UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA MESTRADO EM HISTÓRIA

May 11, 2022 | Author: Edison Rios da Conceição | Category: N/A
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

MESTRADO EM HISTÓRIA

REGIANE CRISTINA CUSTÓDIO

SORRISO DE TANTAS FACES: A CIDADE (RE) INVENTADA MATO GROSSO – PÓS 1970

CUIABÁ – MT Março/2005

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REGIANE CRISTINA CUSTÓDIO

SORRISO DE TANTAS FACES: A CIDADE (RE) INVENTADA MATO GROSSO – PÓS 1970

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Mato Grosso, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em História, sob a orientação do Professor Doutor João Carlos Barrozo.

CUIABÁ – MT Março/2005

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BANCA EXAMINADORA

Professor Doutor João Carlos Barrozo/UFMT (Presidente)

Professor Doutor Barsanufo Gomides Borges/UFG (Examinador Externo)

Professor Doutor Vitale Joanoni Neto/UFMT (Examinador Interno)

Professora Doutora Laci Maria Araújo Alves/UFMT (Suplente)

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Dedico esta dissertação:

À minha avó, Angelina Lino Custódio (In memorian). À minha mãe, dona Ruthe. Ao meu irmão, Ronan. Ao meu sobrinho Bruno e às minhas sobrinhas, Emanuelle e Stéfani. Aos entrevistados e entrevistadas que compartilharam suas experiências.

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Agradecimentos Agradeço, sobretudo a Deus, pela oportunidade de concluir mais uma etapa em minha vida. Esta dissertação certamente seria inviável se, por durante dois anos, eu não tivesse recebido bolsa de estudos da CAPES, à qual dirijo os meus agradecimentos. Agradeço, igualmente, a todos os professores do Mestrado em História e aos professores do Departamento de História da UFMT, que ao longo desses sete anos, acompanharam minha formação acadêmica. Não posso deixar de agradecer ao Alexandre, à Mônica e a Matildes, funcionários da Pós-Graduação, pela atenção que sempre dedicaram aos mestrandos/as. A Matildes especialmente, que de maneira muito delicada e elegante jamais permitia que esquecêssemos nossos compromissos com a Secretaria e com o Programa. À professora Maria Adenir sou grata pelo incentivo (desde os tempos da graduação), depois, como coordenadora do Programa e á professora Leny Caselli Anzai, atual coordenadora da Pós-Graduação. Ao professor Vitale Joanoni Neto e à professora Laci Araújo Alves, sou imensamente grata pelo exame cuidadoso, referente ao texto, na ocasião da qualificação. Suas observações foram muito importantes. Devo especial deferência à Marlene Destri, do Jornal “A folha do Cerrado”, de Sorriso, que de maneira cordial recebeu-me e autorizou a pesquisa no acervo do jornal. Pela colaboração, na fase inicial de levantamento de dados em Sorriso, agradeço aos funcionários da Prefeitura Municipal, especialmente à Elizandra (contabilidade); à Empaer (José dos Reis); à Secretaria Municipal de Agricultura e Meio Ambiente (Lenira) e à Colonizadora Feliz. Sou imensamente agradecida, aos entrevistados e entrevistadas, moradores de Sorriso que me receberam e partilharam uma parte de sua experiência de vida e também aos anônimos que, em conversas informais, prestaram importantes informações. As entrevistas do arquivo pessoal da professora Odila Bortoncello de Sorriso, enriqueceu sobremaneira a pesquisa. A ela externo meu agradecimento e reconhecimento por sua generosidade em socializar as informações de seu arquivo pessoal.

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Aos colegas de Curso, amigos e amigas (que para não cometer injustiça optei por não citar nomes, pois são incontáveis), agradeço a todos e a todas. O meu muito obrigada mesmo, aos que torceram para que eu fosse aprovada na fase inicial, aos que sugeriram bibliografia, aos que trouxeram-me publicações (as mais diversas), sobre a localidade em estudo, aos que “rastrearam” entrevistados/as, aos que ouviram as minhas angústias, anseios e incertezas, aos que opinaram, sugeriram, enfim, a todos e a todas que dedicaram um minuto de sua atenção preciosa... Obrigada meus amigos (as) queridos (as), obrigada. Aos professores e bolsistas do NERU, agradeço a atenção que sempre dispensaram. Agradeço os momentos compartilhados, as propostas e os questionamentos. Essas discussões certamente contribuíram muito. Amigas de longa data, cuja amizade sempre foi estímulo para continuar, o meu carinho enorme e gratidão às professoras Eurenice Borges, Fátima Prandini, Maria Cristina e Maria Helena Rondon. Agradecimento especial à Valdinéia pela confecção do abstract. Valeu amiga super poderosa, obrigada. Dirijo um agradecimento especial ao meu orientador, Professor Dr. João Carlos Barrozo. Ao longo desses anos, nossas discussões e seu apoio foram decisivos para a concepção e a concretização do meu projeto. Seus trabalhos são, para mim fonte de inspiração; sua integridade e conduta são meus modelos. À minha família pelo apoio necessário, sobretudo à minha mãe Ruthe e ao meu irmão Ronan, que, muito carinhosos, estão prontos a ouvirem minhas “histórias”. Eles sempre dão um jeitinho de cuidar da minha casa quando necessito me ausentar (seja para a pesquisa empírica, seja para participar de algum congresso). À Rosiane Custódio (e ao Ronan) o meu muito obrigada, pois desde a fase inicial da pesquisa estavam sempre comigo a transitar pelo local em estudo, ora apresentando-me os loteamentos em Sorriso, ora visitando os órgãos oficiais daquele município. À Leig Mara e às crianças (Emanuelle e Bruno), agradeço a compreensão devido á ausência nesses últimos anos, prometendo que muito em breve, estaremos juntos novamente. Ao Gilson, o meu reconhecimento, minha eterna gratidão (pelo apoio, compreensão, incentivo e carinho sempre dedicados) e o meu eterno amor.

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Resumo

Originário de um projeto privado de colonização que data de 1976, o município de Sorriso, em Mato Grosso, foi povoado por grupos sociais originários de várias regiões do Brasil, sobressaindo-se os originários da região Sul. Eram, em grande parte, pequenos produtores rurais capitalizados. Após três décadas, sua economia é predominantemente agrícola, com uma significativa produção de algodão, arroz, milho e soja para exportação. O município de Sorriso é representado na imprensa nacional como ‘o maior município agrícola do mundo’, lugar ideal para se ‘fazer a vida’. Estas representações contribuíram para atrair migrantes de várias partes do Brasil. Considerando a multiplicidade das experiências vivenciadas, a questão central desta dissertação será, através da análise das fontes (escritas, orais e iconográficas), trazer à baila uma discussão sobre outra possibilidade de leitura relacionada à história daquele município, diferentemente das leituras produzidas naquela localidade. Objetiva-se, além de discordar da idéia de homogeneidade, apresentar Sorriso como espaço múltiplo, composto de particularidades, sobretudo no que diz respeito a pessoas, que por razões as mais diversas, são diferentes entre si, o que culmina na discussão da identidade e da alteridade.

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Abstract

Originating from a private colonization project that dates from 1976, the municipal district of Sorriso, in Mato Grosso, was populated by social groups originating from several areas of Brazil, in particular from the Southern region. They were, largely, small rural producers with little capitalization. After three decades, the economy there is predominantly agricultural, with a significant production of cotton, rice, corn and soya beans for export. The municipal district of Sorriso is represented in the national press and media as 'the largest agricultural municipal district in the world ', an ideal place 'to make a fortune'. These representations contributed to the attraction of migrants from several parts of Brazil. Considering the multiplicity of the living experiences, the central subject of this dissertation will be, through the analysis of the sources (written, oral and iconographic), to "bring to the table" a discussion about another possible perspective related to the history of that municipal district, different to the perspectives which produced the writings there. The aim, beyond disagreeing with the homogeneity idea, is to present Sorriso as a multiple space, composed of a number of particularities, especially in that which concerns people, that for several reasons, are diverse amongst themselves, that culminates in the discussion of the identity and of the alteridade.

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Lista de Abreviaturas APMT

Arquivo Público de Mato Grosso

BASA

Banco da Amazônia

IBGE

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

INCRA

Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária

NERU

Núcleo de Estudos Rurais e Urbanos

PIN

Plano de Integração Nacional

POLAMAZÔNIA

Programa de Pólos Agropecuário e Agrominerais da Amazônia

PND

Plano Nacional de Desenvolvimento

POLOCENTRO

Programa de Desenvolvimento dos Cerrados

PROBOR

Proborracha

SUDAM

Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia

SUDENE

Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste

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Lista de fotografias

Fotografia 1 – Vista aérea do núcleo central de Sorriso/MT............................................. 68 Fotografia 2 – Vista parcial do loteamento Vila Bela – Sorriso/MT................................. 92 Fotografia 3 – Vista parcial do loteamento Vila Bela – Sorriso/MT................................. 92

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Lista de tabelas

Tabela 1 – Estrutura Fundiária do Município de Sorriso/MT.............................................. 88

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Combates pela história

Eu amo a história. Se não amasse não seria historiador (...) é com segurança que lhes digo: para fazer história virai decididamente as costas ao passado e vivei primeiro. Misturai-vos à vida. À vida intelectual, sem dúvida, em toda a sua variedade. Historiadores, sede geógrafos. Sede juristas também, e sociólogos e psicólogos; não fecheis os olhos ao grande movimento que, perante vós, transforma num ritmo vertiginoso as ciências do universo físico. Mas vivei também uma vida prática. Não vos contenteis em contemplar da orla, preguiçosamente, o que se passa no mar em fúria. No barco ameaçado não sejais como Panurgo se sujando de puro medo, nem mesmo como o bom Pantagruel, contentando-se, amarrado ao grande mastro, em implorar, levantando os olhos ao céu. Arregaçai as mangas com Frei João. E ajudai os marinheiros na faina. E isto é tudo? Não. Não é mesmo nada se deveis continuar separando a vossa ação do vosso pensamento, a vossa vida de historiador da vossa vida de homem. Entre a ação e o pensamento não há separação. Não há barreira estanque. É preciso que a história deixe de vos aparecer como uma necrópole adormecida, onde perpassam apenas sombras despojadas de substância. É preciso que, ardentes de luta, ainda cobertos de poeira do combate, do sangue coagulado do monstro vencido, penetreis no velho palácio silencioso onde ela dormita, e que, abrindo as janelas de par em par, reacendendo as luzes e reanimando o barulho, acordeis com a vossa própria vida, com a vida quente e jovem, a vida enregelada da princesa adormecida (...). Perdoai-me o jeito que tomou esta palestra. Dirijo-me, sobretudo, aos historiadores. Se acaso eles estiverem tentados a achar que lhes falar assim é não lhes falar como historiador, eu lhes suplico que reflitam antes de formular essa censura. Ela é mortal (FEBVRE,

Lucien, 1965, p. 32-33).

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Mapa de Mato Grosso – alguns municípios criados a partir de meados de 1970.

Fonte: Revista Interior. Mato Grosso, fevereiro de 2003 – Edição de lançamento. Destaque da capa: “MATO GROSSO – a força da soja na terra das oportunidades”.

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Sumário

Introdução.......................................................................................................................

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A EXPANSÃO DA FRONTEIRA AMAZÔNICA E A (RE) OCUPAÇÃO DO NORTE DE MATO

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GROSSO....................................................................................................................................................

Os espaços “vazios”........................................................................................................

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A fronteira: algumas considerações................................................................................

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A transformação do cerrado............................................................................................

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A colonização e a (re) ocupação.....................................................................................

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A fronteira entre a área rural e área urbana....................................................................

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O QUE CONTA É A APARÊNCIA: A MENSAGEM DA IMAGEM....................................................

A mensagem da imagem.................................................................................................

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A escolha do nome: o entretecer da memória.................................................................

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Riqueza e pobreza na “capital da soja”...........................................................................

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O lugar “ideal”................................................................................................................

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A dinâmica do processo migratório................................................................................

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O “EU” E O “OUTRO”: A MULTIPLICIDADE NA FRONTEIRA.......................................................

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Múltiplas tramas: experiências e vivências da vida social.............................................

Veredas e trilhas: memória e relatos (re) compondo histórias de vida........................... 115 A trajetória de dona M.S................................................................................................. 116 A trajetória de seu J.P.S.................................................................................................. 120 Considerações finais.......................................................................................................

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Fontes.............................................................................................................................. 131 Fontes impressas............................................................................................................. 131 Fontes orais..................................................................................................................... 134 Bibliografia..................................................................................................................... 136 Anexos............................................................................................................................ 148

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Introdução

Esta dissertação tem por objetivo estudar o processo de colonização e o surgimento do município de Sorriso, em Mato Grosso, que ocorreu na segunda metade do século vinte, mais precisamente, em meados da década de setenta. As análises voltam-se para as dinâmicas culturais e buscam compreender as práticas políticas e sociais que configuram determinadas reespacializações e reterritorializações. O interesse em estudar Sorriso, começou a partir do meu ingresso como bolsista num Projeto de Pesquisa (PIBIC/CNPq) que fora desenvolvido no NERU nos anos 2000 a 2002, sob a orientação do professor Dr. João Carlos Barrozo. Durante duas visitas ao campo da pesquisa, após vislumbrar apenas o núcleo central de Sorriso e fazer um levantamento de fontes impressas em alguns órgãos oficiais, percebeu-se que a imagem que emergia dessas fontes era a de um lugar sem desigualdades. Eram imagens bastante sugestivas que estavam a disseminar a idéia de que Sorriso seria uma espécie de paraíso terrestre. Configurada como terra de oportunidades para aqueles que estão em busca de sonhos e realizações. Imagens convidativas da paisagem urbana (núcleo central) e das áreas agrícolas, essas imagens realmente fascinaram. Á medida que as visitas se tornaram mais freqüentes, foi possível visualizar uma paisagem distinta daquela que emergia das fontes impressas, já levantadas, que, limitadas apenas ao núcleo central, eram ancoradas pelas referências às grandes áreas agrícolas. O que ajudava a compor o quadro de cidade rica, com muitas oportunidades e portadora de uma memória unificada. Inicialmente, o Projeto que daria origem à dissertação fora elaborado a partir de pesquisa bibliográfica e empírica, na ocasião, da conclusão da Monografia (CUSTÓDIO, 2002). Naquele momento havia uma preocupação em perscrutar uma migração oriunda do Nordeste do Brasil em direção a Sorriso. A migração oriunda do Nordeste do Brasil (evidenciada na pesquisa empírica nos bairros periféricos), embora minimizada pelo último Censo Demográfico do IBGE de 2000 registrou que, 0,32% da população de Sorriso é originária do Piauí; 0,41% do Ceará; 0,16%

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do Rio Grande do Norte; 0,36% da Paraíba; 0,30% de Pernambuco; 0,03% de Alagoas; 0,07% de Sergipe; 0,87% da Bahia; 4,83% do Maranhão.1 A partir da pesquisa empírica foi possível verificar que, em busca de terra e trabalho, muitos trabalhadores e trabalhadoras de regiões as mais diversas do Brasil seguiram em direção a Sorriso nas últimas décadas. A partir desta constatação e dando prosseguimento ao estudo iniciado em 2000, que culminou na Monografia em 2002, uma escolha foi feita: dar continuidade na pesquisa, desta vez, optando em estudar as experiências sociais e a trajetória de alguns trabalhadores e trabalhadoras, independentemente de sua localidade de origem, mas, considerando, sobretudo, aqueles que tiveram alguma ligação direta com a terra e, atualmente, vivem na cidade sob a condição de trabalhadores urbanos. Pretende-se demonstrar como se configuraram (e se configuram), no cenário da colonização do município de Sorriso, durante o período em estudo, as diversificadas formas de sobrevivência, dos homens e mulheres, trabalhadores e trabalhadoras que lá se fixaram. As experiências desses atores sociais estão relacionadas às dimensões sociais mais amplas, reveladoras das condições violentas do processo de ocupação da Amazônia. O desafio então, consiste em entender Sorriso, enquanto município que conta com uma expressiva produção agrícola, sobressaindo-se a cultura da soja, envolvendo alta tecnologia, mecanização e concentração fundiária. Simultaneamente, local de segregação para muitas famílias que se deslocaram em busca de terra e trabalho. Alguns desses trabalhadores e trabalhadoras, apesar de relatarem os obstáculos encontrados para se manter no município, como conseguir trabalho ou uma área de terra, por exemplo, conseguem por seus saberes driblar a ordem estabelecida e se manter em Sorriso. A pesquisa, sobretudo, os relatos de memória, dará visibilidade às suas experiências. Destaca-se que ao estudar a história do tempo presente, o diálogo com algumas obras foi imprescindível para entender que “o historiador do presente é contemporâneo de seu objeto e, portanto partilha com aqueles cuja história narra, as mesmas categorias essenciais, as mesmas referências fundamentais” (CHARTIER, 2002, p. 216).

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A pesquisa iniciada em 2000 só foi possível a partir de minha inserção num projeto desenvolvido no NERU/ICHS/UMFMT (Núcleo de Estudos Rurais e Urbanos), coordenado pelo Prof. Dr. João Carlos Barrozo. Sob o título: “O SONHO DA TERRA: migração e mobilidade social dos colonos de Sorriso”. O projeto objetivava: identificar a trajetória geográfica e social dos colonos de Sorriso; investigar as causas da migração do local de origem para o local de destino e, finalmente, verificar se os colonos investigados sofreram mobilidade social. A partir dos resultados do projeto que fora elaborado enfocando, entre outras questões, as trajetórias de migrantes originários do Sul do Brasil, surgiu a determinação em perscrutar a migração que estava ocorrendo para Sorriso de atores sociais advindos do Nordeste do Brasil. Os resultados deste estudo encontram-se em Custódio (2002).

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Diversos autores (alguns embora preocupados em afirmar que não se ocupam da história do presente), dedicaram uma parte do seu tempo com ponderações no que se refere à esta história, fornecendo alguns pontos para reflexão. Dentre eles, pode-se destacar Jacques Le Goff (1999) e Roger Chartier (2002). Chartier afirma inclusive, que “a história do tempo presente manifesta com peculiar pertinência a aspiração à verdade que é inerente a todo trabalho histórico” (p. 217). Há ainda alguns autores, mais diretamente envolvidos neste debate sobre a importância de se estudar a história do tempo presente e as reflexões que a mesma suscita no que diz respeito às fontes e à metodologia. René Rémond (2002) e François Bédarida (2002), entre outros, sendo Bedárida o fundador do Instituto de História do Tempo Presente (IHTP), em setembro de 1978, na França. Na América Latina, “a última grande fronteira é a Amazônia, em particular a Amazônia brasileira”, conforme assinalou José de Souza Martins (1997 p. 147). Outros autores ainda podem ser mencionados no que diz respeito à discussão do movimento de expansão sobre terras “insuficientemente” ocupadas. Entre os autores que se dedicam a estudar a expansão da fronteira no Brasil, destacam-se: José de Souza Martins (1973; 1975; 1997); Léo Waibel (1979); Pierre Monbeig (1984); Alcir Lenharo (1985); José Vicente Tavares dos Santos (1994); Roberto Wegner, (2000); entre outros. Segundo José de Souza Martins, desde o início da Conquista a Amazônia tornou-se objeto de diferentes movimentos, seja na caça e escravização do índio ou na busca e coleta das plantas conhecidas como ‘drogas do sertão’, e também, na coleta do látex e da castanha. “A partir de 1964, a Amazônia transformou-se num grande cenário de ocupação territorial violenta e rápida” (1997, p. 47). O afã do progresso, a busca de integração nacional e o crescimento econômico acabaram por atingir os espaços amazônicos. A incorporação da Amazônia ao processo geral de expansão capitalista no Brasil, ocorreu numa situação específica. Segundo Cardoso e Muller:

A região guarda as características de frente pioneira e incorpora, em sua expansão, as mais variadas formas sociais de produção, que abarcam, num leque, desde formas compulsórias de trabalho até relações puramente assalariadas, uma vez que a expansão capitalista não se efetiva de modo homogêneo e retilíneo (1977, p. 7).

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Para os autores, a (re) ocupação na Amazônia deve ser vista em relação com o processo de expansão do capitalismo, em função do ritmo, da forma e do volume da acumulação ocorrida nas demais regiões no Brasil. Deve-se levar em conta, ainda, que “o capital nada mais é do que uma relação social”, por isso, a expansão do capitalismo na Amazônia dependeu (e depende) da forma concreta que essa relação social assume (Op. Cit, p. 7). A (re) ocupação de parte da Amazônia e Centro-Oeste brasileiro aconteceu num contexto de expansão capitalista no campo e modernização na agricultura que ocorreu, sobretudo no Sul do Brasil, ao final da década de 60 do século XX. Predominavam no Sul do Brasil os minifúndios e a agricultura familiar. A proposta de modernização exigia grandes áreas e os minifúndios tornaram-se um entrave para a expansão do capitalismo. Desconsideradas as populações indígenas que habitavam as terras na Amazônia e Centro-Oeste, o discurso dos “espaços vazios”, das “terras abundantes” e “população rarefeita”, houve, por parte do Estado, o planejamento de uma política de povoamento que oportunizasse aos minifundiários do Sul adquirirem terras para continuarem se reproduzindo enquanto pequenos agricultores. Entretanto, há estudos que consideram que o INCRA, órgão responsável pela realização da reforma agrária no Brasil (quando de sua criação), abandonou a colonização a plano secundário ao fazer concessão de extensas áreas de terra às grandes empresas. “A colonização oficial não foi abandonada de todo, mas o governo abandonou o discurso da ocupação da Amazônia com pequenos agricultores” (BARROZO, 1992, p 9). Segundo Guimarães Neto (2003, p. 51), o Estado elaborou então, um plano de “reajuste demográfico” nacional com o intuito de aliviar as tensões sociais em áreas que, segundo o discurso oficial, teriam seus problemas sociais originados pela disputa política no campo. Esta, por sua vez, relacionava-se diretamente, à concentração de pequenos produtores em algumas áreas como o Sudeste e o Nordeste do Brasil. O direcionamento do governo em orientar os fluxos migratórios para as novas áreas de povoamento favoreceria o “esvaziamento” dos conflitos sociais nessas regiões. Ainda segundo Guimarães Neto:

Os “pólos” de desenvolvimento econômico, as políticas de incentivos fiscais e a implementação de grandes eixos rodoviários na região amazônica, encontram-se entre as estratégias mais importantes para a exploração econômica e o domínio territorial dos “novos espaços”. Nesse aspecto, destacam-se: a concessão de grandes áreas de terras e incentivos fiscais a empresários para investimentos em projetos agropecuários, agroindustriais, projetos denominados colonização e diversos favorecimentos a empresa de mineração; a implantação das novas rodovias previstas pelo Plano de Integração Nacional (PIN), como a Transamazônica, no sentido leste a oeste, do Pará ao Amazonas, e a rodovia Cuiabá (MT)-Santarém (PA), de Mato

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Grosso ao Pará, direção sul-norte, e, ainda, a utilização maciça de propagandas para estimular os deslocamentos de agricultores empobrecidos para as novas áreas de colonização da Amazônia (GUIMARÃES NETO, 2003, P. 51).

A partir de 1964, os governos ditatoriais, dirigiram o projeto de ocupação e controle do acesso às terras na Amazônia. A Política de Integração Nacional, iniciada na década de 70 do século vinte, deveria incorporar grandes áreas de terra ao processo produtivo e integrar economicamente a Amazônia, objetivando dessa forma, reduzir os desequilíbrios regionais, através da criação de novos núcleos urbanos.2 Alguns minifundiários do Sul do Brasil, ao venderem a terra que possuíam em seu lugar de origem, conseguiram adquirir uma maior área na Amazônia onde o preço da terra era menor que em seu local de origem. No entanto, os pequenos produtores que adquiriram áreas de terras na região Amazônica (sobretudo em áreas de colonização privada), trouxeram consigo algum pecúlio, pois, mesmo o preço da terra sendo consideravelmente menor que no lugar de origem, era necessário pagar por ela. Aos empresários que se instalaram na Amazônia nesse período, o Estado ofereceu créditos financeiros, subsídios vários e incentivos fiscais. Órgãos específicos como a SUDAM e o BASA e programas como o PRODOESTE, o PROBOR e o POLOCENTRO, foram criados, visando possibilitar a construção de uma infra-estrutura básica para que as empresas se instalassem. A propaganda, no bojo da política de (re) ocupação da Amazônia, tornou-se aliada do Estado ao estimular os deslocamentos de agricultores empobrecidos e trabalhadores/as rurais para as terras da Amazônia que se tornou a “nova fronteira agrícola”. Foi então (re) inventado o mito da fronteira sob a retórica do novo eldorado. A propaganda de “terras baratas” na Amazônia, aliando-se à idéia de oportunidade de se obter uma vida melhor, pode ser pensada considerando também, a condição de vida dos homens e mulheres que se deslocaram para Mato Grosso no início da década de 1970, e em especial, para a cidade de Sorriso. A existência desses fatores contribuiu para atrair um grande número de pequenos produtores do sul e trabalhadores de outras regiões do Brasil.

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PIN – Plano de Integração Nacional. Este trabalho é a versão revista e atualizada das conferências proferidas na Universidade de Brasília em março de 1972 no Curso Nacional sobre o Planejamento do Desenvolvimento Urbano das faixas de fronteira (SERPHAU-OEA-UNB) e Universidade de Viçosa para os Cursos de Graduação e Pós-Graduação em Economia Rural. Segundo Berta Becker (1990, p. 22), esta é a diferença da fronteira agrícola da Amazônia, onde o núcleo urbano é a base logística da ordenação territorial. Nas áreas de colonização (oficial e privada), o planejamento já incluiu o núcleo urbano como base de sustentação.

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No discurso oficial, a Amazônia, a partir do início da década de 70 (século XX) poderia ser considerada como uma “válvula de escape” para “desafogar” as áreas rurais e os grandes centros do Sul/Sudeste/Nordeste (CARDOSO & MÜLLER, 1977, p. 139-141); Monbeig (1984); Wegner (2000). Assim, o Estado representou um papel determinante para reorientar e esvaziar as tensões sociais. A fronteira foi reputada como devendo oferecer ao país inteiro novas perspectivas como crescimento econômico, soluções de problemas sociais e domínio do território num sentido nacionalista. Freqüentemente a “fronteira” foi apresentada como um substituto da reforma agrária (AUBERTIN, 1998). A idéia da fronteira como substituto da reforma agrária é combatida por alguns estudiosos, entre os quais destaca-se Octávio Ianni (1979), que caracterizou essa operação da ocupação da fronteira por empresas agropecuárias, mineradoras, madeireireiras e colonizadoras, de uma “contra-reforma agrária”. Quanto às novas perspectivas, sobretudo no que diz respeito ao desenvolvimento econômico, o discurso se mantém até a atualidade, justificando o desmatamento, a monocultura da soja, o trabalho degradante e o avanço sobre áreas de preservação ambiental. A fronteira é ainda considerada como lugar privilegiado da observação e do conhecimento sobre os conflitos e dificuldades próprios da constituição do humano no encontro de sociedades que vivem no seu limite e no limiar da história. A fronteira é o lugar onde se torna possível observar melhor como as sociedades se formam, se organizam, se (des) organizam ou se reproduzem. Na fronteira, se vê melhor quais são as concepções que asseguram esses processos e lhe dão sentido (MARTINS, 1997). Martins considera que a fronteira é marcada pela indefinição, pela ambigüidade e, sobretudo pela multiplicidade cultural. A fronteira é o resultado das práticas sociais. Em Michel de Certeau (2002, p. 213), a fronteira é “um espaço entre dois”. O que pode possibilitar uma discussão em torno da formação da identidade e também, da alteridade. O município de Sorriso, em Mato Grosso (localizado a 412 quilômetros de Cuiabá), insere-se num momento histórico específico de expansão da fronteira agrícola e criação de novos núcleos urbanos na Amazônia. Originário de um projeto privado de colonização que data de 1976, teve seu povoamento inicialmente com grupos sociais originários do Sul do Brasil (RS, SC, PR), que naquela ocasião tinham o propósito de trabalhar com agricultura. Três décadas após a instauração do projeto inicial, Sorriso desponta na mídia nacional ostentado o título de “capital da soja” no Brasil. O núcleo central possui amplas avenidas, limpas e arborizadas, característica de cidades originadas de projetos privados com um planejamento

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prévio. Com o passar do tempo (nas décadas seguintes ao povoamento inicial), intensificou-se a presença de grupos sociais de outras localidades do país. A questão central desta dissertação consiste em analisar o município de Sorriso enquanto um espaço múltiplo, composto simultaneamente de singularidades no que diz respeito a pessoas diferentes, que por inúmeras razões divergem entre si, o que pode culminar na discussão da identidade e conseqüentemente, da alteridade e do estranhamento (MARTINS, 1997; ELIAS & SCOTSON, 2000; LAVERDI, 2003; WOODWARD, 2003). Para realizar o trabalho, procedeu-se então ao compilamento das fontes levantadas: recolher, separar, selecionar, organizar e agrupar, organizando-as da seguinte forma: fontes escritas – coletadas em Cuiabá nos órgãos oficiais: IBGE, INCRA, Arquivo Público de Mato Grosso. Em Sorriso –, jornais, revistas e material impresso produzido pelos órgãos públicos de Sorriso e pela Colonizadora que se instalou nos primeiros tempos da colonização; fontes orais – entrevistas com trabalhadores e trabalhadoras residentes em Sorriso; fontes iconográficas: material mais amplo relacionado à representação que Sorriso adquire através da imprensa: jornais, revistas, fotografias e televisão. As fontes são pensadas em sua própria historicidade, ou seja, como expressões de relações sociais, assim como elementos constitutivos dessas relações. “Escolhê-las e analisálas implica identificá-las e compreendê-las no contexto social em que se engendram e, igualmente, dentro de nossas perspectivas de investigação” (KHOURY, 2001, p. 81)). Mais do que buscar dados e informações nas fontes, elas (as fontes) devem ser observadas como práticas e/ou expressões de práticas sociais através das quais os sujeitos se constituem historicamente (idem, ibidem). Nessa perspectiva, considerando que se trata de uma história do tempo presente, as fontes orais foram sendo progressivamente incorporadas. Nesse caminho percorrido, tornouse indispensável estreitar um diálogo com autores como Maria Isaura P. de Queróz (1983, 1988); Verena Alberti (1989); Paul Thompson (1992); Walter Benjamin (1994); Carlos Sebe Bom Meihy (1996); Ecléa Bosi (1997); Antonio Torres Montenegro (2001); Dora Schwarzstein (2001); Yara Aun Khoury (2001); Alessandro Portelli (2004), entre outros. A partir desse diálogo considerou-se que o trabalho com as fontes orais permite dar visibilidade a uma outra história, que não aparece na história oficial, mas que é também importante para se entender a complexa rede das relações sociais. É importante ressaltar que não se buscou trabalhar com um número exaustivo de entrevistas, ou com amostragens representativas de diferentes grupos de pessoas. Optou-se por trabalhar com poucas entrevistas, selecionando as mais significativas e por meio delas, “identificar, avaliar e

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explicar possibilidades e limites presentes, e em embate, na realidade social” (KHOURY, 2001). Os entrevistados foram selecionados e as narrativas consideradas representativas por sua capacidade de expressar e delinear possibilidades e limites presentes na realidade social seja como realidades consumadas, como horizontes ambicionados ou perigos temidos. Com essas características, as narrativas trouxeram subsídios para trabalhar melhor a complexa dinâmica da realidade social, cujas peculiaridades, semelhanças e diferenças a pesquisa dispunha-se a descortinar e problematizar (Op. Cit). Ainda sobre as fontes orais, outra característica importante a ser considerada é a possibilidade de questionar as formas de abordagens que universalizam e generalizam situações particulares. É comum que essas abordagens generalizantes identifiquem como sendo uma memória comum (ou a memória oficial) o que muitas vezes é memória que abrange apenas os grupos dominantes (DOURADO, 2003, p. 8). No trabalho com as fontes orais, dispensou-se o mesmo rigor utilizado no tratamento com as demais fontes documentais utilizadas, considerando que ao fazer uso da memória como fonte para o trabalho historiográfico alguns pontos importantes merecem atenção. É importante ter em mente que, o recordador ao narrar suas memórias, paulatinamente, lança mão de elementos do presente que, mesclados, são utilizados para representar o passado. A memória está em constante movimento entre o presente e o passado. Desta forma, assim como pode ser imprudente tornar a fonte escrita ou iconográfica um espelho da realidade, no trato com a memória, torna-se prudente que se tenha o mesmo cuidado. Importa discutir de que maneira a utilização das fontes orais pode “servir no trabalho de estruturação da narrativa, tornando visível os traços da experiência histórica” (GUIMARÃES NETO, 2000). A fotografia, como já se afirmou, (fazendo parte do material mais amplo relacionado à representação que Sorriso adquire através da mídia), está sendo empregada como fonte de análise. Nesse sentido, algumas observações são relevantes. Como pensar a fotografia enquanto fonte? Quando utilizá-la? Na senda aberta por Kossoy (2001), isso é possível desde que observadas as análises iconográfica e iconológica. Outro aspecto a ser considerado é que para cada projeto a ser desenvolvido, há uma metodologia específica. Ao empregar a fotografia como fonte nesta dissertação, considerou-se de extrema importância as observações de Boris Kossoy, sobretudo quando o autor afirma: A imagem fotográfica pode e deve ser utilizada como fonte histórica. Deve-se entretanto, ter em mente que o assunto registrado mostra apenas um fragmento da realidade, um e só um enfoque da realidade passada: um aspecto determinado. Não é demais enfatizar que este conteúdo é o resultado final de uma seleção de possibilidades de ver, optar e fixar um certo aspecto da realidade primeira, cuja

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decisão cabe exclusivamente ao fotógrafo, quer esteja ele registrando o mundo para si mesmo, quer a serviço de seu contratante (2001, p. 107).

