de salvar as ideias do esquecimento. Nas palavras do crítico alemão, “A representação de uma ideia não pode de maneira alguma ser vista como bem-sucedida, enquanto o ciclo dos extremos nela possíveis não for virtualmente percorrido” (BENJAMIN, 1984, p. 69). Nesse sentido, identificar os extremos é elemento indispensável para a análise da obra de arte. No poema “Hino à beleza”, da seção “Spleen e ideal”, d’As flores do mal, podemos perceber a convivência entre os opostos. De um total de sete quartetos de uma louvação à beleza, citamos os dois últimos: Que venhas lá do céu ou do inferno, que importa, Beleza! ó monstro ingênuo, gigantesco e horrendo! Se teu olhar, teu riso, teus pés me abrem a porta De um infinito que amo e que jamais desvendo? De Satã ou de Deus, que importa? Anjo ou Sereia, Que importa, se és quem fazes – fada de olhos suaves, Ó rainha de luz, perfume e ritmo cheia! – Mais humano o universo e as horas menos graves? (BAUDELAIRE, 1985, p. 155)

Podemos perceber claramente a característica apresentada anteriormente. No poema, principalmente nos dois primeiros versos de cada quarteto, não há importância em saber se a beleza cantada é proveniente do céu ou do inferno, ambos os “espaços” são, primeiramente, destacados como extremos e, posteriormente,

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equiparados, colocados lado a lado, sem preferência e sem interesse especial por nenhum dos dois. Entre os inúmeros paradoxos, seja entre alegoria e símbolo, bem e mal, seja entre elevado e baixo, Deus e Diabo, podemos encontrar na poesia de Baudelaire um sistema de tensões que, segundo Junqueira (apud BAUDELAIRE, 1985, p. 76), parte de “um jogo de termos opostos”. Essa nos parece ser a única maneira possível para as questões da cidade de Paris de 1800 produzirem a poesia e, dessa abertura, a modernidade. Essa tensão proveniente da obra de Baudelaire pode ser vista também nas questões que envolvem a obra de estreia de Oswald de Andrade. O cenário que abriga a publicação do primeiro volume d’A trilogia, a cidade de São Paulo do início da década de 1920, está envolvido por um clima de mudança, de transição. Mário da Silva Brito (1997) analisa os fatos que antecederam a Semana de Arte Moderna e afirma que a literatura brasileira, nesses primeiros anos do século XX, chega a um período de estagnação. Parnasianismo e simbolismo já haviam cumprido sua missão histórica e se encontravam gastos e fatigados. Outros tempos chegavam e, com eles, novos desejos estéticos, políticos e sociais. Oswald de Andrade realiza o mesmo gesto de Baudelaire: ao se deparar com um novo cenário, precisa encontrar outra forma de dizer, uma maneira nova de fazer literatura para que ela possa atingir um público que, assim como a cidade, está em fase de mudança. Para tanto, elege também um método de equiparação de contrários, um jogo de tensão entre opostos e constrói seu romance de estreia sob essas condições. As tensões propostas entre a profissão de João do Carmo e sua produção poética (telegrafista de profissão, escritor de sonetos por predileção), bem como a questão de Charles Baudelaire ser escolhido como poeta predileto por um compositor (e telegrafista) apaixonado por uma prostituta-santa e todo esse enredo nos ser transmitido em um texto fragmentado, em mais uma tensão, desta vez a prosa-poesia, fazem-nos crer que o escritor paulista estava, assim como Baudelaire, buscando uma alternativa capaz de dar novo ânimo à produção literária. Como podemos perceber, há uma série de semelhanças entre os dois escritores em questão, Oswald de Andrade e Charles Baudelaire. Porém, cada um está produzindo, em épocas e em locais diferentes, o que inviabilizaria esse tipo de leitura. No entanto, como já citado anteriormente, esta leitura adota o tempo anacrônico e aproxima as