Ao longo da pesquisa várias fotografias foram recolhidas. Entretanto, uma apenas foi selecionada por ser considerada mais significativa, é a mais utilizada pela mídia. Esta especialmente tornou-se o cartão postal da cidade. A mesma está sempre presente, a “ilustrar” reportagens em meios de comunicação os mais diversos em todo o país. As fotografias tornaram-se extremamente representativas, por compor a imagem de “cidade ideal”. A partir delas, há uma certa generalização: “a cidade da fotografia”. Na análise de Kossoy: “a seleção de um aspecto determinado do mundo social para o respectivo registro fotográfico, apesar de se constituir na questão fundamental da manipulação/interpretação, é apenas o início de uma sucessão de atos congêneres (Op. Cit, p. 107)”. Há a possibilidade de intervenção do fotógrafo, na imagem e na configuração, o que pode ocorrer das mais variadas formas. Seja dramatizando ou valorizando esteticamente os cenários, seja deformando a aparência dos seus retratados, alterando o realismo físico das coisas, omitindo ou introduzindo detalhes.

o fotógrafo sempre manipulou seus temas de alguma forma: técnica, estética ou ideologicamente. O produto final, a fotografia, é o documento que hoje temos diante de nós para o estudo: “interpretado” no passado antes mesmo do próprio ato da tomada do registro e ao longo das sucessivas etapas de sua materialização (laboratório, edição e publicação) (KOSSOY, 2001, p. 108).

De acordo com as idéias defendidas por este autor, não se pode esquecer que a fotografia é produto da seleção e da intervenção do fotógrafo, ela passa por um filtro: o do próprio fotógrafo, com suas opções, sua cultura e suas escolhas. E finalmente, deve-se ter cuidado ao afirmar que a fotografia é o espelho da realidade, como queria fazer crer, no século XIX, o mito da verossimilhança. A idéia da fotografia como espelho da realidade está ligada aos países ocidentais onde houve influência do Renascimento. É preciso estar sempre atento para a possibilidade de intervenção do fotógrafo na construção imagética (KOSSOY, op cit). Walter Benjamin, para quem a reprodução fotográfica transforma a vivência em objeto a ser apropriado pela câmera, afirma: “(...) a fotografia revela (...) mundos de imagens habitando as coisas mais minúsculas, suficientemente ocultas e significativas (1994, p. 94). O que se procura ocultar, muitas vezes, possui um significado tão importante, quanto aquele que se deseja revelar. Sendo assim, é essencial estar atento não apenas aos aspectos revelados pela fotografia.

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No que diz respeito à utilização da mídia como fonte de análise para a pesquisa histórica, Laura Antunes Maciel chama a atenção para uma questão importante: (...) é preciso refletir sobre nossos procedimentos e os modos como lidamos com a imprensa em nossa prática de pesquisa para não tomá-la como um espelho ou expressão de realidades passadas e presentes, mas como uma prática social constituinte da realidade social, que modela formas de pensar e agir, define papéis sociais, generaliza posições e interpretações que se pretendem compartilhadas e universais. Como expressão de relações sociais, a imprensa assimila interesses e projetos de diferentes forças sociais que se opõem em uma dada sociedade e conjuntura, mas os articula segundo a ótica e a lógica dos interesses de seus proprietários, financiadores, leitores e grupos sociais que representa (2004, p. 15).

Através dos meios de comunicação com alcance nacional, (jornais, revistas, televisão), Sorriso é representado como sendo “o maior município agrícola do mundo” e “maior produtor de soja de Mato Grosso”, um local de muita riqueza, o que o tornaria um lugar ideal para se “fazer a vida”. Essas representações contribuíram (e contribuem) para atrair para a cidade de Sorriso, grupos sociais diversos, de várias partes do Brasil. A pesquisa quer mostrar que a realidade social em Sorriso se apresenta de maneiras as mais diversas. Não há apenas riqueza na “cidade promissora”. Está a crescer com ela uma expressiva desigualdade social. As reportagens veiculadas na imprensa tendem a generalizar posições e interpretações ao passar uma imagem de homogeneidade. Todavia, um olhar direcionado sob a perspectiva acadêmico-científica possibilitará uma outra análise. Passados 18 anos da emancipação político-administrativa de Sorriso, o município ganhou evidência ao ser representado através da mídia como “o maior município agrícola do mundo”. Reconhecendo o valor destas representações que podem ser consideradas como fontes que oferecem subsídios para a produção do discurso histórico, considera-se importante levar em conta a necessidade de submeter os seus conteúdos a uma leitura que não se deixe fascinar pelo seu caráter aparentemente neutro, ou pelas imagens positivas sobre a cidade de Sorriso, e o estado de Mato Grosso, respectivamente. Trata-se, nesse caso, de perceber que as representações “(...) podem contribuir para produzir aquilo por elas descrito ou designado, quer dizer, a realidade objetiva” (BOURDIEU, 1989, p. 114). No que se refere ao referencial teórico, dialogou-se com vários autores, entre eles: Michel de Certeau, Roger Chartier, Pierre Bourdieu, José de Souza Martins e outros, buscando uma melhor compreensão das problemáticas que permeiam o presente estudo, como as migrações e as representações. Estudos elaborados em forma de dissertações e teses foram também consultados. Enfim, o exercício de reflexão incorporando as teorias à análise, não se

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deixou prender por elas, entendendo que a teoria não pode ser uma camisa de força e que nenhum modelo elaborado pode ser capaz de dispensar a investigação empírica. Os objetivos da dissertação então, consistem em: a) analisar a conjuntura histórica das últimas décadas do século passado, buscando uma melhor compreensão do processo de (re) ocupação do atual município de Sorriso; b) investigar as representações acerca do município de Sorriso e do “mito fundador”; c) relatar a experiência vivenciada por alguns trabalhadores e trabalhadoras que se fixaram em Sorriso em diferentes momentos, enfocando, sobretudo, suas histórias de vida. Estudar suas memórias possibilita entender um pouco mais de sua história. O que os motivou? Quais eram os seus sonhos e anseios? Em que circunstâncias abandonaram seu local de origem? A história é nessa pesquisa, abordada como um processo construído por homens e mulheres de maneira compartilhada, ambígua, complexa e contraditória. Trata-se de pessoas que se fazem histórica e culturalmente, num processo em que as dimensões individual e social são e estão intrinsecamente imbricadas (KHOURY, 2001, p. 80). Em Sorriso, esses atores sociais são moradores da cidade, muitos deles extrabalhadores rurais que, dispondo apenas de sua força de trabalho num grau limite de expropriação migraram com a expectativa de se estabelecerem em Sorriso tendo pelo menos trabalho e remuneração melhor, como sugerem as propagandas. Residindo na periferia da cidade, expressaram nos relatos uma enorme vontade de “conseguir um pedacinho de terra”, em que pudessem se fixar com a família. Entretanto, a agricultura moderna, que conta com alta tecnologia não oferece muitas possibilidades de emprego. Uma parte significativa desse grupo de migrantes, homens, mulheres, velhos e jovens, vivem experiências de trabalho, constroem modos de viver muito específicos e enfrentam processos de marginalização, exclusão e segregação social. A temporalidade que norteia o estudo refere-se ao período pós 1970. Considerou-se primeiramente, a política implementada para a Amazônia (onde se inclui o Centro-Oeste brasileiro) a partir do início da década de setenta do século passado. Levando em conta a dinâmica do processo e o trabalho com entrevistas de memória oral, não houve preocupação em fechar de forma rígida a temporalidade. A década de 1970 como marco inicial, trouxe a discussão das políticas de povoamento e integração da Amazônia adotadas pelo Governo Federal, objetivando a segurança nacional. Os relatos apresentados ao longo do trabalho têm como objetivo verificar as motivações que levaram ao deslocamento para Sorriso, apresentando também, os vários

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elementos que compõem o processo de deslocamento espaço-temporal. É recorrente nos relatos a expressão “se aventurar”. Pretende-se buscar o significado da expressão “se aventurar” para os diferentes grupos sociais existentes em Sorriso. A partir do estudo de alguns aspectos da colonização oficial na Amazônia, em Mato Grosso e, sobretudo, em Sorrriso, buscar-se-á entender que “(...) as representações do mundo social (...) embora aspirem à universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses dos grupos que as forjam (...)” (CHARTIER 1990, p. 17). Sendo assim, a imagens disseminadas, serão aquelas que englobam aspectos específicos que atendam aos interesses de grupos (políticos, elite econômica, produtores) que exercitam o poder, via de regra, estão quase sempre se referindo à riqueza proporcionada pela soja. Pode-se pensar que a maneira como a cidade de Sorriso é representada nos jornais, revistas e nas propagandas que são produzidas por alguns grupos sociais (poder público, pela imprensa e empresa de colonização local), constroem um discurso que, agindo conjuntamente, imagem e textos, produzem o que pode ser caracterizado como uma prática discursiva (VEYNE, 1998, p. 262). A prática, nesse estudo pode ser entendida no mesmo sentido utilizado por esse autor, para quem “a prática não é uma instância misteriosa, um subsolo da história, um motor oculto: é o que fazem as pessoas (a palavra significa exatamente o que diz)” (VEYNE, op cit, p. 248). O universo simbólico tem também uma grande importância como guia das ações humanas. O discurso elaborado pelas “elites” (grupos dominantes), apresentado nas propagandas privilegia a totalidade, “todos fazem parte da comunidade”, conseqüentemente não se enfatizam as diferenças internas e não há uma preocupação em destacar os elementos de distinção entre os vários grupos num mesmo espaço social. Esse discurso está voltado para a constituição de uma memória hegemônica do lugar. Um olhar mais atento possibilitará notar algumas ambigüidades: 1) pela projeção da idéia de “eldorado” representado pela nova fronteira. “Além do esquecimento das tensões havidas no passado e vividas no presente, esse tom buscaria garantir o prolongamento da conquista pelas forças dominantes, travestido em um ufanismo regional” (LAVERDI, 2003, p. 14);

2) a

estruturação dessa memória (que quer se fazer reconhecer hegemônica) apresenta-se calcada em versões românticas sobre a colonização ocorrida em meados de 1970, legitimadas pelas memórias dos primeiros migrantes mais bem sucedidos, econômica e politicamente (Idem, ibidem). Somam-se a isso, a idéia da seletividade dos primeiros migrantes (agricultores do

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Sul), qualidades exponenciais que foram valorizadas como atributos marcantes empregados pela empresa que executou a colonização de Sorriso.3 Enfim, ciente de uma importante observação feita por Michel de Certeau (2002), ao passo que a pesquisa é infinita, o texto dela resultante tem data pré-estabelecida para ser entregue, por isso, no intuito de discutir as questões anteriormente apresentadas, os capítulos foram organizados da seguinte forma: Capítulo I – A EXPANSÃO DA FRONTEIRA AMAZÔNICA E A (RE) OCUPAÇÃO DO NORTE DE MATO GROSSO.

A Amazônia, considerada como “vazio” demográfico até a década de

1970, foi alvo de uma política do Estado que visava integrá-la à dinâmica capitalista do Sudeste do país. Sendo assim, foram criados vários organismos (SUDAM e o BASA) e programas (POLAMAZONIA, PROBOR, POLOCENTRO), que possibilitaram a ocupação planejada da nova fronteira agrícola. Pretende-se, nesse capítulo, discutir algumas das motivações que possibilitaram que os primeiros migrantes que se deslocaram para Sorriso se fixassem numa área de cerrado, cujo solo improdutivo, tornou-se um solo com alta produtividade. A Amazônia, a partir de 1970, passou a ser representada como lugar de possibilidades. Trabalhadores e trabalhadoras de estados os mais diversos do Brasil, dirigiram-se para Sorriso em busca de uma “vida melhor”. Capítulo II – O QUE CONTA É A APARÊNCIA: A MENSAGEM DA IMAGEM. Neste capítulo, o que se pretende mostrar é que as representações – sobretudo aquelas que classificam o município de Sorriso como “capital da soja” podem contribuir para formar um imaginário de lugar “ideal”. Focalizando apenas a parte positiva (louvando a grande produção agrícola), e colorindo-a com cores intensas, Sorriso adquire contornos expressivos tornando-se um atrativo; seja para atrair investimentos, seja para atrair uma população pobre desterritorializada. Capítulo III – O “EU” E O “OUTRO”: a multiplicidade na fronteira Neste capítulo serão abordadas as vivências de mulheres e homens, extrabalhadores/as rurais que ao longo de suas vidas acumularam experiências. Residindo na periferia de Sorriso, concordaram em narrar suas histórias descrevendo suas táticas de sobrevivência. O capítulo traz ainda uma discussão a respeito das memórias de estranhamento

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Luciane Frâncio, diretora da Colonizadora Feliz, relatou que quem comprou terras na região onde está localizado o município de Sorriso há 25 anos, hoje está comprando em Vera, em Sinop, para seus filhos e daqui a 20 anos, estará comprando em outro lugar. Segundo ela, essa atitude se justifica pela “aptidão agrícola” dessas pessoas vindas do sul. O que sabem fazer é “lidar com a terra”. Entrevista concedida em 22/03/2001 na ocasião de pesquisa empírica em Sorriso. Cf. ainda o projeto de lei encaminhado à Assembléia Legislativa de Mato Grosso em outubro de 1984. (Protocolo 144/84), apresentado no capitulo 2.

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como experiências vivenciadas e ainda presentes nas memórias narradas pelos entrevistados e entrevistadas. Enfim, trará uma discussão que aborda a multiplicidade. A cidade de Sorriso é (re) inventada através do destaque dado pela mídia à sua expoente produção agrícola. Via de mão única, raramente essas representações dão lugar às diferenças existentes no interior daquele espaço. A preocupação nas reportagens é ressaltar as semelhanças. Estas representações, via de regra, possuem uma finalidade específica, atender aos interesses precisos de grupos estabelecidos que ocupam os cargos que permitem exercer o poder (econômico, político, social), e também decidir sobre o que deve e o que não deve ser mostrado. Embora possa parecer desnecessário, considera-se que nunca é demais estar atento para o que afirmou Jean Chesneaux, que “os fatos sociais e históricos são percebidos de modo diferente, dependendo da perspectiva de quem os analisa” (1995, p. 67). Assim, eis aqui apenas

uma

possibilidade

de

leitura

em

que

a

investigação

parte

de

uma

perspectivaacadêmico-científica, levando em conta as regras e os procedimentos específicos do ofício de historiador (CERTEAU, 2002, p. 65-119). Em tempo, outro ponto a ser considerado, diz respeito às normas técnicas. A Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), por meio da NBR 14724, válida a partir de 29 de agosto de 2002, sugere que os trabalhos acadêmicos como dissertação e/ou tese devem ser adequados à NBR 10520. Esta, por sua vez, também de 29/09/2002, permite que, as citações que apareçam no texto sejam referenciadas pelo sobrenome do autor, ano de publicação e página de onde foi retirada. Em conformidade com o orientador da dissertação, optou-se por essa forma de referência.

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Capítulo I – A EXPANSÃO DA FRONTEIRA AMAZÔNICA E A (RE) OCUPAÇÃO DO NORTE DE MATO GROSSO4

No Brasil, no período compreendido entre as décadas 1870 e 1930, a vinda de imigrantes europeus, para a lavoura cafeeira em São Paulo, ou como pequenos proprietários para os núcleos coloniais no sul do Brasil, recebeu apoio tanto do governo Imperial, como de particulares. No sul, os incentivadores da imigração juntavam-se à corrente favorável à colonização por meio da pequena propriedade (HUTTER, 1987, p.76). A partir do início das décadas de 1960/1970, no Sul do Brasil, prevaleceu a agricultura familiar. Porém, à medida que os filhos tornavam-se adultos e constituíam família, necessitavam de uma área de terra. Nas áreas de minifúndios de seus pais, era difícil a sobrevivência, pois com a divisão por herança, a área do minifúndio tornava-se insuficiente para a reprodução da agricultura familiar.5 A modernização agrícola no campo, no Sul e Sudeste do país, foi a principal responsável pela liberação de um grande contingente de migrantes para a nova fronteira agrícola que se tornou a Amazônia a partir do final da década de 1960 (IANNI, 1979; SANTOS, 1994). Teoricamente, ao direcionar os fluxos migratórios para a Amazônia e Centro-Oeste, o Governo Federal solucionava a questão da falta de terras para os agricultores, aliviando as tensões sociais na região Sul. No entanto, permitia que continuasse a haver nestas mesmas áreas, uma concentração fundiária, preservando assim a estrutura vigente. Após 1964 e na década de 1970, a política de ocupação recebeu prioridade no âmbito da ideologia geoestratégica de segurança nacional. O eixo de atuação baseou-se na abertura de algumas “regiões periféricas” através da colonização agrícola. Martin Coy (1998, p. 41), trabalha com a idéia de que a periferia (regiões periféricas), exerceu neste contexto, a função de “válvula de escape” para solucionar problemas sociais em outras regiões. Segundo Coy a organização espacial brasileira é caracterizada por disparidades sociais e econômicas entre

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Com algumas ressalvas, pode-se seguir a definição dada por Nelson Tomazi, em que o autor, referindo-se à região norte do Paraná, utiliza os termos “ocupação” e “(re) ocupação” de maneiras distintas. “Ocupação” para caracterizar o longo caminho percorrido, desde há muitos anos por povos que utilizavam todo aquele território como espaço para o desenvolvimento de suas sociedades. “(Re) ocupação”, para caracterizar o processo que se desenvolveu a partir de meados do século XIX com a preocupação (por parte do Estado), de integrar as terras consideradas “vazias” ao capitalismo no Brasil (Citado em ARRUDA, 2000, p. 28). É nesse sentido, que se emprega neste estudo, o uso do termo (re) ocupação. 5 Em São Paulo, prevaleceu a grande propriedade – latifúndios (grande concentração de terras nas mãos de poucos). monocultura, trabalho escravo em princípio e, depois, trabalho assalariado. No Rio Grande do Sul, predominou a mão de obra familiar, policultura.

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regiões centrais altamente dinâmicas no Sul/Sudeste, sob o domínio do complexo urbanoindustrial, assim como da agricultura modernizada, e regiões periféricas no que diz respeito à sua posição na economia e na sociedade brasileira. O autor trata especificamente das transformações recentes numa parte que caracteriza como periferia brasileira; o sudoeste da Amazônia. Sorriso e outras cidades que despontaram no norte de Mato Grosso a partir do início da década de 1970, surgiram num contexto bem específico de expansão do capitalismo no Brasil. Grupos sociais diversos de trabalhadores pobres, homens e mulheres que, em busca de terra, de um lugar ou de um teto, buscaram um local onde pudessem criar novos espaços6, sobretudo, a partir da segunda metade do século vinte.

Os espaços “vazios”

A noção de “vazio demográfico” está diretamente relacionada à idéia de “fronteira”, enquanto terras livres. Este termo foi utilizado para designar a expansão da sociedade nacional e a integração territorial. (AUBERTIN, 1988). A Amazônia e o Centro-Oeste, especialmente a partir de 1970, foram representados como a nova fronteira agrícola, que deveria ser (re) ocupada, evitando talvez, o acirramento de conflitos sociais no Sudeste, mas, sobretudo, no Sul do Brasil. São duas as categorias de projetos que representaram aspectos diferenciados de uma mesma política governamental. Os de colonização executados pela iniciativa privada e os de colonização oficial executados pelo Estado7. Mato Grosso especialmente, é o estado que mais contou com a presença de projetos de colonização privada no Brasil, na segunda metade do século XX (BECKER, 1990a).8

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Aqui se utiliza a noção de espaço, segundo Michel de Certeau. “Espaço é o efeito produzido pelas operações que o orientam, o circunstanciam, o temporalizam e o levam a funcionar em unidade polivalente de programas conflituais ou de proximidades contratuais”. (CERTEAU, 2002, p. 202) 7 No Brasil, basicamente, são praticados três tipos de colonização da terra. A colonização espontânea, realizada pelos próprios camponeses; a dirigida ou oficial, da competência do INCRA (Instituo Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e aquela que o Estado deixa a cargo das empresas particulares de colonização, ou seja, iniciativa privada (Cf. Cadernos do NERU. Nº 1. Colonização; CASTRO et alli, 2002 e ainda SCHAEFER, 1985). 8 O Plano de Integração Nacional – PIN, previa a localização dos projetos de colonização oficial numa faixa de 100 quilômetros de cada lado das rodovias federais na Amazônia e Centro-Oeste. Criado durante o governo do presidente Médici (1969-74) pelo decreto lei nº 1.106 de junho de 1970, o PIN tinha entre outras finalidades, financiar o plano de obras de infra-estrutura nas áreas de atuação da SUDAM e da SUDENE e promover sua mais rápida integração à economia nacional. Além do plano de irrigação do Nordeste, a primeira etapa do PIN compreendia a construção de rodovias na Amazônia. Entre elas, as de maior destaque são, a Transamazônica e a BR 163, ligando Cuiabá, em Mato Grosso à cidade de Santarém, no Pará. (CARDOSO E MÜLLER, 1997).

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Se no Paraná e, sobretudo em São Paulo, algumas cidades surgiram no eixo da ferrovia, em Mato Grosso, diversas cidades da segunda metade do século vinte, surgiram no eixo das rodovias federais e estaduais. A expansão do capitalismo na Amazônia e Centro-Oeste trouxe por parte do Estado uma política específica com o objetivo de viabilizar a construção de rodovias para facilitar a integração econômica da Amazônia à dinâmica capitalista do Sudeste.9 A construção de rodovias tende a assinalar então, uma nova fase na formação e desenvolvimento das atividades econômicas, sociais e políticas para a Amazônia e o Centro-Oeste. A construção da rodovia Cuiabá-Santarém (BR 163) tornou-se um fator importante na história da colonização de Mato Grosso facilitando o acesso ao norte do estado. Antes da construção desta rodovia, a forma de acesso era através dos rios Arinos e Teles Pires ou de estradas (picadas) utilizadas por seringalistas e seringueiros. A BR 163 começou a ser construída em 1971, no Governo Médici, e em 1976 foi entregue oficialmente ao tráfego, pelo presidente Ernesto Geisel. Sua construção foi executada pelo 9º Batalhão de Engenharia e Construção, (9º BEC). 10 A criação da SUDAM e do BASA, no início de 1970 colocou à disposição de latifundiários e fazendeiros, estímulos e favores fiscais e creditícios, que contribuíram para a formação e o crescimento de latifúndios, fazendas ou empresas de extrativismo e mineração. Dessa forma, intensificou-se a migração de trabalhadores, empresários, empreiteiros e fazendeiros para diferentes áreas da Amazônia (IANNI, 1979). Vários e diferenciados modelos de projetos de colonização foram implantados em Mato Grosso a partir do início da década de setenta do século vinte. Sorriso está entre as várias cidades que surgiram a partir de um projeto privado de colonização.11 As terras na Amazônia, nesse período, eram relativamente baratas. Muitos minifundiários, ao vender a terra que possuíam em seu lugar de origem, sobretudo no Sul do Brasil, conseguiram comprar uma área maior na Amazônia, onde o preço da terra era-lhes acessível. 9

Por razões de “segurança interna”, “defesa nacional” ou “segurança e desenvolvimento”, iniciaram-se ou intensificaram-se as construções de várias rodovias de grandes proporções no país (Ianni, 1979). Entre as rodovias que passaram a recortar a geografia da região Amazônica, está a Cuiabá-Santarém, que dá acesso ao município de Sorriso. 10 MORAES, Alessandra Scherer de. Imagens do progresso: Levantamento do Acervo Fotográfico do 9º BEC (Rodovia Cuiabá-Santarém 1971 a 1976), Cuiabá, 2001. (Projeto de Conclusão de Graduação em História). 11 Outras cidades em Mato Grosso também se originaram de projetos privados de colonização como Alta Floresta, Canarana, Nova Mutum e Sinop, entre outras. Ainda sobre as diversificadas formas de implantação de projetos de colonização em Mato Grosso, cf os cadernos do NERU nº 1 - Colonização (1993) e o Número Especial: “ A Colonização Oficial em Mato Grosso – A nata e a borra da Sociedade (1994)”. Cf. ainda BECKER, et alli, 1990a.

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A partir de 1970, difundiu-se através de propagandas do Governo Federal, a idéia de que a Amazônia era a nova “terra de riquezas” e chegou a ser apontada por alguns dos jornais da época12, como a “Canaã brasileira”. Estas notícias contribuíram para que se divulgasse a idéia de que a região Centro-Oeste, no caso específico de Mato Grosso, era uma região de “progresso espetacular”. Fazendo parte das representações criadas sobre a ocupação do norte de Mato Grosso, há vários sítios com o topônimo “Canaã” ou mesmo, “Nova Canaã”. Há, também, a cidade de Nova Canaã do Norte, que começou a ser colonizada em meados de 1970. O nome foi sugerido pelo bispo de Sinop, D. Henrique Froehlich. A intenção era exatamente disseminar a idéia de uma “terra prometida” aos que se “aventurassem” para “essas longínquas terras trazendo sonhos, coragem e esperança no futuro” (FERREIRA, 1997, p. 461). Na língua hebraica, a palavra Canaã, significa lugar plano. Conforme o livro de Êxodo 3: 8-17: “(...) uma terra boa e larga, uma terra que mana leite e mel”. Figuradamente, a palavra leite significa abundância e o mel, o que há de mais doce (de melhor) na terra. Conforme Levítico 20:24 “(...) em herança, terra que mana leite e mel”. A terra que foi prometida por Deus aos hebreus, povo que Moisés deveria tirar do Egito. Mato Grosso passou a ser representado para o Brasil (através dos meios de comunicação), durante as décadas de 1970 e 1980, como um local de “terras férteis e baratas”, o que simbolizava a “terra prometida”. Refletindo nessas representações, especialmente o topônimo Nova Canaã do Norte, torna-se possível uma analogia. No livro de Números, capítulo 13, pode-se ler o seguinte: Moisés enviou homens para espiarem a terra que ser-lhesia dada. Os homens, ao voltarem contaram o que presenciaram “naquela terra mana leite e mel”. Mas o advertiram: “quem habita nessa terra é poderoso (...) são fortes e mui grandes” e continuaram a descrever a terra; “vimos no meio dela homens de grande estatura”. Analogamente, num primeiro momento (1970), o estado de Mato Grosso adquiriu o significado simbólico de terra prometida, uma terra que “mana leite e mel”, como a que foi prometida aos hebreus. Num segundo momento, os homens “grandes” e “fortes” podem ser comparados aos médios e grandes produtores de soja e aos capitalistas das empresas que se instalaram na Amazônia sob o acicate do Estado. Aqueles que vieram depois dos primeiros tempos da colonização, originários de vários lugares do Brasil, mas, sobretudo do Nordeste para Sorriso, embora atraídos pela promessa de uma vida mais digna e promissora em um

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O ESTADO DE MATO GROSSO, 9 de fevereiro de 1978, p.6. JORNAL DO DIA, 17 de setembro de 1980, Ano I, nº 160, p. 9.

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“lugar ideal para se fazer a vida”, deparam-se com os “fortes” (financeiramente) e vão ficando (ou são colocados) à margem, indo residir distante do núcleo central.

A fronteira: algumas considerações

(...) a fronteira é reputada como devendo oferecer ao país inteiro novas perspectivas (crescimento econômico, soluções de problemas sociais, domínio do território num sentido nacionalista, etc...). (...) Prometendo a todos as mesmas oportunidades na fronteira, o Estado prega um autoritarismo teórico que é uma concretização da utopia pioneira, podendo assim, desengajar-se dos conflitos centrais. (AUBERTIN, 1998).

Para Catherine Aubertin, o Estado representou um papel determinante na reorientação das tensões sociais. Nessa linha de raciocínio, pode-se proceder à discussão da maneira como este termo foi aplicado no que diz respeito à utilização das “terras livres”, como válvula de segurança. Um dos primeiros autores a utilizar o conceito de fronteira no Brasil, para caracterizar a idéia dos desdobramentos da mesma, especialmente no que diz respeito ao seu papel de “válvula de segurança”, foi Sérgio Buarque de Holanda. Analisando o século XVII no Brasil, Sérgio Buarque publicou um artigo em 1966 que trazia em um dos tópicos um artigo que chamou de safety valve. O autor construiu um diagrama representando a dinâmica de populações na vila de São Paulo no Seiscentos e demonstrou a relação entre saturação populacional do núcleo primitivo e a fuga para novos núcleos. Sérgio Buarque detectou o funcionamento dessa válvula, ainda que com limitações, no planalto paulista do Seiscentos (WEGNER, 2000, p. 117). Wegner afirma que nos Estados Unidos, o termo inglês frontier, foi popularizado por Turner no século XIX, que o utilizou em sua análise da expansão territorial norte-americana e a partir de então, o mesmo termo foi estendido para a América Latina.13Para Turner a terra livre funcionou como uma válvula de escape para o Leste e até para a Europa, porque oferecia a todos os homens uma oportunidade de adquirir um sítio e tornar-se um membro independente

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da

sociedade

(STADNIKY,

2001).

Esta

autora

considera

que:

Na Europa, o termo frontier, significa limite político entre países vizinhos, e nos Estados Unidos, foi empregado, sobretudo no sentido econômico (WAIBEL, 1979, p. 281).

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O ponto central da idéia de fronteira desenvolvida por Turner, consiste na existência das free lands, desabitadas, prontas a serem ocupadas pelos brancos de origem ocidental européia que nelas vivenciariam seus ideais de liberdade, de individualidade, num espaço de oportunidades ilimitadas (Op Cit, p. 2). 14

Neste sentido, Wegner (2000), também vai apontar um dos pontos mais discutidos em torno da tese de Turner o qual se refere às terras livres como uma “válvula de segurança” (safety valve). Elas teriam “o papel de desafogar os centros mais industrializados, evitando assim, o acirramento de conflitos sociais e econômicos” (WEGNER, 2000, p. 99).15 No caso analisado por Turner, a fronteira permitiria, que os colonos buscassem novas condições de vida nas terras livres, o que seria um incentivo para o espírito de iniciativa e para a defesa da igualdade de oportunidades. No entanto, o autor afirma que Turner, ao final de sua conferência destacou que a fronteira, no caso dos Estados Unidos, já havia chegado ao fim (WEGNER Op. Cit). No Brasil, há também uma ampla discussão a respeito do “fechamento”, ou “esgotamento” da fronteira. Conforme o conceito clássico de ocupação, isso quer dizer que não há mais terras livres para serem incorporadas ao processo produtivo. Isso não significa que as terras estão sendo ocupadas produtivamente. O “fechamento” tem o sentido de inexistência de “terras livres”, “terras sem dono”, para serem apropriadas por pequenos produtores (CASTRO et al, 2002, p. 31). 16 Segundo Graziano da Silva: Há zonas não efetivamente ocupadas, mas onde a terra já representa uma

14

Existiriam sucessivas linhas de avanço da fronteira, a partir do século XVII, cada uma com suas respectivas características e experiências que logo foram transformando-se em novos territórios para a colonização. (...) Junto ao aparecimento de cada fronteira se assinala o predomínio de um tipo distinto de pioneiro: o comerciante, o caçador, o fazendeiro, o lavrador, o soldado de fronteira, e, finalmente o povoador semi-urbano, uma vez que o estabelecimento disperso se transforma em uma comunidade (STADNIKY, Op. Cit). 15 Wegner considera, no entanto, que embora essa idéia venha à mente quando se lê a conferência de Turner (apresentada na Feira de Chicago, que foi realizada em 1893 por ocasião da comemoração do Quarto Centenário do Descobrimento da América), ela não é formulada explicitamente. O foco de sua tese comenta Wegner, se dirige mais para o que ocorre na fronteira e suas conseqüências do que para o que acontece fora. Turner não recorre ao termo safety valve no artigo, e no trecho que mais se aproxima de fazê-lo escreve gate of scape (portão de escape), e para Wegner, isso é o que importa, para dizer que “cada fronteira forneceu de fato (...) um portão de escape da escravidão do passado – e não um portão de escape para o acirramento dos conflitos sociais. O autor considera, que apesar disso, é difícil deixar de associar os argumentos de Turner a válvula de segurança e, em textos posteriores à conferência de 1893, aí sim Turner a formula de forma bastante explícita (Idem, ibidem). 16 Para uma discussão mais aprofundada do “fechamento” da fronteira, cf. GRAZIANO DA SILVA, José (1982). Para esse autor, não existem mais terras livres, terras sem dono e as fronteiras estão fechadas, não podendo, dessa forma, ser apropriadas por pequenos produtores de subsistência.

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mercadoria que tem preço, e está sujeita aos mecanismos de compra e venda; a terra já não é “livre” e está submetida a uma apropriação privada que reclama uma definição precisa de sua propriedade jurídica. O fechamento não se dá por uma ocupação no sentido clássico de expansão das áreas cultivadas a partir das regiões mais antigas, onde a produção capitalista substituiu a produção de subsistência dos antigos pequenos posseiros, como se deu no Sudoeste do Paraná e na região oriental do Maranhão. É, pelo contrário, um fechamento “de fora para dentro”, onde a terra perde o seu papel produtivo e assume apenas o de “reserva de valor” e de meio de acesso a outras formas de riqueza a ela associadas. Não é uma ocupação efetiva do solo no sentido de fazê-lo produzir, mas sim uma ocupação pela pecuária com a finalidade precípua de garantir a propriedade privada da terra (1982, p. 117).

Martins (1981), possui uma opinião que difere da defendida por Graziano, no que tange à fronteira agrícola. Para esse autor, a fronteira não está fechada. Isto porque as fronteiras pecuárias do norte de Mato Grosso e do sul do Pará, ainda não foram ocupadas. Não estando fechada e nem sendo um fenômeno isolado, a fronteira é definida em relação a um espaço estruturado e sua potencialidade alternativa é circunscrita a limites impostos pela formação social em que se situa. Na fronteira intensifica-se a mobilidade do trabalho (BECKER, 1990a, p. 15). Para alguns autores, a questão da fronteira aberta ou fechada é uma falsa questão. “Considerar a fronteira titulada como fechada é um equívoco. (...) Afirmar que a titulação da terra fecha a fronteira é desconhecer e negar a luta dos pequenos produtores sem terra para se reproduzirem enquanto classe social (CASTRO, et al, 2002, p. 33)”.17 A Amazônia, representada como lugar de fácil enriquecimento, atraiu os pequenos produtores do Sul e impulsionou também ao deslocamento vários trabalhadores de localidades as mais diversas do Brasil. É recorrente nas entrevistas de memória oral de alguns trabalhadores em Sorriso, a afirmativa de que estavam em busca de uma vidamelhor. A própria expressão utilizada por alguns dos entrevistados “viemo se aventurá”, é reveladora de uma experiência vivenciada, que não é possível exprimir através de palavras apenas. Muitas vezes, as palavras parecem não ser encontradas para expressar sentimentos tão significativos. No exercício de rememorar os gestos dizem muito mais. Às vezes uma lágrima, e ainda, o silêncio desses entrevistados deve ser considerado ao relatarem a sua história de vida. Arrumar as bagagens para a viagem, selecionar o que vai ser levado e o que será deixado,

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Parece oportuno reforçar que nesta dissertação adotou-se a concepção de fronteira utilizada por José de Souza Martins (1997), principalmente no que diz respeito à “fronteira do humano”, ao encontro com o “Outro”, nos primeiros tempos da colonização e mesmo depois, nas décadas seguintes quando houve uma intensa migração oriunda do nordeste do Brasil. A partir de então, começou a ocorrer estranhamentos em relação aos ‘novos’ habitantes. Essa questão será desenvolvida no capítulo 3: O “EU” E O “OUTRO”: A MULTIPLICIDADE NA FRONTEIRA.

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constitui um momento decisivo em suas vidas. Guardam a memória da partida e as lembranças da chegada. Seu Edílson, que reside em Sorriso desde 1982, ao rememorar o deslocamento de Mato Grosso do Sul em direção a Sorriso, contou o seguinte: “Quando nós resolvemos sair de Mato Grosso do Sul, de Deodápolis pra cá, foi por motivo que as dificuldades naquela região ficou muito... muito escassa de serviço pra gente”. Seu Edílson relatou que um dos seus irmãos “resolveu a dar uma volta ... pelo país” em busca de um lugar onde pudesse instalar a família. Em seu relato recorda:

Saímos de lá no dia 27 de julho de 1982, pra esse destino sem saber nem pra onde nós estávamos vindo, na esperança de que nós íamos achar o meio de dias melhores, né, e, graças a Deus hoje nós se sentimos bem, graças a Deus (...).

O relato traz elementos que merecem atenção. Destaca-se, principalmente, o fato de que a família de seu Edílson estava saindo para um lugar que nem sabia direito onde ficava. O que se pode apreender é que o que importava para eles (e o que provavelmente servia de motivação maior), era a esperança de encontrar dias melhores, a possibilidade de encontrar trabalho, já que na localidade em que residiam ficou muito escasso de serviço. Nas recordações sobre a viagem, à memória de seu Edílson importou guardar alguns aspectos, para ele significativos, da distância percorrida para se chegar em Sorriso.

A viagem foi um pouco meia longa que aquela época não tinha asfalto, aquela época nós não... viemos num pau-de-arara um caminhãozão vermelhão, nós jogamos as coisinhas dentro e... viemos enfrentar, não vou dizer uma dificuldade, porém sim, uma coisa que nós não conhecíamos né, e... se vê que hoje ... pra se lembrar bem daquela época nós gastamos cinco dias e meio de Deodápolis até aqui, ou seja, de 1600 quilômetros (...).

O relato de seu Edílson impressiona, principalmente quando ele afirma que não vai dizer que vieram enfrentar uma dificuldade, mas algo que não conheciam. Apesar de mostrar entusiasmo ao relatar a viagem em direção ao Mato Grosso, o fato de se deslocarem para um local onde nem sabiam bem onde ficava, demonstra a ousadia e a coragem da família de seu Edílson. Eles traziam consigo, além da expectativa de uma vida nova e um futuro promissor no novo lugar, a esperança de “achar o meio de dias melhores”. Nas circunstâncias em que se encontravam quando o lugar em que viviam não oferecia mais possibilidades, era preciso arriscar.

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A família de seu Edílson e as demais pessoas que foram levadas para Sorriso estavam encerrando uma história. A lembrança da viagem expressa em suas próprias palavras viemos num pau-de-arara um caminhãozão vermelhão, nós jogamos as coisinhas dentro, aponta que não havia possibilidade de voltar. Pode-se considerar também, a expectativa daquela família em se fixar no local de destino, arrumar trabalho e estabelecer-se. Sobre a viagem de sua família, seu Edílson relembrou:

Nós em 32 pessoas e a mudança e... até por sinal vou brincar (risos) um pouquinho nesta entrevista (...) até um cachorro bonito que nós tínhamos que era de estimação ele veio junto com nós, entendeu, então, nós, parávamos nessas beiras de rio e fazíamos um tipo de um acampamento, ali enquanto as meninas minhas cunhadas as minhas irmãs, minha mãe ia fazer o nosso almoço ou que seja a nossa jantinha, nós íamos tomar banho, refrescar e... (silêncio) até que foi divertido, entendeu pela... pela dificuldade que nós passamos que de... Quando nós cheguemos de Cuiabá pra cá ali por volta de Jangada, já não tinha mais asfalto (...).]

É possível perceber no relato de seu Edílson os inúmeros aspectos das dificuldades que encontraram até chegar ao local de destino, em Sorriso. A motivação maior, conforme ele mesmo declarou, foi a escassez de serviço no local onde moravam. Em sua memória ficou registrada a presença do cachorro da família, que lhes fez companhia durante a viagem e possivelmente nos primeiros tempos da chegada. Embora em uma situação diversa à que se encontrava envolvida a família do seu Edílson, seu relato permite reportar a uma outra família que trouxe também consigo um cachorro de estimação. Trata-se da família de Fabiano e Sinhá Vitória, que, além dos filhos, trouxeram consigo a cachorra Baleia que significava mais “alguém” da família. Além da companhia, Baleia alegraria o trajeto percorrido em busca de dias melhores. Trouxeram também um papagaio, mas este, fora morto por necessidade. Sinhá Vitória o matara para o sustento da família ao fugirem da seca nordestina.18 Em se tratando da família de seu Edílson, a idéia de trazerem juntamente com os seus pertences, inclusive o cachorro, pode revelar alguns indícios de que não pretendiam mesmo retornar. Tal qual a família de Fabiano, a família de seu Edílson estava em busca de dias melhores, como ele mesmo relatou. Essa busca por “melhores condições de vida” passa pelos

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RAMOS, Graciliano (1980). Para uma discussão aprofundada em torno da relação entre história oral, literatura e imaginário cf. COSTA, Cléria Botelho (1997). Neste artigo, a autora mostra que a história oral e a literatura se constituem numa narrativa, ou seja, são reconstruções da realidade em que o fato e a criação se entrelaçam na construção do conhecimento histórico. Marilena Chauí ao prefaciar o livro de Ecléa Bosi (1997), afirmou que a memória seleciona o que tem significado, ou seja, “na memória, fica o que significa”. E na memória do seu Edílson, o cachorro significou muito.

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sonhos, desejos e paixões. É possível que muitas pessoas até pensam em sair em busca de uma “vida melhor”, ou, “aventurar-se”, expressão recorrente nos relatos, porém, encerrar uma história e tentar recomeçar num lugar desconhecido não é tarefa fácil. Em busca de dias melhores estavam não apenas a família de seu Edílson, mas, também as outras famílias que vieram juntamente com a sua, “num caminhãozão vermelhão” que deixou em sua memória, lembranças da viagem. Para essas pessoas não havia perspectivas de voltar, porque lá, em Deodápolis, local de origem, não tinha o sustento, ficou escasso de serviço. A mudança para Sorriso vem arrancar simbolicamente as raízes do passado. O refrescar-se na água de algum riacho que encontravam pelo caminho, na memória de seu Edílson adquire um significado simbólico de alegria e diversão. No entanto, refletindo um pouco sobre a maneira como ficavam dispostos sobre a carroceria do caminhão que trouxe sua família e as demais, juntamente com os seus pertences, percebe-se indícios do quão difícil pode ter sido essa viagem que durou cinco dias. Naquele momento em que se deslocaram, Sorriso, enquanto uma nova fronteira agrícola, apresentava-se como um local de crescimento econômico com amplas possibilidades de trabalho. Apesar das inúmeras dificuldades enfrentadas por aquelas famílias, era preciso acreditar no futuro. A fronteira contemporânea na Amazônia possui uma feição original que lhe é própria. Uma fronteira urbana é a base logística para o projeto de rápida ocupação. Ou seja, a diferença na fronteira amazônica é que a ocupação de uma área nova começa com um núcleo planejado, a partir do qual os compradores de lotes “parceleiros”, “colonos”, abrem a mata e se fixam no interior. Assim, “a urbanização não é uma conseqüência da expansão agrícola: a fronteira já nasce urbana, tem um ritmo de urbanização mais rápido que o resto do Brasil. E esta feição está intimamente associada à migração” (BECKER, 1990b). E essa migração está relacionada com a procura por melhores condições de vida, almejada pelos mais diferentes grupos sociais que para Sorriso se deslocaram na segunda metade do século vinte, como a família de seu Edílson e as demais. Guimarães Neto (2000), em recente estudo sobre as cidades que despontaram no Norte de Mato Grosso nas últimas duas décadas, destaca que, para serem estudadas, as transfigurações que ocorreram e ainda ocorrem no território amazônico (particularmente no estado de Mato Grosso), tem que se levar em conta os grandes deslocamentos populacionais

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das últimas décadas. Para isso, pode-se considerar a constituição de novos núcleos urbanos, originários de projetos de colonização, na maioria, e também as áreas de garimpos sempre associados à imagem da terra prometida – instrumento político e mítico. A fronteira é então, marcada, pela indefinição, pela ambigüidade e, sobretudo, pela multiplicidade cultural, onde à medida que ocorre o povoamento, a conseqüência é a desigualdade constante (MARTINS, 1997). A política da colonização dirigida pelo Estado buscava, entre outros objetivos, estimular a produção em grande escala para exportação. Ao povoar os espaços considerados “vazios”, intencionava-se fortalecer a fronteira e garantir a segurança nacional. No entanto, na visão de Guimarães Neto (2002, p. 87), o estímulo dado pelo Estado à iniciativa privada para “ocupar” as terras da Amazônia, significava muito mais que estratégia de desenvolvimento econômico, visando a modernização capitalista. “Tratava-se, sobretudo, de uma estratégia militar de controle do espaço amazônico. Assim a colonização não deveria ser somente privada, mas fundamentalmente, controlada e disciplinada (idem, ibidem)”. Getúlio Vargas, ao anunciar a “marcha para o Oeste”, em 1938, já apresentava o sintoma das preocupações do governo em ocupar “grandes vazios”, no intuito não só de manter a unidade política do Brasil, mas também, de preencher os espaços vazios entre as “ilhas econômicas” que formavam o país. Nesse período, houve uma tentativa de encaminhar grupos sociais do Nordeste para a Amazônia, objetivando projetar o Brasil no mercado internacional da borracha. Para isso, criaram-se pequenas propriedades e algumas colônias agrícolas, porém, os resultados foram modestos (CASTRO et al, 2002, p. 29). A concepção de “vazio demográfico” ganhou uma nova configuração no bojo da ditadura militar (1964 – 1985). O presidente Gal. Emílio Garrastazu Médici (1969 a 1974), ao propor a construção da Rodovia Transamazônica, afirmou que esta serviria para levar os “homens sem terra para a terra sem homens” da Amazônia. Ao tratar sobre os espaços considerados “vazios”, na ótica da expansão do capitalismo na Amazônia e Centro Oeste no período em estudo, não se está a concordar com esse discurso. Importa discutir como se deu a complexa rede das relações sociais no espaço citado. O fluxo de migrantes para a região Centro-Oeste e algumas regiões da Amazônia foi favorecido pela construção da nova capital federal e da rodovia Belém/Brasília, no final dos anos 60. Com a construção de outras rodovias como a Transamazônica (2.300 km), a

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perimetral Norte (1.320 km), Manaus-Porto Velho a partir de 1970, esse movimento migratório foi intensificado (PRETTI, apud, CASTRO et al, 2002, p. 29). A intensa migração ocorrida durante a década de 1960, foi intensificada significativamente, não apenas oriunda do Nordeste e do Maranhão, mas também do Sul, via Belém-Brasília, e por estradas ainda não pavimentadas, via Mato Grosso para Rondônia, Acre e sudoeste do Amazonas. Nesta época começaram a surgir organizações empresariais para a exploração do manganês e de terras do Pará (CARDOSO & MÜLLER, 1977, p. 18). A criação de alguns organismos e programas19, implementados pelo Estado no início da década de 1970 serviu para executar a política de incorporação de novas áreas (de terra) ao processo produtivo. Segundo a Política de Integração Nacional, buscava-se povoar os espaços considerados “vazios”, para fortalecer a fronteira e garantir a segurança nacional (IANNI, 1979). Na expansão do capital a intenção era também o estímulo à produção em grande escala.20 A Amazônia, sobretudo a partir da década de 70 do século passado, passou a ser representada como o lugar das oportunidades. Uma nova “terra de riquezas”. O baixo preço das terras e as facilidades de financiamentos, além dos incentivos fiscais e creditícios também se tornaram um atrativo para quem intencionava migrar para Mato Grosso. Um jornal da época divulgou a notícia de que o Centro-Oeste estava “vivendo o seu período áureo”, por ocasião do surgimento de uma nova fronteira agrícola, conforme assinalou a reportagem:

(...) A região Centro-Oeste está vivendo agora o seu período áureo, com um progresso muito acima do que se possa imaginar. (...) está surgindo uma nova fronteira agrícola. No caso específico de Mato Grosso, apontado como a “Canaã brasileira”, este progresso chega a ser mais do que espetacular (Jornal “O Estado de Mato Grosso”. Cuiabá, 9 de fevereiro de 1978. p. 6).

A fronteira agrícola que “estava surgindo” em Mato Grosso (como por encanto), fazia parte de uma articulada política de expansão capitalista com intenções bem definidas que serviram para reorientar a direção do fluxo migratório para alguns locais da Amazônia que o governo planejava ocupar. Assim, evitava-se uma migração maciçamente espontânea, ou seja, o governo poderia controlar e direcionar os fluxos migratórios. Isso em tese, pois:

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Organismos como o INCRA e a SUDAM e programas como o PIN, POLAMAZONIA, PROBOR, POLOCENTRO e outros vários. 20 Para uma discussão mais aprofundada sobre as estratégias desenvolvidas pelo Estado para viabilizar o povoamento e a valorização Econômica da Amazônia, cf. CARDOSO e MÜLLER (1977).

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Embora o Governo Federal tenha tentado controlar e canalizar este movimento para a fronteira através de políticas de colonização, não conseguiu, porém, impedir que paralelamente se desenvolvesse um movimento rebelde, “espontâneo” de iguais ou até maiores proporções que o dirigido. Assim, há o avanço e o movimento para as fronteiras das grandes propriedades, das companhias de colonização, mas também dos pequenos proprietários e dos “posseiros” (CASTRO, et al, 2000, p. 30).

A colonização dirigida na Amazônia pode expressar um aspecto fundamental da política que favorece a monopolização das terras – devolutas, tribais e ocupadas – pelos grandes negociantes, grileiros, latifundiários, fazendeiros e ainda empresários nacionais e estrangeiros (IANNI, 1979, p. 7). Para este autor, a colonização dirigida é entendida como uma Contra-Reforma Agrária, pois aparece como condição e conseqüência da forma pela qual o Estado foi levado a recriar a “fronteira amazônica”, para favorecer o desenvolvimento extensivo do capitalismo na região. “Nesse sentido, a análise da política de colonização é também um modo de conhecer alguns aspectos importantes da fisionomia e dos movimentos da ditadura implantada no Brasil em 1964” (Idem, ibidem). Ainda segundo Ianni, “a colonização dirigida, oficial ou particular, não só bloqueia o andamento da reforma agrária de fato, como visa a atender aos interesses do capital privado, representados na cooperação do Estado com a empresa privada” (op cit, p. 87). O PIN (Plano de Integração Nacional), foi planejado durante o governo Médici (1969/74), pelo Decreto-Lei nº 1.106 de junho de 1970. Sua finalidade específica consistia em financiar o plano de obras de infra-estrutura nas regiões compreendidas nas áreas de atuação da SUDAM e da SUDENE e promover sua mais rápida integração à economia nacional (CARDOSO & MÜLLER, 1997, p. 13).21 Pode-se estar atento para o fato de que o movimento de expansão da fronteira pode ser entendido e estudado não apenas em termos das motivações individuais dos migrantes, mas, como influenciado (algumas vezes) pelas estruturas econômicas e sociais. Nas décadas de 1940/50, por exemplo, o norte do Paraná tornou-se uma “frente pioneira”, onde alguns programas de colonização permitiram que este estado fornecesse condições favoráveis para a aquisição de terras. A partir de 1960, a estrutura agrária do Paraná, caracterizada pela presença dos pequenos proprietários, transformou-se em zona de expulsão, criadora de fluxos migratórios (SWAIN, 1988; TOMAZI, 1999).

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A SUDENE (Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste), foi criada em 1958. A partir de sua criação, o Nordeste contou com um sistema de incentivos fiscais, por parte do Governo Federal que deduziu 50% do imposto de renda de pessoas jurídicas para serem aplicados na área, o que serviu de base à implantação de várias indústrias, especialmente em Pernambuco e na Bahia (MIRANDA NETO, 1986).

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(...) a agricultura combina o trabalho, a terra e a tecnologia segundo condições sociais específicas. A análise histórica deve, pois, contemplar os elementos que se associam a fim de que seja possível uma explicação inteligível do processo histórico na agricultura colocando-se no tocante àqueles fatores questões prévias: o sistema sócio-econômico em questão, as condições de acesso à terra, as normas jurídicas que regem a propriedade, o meio geográfico e as condições de uso da terra, o perfil demográfico, o universo profissional, as hierarquias sociais (LINHARES, 1997, p. 170).

Considerando esses pontos apresentados pela autora e levando em conta também, as condições de vida desses homens e mulheres (anterior ao deslocamento), pode-se afirmar que a soma desses fatores diversos tornaram-se um importante agente catalisador dos interesses do Estado, contribuindo sobremaneira na execução da política de “integração” da Amazônia e posterior povoamento de Sorriso, em Mato Grosso. Além do que já foi considerado, a reivindicação pela posse de novas terras e alguns programas específicos criados pelo Estado a partir do início de 197022, foi o que motivou alguns pequenos produtores do Sul do Brasil que se deslocaram para Sorriso, em Mato Grosso. O POLOCENTRO serviu de estímulo para vários grupos de pequenos produtores que se fixaram nas áreas de cerrados do Brasil central e em Sorriso, especialmente, conforme declarou o senhor Alcino Manfrói. (...) eu vim pra cá naquela época, porque existia um projeto especial do cerrado, que tinha o projeto POLOCENTRO, que era com prazo com três anos de carência, com 7% ao ano sem correção né, era fixo. Então a proposta era boa para abrir o cerrado. Então eu vim aqui para dar uma olhada (...) E a gente chegou e foi dar uma olhada na topografia, (...) daí eu vi que tinha terra vermelha, terra boa porque onde tem vegetação e tem não tem só areia, produz alguma coisa e a gente como já estava acostumado lá no sul trabalhar com calcário, adubo, corrigir, fazer a terra, o projeto acreditou e veio daí pra trabalhar aqui. Mas a primeira vez que eu vim aqui, eu vim dar uma olhada e me agradou e eu já resolvi comprar um pedaço, daí na segunda viagem já fechei negócio, já trouxe peões aqui e já comecei a trabalhar já em 76, em agosto de 76 eu estava derrubando cerrado com os esteiras. Os esteiras que vieram trabalhar pra mim tiveram que abrir estrada até chegar no lote que comprei, porque não tinha estrada. (...) Comecei a primeira lavoura em 76. (...).23

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Em tese, esses programas visavam ao melhor aproveitamento específico de algumas áreas. Por exemplo, o PROBOR (Programa da borracha), visava incentivar o cultivo da seringueira. O POLOCENTRO (Programa de Desenvolvimento do Cerrado), deveria atuar de forma a incorporar o cerrado ao processo produtivo. O POLAMAZÔNIA (Programa de Desenvolvimento da Amazônia), promoveria a ocupação e o desenvolvimento integrado em 15 áreas da Amazônia Legal, em função de suas potencialidades agropecuárias e agrominerais. Em Mato Grosso os investimentos deveriam estar voltados para a formação de infra-estrutura nas áreas de Aripuanã, Juruena e Xingu-Araguaia (SOUZA, 1998). 23 A entrevista do senhor Alcino Manfrói foi concedida à professora Odila Bortoncello, moradora em Sorriso. A transcrição da entrevista foi gentilmente cedida pela professora Odila na ocasião de pesquisa de campo em Sorriso, em setembro de 2001.

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Para esse produtor talvez um dos fatores que mais o tenha motivado tenha sido o incentivo concedido pelo Estado, através do programa POLOCENTRO. Outro entrevistado, o senhor Alberto Frâncio, relatou:

Sorriso foi o início, vamos dizer que foi o início de uma viagem de aventura né. Eu e meus irmãos viemos conhecer o norte de Mato Grosso, onde já estava acampado meu irmão Nelson Frâncio, às margens do rio Teles Pires e algumas propriedades rurais, alguns agricultores ali. Então nossa vinda foi em maio de 1973, por aí. Nós morávamos em Curitiba e meus irmãos em Santa Catarina, nós saímos e já convidamos alguns amigos (...). Viemos conhecer a região que hoje se chama Sorriso. (...) Fica próximo ao rio Teles Pires na BR Cuiabá-Santarém, estrada de chão batido e nos engraçamos (...) tudo muito difícil e nós com pouca experiência, com a distância e com pouca terra no Sul, mas superamos todas as dificuldades.24

No relato de Alberto Frâncio está presente a expressão “uma viagem de aventura”. No entanto, ele destaca que não foi fácil. O que significa para ele se aventurar? Alguns fatores como a distância de Mato Grosso em relação ao Sul, a falta de experiência em trabalhar o solo de cerrado e a terra escassa, no lugar em que vivia com sua família, são, apontados como dificuldades. A possibilidade de trabalhar em uma nova área onde poderiam encontrar novas perspectivas de vida pode ser considerada uma motivação para o deslocamento. Outro produtor de Sorriso, senhor José Vígolo25, natural de Videira, Santa Catarina relatou: Começamos a derrubar sem experiência nenhuma. Começamos em janeiro de 76 (...) com um esteira que a colonizadora tinha. Vimos que era difícil, então a Colonizadora, Seu Claudino, a sua sociedade contrataram dois trator esteira de Sinop e quebrava tudo com lâmina. Quebrava de dia e enleirava de noite. (...) dia e noite porque ninguém conhecia o correntão aqui. Surgiu em 77 o correntão, até lá era só lâmina. Então veja, derrubar cerrado com lâmina, verde ainda, de fato foi difícil no começo. Começamos a derrubar isso já foi no começo de 78, aí aquela época ainda pegamos um dinheiro bom que era o POLOCENTRO, ajudou com a destoca, recuperação da terra, financiamos um dinheiro que era para 10 anos. Foi o primeiro dinheiro bom, e acho que também o último na época. Hoje falo dinheiro bom o juro na época foi bom porque era inflação muito e nós pagamos com juro de 7.5% ao ano, então ficou barato, começamos a plantar arroz e deu bem.

Ao rememorar os primeiros tempos da chegada, na memória de seu José Vígolo, como

24

A entrevista do senhor Alberto Frâncio também foi concedida à professora Odila Bortoncello. A transcrição da entrevista foi gentilmente cedida a esta pesquisa na ocasião de pesquisa de campo em Sorriso, em setembro de 2001. 25 A entrevista de José Vígolo foi concedida à professora Odila Bortoncello, que gentilmente cedeu a esta pesquisa a transcrição da entrevista.

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na memória dos demais entrevistados, aparece a lembrança do programa POLOCENTRO como um fator importante e que contribuiu sobremaneira para que os produtores se fixassem em Sorriso em meados de 1970. Em sua memória também ficou registrada a dificuldade encontrada no começo pela falta de experiência em trabalhar em área de cerrado.26 Em seu relato José Vígolo prossegue falando sobre o cultivo inicial do arroz e, posteriormente, sobre o cultivo de soja. Aqui 5 anos produziu bem arroz, aí começou a baixar cada vez mais em 81 não deu quase mais nada. Em área velha já não produzia mais, aí fazer o quê. Comecei a plantar um pouco de soja, uns até já tinham desistido porque o soja deu realmente, porque se fosse por causa do arroz não sei se até não teríamos voltado para nossa terra. (...) Hoje com os nossos técnicos o arroz também está dando, mas se passou cinco anos sem se produzir arroz aqui e em toda região. (...) Inclusive alguns tinham começado a plantar soja, só que não deu muito. Só que o clima aqui é um dos melhores do Brasil. Só que a terra aqui é muito pobre em fósforo, nutrientes. Foi aí que eu e meus companheiros fizemos testes e vimos que tínhamos que corrigir a terra e começamos a nos dar bem com o soja, porque a terra era muito pobre aqui.(...) No primeiro ano a terra não era corrigida. Depois já fomos atrás de calcário porque sem calcário a terra não produz. E nós quando pegamos dinheiro, que era muito bom, era para calcário, fosfatagem inclusive. Saía financiamento para derrubar, plantar e adubar.

Foi tão significativa a participação do programa POLOCENTRO para que se instalassem em Sorriso, conforme José Vígolo assinalou, que provavelmente sem esse incentivo, tudo teria sido bem mais difícil. Como ele mesmo declarou, saía financiamento para derrubar, plantar e adubar.27

26

A alta toxidez de alumínio e os baixos teores de cálcio e de magnésio são características da maioria dos solos de Cerrado. Como conseqüência, as plantas são pouco desenvolvidas e o seu sistema radicular torna-se raquítico, o que limita o aproveitamento da água e dos fertilizantes adicionados ao solo. A correção de acidez se faz necessária para se obter melhor produtividade das culturas e menores perdas de adubos. O corretivo mais utilizado na agricultura brasileira é o calcário (SOUZA; CARVALHO & MIRANDA, 1985, p. 99) . 27 O POLOCENTRO – Programa de Desenvolvimento dos Cerrados – foi criado no governo do general Geisel através do Decreto nº 75.320 de 29/01/1975 para transformar os cerrados em áreas de expansão de frentes comerciais a partir do Centro-Oeste e Oeste de Minas Gerais. Como meta, deveria incorporar cerca de 3,7 milhões de hectares ao setor produtivo nas áreas de agricultura, pecuária e florestas. Suas ações preconizavam apoio à infra-estrutura (armazenamento, estradas rurais, eletrificação e assistência técnica, preocupando-se ainda com pesquisas de sementes visando promover o plantio de soja no cerrado). Citado em SOUZA (2001, p. 62). Segundo OLIVEIRA (1983), o POLOCENTRO funcionava ainda, como uma espécie de alternativa geopolítica da necessidade de abrandamento das tensões na estrutura fundiária do sul do Brasil, colocando para os colonos a alternativa da migração, que passou a se dar em direção a Mato Grosso, Goiás, Triângulo Mineiro, Tocantins, oeste baiano (além –São Francisco), sul do Maranhão e do Piauí.

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Na esteira da expansão capitalista alguns jornais em Mato Grosso, anunciavam, através de notícias otimistas, os investimentos que seriam destinados ao Centro Oeste. 28 Os colonos originários do Sul do Brasil que se deslocaram para Sorriso em meados da década de 1970 e na década de 80, possuíam uma situação bem definida em relação à terra. Em geral, traziam consigo alguns recursos financeiros, máquinas e equipamentos, que viabilizaram a agricultura comercial em escala maior, utilizando trabalho assalariado, tornando possível em conseqüência, uma acumulação. Estes tinham maior assistência da empresa de colonização, mais facilidade ao acesso de crédito agrícola e à assistência técnica. Vários deles tornaram-se pequenos e/ou médios produtores. Com muitos trabalhadores rurais não aconteceu da mesma forma. Nisso consiste a diferença entre aqueles que trouxeram consigo algum pecúlio e os que contavam apenas com a possibilidade de venda de força de trabalho. A família do Seu Edílson que migrou de Mato Grosso do Sul para Sorriso em 1982, dispunha apenas de sua força de trabalho. Conforme ele relatou, a motivação maior do deslocamento foi a “escassez de serviço”. Saíram de Deodápolis sem saber para onde estavam indo. Ao rememorar os primeiros tempos da chegada, seu Edílson contou sobre o trabalho que desempenhou naquela época. Trabalhava “na catação de raízes” nas áreas recém desmatadas.29 A “catação de raízes” pode acontecer entre dois e cinco anos após o primeiro desmate.

28

JORNAL DO DIA. “Centro-Oeste tem novas perspectivas para investimentos”. Cuiabá, 17 de setembro de 1980. Ano I, nº 160, p. 09. JORNAL DO DIA. Programa “CENTRO-OESTE a nova fronteira é lançado”. Cuiabá, 5 de setembro de 1980. Ano I, nº 149, p. 05. Jornal: O ESTADO DE MATO GROSSO. “SUDECO anuncia Cr$ 4 bilhões para Mato Grosso em 1980”. Cuiabá, 05 de março de 1980, p. 01; Jornal: O ESTADO DE MATO GROSSO. “Incorporação do Cerrado ao processo produtivo”. Cuiabá, 11 de maio de 1979, p. 01; Jornal: O ESTADO DE MATO GROSSO. “SUDAM já investiu mais de Cr$ 5 bilhões em Mato Grosso”. Cuiabá, 04 de julho de 1979, p. 01; Jornal A GAZETA. “Mato Grosso ruma para a integração com o mercado mundial”. Cuiabá, 23 de maio de 1990. Ano I, nº 149, p. 05; Este material, utilizado como fonte de análise, encontra-se no Acervo do Arquivo Público do estado de Mato Grosso (APMT). 29 A catação de raízes é apenas uma entre as várias etapas pelas quais passa o solo antes de receber a semente. A primeira delas é iniciada no período da seca (abril/maio) e diz respeito à derrubada que consiste na utilização de dois tratores de esteira colocados, um ao lado do outro. Prende-se em cada um deles uma grossa corrente e quando são colocados em movimento formam um grande arco que arranca dezenas de árvores e arbustos, abrindo uma área proporcional ao comprimento do correntão (BORTONCELLO & DIAS, 2003, p.225). Após alguns dias quando o mato que foi arrancado estiver seco, procede-se à queima. Após a queima, amontoa-se o que sobrou em leiras e, novamente é necessária a utilização de um trator de esteira com lâmina para empurrar os restos não queimados e as raízes. Após esses procedimentos, faz-se necessário arrancar as raízes que ainda ficaram enterradas. Aí entra em cena, o “catador de raiz”. Sua participação é importante nas áreas de agricultura mecanizada porque as plantadeiras precisam que o terreno esteja limpo e livre de pequenas raízes, pedaços de pau e pedras. O trabalho do “catador de raízes” poderá evitar danos mecânicos, além de facilitar a utilização da plantadeira que procederá à semeadura (Op. Cit, p. 227).

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Após esse período, a área preparada não precisará mais desse tipo de trabalho. Os “catadores de raízes” deverão buscar novas áreas para executar o seu saber. Seu Edílson reconhece a relevância de seu trabalho nessas áreas de agricultura modernizada como em Sorriso e, em relação ao seu trabalho, acrescentou:

(...) me considero que é um ramo profissional porque sem o fazendeiro a minha profissão não vai, e sem nós, a profissão do fazendeiro também pára, entendeu? A gente é o tratorista, é o ensacador, é o... é o serviço braçal da nossa parte né.

Na dinâmica do processo de (re) ocupação, esse tipo de trabalho desempenhado por seu Edílson e tantos outros trabalhadores, foi diminuindo. O avanço da modernização na agricultura é a principal responsável, pois a partir dela, houve maior exigência profissional. O trabalho do catador de raiz é necessário, apenas no início da abertura das áreas. Com o passar do tempo e a entrada das máquinas nas áreas agrícolas, o trabalho do catador de raiz torna-se desnecessário. O entrevistado não ignora a importância do trabalho desenvolvido por ele, pois afirma que: “sem o fazendeiro a minha profissão não vai, e sem nós, a profissão do fazendeiro também pára”. Nesse caso, pode-se perceber a inter-relação que há entre esse saber, do “catador de raiz, tratorista, ensacador”, relatado pelo entrevistado. Mas, isso só ocorre na abertura da área. O que trouxe a família do seu Edílson para Sorriso, foi segundo ele, o trabalho escasso na localidade em que morava, em Deodápolis, Mato Grosso do Sul. Trata-se de uma motivação diferenciada daquela que impulsionou aqueles que trouxeram consigo alguma reserva em dinheiro. As condições iniciais foram diferentes para cada um desses grupos. Para a família do seu Edílson e tantas outras, o objetivo era conquistar um lugar onde fosse possível sonhar com uma vida mais promissora. A possibilidade de conquistar uma área de terra (mesmo pequena), a casa própria, um lugar onde pudesse colocar o quadro preferido, ou quem sabe, rosas no vaso da sala. Em busca de uma nova vida, o trabalhador braçal, que desempenha funções também necessárias, nesse processo de expansão da fronteira, estava criando uma tática ao migrar. Muitos desses trabalhadores já migraram diversas vezes de um lugar a outro em busca de trabalho. É comum, o lugar chamado “novo” oferecer uma demanda maior no início da colonização. Passados alguns anos, ao ocorrer uma certa estabilidade dessa área, os trabalhadores braçais envolvidos no processo de derrubada, de catação de raiz e outras

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funções, deparam-se com a escassez de trabalho, que, à medida que a área se expande e a agricultura é instaurada, ocorre uma necessidade maior de qualificação de mão-de-obra. Esta é uma exigência comum em áreas com agricultura modernizada. Em vários casos, o trabalho desempenhado por cinco ou seis homens para descarregar uma carreta, por exemplo, é substituído pelo trabalho de um motorista de empilhadeira, o que leva menos tempo e é menos dispendioso para o contratante. Diante desse quadro, o trabalhador (re) inventa uma maneira de driblar a ordem estabelecida, ao procurar trilhas nos caminhos que estão diante dele. Isso pode ser percebido na própria busca por um lugar novo e desconhecido e no enfrentar das dificuldades que se seguem (ou que se seguirão). O desejo de se estabelecer, se fixar, o impulsiona e o faz mais resistente frente às dificuldades (GUIMARÃES NETO, 2002).

A transformação do cerrado

A paisagem ao longo do tempo, por si só se altera. Isso se dá através da ação do tempo, das chuvas e, em área de cerrado, principalmente em função da ação do vento. Entretanto, é a ação do homem sobre o meio ambiente que faz com que as alterações ocorram de uma forma bem mais brusca. Com a execução do PIN, sobretudo com a construção das grandes rodovias que recortaram a região Amazônica, houve uma atroz interferência no ecossistema regional intensificando essas transformações (DRUMMOND, 1991). Após a descoberta de ouro e diamante em algumas localidades de Mato Grosso, formaram-se várias cidades, desenvolvidas em função dos garimpos a partir da segunda metade do século XX. Entre elas podem-se destacar, Guarantã do Norte, Peixoto de Azevedo, Terra Nova, entre outras.30 Os locais onde houve mineração são áreas de intensa degradação ambiental. A paisagem, considerada como expressão espacial e visual do meio ambiente, é uma unidade geográfica que difere do seu entorno em virtude de suascaracterísticas específicas, tais como clima, cobertura vegetal, formas de relevo, estrutura geológica, solos, padrão de drenagem, formas de uso da terra ou tipos de ocupação urbana. Essa unidade constitui um complexo de formas e de processos, em variadas escalas temporais e específicas; resulta das relações causa-efeito, porque toda ação humana modifica os componentes da paisagem, se bem que de forma favorável ou desfavorável. A conseqüência é uma nova paisagem ou a modificação daquela preexistente (Novaes Pinto, 1990, p. 489).