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obras por suas afinidades internas, conforme defende Walter Benjamin. Além disso, não estamos pensando em termos de origem como início, mas como “vir-a-ser”, possível a qualquer tempo e em qualquer espaço. Portanto, se entendermos o barroco como ele nos é apresentado por Eugenio D’Ors, ou seja, como “éon” (categoria que possui seu desenvolvimento por meio dos tempos), podemos encontrar mais uma “afinidade” entre as obras, a presença de características barrocas. Nas palavras de D’Ors (2002, p. 37), Siempre que encontramos reunidas en un solo festo varias intenciones contradictorias, el resultado estilístico pertenece a la categoría del Barroco. El espiritu barroco, para decirlo vulgarmente y de una vez, no sabe lo que quiere. Quiere, a un mismo tiempo, el pro y el contra. Quiere – he aqui estas columnas, cuya estructura es una paradoja patética – gravitar y volar. Quiere – me acuerdo de cierto anelote, en cierta reja de cierta capilla de cierta iglesia de Salamanca – levantar el brazo y bajar la mano. Se aleja y se acerca en la espiral... Se rie de las exigencias del principio de contradicción.

A ligação de Charles Baudelaire com o barroco foi desenvolvida no estudo Enigmas: egípcio, barroco e neobarroco na sociedade e na arte, do filósofo italiano Mario Perniola. Ele nos chama a atenção para o momento de revalorização do barroco ocorrida entre o fim do século XIX e as três primeiras décadas do século XX em todas as principais culturas europeias. Para ele, “o precursor da revalorização novecentista do barroco foi Baudelaire, o lúcido observador da modernidade” (PERNIOLA, 2009, p. 141). Dele, de fato, nascem um gosto e uma sensibilidade direcionados para a beleza da circunstância e do artifício que associa a idade barroca à idade moderna: as suas considerações sobre a natureza como uma floresta de símbolos, a referência à graça selvagem e barroca da infância, os seus versos dedicados à inebriação provocada nas almas fortes pela sedução do horror

92 constituem uma verdadeira introdução ao gosto e à sensibilidade neobarroca. (p. 142)

Perniola considera uma aproximação entre a idade barroca e a idade moderna e, nesse sentido, situa Baudelaire no ápice do neobarroco por ser um atento observador da modernidade. No entanto, o italiano nos coloca outra questão interessante: “Mas é principalmente o expressionismo alemão a se fazer porta-voz de uma poética neobarroca” (PERNIOLA, 2009, p. 142). Cita, então, o estudo de Hermann Bahr, de 1916, dedicado ao expressionismo, para enfatizar o que pressente de afinidade entre os dois movimentos: Merece particular atenção a ideia de que a idade barroco leve o borbulhar de forças tempestuosas a uma paz imensa, pois coloca no centro do barroco, bem como do expressionismo, o enigma da relação entre uma emotividade desenfreada e uma grande tranquilidade [...] (p. 142).

Retomando os conceitos apresentados até agora sobre o barroco, Perniola observa as mesmas características enfatizadas por Wölfllin e por D’Ors, dando ênfase ao caráter de oposição, o que nos faz aproximar o barroco da obra oswaldiana em questão. Outro ponto importante retomado por Perniola diz respeito à leitura proposta por Walter Benjamin do barroco, principalmente exposta n’A origem do drama barroco alemão. Como já citado no capítulo anterior, Benjamin estabelece, por meio da aproximação por afinidade e levando em consideração os conceitos de pré e pós-história, uma relação entre o drama barroco e o drama expressionista, apesar de não serem cronologicamente próximos. Para o italiano, Benjamin traçou o paralelo mais interessante entre os dois movimentos: Depois de ter individuado uma tonalidade emotiva, comum aos barrocos e aos expressionistas, caracterizada pelo ser internamente vazio e no mais profundo transtornado, porém exteriormente absorvidos por problemas técnico-formais que testemunham uma incontrolável vontade artística, Benjamin percebe uma diferença que volta a favor dos barrocos: na Alemanha do seiscentos a literatura, por mais que

93 a nação tivesse por ela pouquíssima consideração, era de extrema importância para o seu renascimento; o mesmo não se pode dizer dos expressionistas, cuja postura implica a ausência de uma relação positiva com a sociedade e com as instituições. (PERNIOLA, 2009, p. 148)