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Cf. RIBEIRO, 2001. Dissertação de Mestrado em História.

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Segundo esta autora, a atividade humana introduz na paisagem modificações que são, em geral irreversíveis. Em Sorriso, as terras planas do cerrado viabilizaram a experiência da agricultura modernizada. O uso de máquinas agrícolas possibilitou uma agricultura de soja com produção em larga escala visando a exportação. Todavia, no período inicial da colonização, os produtores encontraram dificuldades na implantação da agricultura.

Olha uma das mais [sic] dificuldades que foi bem colocado no começo (...), foi a falta de informações que vinha de outro estado. O povo mato-grossense (...) não tinha noção do que era agricultura no cerrado. Se fazia um pouco de agricultura no Mato Grosso do Sul, alguma coisa tímida em Rondonópolis, mas muito pouca coisa. Então eu lembro que no início nós procuramos o Banco do Brasil e o próprio gerente do Banco do Brasil, (...) me assegurou: ‘não acredito em agricultura’ (Alberto Frâncio).31

A expansão acelerada das atividades agrícolas em Sorriso tem alterado significativamente a fisionomia da paisagem. A soja cultivada em centenas e até milhares de hectares contínuos, quase não permite mais visualizar a vegetação característica do cerrado. Segundo Alberto Frâncio, a maior dificuldade encontrada no período inicial ocorreu devido à falta de conhecimento de como implantar a agricultura no cerrado. Faltava informação e em conseqüência disso “não se acreditava em agricultura”.32 Os solos em áreas de cerrado geralmente apresentam, alta acidez e baixo conteúdo de cálcio (Ca) e magnésio (Mg), tanto na camada arável como no subsolo. Como nestes solos não se encontram minerais primários que contenham estes nutrientes, torna-se necessário a correção (SOUZA & RITCHEY, 1988, p. 15).33 Dando continuidade ao seu depoimento e se referindo ao gerente do Banco do Brasil, que não era simpático à idéia de conceder financiamento para a agricultura, Alberto Frâncio declarou: “(...) a coisa passou por um enfrentamento porque ele não acreditava, pois ele era cuiabano e via que aqui o povo só plantava mandioca e colhia e fazia farinha (risos)”. José Vígolo já havia dito no relato anterior (p. 61), que haviam produzido bem o arroz durante cinco anos. Após esse período, a produção começou a baixar e, em 1981 “não deu quase mais

31

Entrevista concedida à professora Odila Bortoncello gentilmente cedida para esta pesquisa. O cerrado é uma vegetação de interflúvio, tipicamente sobre latossolos vermelhos ou amarelos, com muito, médio ou pouco conteúdo de argila. Mesmo quando há alta proporção de argila, até 90% o solo em estado natural é bem drenado, porque a argila neste solo ácido é agregada em grãos de tamanho de areia (EITEN, 1990, p. 14). 33 Em Sorriso, predomina o latossolo vermelho-amarelo, distrófico plínico de textura muito argilosa, fase campo cerrado, relevo plano; areias quartzosas, distróficas, fase florestas e cerrados. A fertilidade natural destes solos é baixa, porém responde bem à calagem e adubação (Perfil Sócio-Econômico/2000. Prefeitura Municipal de Sorriso/MT). 32

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nada”. No relato seguinte (p.64), José Vígolo fala sobre o desconhecimento do potencial de se trabalhar com agricultura naquela época e também da descrença na produtividade da terra. Esse indício pode ser percebido quando ele rememora o que lhe disse o gerente do Banco do Brasil: “não acredito em agricultura”. Ambas as idéias, associadas, remetem ao fato de que as primeiras lavouras foram resultado de experiências empíricas, riscos. Nessa operação arriscada, alguns perderam o que tinham. 34 Outro ponto que se busca destacar no depoimento de Alberto Frâncio é que deve-se atentar para o fato de que há uma diferença considerável entre a atividade de agricultura familiar artesanal, que se desenvolvia em áreas de ocupação antiga de Mato Grosso, onde o plantio e a fabricação da farinha de mandioca era uma atividade econômica. Entre essa atividade e a proposta que se implantaria posteriormente, há uma diferença. A proposta da agricultura contaria com a inserção de tecnologia em máquinas e equipamentos agrícolas para as áreas de cerrado em Mato Grosso, objetivando uma produção de grãos para o mercado externo.

A colonização e a (re) ocupação

O termo colonização é amplo e possui inúmeras definições. Na fase do regime militar, foi definido como:

toda atividade oficial ou particular destinada a dar acesso à propriedade da terra e a promover seu aproveitamento econômico, mediante o exercício de atividades agrícolas, pecuárias e agroindustriais, através da divisão de lotes ou parcelas, dimensionadas de acordo com as regiões definidas na regulamentação do Estatuto da Terra, ou através de cooperativas de produção nela previstos (MIRANDA, 1990a, p. 65).

É esse o discurso que atravessou a década de 1970 no Brasil. Essa forma planejada de proceder ao povoamento de uma área e sua valorização é um processo que vem de longa data, obedecendo a razões as mais diversas. Pode-se considerar a natureza econômica, social,

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Há ainda a crítica ao “cuiabano”, idéia antiga. No século XIX, Joaquim Ferreira Moutinho (1869, p. 153), ao escrever “Notícia sobre a Província de Mato Grosso”, relatou o seguinte: “A fome e a miséria abatiam o povo nessa ocasião. Assistimos no largo de palácio a morte de uma porca excessivamente magra e pesteada, que desapareceu instantaneamente, sabendo depois que algumas pessoas a tinham conduzido para comer. A preguiça chegou até lá”.

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política ou militar, utilizando ou não a iniciativa privada (MIRANDA, 1990a, p. 64). O Estado, dando ênfase à colonização dirigida, tomou para si as responsabilidades até o momento em que conseguiu criar condições para a expansão do capital e a acumulação na fronteira. A partir de então, estimulou a colonização particular, transferindo parte do controle social do processo, aos projetos privados e às cooperativas (Idem, ibidem).35 A colonização é também apontada como uma Contra Reforma Agrária, pois aparece como condição e conseqüência da maneira pela qual o Estado foi levado a (re) criar a “fronteira amazônica” com a intenção de favorecer o extensivo desenvolvimento do capitalismo. A análise da política de colonização pode ser também um modo de conhecer alguns importantes aspectos da expressão dos movimentos da ditadura implantada no Brasil em 1964 (IANNI, 1979, p. 07). Para Octávio Ianni, a colonização dirigida na Amazônia pode expressar ainda, um aspecto importante da política que favorece a monopolização das terras – devolutas, tribais e ocupadas –, por grandes negociantes, grileiros, latifundiários, fazendeiros e empresários, nacionais e estrangeiros (Idem, ibidem). Em sentido mais amplo, a colonização é o processo de ocupação de uma área por pessoas de fora, por colonos. Mais restritamente, a colonização pode ser entendida como o povoamento que é precedido de planejamento, governamental ou privado. Esse processo está diretamente relacionado, na história contemporânea, à apropriação privada do uso do solo e ao surgimento do trabalhador livre, como uma classe social (CASTRO et all, 1994, p.47). Em Mato Grosso a colonização particular apresentou-se de forma expressiva, destacando-se como representativas dessa forma planejada de apropriação da terra, a região norte, no eixo da BR 163, rodovia de acesso ao município de Sorriso. O estudo de Odila Bortoncello e Elísia Dias (2003, p.73), mostra que o interesse em adquirir terras no local onde está situado atualmente o município de Sorriso partiu de Benjamim Raiser em 1972. As terras pertenciam ao norte americano Edmund Zanini. Este tinha como representante de vendas de suas terras, o corretor de imóveis Benedito Renó, que era conhecido por Bené, residente em Cuiabá. Nessa época, Benjamim Raiser trouxe consigo o filho, Ivo Raiser e o genro, Nelson Frâncio. O contato inicial para a compra das terras deuse através de Bené em 1972, mas as negociações só foram efetivadas no final de 1973. No ano seguinte, Ivo Raiser e Nelson Frâncio se deslocaram para a área adquirida para abrir as divisas e dar início a uma agropecuária (Idem, ibidem).

35

Na Amazônia não houve um padrão uniforme para a implantação desses projetos. Estes se diferenciavam de acordo com a natureza da iniciativa, e com relação à área ocupada (BECKER, 1990a, p. 33)

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Ivo Raiser relatou que ficaram acampados “quase um ano na balsa do Teles Pires, embaixo de um barraco plástico pra ver as divisas (...)”. Após a abertura das divisas voltaram para o Sul. Em janeiro de 1975 Nelson Frâncio veio à Sinop e trouxe o irmão Claudino. Em março desse mesmo ano, Claudino, interessado em adquirir uma área de terra veio a Cuiabá acompanhado por um primo, Demétrio Frâncio e um amigo, Dorival Brandão. As negociações foram feitas através de Benedito Renó, o representante de Edmund Zanini. A área adquirida por Claudino, Demétrio e Brandão era grande. Voltaram para o Sul e passaram a vender áreas de terra aos parentes e amigos (BORTONCELO & DIAS, 2001, p. 75). Segundo Alberto Frâncio relatou: “(...) A arrancada inicial (...) não era pra fazer todo esse barulho ali não, mas era pra comprar uma propriedade com meus irmãos. (...) Nós, os irmãos Frâncio, queríamos comprar uma propriedade pra nós viver e nós encontramos uma propriedade que nos agradou, mas eram em torno de vinte e sete mil hectares, por preço bom, mas mesmo assim nós não agüentávamos comprar sozinhos. Foi aonde que nós convidamos os primeiros companheiros: Dorival Brandão, José Vígolo, Jaime Barichello, Izidoro Bizinella, Antônio Santo Capellari, Alcino Manfrói, Anarolino Ceola” (Citado em BORTONCELO & DIAS, 2001, p. 213-214). Inicialmente os lotes rurais foram destinados aos pequenos produtores do sul do Brasil. A partir de 1976 foi instalada a Colonizadora Sorriso (atual Colonizadora Feliz), empresa que passou a comercializar os lotes rurais e urbanos. Nessa época, a colonizadora chegou a doar alguns lotes urbanos para quem comprasse lotes rurais e estivesse disposto a permanecer no local.

(...) quem vinha morar aqui, tinha um terreno de graça. Eu inclusive ganhei dois terrenos aqui pra construir. Doavam um aqui, outro lá, falhavam um. A colonizadora doava os terrenos pra quem comprava terras e vinha morar aqui com o compromisso de em seis meses construir a casa (Alcino Manfrói).36

A doação de terrenos urbanos era uma prática de algumas empresas de colonização que intencionavam, simultaneamente, incentivar o povoamento da vila e a valorização das terras. No início da colonização de Nova Mutum (próxima a Sorriso), também em meados de 1970, quem adquirisse um lote rural, recebia dois lotes urbanos (SCHAEFER, 2004, P. 22) . Mesmo com a implantação da colonizadora em 1976, em Sorriso, alguns jornais que circulavam no Rio Grande do Sul no início da década de 1980, mostravam anúncios sobre a

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Entrevista concedida à professora Odila Bortoncello, gentilmente cedida para esta pesquisa. Sorriso. Set/2001

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necessidade de corretores para venda de terras: “PRECISA-SE: de corretores para o Rio Grande do Sul. Boa Comissão. Região pré-estabelecida. Contatos (...) Colonizadora Sorriso Ltda. Av. Agrícola Paes de Barros, 1523. Cuiabá-MT” (Citado em BORTONCELO & DIAS, 2003, p. 204205). Sobre as cidades que surgiram de projetos de colonização recente em Mato Grosso, Guimarães Neto escreveu o seguinte: As “cidades de fronteira” do norte de Mato Grosso, assim como muitas outras da Amazônia nasceram planejadas, surgindo, sobretudo de projetos de colonização que apresentavam um modelo a direcionar o desenho urbano: largas avenidas a perder de vista no horizonte, integrando as cidades às rodovias principais que cortam aqueles espaços. São traçados que confundem/fundem com as rodovias amazônicas, produzindo uma percepção de infinitude – a imensidão da terra – e ampliando sua imagem mítica (2000, p. 188).

O planejamento urbanístico de Sorriso possui características que são específicas das cidades originadas a partir de projetos privados de colonização. Há um ordenamento das ruas e dos lotes, diferentemente de algumas cidades que se originaram em função dos garimpos, por exemplo. O ordenamento das ruas e dos lotes se dá principalmente, na parte mais central, onde foi iniciada a sede do núcleo urbano. Sobre as novas cidades surgidas em Mato Grosso nas décadas de 1970/80, a autora relata:

O conflituoso processo de reterritorialização e construção desses espaços encontram-se associado à intensa divisão e segregação social instituídas nas novas cidades. É fundamental observar, nesse sentido, que desde o primeiro momento da implantação dos projetos de colonização, as plantas cartográficas que delimitam os espaços selecionados e mapeiam os lotes urbanos, projetam um território controlado e hierarquizado. Apresentam-se, dessa forma, os traços de um domínio social e econômico dos empresários no campo do planejamento, que adquire a forma do discurso da colonização. (GUIMARÃES NETO, 2003, p. 54).

O núcleo principal de Sorriso está localizado ao lado esquerdo da BR 16337, local onde

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Sorriso é uma das cidades, que, como Nova Mutum e Lucas do Rio Verde, entre outras, formou-se no eixo da BR 163. Esta rodovia corta a cidade.

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se concentram ruas e avenidas amplas, arborizadas, asfaltadas e limpas. Segundo Guimarães Neto, o que se torna significativo no planejamento das novas cidades em Mato Grosso, é o fato delas serem pensadas e planejadas sob a ótica das hierarquizações sociais, separando por módulos os novos habitantes, atendendo a uma explícita política de divisão social, comum aos núcleos de colonização (Op. Cit, p. 55).38 No período 1991-2000, a população de Sorriso teve uma taxa média de crescimento anual de 9,09%, passando de 16.757 em 1991 para 35.605 em 2000.39 O espaço onde atualmente está localizado o município de Sorriso pertencia ao município de Nobres. Em 26 de dezembro de 1980, através da Lei 4.728, Sorriso tornou-se distrito de Nobres. Seis anos depois, em 1986, Sorriso elevou-se à categoria de município através da Lei 5.002/86. Por se tratar de área de cerrado, era importante que não faltassem recursos para investir no processo produtivo: máquinas, equipamentos, adubos, inseticidas, sementes e assistência técnica. Então, ao comercializar as terras, a colonizadora Sorriso adequava o tamanho da área adquirida, aos recursos financeiros que o comprador dispunha. A orientação técnica, a assistência em relação ao manejo do solo competia à empresa de colonização. Um dos técnicos responsáveis pela empresa de Planejamento e Assistência Técnica (PLATEC), nomeou este procedimento de regra da boa colonização. Sobre a produção agrícola de Sorriso, declarou em entrevista:

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Em Sorriso, por exemplo, no “Compromisso de Compra e Venda”, documento expedido pela Colonizadora Feliz Ltda na ocasião da venda de lotes urbanos podia-se ler o seguinte ao final da nona cláusula: “Fica estabelecido o padrão de construção referido no item nº: 02 letra “A” para cada LOTE, para efeito de redução de preço de conformidade com as normas especiais impressas no verso do presente CONTRATO”. No verso do contrato: Normas Especiais para Venda de Lotes Urbanos: 1) REDUÇÃO DE PREÇOS: Será reduzido o valor do lote em ....... mediante a entrega da nota promissória referente ao último pagamento, a título de desconto se o comprador construir no imóvel adquirido, dentro do prazo de 06 (seis) meses, a contar da data do negócio, obedecendo o padrão abaixo estabelecido: 2) PADRÃO DE CONSTRUÇÃO: a) Casa de madeira bruta com no mínimo 50 m2; b) Casa de madeira beneficiada com no mínimo 80 m2; c) Casa mista (parte de madeira, parte de alvenaria), sendo a externa de alvenaria e a interna de madeira, com no mínimo 80m2; d) Casa totalmente de alvenaria com no mínimo 80 m2; e) Casa totalmente de alvenaria com no mínimo 100 m2; f) Casa totalmente de alvenaria com no mínimo 120 m2; g) Casa totalmente de alvenaria com no mínimo 140 m2; h) Casa totalmente de alvenaria com no mínimo 160 m2; i) Casa totalmente de alvenaria com no mínimo 180 m2; j) Casa totalmente de alvenaria com no mínimo 200 m2. E no item 3, a seguinte observação: “A critério livre arbitrário da Promitente Vendedora, em função da localização e do preço do terreno vendido, será definido o Padrão da Construção, dentro do estabelecido no item anterior”. O contrato que serviu de base neste caso citado data de janeiro de 1985 e foi cedido pela Colonizadora Feliz Ltda em setembro de 2001. Essa padronização proposta pela empresa de colonização aponta para uma espécie de reenquadramento do espaço social. Predeterminar o padrão de construção das casas, de certa maneira, seleciona os compradores de terrenos, ao mesmo tempo que dificulta o acesso à população pobre. 39 Embora o poder público local de Sorriso apresente uma estimativa de população de mais de 55.000 habitantes, optou-se por trabalhar com os dados fornecidos pelo IBGE.

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(...) Sorriso é uma região altamente produtora (...) porque desde o começo foi feito tudo na regra da boa colonização (...) porque colonização não é sinônimo de comercialização, porque ela tem um fundo social muito grande (...) foi feito a cidade, foi feito as chácaras para aqueles que não tinham oportunidade de comprar um sítio, mas foi feito também os sítios, áreas menores, para aqueles que tinham condições de só comprar áreas médias e aqueles que queriam comprar áreas grandes, compraram as grandes fazendas. Então todos tiveram oportunidade de chegar em Sorriso de uma maneira ou de outra (...). (Aréssio Paquer – PLATEC).40

Com base nesse relato, percebe-se uma opinião particular sobre o caráter da colonização que foi desenvolvida em Sorriso. Aqui, a avaliação a respeito do termo colonização é bastante pessoal, mas, pode trazer também elementos da opinião, ou do ponto de vista da rede em que Aréssio Paquer está incluído. Seu relato pode ser entendido como uma representação da experiência vivida por ele num determinado contexto social. Sua posição é bem definida. Vinculado à colonizadora, fazia parte do grupo de uma empresa de planejamento que desde o início da colonização oferecia assistência técnica a quem comprava terras por intermédio dessa empresa de colonização implantada em 1976. Pode-se observar que a regra da “boa colonização” em Sorriso, conforme relata o entrevistado, se aplicou apenas aos que vinham comprar terra. Quem não dispunha de recursos financeiros para adquirir uma área de terra (mesmo pequena), não foi beneficiado pelo “fundo social” da colonização. Sendo assim, não há fundo social. Se há, onde ele aparece? De outro modo, José R. Schaefer possui uma opinião diferenciada no que diz respeito ao “fundo social da colonização”. Segundo o autor:

(...) Ninguém coloniza o norte de Mato Grosso por um sentido de filantropia ou até mesmo no sentido de querer contribuir para minorar o problema fundiário no país. Assenta-se colonos porque isto é um bom negócio que rende dinheiro às firmas que se dedicam ao ramo (1985, p. 54-55).

Aréssio Paquer relatou que orientavam quem vinha comprar terras: “algumas vezes as pessoas queriam comprar uma área muito grande e tecnicamente eu falava, ‘você vai comprar muita terra e não vai ter dinheiro para fazer nada’. Eles renegociavam uma área menor” (Entrevista de Aréssio Paquer citada em Bortoncello & Dias, 2001, p.219). Para Paquer e para a empresa de colonização tratava-se de uma questão além de social,

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A entrevista de Aréssio Paquer foi concedida à professora Odila Bortoncello, moradora em Sorriso. A transcrição da entrevista foi gentilmente cedida por ela para esta pesquisa na ocasião de pesquisa de campo em Sorriso, em setembro de 2001.

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técnica, mas era principalmente uma questão econômica. Ele também se referiu aos programas da época inicial: “era uma época importante que tinha o POLOCENTRO e PRÓ41

TERRA (...)”.

A lembrança dos programas e dos incentivos fiscais e creditícios somadas à

lembrança dos financiamentos concedidos pelo Banco do Brasil surgiram, em vários relatos de memória dos primeiros moradores. Isso fornece indícios de que seria muito mais difícil fixar-se sem esses incentivos do governo. A análise dos programas planejados para o desenvolvimento do cerrado pode se voltar, em última instância, para as “ações efetivas de um amplo mercado de venda de terras, representado pelas iniciativas dos núcleos de colonização, criados sobretudo, para viabilizar uma política de ocupação de grandes áreas da região amazônica” (GUIMARÃES NETO, 2002, p. 20).42 Um outro aspecto que chama a atenção no depoimento de Aréssio Paquer é a idéia de gênese, ou de origem que o relato contém: “desde o começo foi feito tudo na regra da boa colonização”. A idéia de origem não está presente apenas no relato de Paquer, ela se apresenta também no texto da justificativa do projeto de lei encaminhado à Assembléia Legislativa de Mato Grosso. Os autores do projeto pediam o desmembramento do então distrito de Sorriso, do município de Nobres em Mato Grosso. No referido documento oficial (protocolo 144/84), consta o seguinte:

SORRISO é feliz projeto de colonização que deu certo em todos os aspectos. Os colonizadores do sul do país, buscando um local apropriado para se instalar e promover o assentamento de muitas famílias de colonos, com o objetivo de plantar muitos grãos e colhê-los, não só para seu conforto pessoal e familiar, mas também para alcançar o desenvolvimento do Estado, que em última análise beneficia a todos indistintamente, encontraram a terra apropriada. Passando com todas as dificuldades, pelas estradas de chão, quase intransitáveis durante o período chuvoso, transpuseram estes desbravadores as serranias e penetraram nas regiões altas e planas do Chapadão de Parecis, terra vermelha como o sangue que lhe corria nas veias, terra hospitaleira e sadia que iria proporcionar a estes cansados agricultores a alegria de muitas colheitas fartas. Instalaram-se praticamente atolados até a cintura naquela lama vermelha que prometia tantos rendimentos. E qual cogumelos foram

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Entrevista citada. Os programas criados pelo governo federal para viabilizar a política de integração nacional da Amazônia foram amplamente discutidos em Cardoso e Müller (1977). Sobre a política de ocupação de terras no CentroOeste brasileiro, sobretudo em Mato Grosso (que atualmente abrange os estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul) cf. Lenharo (1986). Neste artigo, o autor discute pontos importantes sobre a especulação com a terra no Oeste brasileiro desde o Estado Novo até (com maior ênfase) a década de 1950. O autor aponta os critérios políticos que favoreceram a atribuição de terras aos detentores de capital, em detrimento de trabalhadores pobres. Esta questão é também amplamente discutida em Moreno (1993) e Oliveira (1997). 42

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surgindo casas, armazéns, silos, estradas de penetração e milhares de alqueires de terras cultivadas. A soja verdejou pelos campos sem fim de tal maneira que a felicidade apenas prenunciada do projeto de colonização se abriu num largo sorriso, que passou a ser o nome do ditoso povoado (...). (Sala das Sessões, 16 de outubro de 1984)

Não se pode negar o caráter poético no texto da justificativa do projeto de lei. Entretanto, para além da poesia, é possível também, observar outras variantes na idéia da “predestinação para o sucesso”. No afã da conquista do “progresso”, a idéia persiste até os dias atuais. Veiculadas na imprensa, as imagens e textos que enfocam os aspectos positivos da cidade de Sorriso dão forma à prática discursiva que serve como chamariz para a “implantação de empresas em todos os setores”, conforme apontou um especial produzido pelo poder público em Sorriso em 2003. Trata-se de uma revista que traz algumas reportagens sobre a cidade. Dentre as reportagens, pode-se destacar algumas como exemplo: “SORRISO – terra de prosperidade” (capa); em relação à economia e agricultura: “riquezas que brotam do chão”; em relação ao urbanismo: “planejada para ser grande”; entre outras, o destaque segue sempre em direção da “vocação para o sucesso”. O texto da justificativa do projeto de lei encaminhado à Assembléia Legislativa de Mato Grosso (protocolo 144/84) é um texto que visa apresentar a luta de muitas famílias pelo acesso à terra “nas regiões altas e planas do Chapadão de Parecis”. Além de mostrar um certo ufanismo, o texto do projeto de lei deixa de apresentar aspectos que apontam para uma questão político-econômica que envolve os interesses da colonização, enquanto atividade empresarial na Amazônia. O “feliz projeto de colonização que deu certo em todos os aspectos”, fazia parte do conjunto de estratégias políticas que dava ampla margem de movimento ao capital das empresas particulares, exemplo dos próprios projetos de colonização que se voltavam para as mais diversas atividades econômicas, e principalmente, privilegiava-se a atividade agropecuária, ou agroindustrial (GUIMARÃES NETO, 2002). Analogamente, a justificativa do projeto de lei lembra a escrita de Léo Waibel (1979)

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em alguns aspectos. 43 Em se tratando de algumas cidades que despontaram recentemente na Amazônia, e considerando especialmente o caso de Sorriso, pode-se até considerar que um “espírito de arrojo e otimismo” invadiu, senão “toda a população”, conforme Waibel afirmou em seu estudo, ao menos aqueles que se deslocaram em direção ao local que posteriormente, viria a ser Sorriso. 44 Esse “espírito de otimismo” não é difícil de ser entendido, considerando que as pessoas que se deslocavam estavam a crer na possibilidade de uma vida mais promissora, estavam a apostar todas as fichas em Mato Grosso. Apesar de estarem encerrando uma história, de certa forma, rompendo com o passado (muitos deixaram familiares em seu lugar de origem), a expectativa de uma nova vida no lugar também novo e desconhecido ia, aos poucos, transformando-se em otimismo. Era preciso acreditar no futuro. O que estava em jogo era muito mais do que simplesmente, o acesso à terra. Era a oportunidade de construir uma nova vida. Nesta terra nasceriam ou cresceriam os filhos e filhas, seria o lugar da estabilidade, do porta-retrato com a foto do neto/a sobre a mesa no canto da sala, da roupa de noiva dentro do guarda-roupa, enfim, o lugar aonde as esperanças seriam depositadas e o futuro “seria melhor”. Em Sorriso, os que migraram no início da colonização, são considerados pioneiros que, para Waibel, é aquele que “procura não só expandir o povoamento espacialmente, mas também intensificá-lo e criar novos e mais elevados padrões de vida”. Este autor considera que apenas o agricultor com espírito empreendedor pode ser denominado como tal, estando apto a constituir uma zona pioneira (Op Cit, p. 282). Nas áreas de colonização da segunda metade do século XX em Mato Grosso, alguns

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Num momento histórico anterior à elaboração do texto contido neste projeto de lei, Léo Waibel, geógrafo alemão, escrevera por ocasião de seu estudo sobre as zonas pioneiras do Brasil em 1940: “(...) de uma zona pioneira, só falamos quando, subitamente por uma causa qualquer, a expansão da agricultura se acelera, quando uma espécie de febre toma a população das imediações mais ou menos próximas e se inicia o afluxo de uma forte corrente humana. (...) as matas são derrubadas, casas e ruas são construídas, povoados e cidades saltam da terra quase da noite para o dia, e um espírito de arrojo e otimismo invade toda a população”. (WAIBEL, 1979, p. 282) 44 Waibel discute a problemática da fronteira, explicando que a fronteira como limite político, representa uma linha nitidamente demarcada. Já a fronteira, no sentido econômico, é uma zona mais ou menos larga que se intercala entre a mata virgem e a região, que ele chama de civilizada (Op Cit).

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colonizadores são denominados e se autodenominam como “bandeirantes do século XX”. Essa prática é recorrente nos discursos.45 Esses escritos querem fazer ver e fazer crer que o que contribuiu para que Sorriso tenha se tornado atualmente um grande produtor de grãos foi o fato de ter havido uma colonização de “gente de fora, com aptidão agrícola”.46 Antes de se proceder a qualquer análise, porém, faz-se necessário considerar a política de expansão capitalista adotada no governo militar para as terras da Amazônia. A representação mais intensa do pioneirismo em Sorriso pode ser encontrada na construção do colonizador enquanto “mito fundador”. Um jornal local em reportagem veiculada por ocasião da inauguração do novo prédio da Colonizadora Feliz, em 2000, relatou uma homenagem realizada pela colonizadora.

(...) o Edifício Claudino Frâncio, da Colonizadora Feliz, é uma justa homenagem à saga de um pioneiro que aqui fincou raízes e lutou pelo desenvolvimento até seus últimos dias. (...) Claudino Frâncio foi o precursor desse paraíso, planejando sua urbanização e colonização e a Colonizadora (...) dá continuidade a esta missão (...). O trabalho da empresa está voltado para fazer de Sorriso “uma cidade feliz”.47

Refletindo sobre o texto da reportagem pode-se perceber o uso de termos marcantes, que contribuem para compor o quadro de “cidade ideal”. Atentando para o que está posto e deslocando um pouco a atenção para alguns dos termos utilizados na construção do texto, pode-se proceder a uma análise que, do ponto de vista da pesquisa, parece interessante. O texto é portador de significados fortes (contrastantes), a começar por saga, que segundo Houaiss (2001, p. 343), diz respeito à uma “narrativa heróica, cheia de peripécias”. Isso é o que ocorre com a maior parte das empresas de colonização em Mato Grosso, que

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Souza (2001), aborda de maneira ampla esta questão. O estudo do autor está voltado para a colonização de Sinop/MT. Cf. ainda Ribeiro (2001), um estudo desenvolvido a partir da colonização de Alta Floresta/MT. Ambas formadas a partir de projetos privados de colonização. Incluem-se ainda os estudos de Guimarães Neto (2002) e Cerutti (2004) Em Sorriso, há um forte discurso sobre o pioneirismo. “Sorriso nasceu através de um processo de colonização feita principalmente por agricultores do sul do país que por seus pioneirismos e trabalhos construíram uma nova região pujante e progressista, atualmente orgulho de uma nação de desbravadores (...)”. Prefeitura Municipal de Sorriso. “SORRISO – o maior produtor de grãos do Brasil”. Gestão 1997/2000. 46 GALETTI (2000), identifica o poder das imagens sobre o Mato Grosso na determinação do seu lugar no contexto do processo civilizador. A autora observa que a história de Mato Grosso está configurada no jogo de contrastes entre selvagens e civilizados, barbárie e civilização, moderno e atrasado. Estas imagens polarizadas, criadas ao longo da construção deste espaço de fronteira, uma vez apropriadas pelos planejadores, aparecem nos discursos políticos justificando a necessidade de indivíduos “dotados de espírito empreendedor para colocar o estado no caminho do progresso e do desenvolvimento”. 47 Jornal A FOLHA DO CERRADO. Ano XII Edição nº 335. Sorriso, 20 de dezembro de 2000 a 05 de janeiro de 2001. Capa.

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buscam construir, a partir da imagem do colonizador, o mito do “plantador de cidades”. Ocorreu em Sinop, com Enio Pipino; em Alta Floresta, com Ariosto da Riva; em Nova Mutum, com José Aparecido Ribeiro; em Sapezal com André Maggi e vários outros. Pioneiro e Precursor, termos chave para se proceder à construção do “desbravador”, do antecessor “aquele que vem antes” (Houaiss, 2001, p. 26), desconsiderando os que já se encontravam no lugar (grupos indígenas, posseiros, seringueiros), os quais foram varridos da memória. O termo paraíso, contido no texto, pode sintetizar a dimensão simbólica ao se projetar Sorriso como cidade lendária, mítica. Ser, então, “o precursor do paraíso”, analogamente, transforma o colonizador em uma espécie de deus, considerando que, o paraíso seria “um local encantador onde Deus teria posto Eva e Adão” (Houaiss, 2001, p. 329). Em relação ao Mato Grosso amazônico, no período recente, a atualização das imagens produzidas, identifica nos colonizadores – como se esta fosse a única memória do lugar – os desbravadores dos sertões amazônicos. A obra colonizadora destes homens ‘modernos bandeirantes’, mitos fundadores das novas cidades surgidas como resultado de seus projetos de colonização, sobrepõe-se nestas imagens, retirando de cena outros agentes sociais presentes no espaço da colonização (RIBEIRO, 2001, p. 7).48 Em relação ao ato fundador, Sandra Pesavento afirma que os “mitos das origens” nascem e tomam forma a partir da narrativa dos pósteros. Estes, por sua vez, articulam uma representação glamourizada dos acontecimentos que deram início a um processo que chega até nós. Todo ato fundador tende à sacralização. A força criadora do mito, “dá sentido, organiza, hierarquiza e atribui valores de positividade (2002, p. 245). Por ocasião da “colonização como missão”, Guimarães Neto escreveu o seguinte: O elogio ao ‘espírito bandeirante’ exalta a imagem do desbravador dos sertões, que a tudo vence e impõe, sobre minas de ouro e esmeraldas. Afigura-se nessa imagem a dignificante tarefa do brasileiro nato que, conquistando territórios – a marcha para oeste – dá ao Brasil a sua maior riqueza: o alargamento das suas fronteiras (2002,

p. 83). A autora em seu estudo refere-se ao município de Alta Floresta em Mato Grosso, porém em Sorriso a imagem do colonizador surge também fulgurante nas representações simbólicas de um local com “vocação para o sucesso”. Apesar do “trabalho da empresa de colonização estar voltado para fazer de Sorriso uma cidade feliz”, vários dos entrevistados/as 48

Nesse estudo, o termo espaço da colonização é utilizado para designar as áreas de atuação da colonizadora que o estudo privilegia. Essas áreas abrangem os atuais municípios de Alta Floresta, Paranaíta e Apiacás.

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para esta pesquisa, relataram as dificuldades encontradas para se manterem em Sorriso e subsistirem. Algumas narrativas mostraram, que vida e trabalho não se separam, pois as memórias do trabalho aparecem constantemente na lembrança dos entrevistados.

A fronteira entre a área rural e área urbana Observa-se uma estreita relação entre as áreas de cultivo e o núcleo principal da cidade de Sorriso. Não é fácil delimitar a separação entre o rural e o urbano, ou seja, é tênue a fronteira entre o campo e a cidade. Segundo Berta Becker (1990a, p. 22), esta é a diferença da fronteira agrícola da Amazônia, onde o núcleo urbano é a base logística da ordenação territorial. Nas áreas de colonização planejada, a organização prévia já incluía o núcleo urbano como base de sustentação. Os projetos deveriam, na concepção do INCRA, obedecer a um esquema de urbanismo rural a ser implantado em áreas de “vazio demográfico”. Onde não houvesse uma cidade como organizadora/comandante da área rural, seria feita uma seqüência de projetos que evoluiriam de agrovilas para agrópolis e destas para a rurópolis. Lotes de 100 hectares seriam distribuídos aos colonos que teriam numa rede hierarquizada de núcleos urbanos – rurópolis, agrópolis e agrovilas – a base para sua organização (BECKER, 1990b, p. 32). Buscando atender às necessidades sociais, culturais e econômicas do meio rural, o projeto de organização foi concebido pelo INCRA da seguinte forma:

A Agrovila, a Agrópolis e a Rurópolis, formando uma hierarquia urbanística segundo a infra-estrutura social, cultural e econômica e tendo cada qual sua função específica. A Agrovila é um pequeno centro urbano destinado à moradia dos que se dedicam a atividades agrícolas ou pastoris e tem por finalidade a integração social dos habitantes do meio rural, oferecendo-lhes condições de vida em moldes civilizados. É um verdadeiro bairro rural (...). A Agrópolis é um pequeno centro urbano agro-industrial, cultural e administrativo destinado a dar apoio à integração social no meio rural. Exerce influência sócio-econômica, cultural e administrativa numa área ideal de mais ou menos 10km de raio, na qual podem estar situadas de 8 a 12 Agrovilas, que são comunidades menores e dela dependentes (...) A Rurópolis é um pequeno pólo de desenvolvimento, o centro principal de uma grande comunidade rural constituída por Agrópolis e Agrovilas, distribuídas num raio teórico de ação de cerca de 70 a 140 quilômetros. A Rurópolis é um núcleo urbanorural diversificado nas atividades públicas e privadas, possuindo comércio, indústria, serviços sociais, culturais, religiosos, médico-odontológicos e administrativos, não apenas de interesse local mas sobretudo para servir à sua área de influência. Completa a integração os seguintes binômios: rural-urbano, agricultura-indústria, produção-comércio, dando apoio necessário ao desenvolvimento sócio-econômico da região (INCRA, apud IANNI, 1979, p. 61).

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Para Oliveira (1997, p. 145-146), o processo de ocupação recente da Amazônia, sobretudo do norte de Mato Grosso, trouxe consigo novas formas de atuação do capital. Segundo o autor: Não estamos diante da lógica ditada pela disputa livre no mercado, dos interesses privados. Processo esse que comandou, por exemplo, a ocupação territorial do interior paulista e paranaense. Tipicamente concorrencial, ele imprimiu a lógica da produção da mercadoria café nessas frações do território capitalista no Brasil. O campo de certa forma era produzido e construído primeiro. A cidade igualmente de certa forma, era produzida construída na esteira da lógica imposta ao campo de produção da mercadoria internacional café. Assim, o campo de certo modo, precedeu a cidade (...). Na Amazônia, na atualidade, o processo tem a característica da fase monopolista do capitalismo. Estamos agora, diante da lógica ditada por uma ação de monopólios privados ou públicos, não há mais disputa no e pelo mercado. Há tão somente a imposição dos monopólios. A mercadoria que comanda o processo de ocupação é a propriedade privada da terra. Assim, a produção da cidade, de certa forma precede o campo, ainda que propagandisticamente, o campo possa estar sendo vendido primeiro. São as cidades que se impõem na Amazônia mato-grossense. (idem, ibidem).

Em Sorriso, embora a área rural seja a base econômica do município, contudo, o povoamento da área urbana foi uma estratégia utilizada pela Colonizadora para valorização das terras. Haja vista que no período inicial da colonização, quem adquirisse lotes na área rural, recebia um lote na área urbana, local onde deveria se fixar, desde que construísse uma casa num prazo determinado. Circulando em meios de comunicação com alcance nacional, o município de Sorriso, aparece quase sempre em destaque: “Sorriso, em Mato Grosso. A soja é a moeda49”. Nesta reportagem, a atenção está voltada para a riqueza da cidade “ideal”, em que “as negociações do comércio local, agora se dão pela troca de grãos” (idem). Há uma complexidade ao se tratar do município de Sorriso. Quando as grandes propriedades e a agricultura estão em evidência, fala-se do município. Ou seja, toda a área geográfica que envolve Sorriso. A cidade (o núcleo organizado) está no centro do município. É onde se concentra o poder público, agências bancárias, o comércio, enfim, o local onde se dão as relações sociais, atividades específicas que envolvem o sistema capitalista. O campo, no município de Sorriso, levando em consideração o nível de tecnificação e mecanização, não se enquadra na definição de um campo enquanto “(...) lugar de atraso, ignorância e limitação (...)” (WILLIANS, 1989, p. 11). Entretanto, apesar do grande desenvolvimento deste tipo de agricultura, contraditoriamente “no campo, o avanço do

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Jornal Nacional. Rede Globo de Televisão. Reportagem exibida em 10/04/2004.

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capitalismo fez aumentar a miséria, a acumulação e a concentração da riqueza”. (MANÇANO, 2000, p. 185). Este autor considera que a mecanização e a industrialização transformaram o meio rural no Brasil. Simultaneamente, a modernização tecnológica de alguns setores da agricultura também expropriou e expulsou da terra muitos trabalhadores rurais, causando o crescimento do trabalho assalariado (Idem, p. 191). As propagandas e o discurso oficial nomeiam Sorriso como “o maior município agrícola do mundo”50, o que tem contribuído significativamente para atrair trabalhadores e trabalhadoras de várias partes do Brasil. Durante a pesquisa empírica, uma das entrevistadas, D. Maria, que veio morar em Sorriso em 2002, relatou:

(...) Outro dia teve um homem lá em Cuiabá, que falou assim, eu não sei o nome dele, que quando eu passei a assistir ali já tava terminando, o repórter falou pra ele que aqui em Sorriso, se tinha muita... pobreza assim né, o povo muito vivia na miséria, ele falou que não, que aqui todo mundo vivia bem, que aqui planta muita soja e pagava muito bem, mas paga bem para os que trabalha lá e recebe aquele dinheiro ... o profissional qualificado né, mas se você andar nessas periferias você vê o tanto de pobreza que tem passando fome mesmo, que pede no rádio, pede na televisão, porque não tem nada pra se manter ... tem é muitos ... e muitos ... é igual o padre falou um dia da missa ele falou assim, quem é de Sorriso anda ali na ... na Brescansin51, só na perimetral nesses núcleo assim só no centro mas não sai lá nos bairros, na periferia pra ver como que tá a situação da pobreza ... tem muita pessoa passando necessidade. Cresceu por muita notícia porque (...) tem pessoas que faz propaganda que aqui em Sorriso ta ganhando muito dinheiro e o povo ilude e vem (...). (D. Maria. Entrevista citada)

A família da entrevistada, originária de Alagoas se deslocou por vários outros estados antes de se fixar em Sorriso. Nesse caso, também “ouviram falar” de um lugar onde pudessem “melhorá de vida”. Perceberam uma realidade diferente daquela contida nas propagandas e no “ouvi falar”. Fazendo parte do discurso oficial, as propagandas utilizadas para divulgar a “pujança” da “capital da soja” e o uso intenso de imagens positivas da cidade podem gerar antagonismos. Estas representações estão a disseminar a imagem de “cidade ideal” em função de interesses bem definidos de grupos sociais que detêm o poder político, econômico e de controle social. Seus objetivos são os mais diversos. No entanto, as mesmas imagens que podem atrair investimentos atraem também a atenção de trabalhadores e trabalhadoras expropriados, à procura de terra ou trabalho.

50 51

Revista Interior, 2003, p. 26. Natalino João Brescansin é o nome da avenida principal da cidade de Sorriso/MT.

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Esses homens e mulheres abandonam seu lugar de origem e deslocam-se para Sorriso. As dificuldades em “arrumar trabalho” são muitas, porém, essa descoberta é feita apenas no momento da chegada. Os trabalhadores deparam-se com uma situação diferente daquela apresentada pelas propagandas. Há dificuldade em arrumar trabalho, moradia e escola. Apesar da produção agrícola de Sorriso ter se tornado destaque na mídia, sua conjuntura traz também, inúmeros/as ex-trabalhadores/as rurais de outras partes do Brasil. Segundo Bernardo Mançano: No campo, o avanço do capitalismo fez aumentar a miséria, a acumulação e a concentração de riqueza. Esse processo transformou o meio rural com a mecanização e a industrialização, simultaneamente a modernização tecnológica de alguns setores da agricultura (2000, p. 191).

A (re) ocupação de Sorriso começou a partir de meados de 1970 com uma população originária predominantemente do sul do Brasil (RS, SC, PR). Passados alguns anos, recebeu grupos sociais também de outras localidades do país. Presente nas discussões sobre o agronegócio com sua agricultura modernizada e altamente tecnológica, em Sorriso pode-se perceber algumas características que fazem parte do cotidiano de várias das grandes cidades no Brasil, como a desigualdade social, o desemprego, a falta de moradia, a fome. Sobre a complexa realidade social que ocorre em algumas cidades do norte de Mato Grosso, tais como as políticas de controle sobre as populações pobres que não possuem acesso à terra ou às riquezas, locais onde se pode destacar a existência de homens e mulheres destituídos de qualquer meio de subsistência (sem moradia ou em precárias habitações e apresentando graves problemas saúde), Guimarães Neto escreveu o seguinte: (...) as novas cidades que aglutinam esse tipo de população em seu perímetro urbano, ou mesmo próximo a ele (as áreas rurais que gravitam em torno dessas cidades) já nascem velhas, reproduzindo modelos urbanos carcomidos, revelando desde já os problemas da sociedade capitalista globalizada, agudizados em regiões em que o direito à vida e à propriedade tem poucas garantias (2000, p. 183).

Quase três décadas após a implementação do projeto de colonização em Sorriso, o poder público local encarrega-se de divulgá-lo como uma “região pujante e progressista, (...) orgulho de uma nação de desbravadores (...)”.52 Além disso, é recorrente o aparecimento de

52

Folheto veiculado pela Prefeitura Municipal de Sorriso-MT. Outubro/2001.

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Sorriso na imprensa nacional, contando com nomeações como “a capital da soja”53. O estado de Mato Grosso é caracterizado como “o celeiro do Brasil”. Da maneira como são representados, o estado de Mato Grosso e o município de Sorriso, tornaram-se respectivamente, “terra das oportunidades”. A imagem de Sorriso tal como vem sendo projetada nas reportagens que são colocadas em circulação através da imprensa nacional, tornou-se intensa emitindo signos divulgadores das amplas possibilidades que a “capital da soja” pode proporcionar. O capítulo seguinte trará uma discussão em torno da representação da “cidade ideal” e apresentará algumas situações das ambigüidades que as imagens disseminadas pela mídia podem gerar.

53

Revista Interior. “Mato Grosso. A força da soja na terra das oportunidades”. Várzea Grande/MT, fevereiro de 2003. Edição de Lançamento. pp. 25-29. Cf. ainda as fontes elencadas ao final deste trabalho

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Capítulo II – O QUE CONTA É A APARÊNCIA: A MENSAGEM DA IMAGEM

Diante da conjuntura histórica de expansão capitalista e das políticas públicas voltadas para a (re) ocupação e valorização econômica da Amazônia na segunda metade do século XX, faz-se mister considerar o grande número de cidades oriundas de projetos privados de colonização em Mato Grosso.54 Nesse período diversas empresas de colonização instalaramse no estado beneficiando-se de programas e incentivos, subsidiados pelo Estado, e das facilidades de acesso à terra. O que importa pôr em foco no que tange à questão da expansão dessas empresas de colonização particular em Mato Grosso, não é o resultado em termos de fracasso ou êxito, ou ainda, a estrutura empresarial de cada uma delas. Interessa entender como, em alguns casos, após ter passado menos de três décadas da implantação de vários desses projetos, algumas das cidades deles decorrentes perpetuam a idéia mitológica de “terra prometida”; “eldorado agrícola”.55 Sorriso tem sido constantemente representada, em algumas publicações, em jornais e revistas as mais diversas, que circulam no estado de Mato Grosso e fora dele, como sendo uma “gigantesca engrenagem do agronegócio”, movimentando “cifras milionárias”. Essas representações podem contribuir para formar um imaginário de cidade “ideal”. A Revista Interior, veiculada em 2003 no estado de Mato Grosso trouxe uma extensa reportagem em que destacava o potencial agrícola de Sorriso e o seu “invejável planejamento urbanístico”. Apenas um pequeno trecho da referida reportagem foi selecionado, pois retrata a maneira que algumas cidades em Mato Grosso e, não apenas Sorriso, são representadas nos relatos da imprensa. Não é por mera coincidência que Sorriso é o maior município agrícola do mundo. (...) O funcionamento dessa gigantesca engrenagem do agronegócio movimenta cifras milionárias (...) Nova, moderna, com taxa anual de crescimento de 10% e com invejável planejamento urbanístico (...) pavimentação em 75% das largas e bem sinalizadas ruas e avenidas (...) Mansões por todos os lados. Imponentes

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Podem-se destacar entre elas: Alta Floresta, Nova Mutum, Vera, Cláudia, Santa Carmem, Cotriguaçu, Sinop e ainda outras. Guimarães Neto (2000), em Cidades de Fronteira, discute bem esta questão da formação de novas cidades em Mato Grosso na segunda metade do século XX. 55 Eldorados Agrícolas em Mato Grosso – Sorriso e Rondonópolis. MTTV 1ª edição. TV CentroAmérica/Cuiabá/MT. Cuiabá, 05 de maio de 2004.

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prédios comerciais. Água tratada em todos os domicílios. (...) Agroindústria em expansão. Boa rede escolar (...) saúde de qualidade (...) Movimentada rede de agências bancárias (...) Clima ameno com regularidade de chuvas. (...) Cercada de lavouras por todos os lados. Assim é a “capital mundial da soja”, mas podem chamá-la simplesmente Sorriso (Revista Interior, 2003, p. 26).

Esta descrição, sem dúvida, apresenta um lugar extremamente atraente. Na reportagem, um dos pontos importantes e que merece atenção diz respeito à organização da cidade no sentido de oferecer, de modo geral, excelentes condições de vida. A referência ao comércio, instalado em “imponentes prédios comerciais”, fornece indícios de disponibilidade de empregos. A “boa rede escolar” e a “saúde de qualidade” podem conduzir para a promessa de oportunidades iguais em quesitos primordiais à vida, traduzidos aqui em educação e saúde, para todos aqueles que se deslocarem em direção à localidade composta nesta imagem. Além disso, “agroindústria em expansão e movimentada rede de agências bancárias” são indícios de circulação de mercadorias e de capital financeiro. Essas características reunidas em torno da descrição de Sorriso constituem-se em uma prática discursiva que torna o lugar, além de extremamente sedutor, excessivamente promissor em todos os sentidos. Ao focalizar esses pontos, a reportagem, de uma certa maneira, privilegiou determinadas questões fundamentais. Sem dúvida a imagem que está posta, a partir dos indícios apontados no texto citado, é a de uma cidade perfeita, um local onde não há lugar para qualquer espécie de desigualdade social. A cidade de Sorriso da forma como está representada na reportagem citada, pode oferecer a oportunidade de “uma nova opção de vida”. No entanto, pode, por outro lado, prenunciar precárias condições de existência de grupos sociais diversos sem que se refira diretamente à sua situação, considerando que a desigualdade e a segregação social são aspectos próprios do modo de produção capitalista.56 É recorrente esta forma de descrição referindo-se a alguns municípios de Mato Grosso, principalmente, aqueles, cuja economia predominante é a agricultura modernizada e tecnológica. Fazendo referência à imagem que Sorriso adquire através das reportagens

56

Esta questão será melhor discutida em “Riqueza e Pobreza na ‘Capital da Soja’”.

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propagadas pela mídia, uma das fotografias que mais aparecem na “ilustração” dos textos foi selecionada. Do ponto de vista da pesquisa ela tornou-se bastante significativa para dar às reportagens uma espécie de “efeito de verdade”. A fotografia dá legitimidade ao texto, ela é a “prova”. Seu uso freqüente tornou-a uma espécie de cartão de visitas daquele município.

Fotografia 1 – Vista aérea do núcleo central de Sorriso/MT

Vista aérea do núcleo central de Sorriso-MT Avenida Natalino João Brescansin Fotógrafo: Vanderlei Gralak Ano: 2000 Acervo da pesquisa RCC

Ao proceder à análise desta fotografia, além de levar em conta, a possibilidade de intervenção do fotógrafo na imagem e em sua configuração, dois importantes aspectos também devem ser considerados. Esses aspectos dizem respeito à iconografia e à iconologia (KOSSOY, 2001, p. 95).

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Do ponto de vista da análise iconográfica, é importante situar a fotografia. Neste caso, trata-se de uma foto aérea que retratou apenas uma parte do local em estudo. A avenida principal de Sorriso: Natalino João Brescansin. À esquerda da avenida, a praça municipal. O prédio construído em círculo, colorido em azul, amarelo e laranja é o prédio da biblioteca municipal. O círculo menor que aparece em vermelho é um pequeno jardim. A estrutura arquitetônica desse jardim serve de suporte para trepadeiras. Nesse espaço são também cultivadas uma variedade de flores. Há alguns bancos sob o jardim e é muito comum a presença de casais enamorados nessa parte da praça. Seguindo pela avenida ao lado da praça em direção ao local onde a iluminação vai se tornando mais intensa, chega-se à rodovia que recorta a cidade, a BR 163. Trata-se de uma foto bastante elaborada sob o prisma estético. No uso da fotografia como fonte, ver, descrever e constatar não é o suficiente. É necessária uma “incursão em profundidade na cena representada” (KOSSOY, op cit, p.95-96). Tal como faziam os positivistas, o uso da fotografia pela mídia torna-se uma “prova da verdade”, dada a sua verossimilhança. No entanto, é preciso proceder à análise iconológica para entender que a fotografia não pode ser encarada como espelho da realidade. É necessário entender os componentes de ordem material e os componentes de ordem imaterial que envolvem o processo seletivo da imagem retratada. Os componentes de ordem material estão diretamente relacionados aos recursos técnicos: equipamentos, materiais e produtos específicos fornecidos pela indústria fotográfica. Já os componentes de ordem imaterial, referem-se aos filtros individuais: psicológicos, sociais, ideológicos. Pode-se considerar também o repertório pessoal do fotógrafo, bagagem artística, habilidade técnica e experiência. A câmera é automática. O fotógrafo não é (KOSSOY, op. Cit, p. 42). Do ponto de vista da análise iconológica, trata-se de uma imagem cuja intensidade de luzes e de cores evidenciam que o cenário passou por uma significativa valorização estética. Essa valorização estética tem um forte apelo estando de acordo com as composições românticas encontradas nos textos das reportagens relacionadas ao município de Sorriso. Contém múltiplas significações e finalidades específicas. Servem tanto para atrair investimentos, como para divulgar a “competência” da administração pública municipal. Comprova isso, o fato de que o fotógrafo é o responsável pela maior parte das imagens que são veiculadas nos periódicos editados pelo poder público municipal. Esta imagem que utiliza o realismo fotográfico da aparência enquanto testemunho fiel, enquanto “prova” pode levar à generalização de todo o espaço do município.

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Boris Kossoy (2001, p. 121) afirma que, esse realismo fotográfico enquanto “prova” pode conduzir o receptor desavisado a imaginar uma situação que não existe, podendo inclusive criar no imaginário desses receptores uma (pseudo) realidade. O autor define essa operação como uma cilada sedutora, uma ficção documental e cria duas conceituações a partir desta categoria de imagens: a) “a proximidade que pode existir entre a fotografia documental e a de propaganda”; b) a ideologia determina a estética da representação: os mecanismos de produção e de recepção da imagem são governados por este princípio. Trabalhar a fotografia enquanto fonte para a análise historiográfica significa estar atento para a multiplicidade de significados adquiridos através da imagem retratada. Interessa a recepção dessa imagem nos usos sociais. Enquanto documento histórico, a fotografia leva à análise das hierarquias de poder que decide o que revelar e o que ocultar. Seguindo a mesma linha que a das representações de Sorriso como um “verdadeiro paraíso agrícola”, uma outra reportagem faz referência ao município de Sapezal, localizado a oeste de Mato Grosso. Da reportagem emergiu a seguinte imagem:

(...) Sapezal é simétrica, atraente: um tabuleiro de xadrez onde avizinham-se o ocre da soja madura, o verde-claro do milho novo e o tom escuro do algodão entrecortado por longas estradinhas rurais, as chamadas “linhas”. Plantações e mais plantações, verde e mais verde, dinheiro e mais dinheiro. A cidadezinha, que completa meros dez anos, é um fenômeno: inteiramente planejada,tem educação e saúde pública de alta qualidade, saneamento básico e água tratada em todas as casas, rede de telefonia com cabos de fibra ótica (...)” (REVISTA NATIONAL 57 GEOGRAPHIC BRASIL, maio/2004, p. 26-33).

A imagem sedutora se propaga, juntamente com a referência a outros nomes de municípios que se destacam por sua produção agrícola em Mato Grosso. Entre eles, destacase, Campo Novo do Parecis, Lucas do Rio Verde e, também, Sorriso. Primavera do Leste, que, também se sobressai por sua produção agrícola modernizada e tecnológica, foi assim noticiada nacionalmente:

Primavera do Leste possui 35.000 habitantes e um sistema de saúde montado para atender o dobro deste número. Mais de um terço da população estuda, o que inclui todos os moradores em idade escolar e muitos adultos. O município tem 4 cursos universitários, nenhum boteco e nenhum muro pichado (REVISTA VEJA. São Paulo, 1 set/1999, p. 130 In: CERUTTI, 2004, p. 31). 57

A projeção da imagem tanto de Sorriso, quanto de Sapezal, colocadas dessa forma possibilitou uma imediata associação às cidades descritas por Marco Polo ao imperador dos tártaros Kublai Khan. “Não se sabe se Kublai Khan acredita em tudo o que diz Marco Pólo quando este lhe descreve as cidades visitadas em suas missões diplomáticas, mas o imperador dos tártaros continua a ouvir o jovem veneziano com maior curiosidade e atenção do que a qualquer outro de seus enviados ou exploradores” (CALVINO, 2002, p. 9).

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Cerutti destaca que esta reportagem pode ser entendida “como uma propaganda com vistas a atrair investimentos para Primavera do Leste e estimular a vinda daqueles que estão à procura de emprego”. O texto da reportagem tem também, a preocupação de construir uma imagem de cidade limpa e sem entraves que possam burlar o objetivo principal. A referência a “nenhum boteco”, quer dizer, segundo o autor, que não há pessoas fora do mercado de trabalho, pois eles (os botecos), geralmente são vistos como local de desocupados. A contribuição do estudo de Cerutti, está em mostrar que “para assegurar a representação de que todos trabalham e são prósperos se declara abertamente a caça a grupos de pobres, especialmente os que estão fazendo da rua o seu endereço” (CERUTTI, 2004, p. 32). Alguns municípios em Mato Grosso, especialmente aqueles cuja base da economia é a agricultura, possuem alguns pontos de semelhança. Dentre eles, pode-se citar ainda, Nova Mutum, Lucas do Rio Verde e outros que surgiram de projetos de colonização que datam de meados da década de setenta do século vinte, com uma proposta de produção em grande escala. Esses municípios, ao serem representados como “cidades prósperas”, “lugar ideal para quem quer fazer a vida”, “engrenagem do agronegócio movimentando cifras milionárias”, e tantas outras expressões de uso corrente na mídia, associadas, remetem ao que afirmou Roger Chartier:

As representações do mundo social assim construídas, embora aspirem à universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses de grupo que as forjam. Daí para cada caso, o necessário relacionamento dos discursos proferidos com a posição de quem os utiliza (1985, p. 17).

Segundo o autor, as percepções do mundo social não são de forma alguma discursos neutros: produzem estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a impor uma autoridade à custa de outros, por elas menosprezados, a legitimar um projeto reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas (idem, ibidem). Para esse autor, a representação cultural é conceito extremamente móvel, estabelecido no interior das relações sociais. O conceito de representação não está descolado do conceito de apropriação. Como as pessoas se apropriam das coisas, através do crivo de suas percepções e aí, o autor retira de Bourdieau a categoria de habitus para explicar como ocorre a apropriação, ou seja, a multiplicidade das ações dos agentes sociais. A maneira como cada um percebe o mundo social à sua volta, está diretamente relacionada com o lugar social que os agentes sociais ocupam.

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A mensagem da imagem

As imagens que compõem as representações sobre Sorriso podem contribuir para se formar uma visão parcial apenas, considerando que “a representação não é uma cópia do real, mas uma construção feita a partir dele” (PESAVENTO, 2003, p. 40). E no caso de Sorriso, a construção que intenciona mostrar um aspecto bem definido desse “real” está se referindo apenas à riqueza proporcionada pela produção agrícola. Embora tenha despontado recentemente no cenário da colonização mato-grossense e conte com um expressivo índice de crescimento populacional e econômico do ponto de vista da agricultura mecanizada (modernizada), pode-se também considerar que “(...) A representação envolve processos de percepção, identificação, reconhecimento, classificação, legitimação e exclusão” (Idem, ibidem). É possível verificar “(...) que a representação tem a capacidade de se substituir à realidade que se representa, construindo o mundo paralelo de sinais no qual as pessoas vivem” (PESAVENTO, 2003, p. 41). Em Sorriso isso se constitui em uma armadilha. Ao ter apenas os aspectos relacionados à produção agrícola e à organização do núcleo central da cidade divulgados, a tendência é que se faça crer que o espaço representado é um local homogêneo e com amplas possibilidades, seja para quem planeja investir em terra e lavoura, ou para aqueles que estão em busca de trabalho, de melhores condições de vida. Quando se reduz a escala de observação, é possível perceber que no interior do quadro apresentado como homogêneo (ou que tenta passar uma idéia de homogeneidade), há algo muito heterogêneo. As imagens contidas nas representações acerca de Sorriso disseminam a idéia de cidade promissora, mas silenciam alguns aspectos. Os loteamentos pobres da periferia de Sorriso não são mencionados nas representações. A super lotação nas salas de aula e a constante evasão escolar em decorrência da intensa migração, a luta laboriosa dos muitos migrantes mais recentes, o aumento da pobreza e a segregação social são aspectos silenciados. Focalizando apenas a parte positiva (louvando a grande produção agrícola), e colorindo-a com cores intensas, o município de Sorriso vai adquirindo contornos expressivos tornando-se um atrativo; seja para atrair investimentos, seja para atrair uma população pobre desterritorializada. Sendo assim, a imagem de “lugar ideal” encontra eco nas condições de vida de muitos homens e mulheres que, originários de localidades as mais diversas do Brasil, saem em busca de melhores condições de trabalho e de vida. “(...) São trabalhadores pobres – os

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desclassificados de uma ordem que se representa como dominante –, homens e mulheres que vivem sem lugar, sem teto, mas insistentemente criando novos espaços” (GUIMARÃES NETO, 2002, p. 19). O espaço que estão em busca é aquele representado, pois “real e representação são indissociáveis” (CHARTIER. 1985 p. 17). Todavia, a Sorriso com a qual se deparam, mesmo sendo integrada ao espaço representado, permanece oculta e não aparece nas representações. Sem possibilidades de adquirir um lote na parte mais central, os migrantes mais recentes se fixam distantes do centro da cidade. Em meio a essa aparente “igualdade” que as representações sugerem, há algo mais, além disso. Sorriso tornou-se, sobretudo na última década, palco de experiências e vivências de atores sociais diversos que, por suas condições de vida se deslocaram em busca de trabalho e de terra. Conforme alguns entrevistados relataram “tem fama de cidade rica”. A “cidade paraíso” é muito mais do que as representações mostram. A profusão de fisionomias e de rostos anônimos pode esconder muitas histórias de vida de pessoas que estão em uma busca constante por um futuro promissor, pela subsistência. Para o poder estabelecido não há interesse em focalizar estas histórias singulares que não estão registradas nos documentos oficiais. Em geral, os documentos representam uma história dos grupos dominantes e, neste caso, o trabalho com as fontes orais constitui-se da maior importância. Permite dar visibilidade a uma história silenciada, muitas vezes, oculta. Por intermédio das fontes orais, pode-se também, questionar as formas de abordagem que tentam universalizar situações particulares. Em meio às fontes organizadas e selecionadas para esta pesquisa, um folheto de divulgação de um novo loteamento em Sorriso chamou a atenção, sobretudo, por trazer o seguinte enunciado:

Sorriso é uma cidade que cativa e impressiona positivamente aqueles que tem sonhos e muitos planos. Moderna, muito bem planejada, nova, rica, agradável e com uma das maiores taxas de crescimento do país, Sorriso ainda ostenta o título de “maior produtor de soja do mundo”. Em outras palavras, é a cidade ideal para quem quer fazer a vida!

A cidade aqui representada como lendária e mítica guardiã de sonhos e possibilidades, foi projetada para atrair aqueles que têm sonhos e muitos planos. No entanto não bastam

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apenas os “sonhos e os planos”. É essencial que os interessados em adquirir um lote conte com condições econômicas que lhes possibilite a aquisição.58 No estágio da representação a cidade surge “muito bem planejada, nova, rica e agradável”. O holofote aponta um local uniforme, em que Sorriso, um agradável sonho, desponta sedutora, trazendo um convite para quem esteja em busca de “muita tranqüilidade e ar puro”. Nos loteamentos mais distantes do centro da cidade a realidade social é dada a ler de outra forma. Neles residem trabalhadores e trabalhadoras que dependem do trabalho assalariado, muitos deles prestam seus serviços no núcleo central ou nas fazendas e diversos estão desempregados. Um dos loteamentos, o São Domingos, por exemplo, foi uma doação realizada por parte da Prefeitura Municipal. Uma reportagem num periódico produzido em Sorriso divulgou a seguinte justificativa para a doação dos lotes: “surgiu como tentativa de se evitar o aparecimento de favelas na periferia, pois muitos trabalhadores não estavam conseguindo adquirir um lugar para morar (...)”59. Em parte, suavizou-se o problema do trabalhador ao possibilitar-lhe uma oportunidade de morada. No entanto, algumas situações continuam indefinidas, como a falta de oferta de trabalho para essa população pobre. Atualmente possuem um “lugar para morar”, mas, muitos deles, reclamam por oportunidades de trabalho. Ainda outra leitura pode ser feita. Os loteamentos foram planejados para levar para um local distante do centro os migrantes pobres, que chegaram depois. No bojo da política de (re) ocupação da Amazônia, iniciada na década de setenta do século vinte, a propaganda foi também uma aliada do Estado que intencionava atrair grupos sociais diversos para a “nova fronteira agrícola”. 60 As representações de um local de “terras baratas”, embora longínquas e desconhecidas atuou no imaginário de forma a fazer surgir uma terra prometida e abençoada; uma “terra de oportunidades” (GUIMARÃES NETO, 2002). A representação mítica da Amazônia, produzida durante e nas condições políticas do regime autoritário – pós 1964 – no Brasil, teve seus interesses atrelados ao das práticas que a 58

O texto da propaganda segue na íntegra: “Portanto, faça também um excelente negócio e adquira seu lote no Recanto dos Pássaros. Idealizado pela Colonizadora Feliz, fundadora e principal parceira do desenvolvimento de Sorriso, o Recanto dos pássaros oferece lotes a partir de 400 metros quadrados, com água, luz, asfalto e meio-fio, além de muita tranqüilidade e ar puro” (Revista Interior, 2003, p. 50). O valor dos lotes no referido loteamento varia entre R$ 25.000 a R$ 41.000. Fonte: Colonizadora Feliz. 59 Revista SORRISO. Edição Especial. Dezembro/2002. 60 Conforme assinalou Becker (1990a) “(...) a fronteira se organiza com o trabalho móvel, isto é, com trabalhadores assalariados, temporários e permanentes e com ex-pequenos produtores que vendem sua força de trabalho empregando-se em atividades rurais ou urbanas”.

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colonização, em especial aquela instituída pela empresa privada, desenvolveu para a construção do mito da terra prometida (Idem, ibidem). Atualmente, perpetua-se a representação mítica, desta vez, de uma cidade que está a oferecer amplas possibilidades “para quem quer fazer a vida”. Reconhecendo o valor destas fontes como subsídios para a produção do discurso histórico, torna-se importante levar em conta a necessidade de submeter os seus conteúdos a uma leitura que não se deixe fascinar pelo seu caráter aparentemente neutro, ou pelas imagens positivas sobre a cidade de Sorriso, e o estado de Mato Grosso, respectivamente. Trata-se, nesse caso, de perceber que as representações “(...) podem contribuir para produzir aquilo por elas descrito ou designado, quer dizer, a realidade objetiva” (BOURDIEU, 1989, p. 114). Para produzir o que é descrito pelas representações alguns aspectos são silenciados. A cidade é algo mais do que as representações estão mostrando.

“A cidade reúne detalhes

preciosos sobre o real, não sendo apenas um aglomerado onde as pessoas fazem trocas comerciais” (RAMINELLI, 1997, p. 195). Logo que o dia amanhece, o burburinho nas ruas em alguns loteamentos de Sorriso anuncia o intenso trânsito de bicicletas que se seguirá. Homens e mulheres apressados deixam suas casas na periferia (à direita da BR 163), atravessam esta rodovia e se dirigem ao trabalho na parte central da ‘cidade’ (à esquerda da BR 163). Muitos moradores dos loteamentos localizados na periferia de Sorriso se referem ao núcleo central como ‘a cidade’. Observa-se nesses relatos uma espécie de sentimento de não pertencimento. 61 Stuart Hall (2003, p. 59), num estudo sobre a identidade cultural, afirma que, não importa quão diferentes os membros de uma dada sociedade possam ser, em termos de classe, gênero, ou raça. Para o autor, uma cultura nacional buscará unificá-los numa identidade cultural, para representá-los como pertencendo à mesma e grande família nacional. Em Sorriso, os primeiros povoadores, especialmente os que estão envolvidos no processo inicial da colonização, expressaram que vivem todos como uma “grande família”.