A leitura de Benjamin, enfatizada por Perniola, de que a retomada do barroco foi de grande importância para a reestruturação da Alemanha pós-guerra pode ser entendida também com ecos nos acontecimentos brasileiros dos primeiros anos do século XX. As questões analisadas por Benjamin a favor do barroco também podem ser pensadas a favor do modernismo brasileiro. Mario da Silva Brito, em sua História do modernismo brasileiro: antecedentes da Semana de Arte Moderna, traça um minucioso estudo da época pré-1922, o “solo fértil” para o nascimento do modernismo. Enfatiza, para tanto, as questões sociais e culturais pelas quais o mundo, a América Latina e o Brasil estavam vivendo. Em capítulo intitulado “As coordenadas do século vinte”, elenca as “transformações radicais e profundas” (BRITO, 1997, p. 19) do mundo, o apogeu da época industrial e técnica, a formação da alta burguesia e do proletariado, o estabelecimento organizado do capitalismo. Quanto à América Latina, afirma: “Nas zonas americanas não menores transformações se operam – e todas elas objetivam, em última instância, libertar o continente da dominação europeia” (p. 20). No contexto nacional, o destaque continua sendo para as mudanças progressistas, como a construção de portos, docas e edifícios, a iluminação da capital federal, o advento da radiotelegrafia. Além disso, Brito (1997, p. 22) salienta a rebelião dos seguidores de Antônio Conselheiro (1897) como uma grande conquista nacionalista, movimento que foi cena para a escrita d’Os sertões, de Euclides da Cunha, “obra a que o autor aplicaria, pela primeira vez, a um acontecimento político um processo interpretativo de nossa condição social”. A partir de todas as condições sociais impostas, seja o avanço da tecnologia, seja o progressismo ocasionado pela organização capitalista, surge o desejo de uma guinada cultural relacionada a esse contexto, enfim, que acompanhasse as “atualizações” sem abrir mão do sentimento nacional. Como afirma Brito (1997, p. 28),

94 O desejo de atualizar as letras nacionais – apesar de para tanto ser preciso importar ideias nascidas em centros culturais mais avançados – não implicava uma renegação do sentimento brasileiro. Afinal, o que se aspirava era tãosomente a aplicação de novos processos artísticos às inspirações autóctones, e, concomitantemente, a colocação do país, então sob notável influxo de progresso, nas coordenadas estéticas já abertas pela nova era.

Oswald de Andrade, em 1954, publica um artigo na Revista Anhembi intitulado “O modernismo”. Em nota, afirma que esse texto é parte do livro inédito Um homem sem profissão – memórias e confissões, volume II, livro que nunca foi publicado por ocasião da morte do autor nesse mesmo ano. No artigo, apresenta o que poderíamos intitular um “balanço” do evento da Semana de Arte Moderna. Exalta o apoio de Mário de Andrade, Paulo Prado e Graça Aranha e também faz uma análise da situação das artes e da literatura brasileiras da época: A literatura e as artes eram o que havia de frustrado e cadavérico. Um longo reinado içara sem contestação, ao topo das gloríolas, a dupla Bilac-Coelho Neto. [...] Não se conhecia outra coisa. [...] No Rio, a Academia Brasileira de Letras que com o reinado de Machado de Assis alcançara seu apogeu, tinha caído lamentavelmente. (ANDRADE apud REVISTA ANHEMBI, 1954, p. 26-27)

A data escolhida para o evento do movimento, o ano de 1922, estabelece, da mesma forma, uma relação com acontecimentos histórico-sociais (comemoração do centenário da Independência e da Exposição Internacional Comemorativa ao 1º Centenário da Independência no Rio de Janeiro). Para Oswald de Andrade, “[...] Esse foi o instante útil. Festejava-se o centenário da nossa independência política. Exposições e festas por toda a parte. [...] Marcou-se a Semana para o começo do ano” (ANDRADE apud REVISTA ANHEMBI, 1954, p. 30-31). Ao encerrar o artigo, mais uma vez Oswald de Andrade relaciona a eclosão do modernismo com questões sociais, desta vez levando em