(...) mas eu acho que o que cabe ilustrar sobre isso no contexto de Sorriso a gente procurou o apoio de todos os sorrisenses de formar uma grande família e eu digo sempre que ainda é uma grande família. É um traço que nós temos verdadeira admiração (...) a nossa característica é ímpar (...) E a nossa família convive com todas as demais de Sorriso. Então vale ressaltar que eu acho que Sorriso ainda é e 61

Refere-se aqui aos loteamentos situados à direita da BR 163 no sentido sul/norte. O núcleo central localiza-se à esquerda da referida rodovia, no mesmo sentido. Localizam-se à direita da BR 163 os loteamentos: São Matheus; Industrial 01 e 02; Industrial Nova Prata, Residencial Vila Bela, Boa Esperança, Fraternidade e São Domingos. (Fonte: Subsídios à Elaboração do Plano Plurianual – 2002 a 2005. Prefeitura Municipal de Sorriso – Secretaria de Planejamento e Fazenda). Confira anexo I.

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vai ser por muito tempo, uma grande família. (...) (Aréssio Paquer – Entrevista citada).

Apesar da referência constante à Sorriso como sendo uma “grande família”, muitos moradores não possuem o sentimento de pertencimento, conforme querem fazer crer as representações e o discurso oficial.62 É indispensável considerar a especificidade ao se tratar das relações estabelecidas nas áreas agrícolas de Sorriso. Estas áreas até podem ter alguma semelhança com outros municípios, cuja base da economia é a produção agrícola, pois nesses lugares, a agricultura também promoveu a industrialização do campo63.

Porém, isso não vale para todos os

municípios do Brasil. Sendo assim, vale lembrar quando se faz referência ao trabalhador rural de Sorriso, que o mesmo deverá estar apto a desempenhar o seu saber operando com a tecnologia exigida em cada caso. Recentemente, o Jornal “Folha de São Paulo” veiculou a seguinte reportagem:

(...) O empregado rural de Sorriso recebe em média R$ 500 mensais e um bônus de 500 sacas de soja (quase R$ 18 mil) por ano – sem gastar nada com comida ou moradia, bancadas pelo fazendeiro. Somando as rendas, o trabalhador ganha perto de R$ 24 mil anuais, ou R$ 2.000 por mês (...). (Sorriso, capital da soja, cresce 13% ao ano. Jornal Folha de São Paulo. São Paulo, 14 de março de 2004, p. B 9)

A “notícia” de trabalho que circulou através da “Folha de São Paulo” (um meio de comunicação de grande alcance no Brasil) pode ser entendida como estratégia para atrair mão-de-obra para o município. Não é regra geral que um trabalhador rural receba a quantia mencionada nesta reportagem. O valor que percebe o trabalhador noticiado certamente não é o mesmo que é pago a “todos” os trabalhadores das áreas rurais de Sorriso. Da maneira como está posto pode parecer que sim. Para alcançar essa média o trabalhador deve contar com mão-de-obra altamente qualificada e, nesse caso, vale considerar que o trabalhador de área agrícola em Mato Grosso (se comparado aos trabalhadores de outras regiões do Brasil), possui uma especificidade. Outro aspecto a ser considerado diz respeito ao tamanho da área. Não deve-se estar falando de um trabalhador que exerce o seu saber numa pequena propriedade. Todavia, da 62

Esta questão será mais detalhadamente discutida no capítulo III através das fontes orais. A industrialização do campo pode ser entendida como um processo relacionado com agricultura mecanizada, com alta tecnologia, associado à agroindústria que se instala no interior. “(...) As agroindústrias cresceram como consumidoras dos produtos da agropecuária, ao tempo em que se remodelaram; surgiram novas agroindústrias de grande porte, ligadas ao exigente mercado internacional. (...) O processo de integração indústria e agricultura não se deu à margem das relações entre as grandes empresas, os grupos econômicos e o Estado. Este último atuou, sobretudo, através de subsídios creditícios, incentivos fiscais e toda uma bateria de políticas incentivadoras das exportações” (Müller, 1989, p.18). 63

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maneira como está posto há uma generalização, o que dá a entender que isso ocorre com todos os trabalhadores da área rural do município de Sorriso.64 A escolha do nome: o entretecer da memória

A respeito da escolha do nome para o município de Sorriso, há numerosos e distintos relatos. São várias histórias ou “versões”. Não é possível, segundo alguns dos entrevistados, apontar com exatidão, a partir de qual dessas diferentes histórias surgiu o nome do lugar. “Era o nome da Gleba. Foi a Colonizadora que pôs esse nome, Gleba Sorriso”. (Nilva – moradora em Sorriso).

Olha, têm várias versões. (...) tem tantas versões que a gente não sabe qual é a verdadeira. (...) inicialmente (...) vieram muitos de origem italiana eles (...) plantavam arroz que em italiano é riso,então eles já... só riso aqui né, porque só tem riso, só riso, então diz que acabou saindo daí, mas eu não sei se essa é a versão correta não. (Professora Guiomar Preima).

A idéia de versão, apresentada neste depoimento, pode passar a impressão de que há uma história “verdadeira”, e, também, algumas “versões”. O que se busca aqui, não é a história “verdadeira” e sim entender por qual razão uma idéia é representada desta ou daquela forma, pois conforme afirmou Paul Veyne:

(...) explicar e explicitar a história consiste, primeiramente, em vê-la em seu conjunto, em correlacionar os pretensos objetos naturais às práticas datadas e raras que os objetivizam, e em explicar não a partir de uma causa única, mas a partir de todas as práticas vizinhas nas quais se ancoram (...) (1998, p. 280).

A explicação sobre como se deu a escolha do nome, parte de uma memória individual, que é também, social. O que para a pesquisa parece importante considerar é o fato de que essas histórias, de uma maneira ou outra, contribuíram para criar uma identidade. Outro relato sobre a escolha do nome da cidade difere do apresentado anteriormente.

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Só para se ter uma idéia da força que uma reportagem veiculada nacionalmente pela mídia adquire, mencionarse-á uma, em especial. A mesma foi ao ar em 08 de fevereiro de 2004, no programa “Fantástico” da rede Globo de televisão. Noticiava-se a sobra de vagas (emprego) no município de Rio Verde (também produtor de soja), em Goiás. Dois dias depois, em 10 de fevereiro/2004, o “Jornal Nacional”, da mesma emissora, esclareceu aos telespectadores que as vagas disponíveis em Rio Verde, eram para pessoas que tivessem “mão-de-obra qualificada”. O apresentador do telejornal informou ainda, que, desde 08/fev, quando foi ao ar a primeira reportagem, “não parava de chegar àquela cidade, ônibus lotados de trabalhadores de várias partes do país, em busca de emprego” .

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Desde o início foi Sorriso, porque o Alberto Frâncio veio de Curitiba e Curitiba chama cidade Sorriso, então por isso chama Sorriso, não tem nada a ver com arroz, eu estava direto com o pessoal, o pessoal do sul é muito alegre, nem que tenha coisa ruim está rindo e fazendo festa, mas foi tirado por isso então se chama cidade Sorriso, por causa de Curitiba (relato de Valdir Demori. Citado em BORTONCELO & DIAS, 2003, p. 79-80).

Pode-se pensar que as práticas de significação construídas a partir dos relatos, estão a incluir e a posicionar os sujeitos no campo da história, definindo o que era e o que passou a ser, conforme afirmou Kathryn Woodward.

A representação inclui as práticas de significação e os sistemas simbólicos por meio dos quais os significados são produzidos, posicionando-nos como sujeito. É por meio dos significados produzidos pelas representações que damos sentido à nossa experiência e àquilo que somos. Podemos inclusive sugerir que esses sistemas simbólicos tornam possível aquilo que somos e aquilo no qual podemos nos tornar

(2003, p. 17). Chega-se a um ponto que merece destaque. É preciso ter claro que “a memória é um cabedal infinito do qual só registramos um fragmento” (BOSI, 1997). Refletindo sobre as mais diversas formas da escolha do nome da cidade, os recordadores, três décadas depois de sua chegada ao local que é atualmente a cidade de Sorriso, estão a representar algo que aconteceu, e que testemunharam vendo ou ouvindo e, mais do que isso, o que significou para cada um deles. Não estão a inventar, constitui-se aqui uma arte de compor. A narrativa reconfigura as ações, no tempo. Sobre a questão do tempo na narrativa de memória Dora Schwarzstein escreveu:

Las distintas dimensiones del tiempo parecen tener impactos diferenciados sobre la memória. (...) las mismas experiências pueden tener efectos diferentes, distintos significados y relevancia en gente de distintas edades y de acuerdo a la estructura de la familia. (2001, p. 76).

Aquele momento, o da chegada, foi o momento das dificuldades, do sofrimento. Agora, no presente, o distanciamento do que fora vivido pode ter possibilitado que as lembranças tenham sido ressignificadas. O que importa reter no tratamento da memória enquanto fonte utilizada para entretecer a trama histórica consiste na consideração do tempo que separa o vivido, a experiência, do que é narrado ou representado algum tempo depois. Halbwachs quando fala sobre as lembranças reconstruídas, afirma que:

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a lembrança é uma reconstrução do passado com a ajuda de dados emprestados do presente, preparada, além disso, por outras reconstruções feitas em épocas anteriores e de onde a imagem de outrora manifestou-se já bem alterada (1990, p. 71).

Este autor afirma que “a lembrança é uma imagem engajada em outras imagens, uma imagem genérica (mais geral) reportada ao passado” (Idem, ibidem). Não subsistem em alguma galeria subterrânea de nosso pensamento, imagens completamente prontas, mas na sociedade onde estão as indicações necessárias para reconstruir tais partes de nosso passado, as quais representamos de modo incompleto ou indistinto.O autor afirma ainda que, reconstruímos, mas essa reconstrução se opera segundo linhas já demarcadas e delineadas por nossas outras lembranças ou pelas lembranças dos outros (Op. Cit, p. 73-77). Na esteira da reconstrução que opera em linhas já demarcadas, Marilena Chauí, no prefácio que fez ao livro de Ecléa Bosi (1997), considera que:

(...) o modo de lembrar é individual tanto quanto social: o grupo transmite, retém e reforça as lembranças, mas o recordador, ao trabalhá-las, vai paulatinamente individualizando a memória comunitária e, no que lembra e no como lembra, faz com que fique o que signifique. O tempo da memória é social, não só porque é o calendário do trabalho e da festa, do evento político e do fato insólito, mas também porque repercute no modo de lembrar (1997, p. 31).

Nesse sentido, cada grupo ou cada recordador vai, como afirmou a autora, paulatinamente individualizando a memória e assim sendo, vai representar através dos relatos orais quando (re) elaboram a experiência vivenciada antes, o que para ele tornou-se mais marcante ou significativo, levando em consideração que sua narrativa se dá do presente para o passado. Em vários depoimentos coletados e, também nas fontes escritas é possível constatar explicações diversificadas em relação ao nome da cidade.65 Atualmente, a colonizadora Feliz, a primeira a se instalar em Sorriso, trabalha como idéia central de suas propagandas, o lema: “Colonizadora Feliz. Sorriso Cidade Feliz”. Um dos colonizadores, Claudino Frâncio, ao ser interrogado acerca do nome da cidade, afirmou:

(...) a origem do nome de Sorriso veio da capacidade dos nossos líderes de Sorriso e para que se pudesse explicar alguma coisa, sobre capacidade de sorrir

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O trabalho de Bortoncelo & Dias, elencam pelo menos dez distintas histórias, ou maneiras de contar. (2003, p. 77-85)

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(...) eu gostaria de comparar com uma aeromoça, quando avisa aos passageiros da pane da aeronave, ela tem que fazê-lo com um sorriso, com transparência de despreocupação, mas, no entanto ela tem que pedir aos passageiros que usem a máscara de oxigênio (...) não foi diferente com as esposas dos agricultores que aqui chegavam no impacto de se sentirem em plena floresta (...) Nesta hora o marido tinha que ter a capacidade de sorrir, porque senão era o desespero que tomava conta (...) Assim nós líderes, nós pioneiros exemplificamos para toda essa população, essa capacidade de sorrir (...) Essa foi a razão e a origem do nome de Sorriso. (Citado em BORTONCELO & DIAS, 2003, p. 83-84)

Neste relato há alguns indícios de um modelo de história que elege o acontecimento como algo já dado, natural – a criação da cidade, os pioneiros – sem considerar a multiplicidade das experiências dessa ocupação. Certamente os primeiros tempos da chegada não foram fáceis, e talvez tenha sido a difícil experiência, vivenciada por vários destes homens e mulheres, que fizeram surgir inúmeras histórias a respeito da escolha do nome da cidade. Discutindo sobre a memória como documento histórico Dora Schwarzstein afirma:

La memoria, como interpretación de hechos del passado está mezclada con silencios, errores e contradicciones. Esto no apunta a la nofiabilidad de la memoria como fuente historica, sino que da cuenta de la complejidad y riqueza de la experiencia humana. La memoria como documento histórico tiene un carácter peculiar, es retrospectiva y tiene un carácter fluído. No produce datos fijos en un momento del pasado, que permenecen de una manera estable (2001, p. 76).

A autora considera que “ la memoria actúa en el presente para representar el pasado. Esa representación es extremadamente compleja, no es una simples reproducción, sino una interpretación” (Op. Cit, p. 75). Ou seja, a complexidade da memória em representar o passado não é simplesmente uma reprodução, é interpretação, pois a mesma atua em constante movimento com a memória do presente. Alberto Frâncio, inicialmente um dos sócios da Colonizadora relatou:

(...) Sorriso tem muitas versões, mas a principal e acho que serviu como exemplo, como base para se dar um nome, porque na primeira vinda pro Mato Grosso (...) o Nelson disse: vocês podem até ficar tristes, eu estou sorrindo, porque aqui é o nosso lugar. Então o Claudino muito astuto aproveitou e disse: Então aqui vai ser o nosso Sorriso, e hoje é Sorriso (BORTONCELLO & DIAS, 2003, p.84).

Retratam-se, nesses escritos, uma história de progresso social e econômico, numa caminhada quase obrigatória, ininterrupta, reproduzindo assim uma história que elege como tarefa, retratar os grandes feitos, e os grandes homens; os heróis pioneiros (HEINST, 2003).

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“Procurando-se, assim, enaltecer a figura de determinadas pessoas e colocar na ação de alguns indivíduos a força da ‘pujança regional’ ”. (TOMAZI, 2001, p. 74). Um aspecto que merece atenção nessa questão que trata sobre o “pioneirismo” e o “pioneiro”, segundo este autor, é que a figura do pioneiro está ligada ao “desenvolvimento” e “pujança” de um dado local. Assim sendo, é como se ele tivesse sido o “inoculador da ‘prosperidade’ e do ‘progresso’ à cidade e à região, silenciando-se sobre todos os outros partícipes do processo de crescimento e constituição da cidade e da região” (Op Cit, p. 7576).66 De modo geral, seja em relação ao topônimo “Sorriso”, em que se ouve inúmeras histórias, ou em relação ao solo de cerrado, que é ora representado como “terra boa para a agricultura”67 ou, em outras vezes, de forma diferente. Como um lugar “(...) de terra podre, areião, que nem mato crescia, começou a sair o que é hoje a maior produção do estado (...)”68, é importante observar que, a maneira como a representação aparece, depende muito da ocasião em que está sendo escrita e de quem a escreveu. Dependendo dos interesses, ora se exalta a terra, ora, a mesma é depreciada.

Riqueza e pobreza na “capital da soja”

Desde a política de (re) ocupação da Amazônia implementada pelo Estado na década de 1970, a idéia de progresso foi difundida com entusiasmo, sobretudo pela imprensa, contribuindo sobremaneira na divulgação das terras “promissoras” da Amazônia, conforme noticiado em um jornal de 1978:

(...) A região Centro-Oeste está vivendo agora o seu período áureo, com um progresso muito acima do que se possa imaginar. (...) está surgindo uma nova fronteira agrícola. No caso específico de Mato Grosso, apontado como a “Canaã 69 brasileira”, este progresso chega a ser mais do que espetacular.

A idéia de progresso “mais do que espetacular” que o estado de Mato Grosso estava vivenciando naquele momento, atualmente ainda tem sido veiculada pela imprensa de

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Em Mato Grosso, pode-se verificar como isso ocorre considerando os trabalhos de Guimarães Neto (2002), Ribeiro (2001), Jatene (1983), em que estudam a colonização de Alta Floresta; Oliveira (1983), Souza (2001), referente à Sinop. 67 Revista: Sorriso – Ano IV. Publicação e Edição coordenadas pela União do Norte Editorial e Cultural Ltda. Fotos de Vanderlei Gralak (Foto Universal). Sorriso/MT, 1990. 68 Revista Informe Rural – Circulação – Norte de Mato Grosso. Sinop/MT, fevereiro de 1998. 69

Jornal: “O ESTADO DE MATO GROSSO”. Cuiabá, 9 de fevereiro de 1978. p. 6

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maneira a divulgar uma imagem mítica sobre Mato Grosso, haja vista um número significativo de reportagens sugestivas que apresentam alguns municípios em Mato Grosso como “verdadeiros eldorados agrícolas”.70 As reportagens divulgadas através da imprensa nacional colocam em evidência a riqueza impulsionada pelo agronegócio e pelos recordes constantes na produção, sobretudo de soja. Todavia, um outro aspecto característico do modo de produção capitalista é, algumas vezes, silenciado: onde há muita riqueza, há também, muita pobreza. Nos locais onde há uma grande produção de soja, tem havido um aumento significativo da pobreza. Na seqüência da reportagem sobre o município de Sapezal, o jornalista declarou o seguinte: Os bons ventos da fortuna fácil, entretanto, começam a atrair à cidade sonhadores sem nenhuma especialização, uma gente capaz de fantasiar riqueza tanto num garimpo de ouro quanto na construção civil das metrópoles. Como resultado, pequenos guetos de pobreza já pipocam aqui e ali (...) A cidade rapidamente vai deixando de ser uma bolha privada de prosperidade e paz (NATIONAL 71 GEOGRAPHIC BRASIL Maio/2004. p.31).

Ao ter sua riqueza anunciada, os municípios com grande potencial agrícola, principalmente aqueles em que a produção da soja se destaca, são considerados prósperos, disseminando a facilidade em “fazer fortuna”. Sendo assim, atraem muitos trabalhadores/as 70

Jornal Nacional. Rede Globo de Televisão: “Em Sorriso, Mato Grosso, a soja é a moeda”. Reportagem exibida em 10/04/2004. MTTV 1ª edição. TV Centro América/Cuiabá/MT: “Eldorados Agrícolas em Mato Grosso – Sorriso e Rondonópolis”. Reportagem exibida em 05/05/2004. Revista Interior: “Mato Grosso. A força da soja na terra das oportunidades”. Várzea Grande/MT, fev/2003. Edição de lançamento p. 25-29. Jornal: FOLHA DE SÃO PAULO: “Sorriso, capital da soja, cresce 13% ao ano”. Caderno DINHEIRO: p. B 9. São Paulo/SP, 14/03/2004. Revista: VEJA: “O ex-patinho feio. Aos vinte anos, Mato Grosso está virando cisne, com recordes de produtividade de soja e algodão”. 01/09/1999. Site UOL: http://www2.uol..com.br/veja010999/p_130.html. Acesso em 16/03/2000. Revista: VEJA: “A Planta que faz milagres. A história de progresso e riqueza escrita pelas lavouras de soja no interior do Brasil”. Revista: VEJA, ano 36, nº 39, p. 78-81, 1º/10/2003. Revista: NATIONAL GEOGRAPHIC BRASIL: “A soja faz fortunas no Mato Grosso” . Nesta reportagem o destaque da “revolução no campo” aponta o município de Sapezal. Pode-se ler o seguinte enunciado: “A odisséia das cidades sojicultoras parece renovar a vocação de Mato Grosso como um território de destemidos, onde a conquista do sucesso sempre esteve acompanhada de desafios”. Ao final da reportagem: “Sapezal é uma cidade em formação, com a poeira vermelha do cerrado ainda se assentando sobre suas 40 ruas (...) o milagre das súbitas conquistas está nas lavouras sem-fim, sobretudo nas que prosperam as vagens viçosas de soja. Fenômeno moderno, dinâmico, Sapezal paira à mercê de mercados internacionais, negócios globalizantes e demandas alimentares – expressões que soam exóticas em meio à lonjura e ao isolamento da Chapada dos Parecis.”. NATIONAL GEOGRAPHIC BRASIL. Edição de aniversário. Maio/2004. p. 26-33. 71 Este texto permite uma associação com o estudo realizado por Karl Marx sobre a acumulação primitiva. Segundo Marx, “essa acumulação primitiva desempenha na Economia Política um papel análogo ao pecado original na Teologia. Adão mordeu a maçã e, com isso, o pecado sobreveio à humanidade. Explica-se sua origem contando-a como anedota ocorrida no passado. Em tempos muito remotos, havia, por um lado, uma elite laboriosa, inteligente e sobretudo parcimoniosa, e, por outro, vagabundos dissipando tudo o que tinham e mais ainda. A legenda do pecado original teológico conta-nos, como o homem foi condenado a comer seu pão com o suor de seu rosto: a história do pecado original econômico nos revela por que há gente que não tem necessidade disso. Assim se explica que os primeiros acumularam riquezas e os últimos, nada tinham para vender senão sua própria pele. E desse pecado original data a pobreza da grande massa que até agora, apesar de todo seu trabalho, nada possui para vender senão a si mesma, e a riqueza dos poucos, que cresce continuamente (...)”. (1998, p.251)

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expropriados que, muitas vezes, sem lugar e sem teto, contam apenas com a sua força de trabalho. Seguem em busca de um lugar em que possam se fixar, de forma a poder proporcionar aos seus familiares uma vida com dignidade. É importante fazer uma reflexão a respeito do texto da reportagem citada. Nunca houve fortuna fácil, o que houve, foram os incentivos governamentais dados aos grupos empresariais que se instalaram, expandindo o capitalismo. Esses grupos não se aventuraram e nem tinham especialização na atividade rural. O dinheiro da SUDAM e dos projetos de ocupação do cerrado e da Amazônia, foram destinados a bancos, mineradoras, empresas de colonização, agropecuárias, agroindústrias, madeireiras, entre outras. Portanto, a pobreza não é resultado do atual fluxo migratório, ela foi produzida pela própria ocupação da área. O avanço do capitalismo na área produziu a expropriação das populações nativas e, posteriormente, a concentração de riqueza, levando à exploração da força de trabalho. Os projetos de colonização produzem excluídos e os incorporam como mão-de-obra barata, no início dos projetos. A concentração de riqueza proporcionada pelo cultivo da soja, em Mato Grosso, tem gerado antagonismos, principalmente no que diz respeito à concentração fundiária. “A tendência é que cresça a alta concentração da propriedade da terra no Brasil”, afirmou Martins (1984). “Pouca gente com muita terra, (...) e muita gente com pouquíssima terra (...)” (Op. Cit, p. 63). O apoio econômico dado pela SUDAM às grandes empresas capitalistas que quisessem estender seus negócios ao campo, particularmente na região amazônica, define uma opção pelas classes dominantes. “(...) O Estado amplia e estende a sua capacidade de repressão ao campo para proteger os interesses que ele próprio estava estimulando”. Martins afirma ainda que, “no que diz respeito à propriedade da terra, a linha desses incentivos é a da concentração da propriedade”.

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Essa tendência à concentração fundiária

tem sido simultaneamente acompanhada por conflitos pela posse da terra. Isso acontece em virtude de as áreas que foram destinadas aos projetos, na maioria dos casos, já estarem ocupadas por posseiros que foram expulsos de outras regiões do Nordeste e até mesmo da 72

Segundo João Mariano de Oliveira (1983). “(...) utilizando-se de mecanismos e de recursos já conhecidos, através dos processos e dos padrões de ocupação e povoamento aplicados desde os tempos coloniais, para darem conta das áreas sobre as quais os interesses do Estado e do capital se voltavam, o Estado, (na euforia do nacionalismo e da ditadura militar) atuou de modo a garantir e a manter os velhos arranjos espaciais - resguardar e proteger a estrutura fundiária existente há mais de quatro séculos; promover o enquadramento da sociedade, especialmente agrária, justificando com isso, a necessidade de conter a geração e/ou a eclosão de novos conflitos e tensões sociais pela terra, bem como, impedir o acirramento dos já existentes. Tudo isso se deu em nome da ordem: da livre expansão do empreendimento capitalista”. A Política de Colonização Agrícola no Brasil (1930 à 1980): o processo de colonização Norte mato-grossense pós-60.

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Amazônia. (MARTINS, 1984, p.68). Ao mesmo tempo em que cresce a concentração fundiária, crescem os conflitos. Em Sorriso, assim como em várias áreas de fronteira agrícola, também ocorreram conflitos pela posse da terra, conforme o relato de memória de um dos primeiros moradores de Sorriso.

(...) Se eles quiserem dizer que isso aqui nasceu numa mina de ouro, tudo bem, eu vou ter que concordar, não posso fazer nada. Agora teve coisas muito fortes, tem muitas história tristes, isso aqui não é só riso e alegria. (...) aqui era o céu, mas tinha um pedacinho do inferno, (...) como acontece em toda cidade boa de desenvolvimento veio o ódio, veio a inveja, veio briga de terra, que ninguém me diga que não houve injustiça por causa de terra aqui, porque houve e é muito clara (...) Eu posso dizer em duas palavras a verdade: a senhora já viu no Brasil uma colonizadora que não teve que apelar? Seria uma exceção (Entrevista de um dos primeiros moradores em Sorriso).73

O relato desse entrevistado é revelador de uma situação que ocorria em várias partes do território amazônico dentre as muitas disputas que caracterizaram a luta pela posse da terra. É exatamente nesse sentido, que Martins (1997), retratou alguns aspectos significativos da multiplicidade na fronteira. Lugar que considera privilegiado para a observação dos conflitos e dificuldades no encontro de sociedades que vivem “no seu limite e no limiar da História” (p.12). Como território de fronteira, Sorriso mostrou-se (desde os primeiros tempos da colonização), lugar de alteridade, de desencontro e de diferentes visões de mundo. Lugar de descoberta do outro, de divergentes concepções de vida; desencontro de temporalidades históricas, o que culmina em situação de conflito social. O entrevistado prossegue em seu relato e nas sendas da memória, vai (re) compondo as lembranças, de repente em meio à narrativa fez uma consideração importante:

Quem quiser fazer um histórico de Sorriso no entendimento do público que é uma família e família é claro que não vai dizer, olha fulano fez isso ou aquilo de errado, faz só o certinho que se for mostrar ao público aí é só fulano de tal era, saiu do bem um dia, tudo bem, um dia a gente sai fora.

Embora a memória do entrevistado tenha retido aspectos reveladores dos conflitos existentes no período inicial da colonização, ele expressou seu ponto de vista afirmando que a imagem que deve ser perpetuada deverá ser uma imagem sem mácula.

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Esta entrevista foi concedida à professora Odila Bortoncello que, gentilmente cedeu à pesquisa a transcrição da mesma em setembro de 2001. Parte da entrevista citada encontra-se publicada em Bortoncello e Dias (2003, p. 198). O nome do entrevistado foi preservado.

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As representações são também portadoras do simbólico, isto é, dizem mais do que aquilo que mostram ou enunciam, carregam sentidos ocultos que, construídos social e historicamente, se internalizam no inconsciente coletivo e se apresentam como naturais, dispensando reflexão. Há no caso do fazer ver por uma imagem simbólica, a necessidade da decifração e do conhecimento de códigos de interpretação, mas estas revelam coerência de sentido pela sua construção histórica datada dentro de um contexto dado no tempo Segundo (PESAVENTO, 2003, p. 41),.

(...) a força das representações se dá não pelo valor de verdade, ou seja, de correspondência dos discursos e das imagens com o real, mesmo que a representação comporte a exibição de elementos evocadores e miméticos. Tal pressuposto implica eliminar do campo de análise a tradicional clivagem entre real e não-real, uma vez que a representação tem a capacidade de se substituir à realidade que se representa, construindo o mundo paralelo de sinais no qual as pessoas vivem (idem, ibidem).

Aqueles que possuem o poder simbólico de dizer e fazer crer sobre o mundo “tem o controle da vida social e expressa a supremacia conquistada em uma relação histórica de forças”. Isto implica que esse grupo vai impor a sua maneira de dar a ver o mundo, de estabelecer classificações e divisões, de propor valores e normas, que orientam o gosto e a percepção, definindo limites e autorizando os comportamentos e os papéis sociais (Op. Cit, p. 41). A história da formação de Sorriso tem sido apresentada, a partir da perspectiva do poder público municipal, da Colonizadora, enfim, têm sido encarada como uma história da “elite”. Uma outra maneira de representá-la, seria uma história escrita através dos relatos dos trabalhadores e trabalhadoras, mulheres e homens pobres que ajudam a compor o quadro da vida social, com papéis definidores de suas lutas e ações. Na tessitura da história (sob a perspectiva) dos trabalhadores/as (posseiros, grupos indígenas), certamente se encontraria aspectos distintos ao compará-la à história escrita sob o ponto de vista da elite local. Quem tem o poder de “dizer e fazer crer” não são os trabalhadores, são as elites locais. As mesmas que preocupam-se em expandir a imagem que atrairá capital financeiro e investimento para a sua área de interesse. Na memória de um dos sócios da Colonizadora estão presentes algumas questões adversas relacionadas à expulsão de posseiros que se encontravam na área adquirida por ele e os demais sócios.

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(...) Quando nós compramos isso aqui que hoje é Sorriso, era 8.000 alqueires, tinha mais ou menos umas duzentas pessoas aqui em cima dessa área, de grileiros. Só que nós compramos de uma firma do Rio de Janeiro, (...) E nós compramos só que limpo, sem ninguém em cima. Eles vieram ali com a justiça e tiraram todo mundo pra fora. (...) tinha tanta criança (...) dava dó de ver um dia de chuva. (...) Pegaram e largaram na beira da Rodovia e mandaram embora. Levaram até uma certa altura e largaram (...) (Entrevista concedida à Odila Bortoncello e cedida para a pesquisa. O nome do entrevistado foi preservado).

Embora o entrevistado classifique como grileiros os ocupantes da área de terra que haviam comprado “de uma firma do Rio de Janeiro”, o relato indica (pela maneira que o entrevistado descreve) que se tratava de posseiros. O relato evidencia a difusão da luta pela terra por todo o espaço nacional. Evidencia também, o caráter violento dos conflitos havidos entre grupos sociais distintos. Por um lado, os grandes proprietários fundiários, por outro, os agricultores que não possuíam uma situação jurídica definida. O caráter desumano é muito presente, sobretudo com a presença da “justiça” que, num dia de chuva expulsa da terra as pessoas que a ocupavam. Havia crianças, não importava, desde que os interesses do grande proprietário fossem garantidos. As ocupações de áreas de terras por grupos sociais denominados posseiros, não têm fim especulativo. Os posseiros entravam em determinadas áreas em busca de subsistência, porque eram expulsos de suas posses anteriores. Diferentemente, o grileiro era um fabricante de títulos, ou seja, um falsificador de títulos de propriedade. As origens populares da palavra são elucidativas. O “grilo” ou “grilagem” das terras, corresponde ao método adotado para a falsificação: “buscavam-se folhas de papel timbrado, imitavam-se escritas e os documentos eram envelhecidos propositadamente (...) guardados em gavetas onde houvesse grilos, a intenção era dar ao documento um aspecto envelhecido” (MONBEIG, 1984). Na expansão das fronteiras agrícolas no Brasil (especialmente na fronteira amazônica), o grileiro possuía um papel central nas áreas de domínio de empresas e fazendas. Ele podia ser um fazendeiro ou um intermediário das empresas ou de uma firma imobiliária (BECKER, 1990b). A partir da expressão: “eles vieram ali com a justiça e tiraram todo mundo pra fora”, outra leitura ainda pode ser feita. Quem eram eles? E que “justiça” seria essa? Seguindo as pistas dadas por ações desenvolvidas para algumas dessas localidades de ocupação recente em Mato Grosso, por justiça, compreende-se a presença de homens armados defendendo interesses de grandes grupos detentores de capital e de grandes áreas de terras. Normalmente quando esse tipo de procedimento ocorre, a situação de conflito já está instalada, já está dada.

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Considerando os deslocamentos de vários grupos sociais para a Amazônia, nas décadas de 50 e 60 do século XX, Octávio Ianni descreveu com precisão a dinâmica do processo de busca e de luta pela terra de posseiros que chegaram em alguns lugares da Amazônia, bem antes da implantação dos projetos de colonização. Os posseiros estão chegando. No sul do Pará, norte de Goiás e Mato Grosso, no Maranhão, Rondônia, Acre, em muitos lugares os posseiros ocupam as terras-dosem-fim. Vindos de diferentes lugares, são muitos os trabalhadores rurais que chegam e ocupam terras devolutas, tribais, de latifúndios. Uns vêm do Nordeste, outros do Sul. De todas as regiões do país vêm trabalhadores rurais e seus familiares para a Amazônia. Em muitos casos, chegam antes dos latifundiários, fazendeiros ou empresários, nacionais e estrangeiros. Outras vezes chegam juntos, misturados, todos buscando terra. Uns para plantar casa e roça e fazer criação; outros para formar fazenda de lavoura, gado, ou gado e lavoura; também aqueles que só querem a terra, a propriedade; e outros, que lidam com o comércio de terra: grileiros, jagunços, pistoleiros. Todos são migrantes, uns para fazer negócios, outros por precisão. Ás vezes mais, ás vezes menos, estão sempre chegando, faz tempo, em muitos lugares (1979, p. 11).

O autor demonstra grande sensibilidade ao relatar a dinâmica da intensa migração para esta região que, ao ser representada de maneira lendária e poética pela imprensa, exerceu influência no imaginário de diversos grupos sociais. Muitos dos que compunham esses grupos eram trabalhadores pobres, vários ocultos sob diversas categorias como garimpeiros, peões ou colonos e tantas outras que se tornam reveladoras da sua diversidade cultural. Aos que se aventurassem a conhecer as longínquas terras-do-sem-fim, para usar uma expressão do autor, a Amazônia “irradiava” a esperança de uma vida mais promissora. Cada um desses grupos tinha a sua motivação específica para a busca de uma área de terra. Todavia não se pode deixar de considerar que esses homens e mulheres, jovens e velhos que se deslocaram para a Amazônia levavam consigo muitos projetos e aspirações. Na bagagem muita esperança de uma vida de fartura e sossego em uma terra imaginária de salvação os impulsionava a seguir viagem. No entanto, no caso dos colonos, reduzir essa “procura” a uma mera questão de busca da propriedade ou da ascensão social é não compreender a dimensão do mito da “terra prometida” no imaginário social de muitos dos grupos que para lá se direcionaram (GUIMARÃES NETO, 2002, p.161). Era necessário fincar raízes, fixar-se. Para as “terras-do-sem-fim”, levavam consigo a confiança de que reconstruiriam suas histórias, recomporiam suas vidas; extrairiam da terra o seu sustento e a manutenção da família. Além do baixo custo das terras, outro fator que não se pode deixar de considerar é a política de povoamento, representada como uma política de integração nacional e valorização

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econômica adotada pelo Estado para as terras da então fronteira Amazônica.74 O depoimento de Nelson Frâncio demonstra a atuação do Estado, que sob a égide da “justiça”, intervêm em favor de proprietários de terras. A questão do conflito pela posse da terra, acontece em todo o País, não apenas nas regiões de fronteira. Entretanto, esses conflitos são mais intensos nas regiões de ocupações recentes (MARTINS, 1984, p. 68). As ações dos grupos de agricultores no Brasil podem ser consideradas como uma expressão de múltiplas formas de resistência e de iniciativas sociais. A reivindicação pela posse de novas terras tem se mostrado a ação mais concreta dessa resistência (LENHARO, 1986; SANTOS, 1994; FERNANDES,

2000; GUIMARÃES NETO, 2002, entre outros).

Esses dois depoimentos, tomados conjuntamente sintetizam vários pontos tratados até aqui. Como exemplo, pode-se citar a idéia de que “os pioneiros se aventuraram”. Não eram pioneiros. Já havia pessoas na área. A expressão “se aventurar” aliada à idéia de que os projetos de colonização que resultaram em algumas cidades em Mato Grosso, nasceram prósperas, predestinadas ao sucesso é um engodo. Nasceram do conflito, geraram (e geram) exclusão. Até mesmo a idéia de que esses projetos serviram para desafogar a pressão sobre a terra no Sul do país precisa ser revista, pois a concentração de terras lá, também aumentou. Se houve sucesso, foi algo efêmero. Em Mato Grosso, os projetos de colonização geraram ocupação desordenada, intensa degradação ambiental, expulsão e extermínio de grupos indígenas, expropriação de comunidades de seringueiros, posseiros e imposição da grande propriedade. Em Sorriso como na maior parte das áreas com agricultura mecanizada (modernizada) em Mato Grosso, mais de 50% da área está apropriada por estabelecimentos com mais de 1000 ha.

TABELA 1 - ESTRUTURA FUNDIÁRIA DO MUNICÍPIO DE SORRISO/MT

Classe de Área Total (ha) De 0 até 100 De 100 até 500 Mais de 500 até 1000 Mais de 1000 até 10000 TOTAL GERAL

Total Imóveis 452 914 297 268 19 31

(%) 23.39 47.33 15.38 13.87 99.97

Área Total (ha) 18.465,70 268.250,30 211.099,20 558.213,50 1.056.028,70

(%) 1,74 25,4 19,98 52,85 99,97

FONTE: INCRA/2000

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Segundo a divisão regional do Brasil, a Amazônia abrange a região Norte (estados de Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima, Amapá Pará e Tocantins), parte da região Centro-Oeste, o estado de Mato Grosso. A outra concepção que define o território amazônico como Amazônia Legal (instituída pelo Plano de Valorização da Amazônia, em 1953), inclui o oeste do Maranhão (GUIMARÃES NETO, op. Cit, p. 19).

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Em Sorriso, as propriedades médias (100 até 500 hectares) concentram 25,4% do total dos imóveis. Os estabelecimentos com mais de 500 hectares detêm 72,83% da área total. A partir dessas informações, pode-se deduzir que, parte dos colonos conseguiu ampliar suas áreas de terra, através de um processo de concentração fundiária que, em geral, se traduz em mobilidade social ascendente.75

O lugar “ideal”

Uma revista editada pelo poder público de Sorriso trouxe na capa o destaque: SORRISO – Terra de prosperidade. Em meio às reportagens, destacou-se a: “Verticalização do Progresso – A cidade de Sorriso começa a ganhar um panorama vertical e aspectos de uma metrópole que começa a despontar em pleno cerrado mato-grossense”. Pode-se ler ainda, o seguinte enunciado: “Traçado moderno: ruas e avenidas bem cuidadas ilustram o cenário urbano de Sorriso, uma cidade tipicamente bonita e agradável para se viver”. A tônica dessa prática de propagandas consiste em divulgar a idéia da força econômica da cidade. Na íntegra: “Alto padrão: casas de estilo arquitetônico arrojado compõe um cenário otimista com relação à economia da região” (SORRISO – 17 anos, 2003, p. 10-11). Nos loteamentos distantes do centro uma situação diversificada pode ser observada. Grande parte das construções residenciais possuem uma parte de madeira e outra de alvenaria, e as casas que são somente de alvenaria estão ainda em construção. Muitas dessas casas apresentam tijolos empilhados em frente ou ao lado demonstrando a intenção de “terminar a casa”, expressão recorrente nos relatos. Alguns se emocionaram ao falar. Relataram que é um verdadeiro sonho realizado poderem receber os familiares para as festas de fim de ano, na “casa nova”76. Vários moradores de alguns loteamentos expressaram sua opinião com relação à sua situação atual, ao se referirem às suas casas: “(...) pra mim isso aqui é barraco (...) pode por sentido em Cuiabá, São Paulo essas capital eles não fala casa de tauba casa, eles fala barraco (...) Casa pra eles tem que ser de material e muito bem feita” (D. Luzia. Nasceu em São Paulo. 52 anos).77 Noutro relato, “(...) Lá em Minas se ocê chegá lá em Minas, se ocê vê uma casa desse 75

A suinocultura é também uma atividade econômica em Sorriso. Teve início em 1991 no médio norte de o, através de cooperativas da região (INTERCOOP) e iniciativa privada. O comércio e a indústria madeireira também cresceram significativamente nos últimos anos (Perfil Sócio Econômico 2000 – Prefeitura Municpal de Sorriso/MT). 76 As entrevistas foram realizadas em setembro de 2001. 77 Moradora do loteamento São Domingos desde 1996.

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tipo lá (silêncio) (...) é paiol”. (Seu Anísio. Nasceu em Minas Gerais e tem 76 anos).78 No início da pesquisa, não se atentou para a importância dos relatos que se referiam às casas de moradia. Mas, à medida que as referências foram se tornando recorrentes, passou-se a dar maior atenção a esses relatos. Alguns entrevistados/as manifestaram insatisfação mesmo morando em casa própria, como é o caso de dona Luzia e seu Anísio. Outros estão insatisfeitos por não possuírem casa “própria”, vivendo “de aluguel”. Seu Manoel Messias que foi morar em Sorriso em 2001, em seu relato evidenciou a insatisfação de, aos sessenta e um anos, depois de muito ter trabalhado não viver em casa própria. Conforme seu relato:

(...) pra interar nem casa eu não tenho, pago aluguel desse barraco aqui .... eu toda vida vivi a minha vida, pago aluguel durante três vezes na minha vida, uma vez foi em São Paulo, uma vez em Rondônia e agora, toda a vida eu dei meu jeito, construía uma casa, outra hora eu tomava de conta de ... coisa de algum ... alguma sede ... tratava com gente tal e tal (...).

À medida que a referência à casa foi se tornando freqüente, foi preciso fazer uma melhor reflexão para tentar entender o sentido das narrativas. Assim, os relatos confirmaram que a casa é o bem mais importante. A casa é o território onde se desdobram e se repetem dia a dia os gestos elementares das “artes de fazer”. O espaço doméstico é o local “em que a gente se sente em paz”. É um espaço privado (CERTEAU, 2002, p. 203). Segundo o autor, a casa é o local de refúgio depois de um dia de trabalho. Na casa, trabalha-se apenas o necessário. Cuida-se da nutrição, do entretenimento e da convivialidade que dá forma humana às sucessões dos dias e à presença do outro. Nela, os corpos se lavam e se embelezam, as pessoas se encontram, se perfumam, se abraçam e se separam. O corpo doente encontra refúgio e cuidados, provisoriamente dispensado de suas obrigações de trabalho e representação no cenário social. Neste espaço privado, pode-se:

Convidar os amigos, os vizinhos, evitar os inimigos, o chefe do trabalho, por tanto tempo quanto permite a frágil barreira simbólica entre o privado e o público, entre uma convivialidade eletiva, regrada pelos indivíduos, e uma socialidade obrigatória, imposta pelas autoridades (p. 206).

Enquanto território privado, a casa revela muito da personalidade de seus ocupantes. Fala através dos objetos dispostos pelo espaço interno. De maneira indiscreta, o habitat é revelador das ambições sociais de seus ocupantes ao confessar sem disfarce o nível de renda.

78

Morador do loteamento São Domingos desde 1996.

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“Tudo nele fala sempre e muito: sua situação na cidade, a arquitetura do imóvel, a disposição das peças, o equipamento de conforto, o estado de conservação” (p. 204). Michel de Certeau discute com aguçada sensibilidade o espaço doméstico, principalmente quando afirma que:

Nossos habitats sucessivos jamais desaparecem totalmente, nós os deixamos sem deixa-los, pois eles habitam, por sua vez, invisíveis e presentes, nas nossas memórias e nos nossos sonhos. Eles viajam conosco. No centro desses sonhos, aparece muitas vezes a cozinha, aquele “compartimento quente” onde a família se reúne, teatro de operações das “artes de fazer” e da mais necessária entre elas, “a arte de nutrir” (p. 207).

De fato, as memórias de alguns entrevistados, guardam ainda os espaços internos das casas que habitaram noutros tempos. Algumas vezes, ouviu-se nas narrativas a descrição da cozinha da antiga morada que comparada à da casa atual era “diferente”, às vezes era descrita como menos espaçosa, às vezes, “maior que essa”. Mas a memória da casa “antiga” sempre surgia em meio às lembranças. As casas dos loteamentos em Sorriso, não se comparam às do núcleo central. Modestas revelam a singeleza e a situação sócio-econômica de seus ocupantes. Dentre o acervo de fotografias formado desde o início da pesquisa em 2000, foram selecionadas duas em especial. Elas retratam um loteamento distante do núcleo central de Sorriso e foram tiradas em setembro de 2001. Os loteamentos (localizados à direita da BR 163), apresentavam uma situação semelhante em relação ao aspecto físico: as casas e as ruas.

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Fotografia 2 – Vista parcial do loteamento Vila Bela – Sorriso/MT

Vista do Loteamento Vila Bela. Setembro de 2001 Acervo da Pesquisa RCC

Fotografia 3 – Vista parcial do loteamento Vila Bela – Sorriso/MT

Vista do Loteamento Vila Bela. Setembro de 2001 Acervo da Pesquisa RCC

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Nesse caso da fotografia dos loteamentos, podem ser consideradas as observações anteriores relativas tanto ao aspecto iconográfico quanto ao aspecto iconológico da análise desta fonte documental. O aspecto específico que se intenciona mostrar está diretamente relacionado à diferença existente entre o núcleo central de Sorriso e os loteamentos localizados na periferia da cidade. Se não houve intervenção do fotógrafo na imagem e em sua configuração no que diz respeito aos recursos técnicos (materiais e produtos específicos fornecidos pela indústria fotográfica), a imagem registrada passou por uma certa filtragem a partir do momento da escolha do ângulo a ser retratado. Houve a seleção de um lugar em particular.

A dinâmica do processo migratório

Braido (1980, p. 21), afirma que a migração contribuiu para o aumento das periferias das cidades e da favelização. Tornou mais graves os problemas da violência, da prostituição, dos divórcios, do abandono de menores, do subemprego e do desemprego.

Favorece o aviltamento dos salários e a grande rotatividade de mão-de-obra nas empresas, por causa da grande oferta. (...) Nas frentes agrícolas pioneiras surgem tensões sociais e conflitos pela posse da terra (...) No plano familiar, gera-se freqüentemente a desagregação da família (...).

De acordo com o que afirmou a autora, observou-se durante a pesquisa empírica que muitos homens migram antes, em busca de trabalho e/ou terra para, posteriormente, buscar a família em seu local de origem. Entre os que migraram recentemente para Sorriso, especificamente para os loteamentos distantes do núcleo central, muitos não conseguiram ainda um emprego e algumas crianças estão fora da escola. São situações bem distintas. A dos primeiros migrantes, que em grande parte conseguiram uma mobilidade social ascendente e os mais recentes que, no entanto, continuam a lutar pela subsistência. Entre os meses de setembro e outubro de 2001, apesar de contar com muitos alunos matriculados, havia uma intensa procura de vagas nas escolas desses loteamentos, em decorrência da migração, indício de um fluxo migratório contínuo. As escolas tornam-se um local apropriado para se observar aspectos relacionados à migração que ocorre para Sorriso. Uma das professoras da Escola São Domingos relatou:

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(...) recebemos em média por semana dez a doze matrículas novas”.79 O deslocamento das famílias dentro da própria cidade gera uma migração interna constante: “(...) o pipocar de uma escola pra outra, o povo sai de um bairro vai pra outro, volta...(...) então é uma grande dificuldade trabalhar. Não tem vaga, as salas estão super lotadas mas a gente não pode deixar ninguém fora (...).

A evasão escolar ocorre ao longo de todo o ano.

(...) a evasão é muito grande, em função de... às vezes emprego, a necessidade da família e também a desistência em função do número incerto de mudança por ano. Duas três vezes muda de bairro, e vai se perdendo, se chega um ponto que não tem documento de escola nenhuma ou vai pra municípios próximos e retorna também duas vezes, ou três por ano, se perde muita criança, eles desistem, eles retornam. (Professora na Escola São Domingos)80

Embora o poder público esteja ciente das dificuldades enfrentadas por esses grupos sociais, a dinâmica do processo migratório, muitas vezes, dificulta a ação.

Aqui na Escola, (...) a gente não tem a documentação, mas a gente (...) liga pro Conselho81,(...) que nos auxilia muito na questão de documento, manda buscar no Maranhão que nosso maior problema é o Maranhão, o pessoal vem sem nada, sem nada, (...), eles não têm documento, então o Conselho entra em contato (...) com a Promotoria de lá, tenta trazer documentação pra nós, certidão de nascimento quando têm, quando não têm eles procuram mobilizar a família pra que consiga essa documentação. Nós regularizamos aqui na escola a vida de muitas famílias que não tinham documento nenhum, nem certidão de nascimento (...), nós temos muitas crianças de Peixoto com muitas irregularidades documentais e o Maranhão nossa, é um caos total, caos total (...). (...) a escola faz um trabalho social também, onde encaminhamos pra médico... encaminhamos pra oftalmologista... tentamos quando a família não pode comprar o óculos a gente vai atrás dos fundos de serviço que nos auxiliam também, então... a gente faz esse trabalho (Professora - Escola São Domingos).

Esses aspectos apresentados fazem parte da diversidade de experiências vivenciadas por grupos sociais distintos no mesmo espaço representado como “lugar ideal para se viver” e que são, muitas vezes, silenciados no cenário das representações. Para vários professores/as, a migração causa transtornos na escola, principalmente quando há a procura de vagas após o término do período de matrícula. “(...) tem bastante dos alunos que estão em idade escolar e não estão na escola, e vem aqui às vezes, uma criança (...)

79

Entrevista gravada em setembro/2001. Entrevista gravada em setembro/2001. 81 Conselho Tutelar

80

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em final de setembro, que não estudou ainda (...)”82 (Professor – Escola Vila Bela). Outra causa de preocupação para a escola, refere-se ao nível de aprendizagem:

(...) o nível de aprendizagem dessas crianças que estão chegando, principalmente desses Estados do Norte e Nordeste, é baixíssimo (...) existem alunos que estão chegando agora83, que estão numa terceira série, por exemplo, que o nível ainda é de primeira e segunda série (...) vem pra cá, ás vezes com notas altas, aí já se tem outra problemática, como é que vai reprovar esse aluno? Como é que vai fazer pra recuperar? (...) Causa problema de documentação, causa problema de aprendizagem, causa problema de adaptação (...). (Professor – Escola Vila Bela)

Para solucionar essas questões de aprendizagem e de adaptação do aluno o professor explicou que, (...) no começo do ano a gente procura aplicar prova especial, procura adaptar a idade escolar do aluno (...) queira ou não queira, o aluno se sente mal, influencia na aprendizagem. Então no começo do ano, geralmente, se faz uma aplicação dessas provas especiais e procura adaptar o aluno à série, mais isso no começo do ano, quem vai entrando agora, (...) a gente não pode fazer isso (...).

Uma situação inversa à que foi apresentada pelo professor da escola Vila Bela, ocorria, no momento da pesquisa, em 2001, em relação aos alunos da escola São Domingos.

(...) fazem provas especiais porque eles estudavam naquelas escolinhas do interior onde a família era responsável, pagava alguém da comunidade pra dar aula, daí eles não têm documento nenhum, apesar deles terem conhecimento, saber ler, escrever, ter o conhecimento pra série que eles dizem que freqüentou lá, mas não têm nada registrado (...).

O objetivo das provas especiais é adaptar o aluno às séries, de acordo com a idade, Alguns passam por avaliação para acompanhar a série para a qual procuram vaga, com o objetivo de evitar, por exemplo, uma turma de primeira série, com crianças de diferentes faixas etárias. No bojo de uma multiplicidade de sentidos que ocorrem na “cidade que cativa e impressiona aqueles que tem sonhos e muitos planos (...) cidade ideal para quem quer fazer a vida”84, as escolas dos loteamentos da periferia de Sorriso se constituíram em um lugar mais que apropriado para se observar as ambigüidades da “capital da soja”.

82

Entrevista gravada em setembro/2001.

83

Setembro de 2001. Data da entrevista.

84

Folheto de propaganda produzido pela Colonizadora Feliz. Sorriso/MT, 2004.

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Um dos entrevistados residentes no loteamento São Domingos expressou sua opinião sobre a cidade: “(...) A sorte que a cidade diz que é rica, mas no mesmo instante é pobre... pra quem é pobre é pobre de verdade (...)”. O relato sintetiza bem o que o capítulo intencionou apresentar. A expressão dos extremos. A imagem traz a mensagem de “lugar ideal”, “cidade feliz” e tantas outras. Isso depende muito do ponto de vista. É possível que os produtores rurais, o poder público, as forças políticas de modo geral, a representem dessa forma. Para os trabalhadores despossuídos, a realidade é dada a ler de outra maneira. Nesse sentido, Sorriso torna-se cidade dos extremos no relato do entrevistado, que afirmou “a cidade diz que é rica, mas no mesmo instante é pobre...”. A sutileza do processo de exclusão, da maneira como é retratada por Ítalo Calvino em Cidades Invisíveis (1990), é que ele é também um processo de inclusão.

A cidade aparece como um todo no qual nenhum desejo é desperdiçado e do qual você faz parte (...) se você trabalha oito horas por dia e recebe um salário que mal dá para comer, a fadiga que dá forma a seus desejos, toma dos desejos a sua forma e você acha que está se divertindo em Anastácia, quando não passa de seu escravo (p. 16).

Assim, exclusão e inclusão são dois pólos do processo de inserção social injusta. O morador excluído do direito de usufruir dos bens e serviços da cidade onde mora é incluído nela subjetiva e intersubjetivamente, através da “participação imaginária” ou “cidadania sublimação” (SAWAIA, 1995, P. 22). A intenção no capítulo seguinte é apresentar um pouco mais a dinâmica da vida de alguns trabalhadores e trabalhadoras, que se deslocaram para Sorriso em busca de um futuro promissor e lá residem. Serão enfocadas suas experiências, suas vivências. Os relatos mostram as práticas e representações de mulheres e homens, ex-trabalhadores/as rurais que, ao longo de suas vidas, acumularam experiências e concordaram em narrar suas histórias de vida, descrevendo suas ações, estratégias e táticas de sobrevivência.

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Capítulo III – O “EU” E O “OUTRO”: A MULTIPLICIDADE NA FRONTEIRA

Dentre os vários estudos sobre a colonização dirigida na Amazônia, torna-se de extrema importante nesta pesquisa, destacar o de José de Souza Martins (1997). O autor fala de sua experiência ao estudar as frentes pioneiras no Brasil. Esteve em diferentes pontos da região Amazônica: no Acre, em Rondônia e em Mato Grosso. Observou que “as concepções centradas na figura do pioneiro deixam de lado o essencial, o aspecto trágico da fronteira, que se expressa na mortal conflitividade que a caracteriza” (p. 15). Considera que o desencontro genocida de etnias e o radical conflito de classes sociais são contrapostas, “não apenas pela divergência de seus interesses econômicos, mas sobretudo pelo interesse histórico que as separa” (Idem). O autor afirma que,

(...) a fronteira é essencialmente o lugar da alteridade. É isso que faz dela uma realidade singular. À primeira vista é o lugar do encontro dos que por diferentes razões são diferentes entre si, como os índios de um lado e os civilizados de outro; como os grandes proprietários de terra, de um lado, e os camponeses pobres, de outro (...) (Op. Cit, p. 150).

Talvez, por analogia, considerando o tempo histórico distinto, as cidades de fronteira, das quais fala Guimarães Neto (2000) 85, apresentam, também, esse encontro com o outro. Durante a realização da pesquisa empírica, em setembro de 2001 foi possível verificar que Sorriso, nos últimos anos, passou a receber migrantes de outras regiões do Brasil. Estes migrantes possuíam uma origem diferenciada da origem dos primeiros povoadores, que vieram, principalmente do Sul (Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná). Muitos que se fixaram em Sorriso mais recentemente, são oriundos do Nordeste, dentre esse grupo, predominam os originários do Maranhão.86 Vários migrantes (independentemente do local de onde vieram), que foram entrevistados para esta pesquisa, relataram que já vivenciaram alguma situação de estranhamento na cidade. Em busca de trabalho e melhores condições de vida, em alguns casos, encontram apenas trabalho temporário.

85

A autora estuda os novos núcleos urbanos da Amazônia, em especial algumas cidades localizadas na fronteira norte-matogrossense. Seu objeto de estudo são os movimentos históricos mais recentes que determinam a dinâmica das desterritorializações e (re) territorializações dos espaços da Amazônia Matogrossense. 86 Dos migrantes originários do Nordeste do Brasil, o último Censo Demográfico IBGE/2000, registrou que em Sorriso 0,32% são do Piauí; 0,41%, do Ceará; 0,16%, do Rio Grande do Norte; 0,36%, da Paraíba; 0,30% de Pernambuco; 0,03% de Alagoas; 0,07% de Sergipe; 0,87% da Bahia; e do Maranhão, 4,83%, o maior índice. Fonte: IBGE/2000.

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Nas “cidades de fronteira”, pode-se destacar a figura de alguns “trabalhadores temporários”, algumas vezes caracterizados como “pés inchados”. São denominados dessa forma por causarem inquietude e medo, pois se alojam no interior e ao redor das novas cidades. Algumas vezes, esses trabalhadores são vistos na condição de alcoólatras alojando-se nas praças e rodoviárias das cidades e, principalmente, são assim denominados, por se deslocarem de uma cidade a outra (GUIMARÃES NETO, 2000, p. 188). 87 Esta autora considera que,

(...) devemos estar atentos às representações do mundo social, refletindo, sobretudo sobre os tempos presentes, diante de uma realidade aparentemente civilizada, mas que não pode ocultar um cenário em que aparecem silenciosas figuras mutiladas e degradadas utilizadas pelas frentes de trabalho (...) (idem, ibidem).88

Em busca de trabalho, muitos homens e mulheres se deslocaram e se deslocam em direção a Sorriso. Durante a pesquisa empírica em setembro de 2001, foi possível encontrar alguns desses trabalhadores pelas ruas. Haviam, naquela ocasião, chegado em um ônibus lotado pela prefeitura de um município próximo de Sorriso. Alguns se encontravam na condição de pedintes. As cidades que despontaram recentemente em Mato Grosso, sobretudo Sorriso, mesmo amplamente representada como “paraíso” revela alguns problemas da sociedade capitalista, no mundo globalizado.

As cidades, como suportes materiais e tecnológicos da economia de mercado, engendram e garantem um determinado nível de mobilização das mercadorias e de tudo que possa ser comercializável, além de todo um conjunto de informações necessárias à regulação do corpo social. (...) Tal situação implica políticas de controle sobre as populações pobres procurando excluí-la do acesso à terra e às riquezas (...) Configura-se aí uma realidade social complexa, apreendida em movimentos simultâneos e diferenciados de ocupação (mobilidades contestadoras), na qual se destaca a existência de homens e mulheres destituídos de qualquer meio de subsistência (...). (...) as novas cidades que aglutinam esse tipo de população em seu perímetro urbano, ou mesmo próximo a ele (as áreas rurais que gravitam em torno dessas cidades) já nascem velhas, reproduzindo modelos urbanos carcomidos, revelando desde já os problemas da sociedade capitalista globalizada, agudizados em regiões em que o direito à vida e à propriedade tem poucas garantias (GUIMARÃES NETO, 2000, p. 183).

A autora prossegue afirmando que o norte de Mato Grosso constitui-se em território de

87

Cerutti (2004), discute de forma ampla, a questão do deslocamento social e trabalho temporário, em Primavera do Leste, Mato Grosso. 88 Guimarães Neto refere-se neste aspecto de seu estudo, à cidade de Juína em Mato Grosso.

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uma população nômade, que ela caracteriza como desterritorializada, que se desloca num vaivém contínuo, dos garimpos de Alta Floresta, Peixoto de Azevedo e Juína e, muitas vezes, fazem o caminho de volta, e outras voltam para lugares diversos. Em Sorriso, constatou-se durante a pesquisa que houve muitos trabalhadores/as que se deslocaram das áreas de garimpos. Alguns foram para Sorriso diretamente. Outros, passaram por diversas cidades, antes de se fixarem em Sorriso. Diversos ainda, se deslocaram de outros estados para as novas cidades de Mato Grosso, com o objetivo de trabalhar na agricultura, passando antes por algumas áreas de garimpos, onde tiveram que aprender a garimpar. (...) as trajetórias das populações são mais imprevisíveis, (...) atendem a necessidades que fogem aos interesses monopolizadores dos poderes públicos, pois (...) trabalhadores pobres, homens e mulheres comuns, são dotados de poder de ação, com capacidade de iniciativa para transformar suas condições de vida, negando-se, portanto qualquer idéia de passividade. (GUIMARÃES NETO, Op. Cit, p. 183-184).

Conforme a autora, esses homens e mulheres não devem ser vistos como que “reagindo”, sucumbidos pela força arrasadora das grandes crises sociais ou à mercê dos desmandos dos proprietários. Para a autora, é importante lembrar que “(...) os deslocamentos impõem um extraordinário esforço de adaptação da vida social, implicando a criação de outras formas de ambiente construído” (Idem, ibidem). Seu Edílson, um dos entrevistados que foi para Sorriso em 1982 ao comparar a atual situação com a anterior, dos primeiros tempos da chegada, declarou que a cidade teve sua população aumentada e, em função disso, “o serviço ficou muito escasso”, quando sua família chegou em Sorriso, chegavam a “dispensar serviço”. A situação atual é outra: Evoluiu demais então daí o serviço ficou muito escasso entendeu, que naquela época (ênfase) a gente quando não queria trabalhar por motivo do cansaço entendeu, a gente... dispensava serviço, digamos assim num final de semana entendeu chegava os patrão aí “menino ó chegou 5, 6 carretas de produtos na fazenda vamos ter que ir”, ah patrãozinho manda os meninos lá pro posto e deixa nós dar uma descansada. E hoje a gente fica exposto aí a procura do que fazer e não se acha porque evoluiu demais é muita gente, então a concorrência no serviço perdeu também de uma certa maneira (...) por um motivo do ... do inchaço que a população rendeu, cresceu demais, e... passar fome ninguém quer, tem que dar um jeito, por uma razão ou outra tem que se defender então foi esse o problema porque a gente pode até discutir sobre o assunto mas ... porque ... eu sou um pai de família, eu preciso botar o pãozinho na mesa pros meus filhos, mas os outros pais de família também precisam (...).

No relato de seu Edílson há duas importantes questões que merecem ser consideradas.

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Primeiro, que o aumento de força de trabalho faz aumentar a concorrência entre os trabalhadores; segundo, a mecanização diminui a oferta de trabalho – “serviço”. Para além das constatações citadas acima, o pão que o pai de família precisa pôr na mesa para os filhos, adquire, no relato de seu Edílson, uma dimensão real e metafórica. Não é apenas ao pão que seu Edílson está se referindo. Sua preocupação de não deixar faltar o pão na mesa para os seus filhos pode ser entendida como o não deixar de prover a subsistência de sua família, proporcionando-lhes as condições mínimas vitais para a manutenção da vida em seu sentido mais pleno. Afinal, cabe ao pai de família, a responsabilidade de prover a moradia, a alimentação, de uma maneira geral, o sustento da família. A inquietude em oferecer o pão na mesa para os seus filhos traduz-se ainda, na narrativa de Seu Edílson, em sabedoria. Ao dizer “eu preciso botar o pãozinho na mesa pros meus filhos, mas os outros pais de famílias também precisam”. Uma sabedoria adquirida na experiência. Seu relato está a evidenciar sua solidariedade para com os demais pais de família, pois para o seu Edílson, compete ao pai a manutenção da família. Prosseguindo na entrevista seu Edílson declarou:

(...) o que eu realmente não concordo é que vem esses forasteiros entendeu, e eles vêm fazem a vida aqui e ao invés de deixar uma boa parte aqui eles retornam pra seus redutos pra suas terras natais entendeu, então só vem de ano em ano (...) (Sr. Edílson, entrevista citada).

O entrevistado está se referindo aos trabalhadores que, se deslocam para Sorriso em busca de trabalho temporário. Esses trabalhadores são classificados por ele como “forasteiros”, ou seja, o “outro”. Há para seu Edílson, uma situação de não compatibilidade dos habitantes do local em relação aos trabalhadores que vem de outros lugares, por ele classificados como “forasteiros”, que “só vem de ano em ano”. Na perspectiva de Kathryn Woodward, (2003, p. 46) “(...) A produção da identidade do “forasteiro” tem como referência a identidade do “habitante do local”. Esta diferença pode ser construída negativamente – por meio da exclusão e da marginalização daquelas pessoas que são definidas como “outros” ou “forasteiros” (Op. Cit).89

89

Segundo Woodward (2003, p.39-40)), as identidades são fabricadas por meio da marcação da diferença. Essa marcação da diferença ocorre tanto por meio de sistemas simbólicos de representação quanto por meio de formas de exclusão social. Para esta autora, a identidade não é o oposto da diferença: a identidade depende da diferença. Nas relações sociais, essas formas de diferença (a simbólica e a social) são estabelecidas, ao menos em parte, por meio de sistemas classifacatórios. Um sistema classifcatório aplica um princípio de diferença a uma população de uma forma tal que seja capaz de dividi-la (e a todas as suas características) em ao menos dois grupos opostos – nós/eles; eu/outro. Essas questões são amplamente discutidas no estudo etnográfico de Elias & Scotson (2000).

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O entrevistado que classifica os trabalhadores temporários como “forasteiro”, não pertence a nenhum dos grupos que exercitam o poder. Ele próprio possui uma origem diferenciada dos primeiros povoadores, em geral agricultores e alguns pertencentes ao grupo que iniciou a colonização. O entrevistado não pertence à “elite fundadora” de Sorriso e, no entanto, o discurso do “pioneiro” e do “forasteiro” é tão intenso que vai, aos poucos, envolvendo e sendo interiorizado pelos grupos menos favorecidos do local. Esse discurso reforça a idéia de homogeneidade e mesmo aqueles que não fazem parte de grupos em destaque no município, se representam como fazendo parte de “de uma grande família”. Quando chegou em Sorriso em 1982, o entrevistado, trabalhava como “catador de raiz”. Um trabalho que tem se tornado “escasso” em Sorriso em conseqüência da mecanização agrícola. Pode-se pensar ainda, que no final da década de 1970 e início dos anos 1980, a mãode-obra de trabalhadores como o seu Edílson, era necessária, e eles, ao chegarem à área, não se deparavam com resistências. Com o avanço da modernização agrícola, diminuiu a oferta de trabalho não qualificado (não há interesse pelas pessoas, mas sim pela sua força de trabalho quando a mesma é necessária). Reforça-se, então, o discurso do “invasor”, “intruso”, “forasteiro” e, conseqüentemente, há uma depreciação do seu trabalho. Todavia, os trabalhadores e trabalhadoras que buscam trabalho temporário, são também, no entendimento do entrevistado, pais e mães de família que estão em busca de colocar o pão na mesa para os seus filhos. A questão é ambígua. Por um lado, a presença desses trabalhadores é estimulada inclusive, pelas campanhas publicitárias (mídia) que enaltecem o município e pela elite local como um mecanismo de controlar o curso da mão-deobra via aumento da oferta. Por outro, os trabalhadores temporários são considerados “forasteiros”, tanto do ponto de vista da ordem que se representa como dominante, ou por aqueles que já estão estabelecidos em papéis que permitem exercitar o poder, quanto pelos trabalhadores locais, ao disputar o mercado de mão-de-obra com os mesmos. A alteridade em destaque no estudo de Martins (1997), em que o autor discute aspectos da multiplicidade ocorrida em áreas de fronteira é, na opinião desse autor, às vezes, subestimada e negligenciada pelas ciências humanas. O autor toma a fronteira como lugar privilegiado da observação e do conhecimento sobre os conflitos e dificuldades próprios da constituição do humano no encontro de sociedades que vivem no seu limite e no limiar da história.

Refiro-me à alteridade e à particular visibilidade do Outro, daquele que ainda não se confunde conosco nem é reconhecido pelos diferentes grupos sociais como

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constitutivo do Nós. Refiro-me, também, à liminaridade própria dessa situação, a um modo de viver no limite, na fronteira, e às ambigüidades que dela decorrem (Op. Cit, p. 12).

A fronteira é o lugar onde se pode observar melhor como as sociedades se formam, se desorganizam ou se reproduzem. Na fronteira, se vê melhor quais são as concepções que asseguram esses processos e lhe dão sentido. Na fronteira o homem não se encontra – se desencontra. O estudo de José de Souza Martins (1997), enfoca a diversidade na fronteira, onde é clara a heterogeneidade. Para esse autor importa, entre outras questões, destacar o conflito que ocorre, seja pela posse da terra, seja pela heterogeneidade (e interesses específicos) dos grupos que se confrontam.

(...) o conflito faz com que a fronteira seja essencialmente, a um só tempo, um lugar de descoberta do outro e de desencontro. Não só o desencontro e o conflito decorrentes das diferentes concepções de vida e visões de mundo de cada um desses grupos humanos. O desencontro na fronteira é o desencontro de temporalidades históricas, pois cada um desses grupos está situado diversamente no tempo da História (Idem, p. 150, 151).