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consideração a escolha da cidade de São Paulo para o seu desenvolvimento. Se procurarmos a explicação do porque o fenômeno modernismo se processou em São Paulo e não em qualquer outra parte do Brasil, veremos que ele foi uma consequência da nossa mentalidade industrial. São Paulo era de há muito batido por todos os ventos da cultura. Não só a economia cafeeira promovia os recursos, mas a indústria com sua ansiedade do novo, a sua estimulação do progresso, fazia com que a competição invadisse todos os campos de atividade. Desde ginasiano eu me habituara a frequentar uma grande livraria da Rua 15 de Novembro, a Casa Garraux, onde o editor José Olimpio iniciou a sua carreira. Aí se encontravam todas as novidades da Europa. Editoras, livros e revistas sempre foram preocupações paulistas. Assim, um conjunto feliz de circunstâncias, entre as quais a presença entre nós de dois bons padrinhos, Graça Aranha e Paulo Prado, fez eclodir a Semana no ano em que se comemorava o primeiro centenário da independência nacional. (ANDRADE apud REVISTA ANHEMBI, 1954, p. 31-32)

Como vimos, barroco e modernismo, na visão de Walter Benjamin, Mário da Silva Brito e Oswald de Andrade, foram decisivos para o advento da arte e da cultura “renovadas” em seus contextos. Embora distintos, os conceitos puderam ser aproximados pelo método abordado neste estudo, em que afinidades internas foram colocadas lado a lado na tentativa de propor uma nova leitura capaz de fazer ressignificar fatos histórico-literários.

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5 CONCLUSÃO

Meu primeiro contato com a obra de Oswald de Andrade deu-se pela leitura dos romances de invenção: Memórias sentimentais de João Miramar e Serafim Ponte Grande. Duas obras muito interessantes que buscavam uma sintaxe e uma forma inovadora para o romance da época. Porém, minhas preferências literárias sempre estiveram mais próximas da prosa narrativa e tais romances não despertaram em mim o desejo pela pesquisa. Dias depois tive a oportunidade de conhecer A trilogia do exílio e, desde a primeira leitura, fiquei encantada com o texto e com os personagens. Estava diante do autor preferido, narrando de uma maneira diferente da que eu já tivera contato. Estava diante do projeto de escrita de uma tríade na qual Oswald de Andrade cultivava uma sintaxe distante da utilizada pelos “romances de invenção”. E, então, começaram a surgir inúmeras proposições sobre as questões apresentadas pelo romance. Tive acesso à edição de 2003, da Editora Globo, que informava, logo nas primeiras páginas, conter o texto conforme a edição de 1941, na qual Oswald de Andrade reuniu os três romances e os renomeou (pois os volumes haviam sido publicados em 1922, 1927 e 1934, respectivamente). No entanto, o romance que mais me encantou foi o primeiro, em tal edição chamado Alma. Aliás, era Alma mesmo o motivo do meu encanto. Aquela mulher linda e vendida que atravessava todo o enredo cultivando sofrimentos, sendo maltratada por quem amava e amada por quem não possuía nenhum interesse. Já envolvida pelo texto, percebi que o primeiro volume era o romance de estreia de Oswald de Andrade e que inclusive ele havia lido um fragmento do texto na Semana de Arte Moderna. Em cada nova página, podia sentir o “frescor” das ideias que seriam amadurecidas mais tarde, em suas obras posteriores, mas também a ligação com o decadentismo; um romance composto de características antagônicas convivendo, na apresentação gráfica, nos personagens, no enredo. Estava diante de características barrocas que cultivavam a simultaneidade de opostos. E a trama, os personagens... todos muito interessantes. Uma prostituta que era tratada como santa e envolvida com um escritor-poeta de sonetos e ao mesmo tempo telegrafista. Esses paradoxos me deixavam intrigada e curiosa. Estava decidido: meu

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trabalho de conclusão seria sobre esse romance que havia me fascinado. Porém, deparei-me com uma questão proposta pela banca de qualificação e de grande relevância. O romance que eu estava pesquisando não era exatamente o romance de estreia de Oswald de Andrade, pois estava diante de uma reedição do autor, do ano de 1941. O meu objeto, o primeiro volume Alma, não existia. A busca pela primeira edição foi difícil. Era uma obra rara, do ano de 1922. Adquiri a edição, e a pesquisa se tornou ainda mais interessante, pois estava diante de um dos poucos volumes restantes da primeira edição, cunhada sob a supervisão de Monteiro Lobato, reconhecido por seu trabalho no mercado editorial brasileiro, conforme relatei na introdução deste trabalho. As páginas, carcomidas pelo tempo e manchadas pelo mofo, traziam um texto muito próximo do já conhecido na edição atualizada, porém repleto de diferenças gramaticais. Era daquele texto que a crítica da hora (Couto de Barros e Monteiro Lobato) falava e salientava os “erros” da escrita oswaldiana. Utilizar as citações tais quais estão no livro foi uma escolha que objetivou transmitir o manejo com as palavras peculiar do autor no início do século XX. A partir dos personagens e do enredo, passei a buscar leituras que pudessem dar suporte ao que o texto literário suscitou. Foi aí que apareceram os textos teóricos e pude conhecer os métodos de pesquisa, principalmente de Walter Benjamin e de Georges Didi-Huberman, textos que proporcionaram um amadurecimento da minha leitura do romance. Na teoria, pude encontrar suporte para defender as ideias que o romance suscitou, principalmente no pensamento desenvolvido sobre a temporalidade. Apenas embasada na teoria do anacronismo, poderia estabelecer relações entre um livro de 1922 e o decadentismo do final do século, bem como com as obras barrocas, movimento cultural do século XVI. Os conceitos propostos pelo filósofo catalão Eugenio D´Ors também vieram ao encontro do meu raciocínio, ao abordar o barroco como uma categoria cultural e, portanto, liberta de clausuras temporais e históricas. Em épocas e locais distintos, Benjamin e D´Ors cultivaram pensamentos semelhantes: origem como vir-a-ser, emergir, irromper o curso da história. Outras obras de Oswald de Andrade, principalmente o diário O perfeito cozinheiro das almas desse mundo, também embasaram as discussões do meu trabalho. As relações do autor com intelectuais da época e o envolvimento dos homens que frequentavam o apartamento

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(morada do diário) e registravam naquele caderno poemas, desenhos, declarações de amor, voltados em sua maioria para a figura feminina chamada de Deisi e de Miss Cyclone, despertaram muita curiosidade. Seria essa a figura que inspirou a constituição da personagem Alma? O trabalho foi demorado e duro, porém muito prazeroso. A tarefa do pesquisador tornou-se clara para mim. A paixão e a curiosidade que o objeto da pesquisa suscitou moveram meus estudos e minhas leituras, e, a partir disso, pude construir esta análise. Pude perceber que, apesar da pouca quantidade de trabalhos acadêmicos escritos sobre a obra de Oswald de Andrade, principalmente sobre A trilogia do exílio (tive acesso a apenas duas teses de doutoramento sobre a obra), seus textos, sejam literários ou jornalísticos, ainda têm muito a dizer; apontam inúmeras possibilidades de leitura, diversas tendências ainda não exploradas. Como já dizia Eugenio D´Ors, na epígrafe apresentada a este texto, para uma análise literária, não há um fim, pois todo fim é um recomeço. Portanto, não há como afirmar que esta é uma leitura “correta” e muito menos definitiva. A consciência de pesquisadora, ao encerrar este ciclo, motiva-me a continuar. Tenho a pretensão de estender meus estudos para os outros volumes d’A trilogia para poder trabalhar com um panorama maior e estabelecer ainda mais ligações. Concluir um trabalho nesse sentido não é fechar a leitura, mas, pelo contrário, é abrir ainda mais possibilidades para a ressignificação do texto literário. Há quase 100 anos após a publicação, este estudo comprova que não há tempo cronológico capaz de limitar as relações que “afloram” das artes em suas mais distintas facetas. Este não é, portanto, um fim. É uma abertura para novas possibilidades. Um recomeço.

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REFERÊNCIAS

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