Para esse autor, longe de ser o território do novo e da inovação, a fronteira se revela enquanto território da morte e lugar de renascimento e/ou maquiagem dos arcaísmos mais desumanizadores. A fronteira só deixa de existir quando o conflito desaparece, quando os tempos se fundem, quando a alteridade original e mortal dá lugar à alteridade política, quando o outro se torna a parte antagônica do nós. Para o autor, a grande transfiguração produzida pela fronteira, de certo modo definidora da sua singularidade temporária e histórica: tempo e espaço se fundem no espaço-limite, concebido simultaneamente como tempo-limite. “A história do recente deslocamento da fronteira é uma história de destruição. Mas é também uma história de resistência, de protesto, de sonho e de esperança” (MARTINS, Op. Cit, p. 147). Resistência de milhares de trabalhadoras e trabalhadores pobres que, num vaivém contínuo, se deslocam em busca de melhores condições de vida e trabalho. Na história de vida desses homens e mulheres (embora residam no núcleo urbano), há um sentimento de esperança, traduzido na busca por uma área de terra em que seja possível se fixar com sua família. Nos loteamentos da periferia de Sorriso, vivem muitos trabalhadores e trabalhadoras que exercem o seu ofício no núcleo central da cidade. Muitos deles são ex-trabalhadores rurais que, encontram-se em condição de trabalhadores urbanos. Parte deles fixaram-se em

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Sorriso após o início de 1990, provenientes de áreas em que se dava a decadência do garimpo. Grande parte dos trabalhadores que migraram para Sorriso após a decadência das áreas de mineração são oriundos de regiões as mais diversas do Brasil, sobressaindo-se os originários da região Nordeste. Muitos desses atores sociais possuem uma origem de trabalho com agricultura. Alguns são netos de agricultores, filhos de agricultores ou mesmo, extrabalhadores rurais que já haviam migrado para Mato Grosso num período anterior.

Múltiplas tramas: experiências e vivências da vida social Durante o andamento do trabalho, à medida que ocorria o deslocamento para o campo da pesquisa, num ínterim entre as entrevistas, o tempo de transcrição e o debruçar sobre a bibliografia, foram aparecendo questões que inicialmente, não estavam nos planos do projeto que daria origem a esta dissertação. Isso causou angústias e inquietações. Eram questões que não estavam nos planos iniciais da pesquisa, porém, diante da insistência em que foram aparecendo nos relatos, foi impossível ignorá-las, foi inevitável deixar de abordá-las. O que se refere aqui, diz respeito às “memórias de estranhamento”90, relatadas por alguns entrevistados e entrevistadas. Os relatos compilados, além de expressar opiniões sobre o lugar em que vivem, informam sobre algumas experiências vivenciadas pelos entrevistados e entrevistadas, que em ocasiões as mais diversas, vivenciaram alguma situação de embate na cidade. Tornou-se então urgente, abordar essas memórias e trazê-las para a escrita, pois expressam a dimensão das experiências diárias dos entrevistados. Para fazer avançar a problematização em torno das memórias de estranhamento, o estudo de Laverdi (2003), foi inspirador. Revelando grande sensibilidade no trabalho com as fontes orais, o autor aborda as memórias de estranhamento sob a perspectiva de como os entrevistados, a partir delas, articulam novos sentidos, novas maneiras de construir suas alteridades no mundo social em que estão inseridos. As memórias não afirmam um passado congelado do estranhamento, mas muito dinâmico ao fazer-se dos sujeitos na reconstrução de suas vidas. Noutras palavras, é impossível falar dos estranhamentos da mesma maneira tal como um dia supostamente foram vividos. Muito mais importante que isso, é preciso atentar ao modo como articularam novos viveres e estratégias na construção de suas alteridades no interior da classe. De outra maneira, também, é preciso atentar que as memórias do estranhamento compõem novos sentidos políticos, com os quais buscam expressar os significados e a importância de suas trajetórias para esse meio social (LAVERDI, 2003, p. 134). 90

Este conceito foi extraído do estudo de Laverdi (2003).

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Em Marechal Cândido Rondon, no Paraná, Laverdi (op cit), fez um estudo que objetivava entender a formação (a tentativa, ao menos), de através da mídia, fazer proliferar a idéia de uma “memória hegemônica” naquele município. Segundo Laverdi:

Era digna de destaque a circulação variada de jornais, revistas, cadernos comemorativos, folders de turismo e alguns outdoors de propaganda, que destacavam as qualidades de Marechal Cândido Rondon, considerada “a cidade mais germânica do Paraná” ou “a terceira em qualidade de vida do estado do Paraná” (Idem, p. 14).

O autor, ao longo se sua tese, aponta as ambigüidades e contradições dessa pretensa memória hegemônica ao revelar os embates existentes entre os grupos sociais diversos que habitam o espaço urbano. Há em Marechal Cândido Rondon uma nítida divisão no quadro que compõe a paisagem social. Segundo ele, é recorrente ouvir-se as expressões: “você não é daqui?”, ou “você é de fora?” Isso foi o que mais lhe chamou a atenção na fase inicial da pesquisa. Além dessas constatações diz o autor: “a mais contundente e artificialesca era a tentativa de constituição de uma memória única, ancorada na afirmação de uma identidade germânica” (Idem, p.15). É interessante o estudo de Laverdi, sobretudo quando o autor mostra que em Marechal Cândido Rondon, não há grupo identitário coeso, embora seja essa a idéia que se pretende disseminar. No que diz respeito a Sorriso há também uma tentativa de se disseminar a idéia de uma memória hegemônica ancorada na perspectiva de uma colonização de “gente do sul” com “vocação para mexer com a terra”. Porém, tal como ocorre em Marechal Cândido Rondon, no Paraná, em Sorriso não há grupo identitário coeso. Na tentativa de dar voz àqueles, cujas memórias, não aparecem no discurso oficial e levando em conta que a memória retém o que significa, decidiu-se por trazer alguns relatos, significativos no sentido de mostrar as experiências relacionadas ao estranhamento, vivenciadas por alguns atores sociais no município de Sorriso. Considerando que a opção teórica não deve preponderar sobre os interesses da pesquisa na vida social dos entrevistados e sobre o papel que exercem, a exigência dos mesmos de não terem seus nomes divulgados, será atendida. Metodologicamente, optou-se por trazer alguns relatos considerados significativos, no sentido de apresentarem, por parte dos entrevistados, a experiência por eles vivenciada. O universo de vida desses trabalhadores e trabalhadoras, cujas trajetórias migratórias são

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bastante variadas, é fortemente marcado por uma luta cotidiana por trabalho e pela sobrevivência, material e social, levando em conta que “o individual é indissociável do social” (ELIAS, 1994, p. 151). Para desenvolver a problematização dos relatos, serão adotadas iniciais fictícias para cada um dos entrevistados/as. O desafio seguinte será o de buscar entender e explicar os limites e as possibilidades em embate, considerando que as narrativas podem trazer subsídios para trabalhar melhor a complexa dinâmica da realidade social (KHOURY, 2001) Dos relatos de alguns entrevistados emergiram, muitas vezes, memórias de estranhamento, de embate. Em torno de uma discussão metodológica no trato com essas memórias apresentadas, considerou-se importante a observação feita por Laverdi, especialmente quando o autor afirma: Definir o melhor tratamento metodológico a ser dado às lembranças do estranhamento foi um trabalho que passou por longos e demorados desvios. O maior e mais contundente deles foi o do problema da vitimização dos sujeitos investigados. É preciso sublinhar, nesse sentido, que os depoentes rememoraram os estranhamentos provocados por uma proposta de pesquisa acadêmica que, por sua vez, somente foi viabilizada pelo estabelecimento de laços de confiança construídos ao longo do tempo, mesmo que mínimo, de convivência pessoal (2003, p. 122).

Tal como ocorreu nos estudos deste autor, a pesquisa empírica apontava para a necessidade de dar atenção a essas memórias, sem, contudo, tornar os entrevistados/as vítimas das circunstâncias. Nesse caso, é importante pensar a história, não apenas na condição de história das forças dominantes, mas também, como resistências sociais silenciosas, conforme declarou Cerutti:

(...) cada grupo social é portador de capacidades e de ações e possui suas representações para expressar seu ponto de vista. Dessa forma, os relatos orais, com toda a complexidade que envolvem – a metodologia da pesquisa, a credibilidade dos seus procedimentos e a legitimidade quanto à produção do documento – , apresentam-se como instrumento privilegiado. Eles são um meio de se buscar a presença dos diferentes atores que compõem a história dos trabalhadores das novas cidades de Mato Grosso (2004, p. 7-8).

As entrevistas buscaram valorizar a história de vida dos entrevistados em Sorriso, conhecer suas experiências, dar visibilidade às suas vivências, perscrutar suas ações. As mesmas foram coletadas com base numa relação alicerçada na confiança e respeito mútuos

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entre entrevistadora e entrevistados/as. As narrativas que se seguem, expressam as práticas e representações dos entrevistados e entrevistadas nas mais diferentes situações em que desenvolvem suas sociabilidades. Filho de agricultores, pequenos proprietários enraizados no campo, seu J.P.S., após uma trajetória de itinerância91 com sua família, migrou de São Paulo para o Mato Grosso em 1963, para o município de Mirassol D’Oeste. Desde que chegou, em Mato Grosso, exerceu vários ofícios. Tem sessenta anos e vive em Sorriso há três. Em sua narrativa, relatou:

Olha, eu vou te ser franco... a cidade nossa aqui... eu não... sou muito amante... primeiro, que pra você formar uma amizade aqui é uma mão-de-obra, tem um preconceito fora de sério e tem racismo (ênfase)... Outra coisa é que não tem uma praça pra se formar um lazer (...) Tem uma praça lá no centro, uma pracinha (...)

Um dos aspectos que chamou a atenção na narrativa de seu J.P S. foi principalmente quando ele se refere a “formar uma amizade”. Ou seja, interagir com o grupo social no qual está inserido. Há uma batalha pessoal que ocorre intensamente “formar uma amizade aqui é uma mão-de-obra”. O relato aponta para o indício de haver dificuldade de interação. Salientase ainda, a insatisfação do entrevistado ao falar sobre a necessidade de lazer. Seu E.M.P., filho de trabalhadores na agricultura, natural de Montes Claros, Minas Gerais, vivendo em Sorriso há quinze anos, relatou:

Nós chegamos aqui em Sorriso, fomos... Morava em casa alugada (...) foi difícil de arrumar serviço, foi difícil... (...), foi difícil... porque Sorriso... é com muito é...com muito preconceito (...) mais nós vencemos, eu venci, trabalhei, arrumei amigo, graças a Deus, tive um meio de ganhar esse lote que hoje nós tá aqui, mora aqui, sofri muito no trabalho aqui por causa do problema do povo, o povo do Sul do país é um povo muito difícil... é muito difícil, mas a gente venceu.

Em meio às reticências, seu E.M.P. vai, paulatinamente, (re) constituindo o seu passado na memória. Apesar de ter trabalhado na agricultura com seus pais, quando migrou para Sorriso em 1988, já vivia na condição de trabalhador urbano. Inicialmente, “morava em casa alugada”. Após três anos na cidade, conseguiu construir sua casa própria, o que para ele é motivo de grande satisfação e orgulho. A referência à conquista da casa própria, simboliza a realização pessoal do entrevistado, agora possui um endereço fixo, não precisa pagar aluguel, assim, pode proporcionar à família um pouco mais de conforto. Inversamente à experiência relatada pelo senhor J.P.S, de que “formar uma amizade é uma mão-de-obra”, o senhor 91

A história de vida do seu J. P. S. será mais detalhadamente trabalhada, ainda neste capítulo.

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E.M.P., fala com orgulho das amizades que conquistou “mais nós vencemos, eu venci, trabalhei, arrumei amigo, graças a Deus”. Apesar das dificuldades enfrentadas no início como a dificuldade em “arrumar serviço”, o entrevistado considera que sua situação atual é bem melhor do que a situação anterior ao deslocamento para Sorriso. Dona B.M., outra entrevistada, neta de agricultores, também relatou uma experiência vivenciada quando trabalhava em uma residência em Sorriso. O pessoal aqui de Sorriso é muito assim... sabe? ... racista. A maioria, lá do Sul, lá do lado de lá, são muito racista, branco, polaco... (pausa). (...) Quando eu trabalhava na casa dessa mulher, que eu saí pra casar, o cunhado dela era racista (...) Ele chegava lá assim, me olhava de baixo em cima, um dia ele viu a filha dela, ela me chamava de Tata, ela me chamou: ‘Tata’, e ele disse: ‘que Tata (...) chama essa mulher por nome’, me olhava de baixo em cima. Uma vez eu saí por causo dele. Aí ela me perguntou: ‘porque você vai saír’ E eu disse, eu vou sair por causa do seu cunhado (...) Aí um dia eu falei, não sei porque, só porque a pele é diferente, só a pele que muda, não tem nada a ver se a pele dele é branca e a minha é preta, isso não muda nada. (...)

O relato de dona B.M. foi entrecortado por pausas, como se outrora, ainda recente, fosse difícil de ser verbalizado. A experiência vivenciada ficou registrada em sua memória, por tê-la marcado profundamente. Apesar de parecer difícil para ela relatar o que vivenciou, a narração soou como um desabafo, principalmente quando ela afirmou: “só porque a pele é diferente (...) isso não muda nada”. Em cada fala, em cada relato, há uma multiplicidade de saberes que podem ser considerados. A igualdade de direitos, independe da cor da pele, este é o ensinamento que pode ser retirado do relato desta trabalhadora. Os sentimentos influem nos comportamentos. A entrevistada, encontrou na decisão de deixar o lugar em que trabalhava, uma maneira de não aceitar o que estava lhe acontecendo. Estava exigindo ser tratada de forma justa, de forma respeitosa. Parafraseando Martins (1997), os atores sociais de várias regiões do Brasil que fixaram-se em Sorriso são pessoas que, por razões as mais diversas, são diferentes entre si. Trazem uma bagagem cultural diversificada, costumes diferentes, o que culmina em desigualdade constante. Embora o ocorrido tenha deixado traços marcantes na memória de dona B.M., ao se deparar com a situação que relatou, ela decidiu por não aceitar o que estava lhe acontecendo e pediu demissão. Foi a maneira que encontrou de não mais permitir que a experiência se repetisse. No entanto, sua inserção social se dava através do mundo do trabalho. Era ela a

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responsável pelos cuidados com a casa e com os filhos de sua patroa. Para a dona da casa, o trabalho de dona Benedita era importante, dona Benedita era importante. Sua pele diferente, não fazia diferença alguma. Ela é uma cidadã com os mesmos direitos que qualquer outro cidadão, não importando a cor de sua pele. Outro relato selecionado foi o de seu C.M.J., natural do Espírito Santo, vive com sua família em Sorriso há vinte anos. Os pais de seu C.M. J., também eram trabalhadores na agricultura em seu lugar de origem. Dentre suas memórias, uma experiência específica, vivenciada em 1988, deixou uma marca indelével e ele ainda se emociona ao relatá-la.

Eu tive um probleminha (...) Isso foi por volta de 88, então o CTG recordando os prados, era ali do outro lado e... eu recém tinha me casado... e tinha um baile lá, baile social... (...) e... eu convidei a minha esposa na época, falei mulher vamos ao baile dar uma divertida, ela ‘ah, tu que ir vamos’, aí fomos à loja (...) ela comprou um... dessas roupas de prenda, dessas coisa bonita pra ela, e... pra mim traje social que era o pedido do clube (...) aí quando nós chegamos lá, eu pedi os dois ingressos pra nós participar da brincadeira e aí o patrono teve a audácia de me dizer... que ali eles tinham separação de cores, que a minha esposa podia ficar (ênfase) que eles ali tinham ... total segurança... pra minha esposa, só que eu não poderia entrar, daí eu perguntei pra ele, falei porque o meu dinheiro tem um zero a menos que o dinheiro dos outros? Ele falou ‘não moço, é porque aqui nós temos separação de cores’, daí eu falei umas... (...) e... peguei a minha esposa e vim embora, mas vim muito chateado viu sinceramente (...).

Ao relatar esta experiência, seu C.M.J. não se furta a oferecer uma descrição das circunstâncias vividas naquela ocasião. O convite que fez à esposa, as roupas de festa que foram compradas com antecedência “que era o pedido do clube”. Entretanto, a ocasião que deveria ser marcada com lembranças alegres cedeu lugar a outro tipo de sentimento, caracterizado pela experiência que seu C.M.J. (re) constrói com uma certa indignação. Uma outra dimensão que o relato sugere, refere-se ao fato de que, com o passar dos anos, seu C.M.J., conseguiu ressignificar sua memória, pois segundo relatou, “no início, não gostava de falar sobre esse ocorrido”. Com o passar dos anos e com a ajuda das memórias do presente, a lembrança daquela situação vivida, foi aos poucos, sendo ressignificada. Segundo Laverdi, é importante levar em conta que os significados da migração referidos precisam ser considerados como muito importantes na interpretação da natureza e das diferentes expressões do estranhamento lembrado pelos migrados.

(...) especialmente quando confrontados aos novos universos da vivência social e cultural, assim como em relação às frustrações e às lutas políticas subliminares que engendraram. Não se trata, pois, de traçar prioridades ou hierarquias entre as diversas formas do estranhamento experimentadas pelos sujeitos, além de dialogar

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com as suas expressões lembradas, valorizadas ou silenciadas. Menos ainda de articular padrões comparativos entre os envolvidos no projeto colonizador e os que vieram no pós-1970. A gama de possibilidades interpretativas articula-se justamente na possibilidade de discutir as tensões vividas, tanto quanto as suas experiências e trajetórias entrelaçadas entre os tempos e as bagagens culturais distintos (2003, p. 121).

A professora S.C.L., natural de Cuiabá/MT, reside em Sorriso há doze anos. Ela também concordou em relatar algumas experiências vivenciadas em Sorriso e que foram marcantes em sua memória:

(...) Há quinze dias nós fomos convidados para ir num aniversário dum colega nosso (...), aí a gente chegou lá, e sentou um casal de gaúcho, de gringos mesmo, e chegou um outro casal mais novo, e também sentou ali perto da gente, aí o que aconteceu? Eu estava contando que eu trabalho em escola, estou trabalhando agora esses dias o dia todo, estudo à noite e tal, e é uma dificuldade, a gente pra ter contato com os filhos, aí a mulher mais velha, do casal mais velho, falou assim pra mim: ‘mas você trabalha na escola?’, falei eu trabalho, daí ela falou assim: ‘mas você é cozinheira ou faxineira da escola’, daí eu falei assim, não, eu dou aula, eu sou professora, e a minha filha ficou assim, sabe, irada com aquilo, aí minha filha virou pra ela e falou: ‘não, a minha mãe faz história à noite, minha mãe é professora já antiga da escola’.

A teia dos conflitos não foi recordada como uma questão superada. A entrevistada citou um processo inacabado, permeado por outros enfrentamentos que alcançaram inclusive sua filha. Entretanto, à medida que se reportava aos estranhamentos vividos, ao mesmo tempo foi permitindo restabelecer uma conexão com o lugar e sua participação, para a qual imprimiu novos sentidos de viver um papel de protagonista. Num súbito de rememoração, a professora S.C.L., relatou ainda uma experiência vivida em outra ocasião que para ela foi também muito marcante.

(...) Nós também participamos do grupo ECC, geralmente é chamado assim casais, pra dar palestras, casais escolhidos mesmo, assim adultos, o ECC é o Encontro de Casais com Cristo, que tem todo ano, tem um encontro maravilhoso, daí eu fui dar palestra esse ano, então quando as pessoas, alguns casais ficaram sabendo que a gente ia dar palestra, então caíram os queixos, mas você vai dar palestra? (ênfase). Então eles acham assim, que preto, pobre, mulher e cuiabana, como muitos sabem que eu sou, só serve pra ser cozinheira, faxineira, prostituta ou então eles acham assim que você não tem a mesma capacidade intelectual que o branco tem, então a nossa luta é muito grande (...).

Tanto as atividades religiosas na Igreja, onde alçou uma certa liderança, como o seu trabalho como professora, foram lembranças privilegiadas em sua memória. Ambas as instituições significaram-lhe um lugar para lidar, com relativa impessoalidade, com seu papel

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de trabalhadora, mulher e negra, num momento em que tantos estranhamentos se mostravam. Interessa ainda ressaltar, no diálogo com a memória da professora S.C.L., como sua força narrativa atuou no sentido de dar visibilidade ao modo como não sucumbiu às forças da discriminação de cor. Ao contrário, afirmou sua alteridade nesse campo, a qual imprimiu grande força e tenacidade. Segundo Neves (2000, p. 114), “o ser humano tem múltiplas raízes: familiares, étnicas, regionais, nacionais, religiosas, partidárias, ideológicas... Sua vida é uma totalidade, na qual entrecruzamentos diversos conformam a dinâmica do viver”. Para a autora, cada pessoa é componente específico de um amálgama maior que é a coletividade. O relembrar individual encontra-se relacionado à inserção histórica de cada um. Para Laverdi (2003), uma atenção dedicada deve voltar-se para as dimensões da conciliação que as memórias dos entrevistados apontam.

Mais do que avaliar suas direções é preciso cuidado para não menosprezá-las em troca de classificações conservadoras aparentes. Antes, é preciso atentar para os sentidos políticos implícitos, por sua vez contidos na riqueza dos processos de transformações dos próprios sujeitos, afirmados muitas vezes na projeção de seus papéis protagonistas na constituição de seus espaços sociais. Tomar o estranhamento em si mesmo, todavia, não é a melhor alternativa. Serve, de início, para abrir caminhos e contribui para pensar nos seus significados para e nas trajetórias investigadas, em razão, especialmente, das lutas de enraizamento e dos sentidos de conquista individual projetados pela migração (LAVERDI, 2003, p.122123).

Abordar essas memórias do estranhamento que foram surgindo em meio às falas dos entrevistados, talvez possa realçar os contornos da complexidade da vida social em Sorriso e a maneira como os atores sociais exercitam sua sociabilidade, o que possibilita pensar na multiplicidade de experiências e trajetórias de vida na “capital da soja”. É lamentável que os relatos transcritos sejam incapazes de transmitir a linguagem gestual do entrevistado e as expressões do entrevistado. Algumas vezes um sorriso forçado, uma lágrima, ou até mesmo um instante de silêncio revelam muito. Parafraseando Certeau (2002, p. 200), os gestos são verdadeiros arquivos. Certeau afirma, “se entendermos por ‘arquivos’ o passado selecionado e reempregado em função de usos presentes” (idem, ibidem). No momento da entrevista, a linguagem gestual, muitas vezes, diz mais do que a

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própria linguagem verbal. Nesse sentido, não há como deixar de considerar a assertiva de Alessandro Portelli (2004), quando o autor, referindo-se ao momento da entrevista, afirma: O resultado final deste encontro é o discurso oral ser transferido para uma fita e, finalmente, escrito. Enquanto isso assegura a preservação e a recuperação das palavras, também congela sua fluidez. (O italiano, como o espanhol, tem uma palavra apropriadamente metafórica para definir o que acontece com os sons numa fita: incidere, grabar – gravar na pedra). Não importa o quanto falemos sobre nós mesmos como historiadores que lidam com relatos orais, a própria tecnologia do nosso trabalho é transformar o oral em palavra escrita, congelar material fluido em um momento arbitrário no tempo. Isso talvez não seja nem “bom”, nem “ruim”; de qualquer maneira, talvez não haja nada que possamos fazer. Mas, pelo menos, devemos estar conscientes de que é isto o que fazemos (PORTELLI, 2004, p. 300).

As narrativas desses agentes sociais interrompem a lógica dos fenômenos englobantes que imporiam um sentido homogeneizante ao comportamento. Há um desafio que impele para a necessidade de dar importância a essas informações, a esses aspectos do processo dinâmico da vida social em Sorriso e não revelados na perspectiva da história oficial. Segundo Revel é importante “compreender de que maneira este detalhe individual, aqueles retalhos de experiências dão acesso a lógicas sociais e simbólicas que são as lógicas do grupo ou mesmo de conjuntos muito maiores” (1998, p. 13). No cenário das imagens projetadas pela mídia, muitos detalhes são ocultados. Diante dos relatos mencionados, era imprescindível tentar entender porque alguns grupos se julgam superiores e passam a estigmatizar outros. Seguindo esses indícios e procurando manter o equilíbrio entre a exposição dos relatos e as considerações teóricas, tornou-se necessário estreitar um diálogo com a sociologia. Elias e Scotson (2000), estudando uma pequena cidade do interior da Inglaterra, Winston Parva, no início da década de sessenta do século XX, centraram suas análises em torno das relações estabelecidas na vida social. Em W. Parva, havia uma distinção entre os grupos que viviam em áreas diferentes da cidade. Em uma determinada área, viviam as “famílias antigas”, que, curiosamente, tratavam os recém-chegados, como pessoas que não se inseriam no grupo, como “os de fora”, atribuindo-lhes um caráter de anomalia. O autor levantou então, os seguintes questionamentos: Como se processa isso? De que modo os membros de um grupo mantém em si a crença em que são não apenas mais poderosos, mas também seres humanos melhores do que os de outro? Que meios utilizam eles para impor a crença em sua superioridade humana aos que são menos poderosos? (Op. cit, p. 20)

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Esse estudo realizado por Norbet Elias (2000, p. 22), na cidade inglesa de Winston Parva, revelou tensões múltiplas entre os primeiros habitantes e os que chegaram depois. Estes foram considerados “forasteiros”, por não partilharem os valores e o modo de vida vigentes na cidade. Eram mantidos à distância, afastados dos locais de decisão, dos clubes e até das igrejas. Para os primeiros moradores, os que chegaram depois, por não observarem normas e restrições acabavam pondo em risco as defesas profundamente arraigadas do grupo estabelecido. Curiosamente, em Winston Parva, os dois grupos existentes não diferiam quanto à classe social, nacionalidade, ascendência étnica ou racial, credo religioso ou nível de instrução. A principal diferença entre os dois grupos, era a seguinte: um deles era um grupo de antigos residentes, estabelecido naquela área havia duas ou três gerações, e o outro era composto de recém-chegados. Segundo Elias, “a expressão sociológica desse fato era uma diferença acentuada na coesão dos dois grupos: um era estreitamente integrado, o outro não” (p. 24). Em Winston Parva, os moradores formavam um grupo mais homogêneo, diferindo apenas no que diz respeito a um dos grupos estar estabelecido há mais tempo e o outro grupo, ter chegado depois. Analogamente, em Sorriso, há uma considerável divergência entre os primeiros povoadores (originários do Sul do Brasil, minifundiários em seu local de origem e que trouxeram alguma reserva em dinheiro) e os trabalhadores e trabalhadoras (originários de outras regiões) que relataram as memórias de estranhamento. Esses trabalhadores/as são vendedores/as de força de trabalho. Ex-trabalhadores na agricultura, atualmente, encontram-se na condição de trabalhadores urbanos.

Segundo Norbert Elias “não é fácil entender a

mecânica da estigmatização sem um exame mais rigoroso do papel desempenhado pela imagem que cada pessoa faz da posição de seu grupo entre outros, e, por conseguinte de seu próprio status como membro desse grupo” (op. cit, p. 26). Do ponto de vista da abordagem do autor, “superioridade social e moral, autopercepção e reconhecimento, pertencimento e exclusão são elementos da vida social” (p. 8). Tanto em Winston Parva quanto em Sorriso é possível observar algumas propriedades gerais inerentes a toda relação de poder. Parafraseando Elias, os atores sociais que fazem parte de ambas as localidades estão, simultaneamente, separados e unidos por um laço desigual de interdependência. As memórias trazem as alegrias, as tristezas, o sofrimento, as emoções mais intensas. Na memória, o tempo não é marcado pela cronologia, importa o significado. O tempo da memória é o tempo da experiência. A documentação oral não apresenta datação cronológica; o que une o tempo na memória são as vivências. Sendo assim, as memórias do passado estão

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em constante movimento com as memórias do presente, nesse caso, o ato de lembrar remonta ao passado vivido pelos sujeitos. A lembrança é então, segundo Halbwachs (1990), “uma reconstrução do passado com a ajuda de dados emprestados do presente” (p. 71), o que pode ser observado, por exemplo, no relato de seu C.M.J. Em torno das discussões sobre o trabalho e os trabalhadores Heloisa de Faria Cruz defende a idéia de que os modos de trabalhar produzem significados que permitem novas leituras da realidade presente. A autora aponta para a riqueza das possibilidades quando se dedica à compreensão das relações sociais e as transformações ampliadas dos mundos do trabalho na contemporaneidade. Segundo a autora: No campo temático das relações entre Cultura e Trabalho, destacam-se preocupações com os estudos que, colocando em evidência os espaços e modos de trabalhar e as práticas e tradições dos trabalhadores nas cidades, promovem a reflexão crítica sobre os processos que, na atualidade, buscam produzir a invisibilidade social da pobreza e da exclusão e do consenso neoliberal que estabelecem a desigualdade como paradigma do relacionamento social e de organização da dominação. Trata-se de desenvolver a pesquisa sobre os fazeres e os viveres dos trabalhadores, dimensões da sua vida material, suas práticas e modos de trabalhar, suas tradições, crenças e valores, as instituições e organizações políticas da classe, como campo inspirador da crítica àqueles paradigmas (CRUZ, 1999 apud LAVERDI, 2003, p. 179).

Pode-se estar atento, sobretudo, para as maneiras como o mundo do trabalho é revisitado na memória dos entrevistados, pois é através dele que se dá a inserção dos mesmos na vida social. Pretende-se apreender os fazeres históricos das trajetórias dos entrevistados e entrevistadas, compreendidos como cultura e experiência social. Fenelon (1992), explica essa questão do mundo do trabalho sob a perspectiva da luta de classes. Segundo a autora: É nesse campo que queremos também redefinir nossas noções de lutas de classes, para perceber que esta cultura nada mais é do que o modo de vida das classes trabalhadoras e que aí se define o campo de forças, em embates constantes, tornando a cultura assim entendida, o espaço privilegiado para o entendimento das contradições colocadas pelo processo. E o interesse nesta abordagem não passa por concepções de descrever ou constatar como se desenvolve esta vida e se desenrolam estas lutas, mas passa por entender o como e por que isto acontece, recuperando sentimentos, valores, sensações de perda e necessidade de reconstrução e sobrevivência para entender o constante fazer-se e refazer-se das classes trabalhadoras (FENELON, 1992, apud, LAVERDI, 2003, p. 180).

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Consciente do conjunto expressivamente fragmentado, porém rico, dos depoimentos orais produzidos pela pesquisa, põe-se à frente o desafio de dialogar com as memórias do trabalho e suas dimensões de importância para o processo social vivido pelos migrantes. Pode-se estar atento para os trabalhos da memória como significação e (re) significação das transformações mais amplas dos mundos do trabalho, bem como das lutas de inserção e sobrevivência social dos entrevistados. O trabalho de que falam significa muito mais que uma ocupação ou um salário para garantir a sobrevivência cotidiana; significa a realização de expectativas e a possibilidade de um futuro renovado. A falta de proposta de trabalho ou a sua ausência, marca de maneira profunda a vida desses trabalhadores e trabalhadoras. O que interessa reter nesta pesquisa é o que o entrevistado lembrou e o que se perpetuou em sua narrativa. Mais do que isso, o que ficou registrado em sua memória. A maneira que (re) constrói sua narrativa. Atentou-se para a forma do (re) pensar o passado com imagens e idéias do presente. Entendendo que o lembrar é (re) viver, (re) elaborar, (re) fazer, importa registrar o significado que o entrevistado/a atribui às experiências que vivenciou. O relato dessas mulheres e homens tornaram-se indicadores daquilo que Certeau chamou de trampolinagem. Maneiras de desfazer o jogo do outro, de marcar resistências, constituindo uma arte de “fazer com”. (CERTEAU, 2002, p. 79). Os relatos de memória dos entrevistados para esta pesquisa apontam para uma sabedoria adquirida nas experiências vivenciadas. Homens e mulheres, que, em muitos casos, não tiveram oportunidade de freqüentar os bancos escolares. Ao longo de suas vidas, acumularam experiências que lhes permitiram sobreviver nas intempéries. Nessa perspectiva é que estão focalizadas as experiências de dois atores sociais distintos que concordaram em relatar suas histórias de vida. São eles: seu J.P.S. nascido em Viçosa, Alagoas e dona M.S.C. natural de Teófilo Otoni, Minas Gerais. Para este estudo, foi importante estar atenta à orientação de Montenegro, o qual afirma que: Um dos postulados fundamentais, que deve balizar todo profissional que se disponha a trabalhar com a memória, registrando-a através de entrevistas, é o fato de que a fala do entrevistado deve ser absolutamente respeitada. Ao entrevistador cabe (...) ouvir tudo que é descrito com a maior atenção (...), consciente de que o entrevistado não (...) tem obrigação de atender a quaisquer que sejam as expectativas teóricas/metodológicas da pesquisa que então se realiza (2001, p.150).

Na visão desse autor um outro aspecto com o qual o entrevistador deve aprender a conviver é o silêncio. O entrevistado pode às vezes, calar-se; o que significa que pode estar vivendo um momento de profunda introspecção.

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Verena Alberti (1989), contribuiu sobremaneira chamando a atenção para o fato de que o pesquisador tem que saber avaliar a emoção do entrevistado, devendo estar atento para distinguir a introspecção, do cansaço.92

Veredas e trilhas: memória e relatos (re) compondo histórias de vida Em Sorriso, a história oficial (através do discurso do pioneirismo, ou da “família colonizadora”), se sobrepõe à história de muitos trabalhadores e trabalhadoras. Histórias de vida de atores sociais diversos trazem em sua trajetória uma luta contínua pela sobrevivência. A riqueza dessas experiências vivenciadas demonstra a complexidade das relações, o que permite mencionar que a fronteira não se reduz a limites geográficos. Está fundada sobre a construção de uma fronteira de exclusão e depende da construção do “outro” e de uma posição rígida entre o dentro e o fora. Num quadro contraditório, constituído entre o jogo de ocultar e revelar, a memória pode contribuir no processo de (re) elaboração da história. Duas entrevistas especialmente foram selecionadas para serem aqui apresentadas. Histórias de vida de dois trabalhadores, uma mulher e um homem que têm em comum, além da relação direta com a terra, a cidade de Sorriso, local onde residem. Suas histórias de vida possibilitam observar os vários elementos constitutivos do processo migratório. Na sistematização das entrevistas realizadas com o seu J.P.S., e dona M.S., aplicou-se a metodologia do “portrait”, uma mini-biografia (BATTAGLIOLA, 1991). Segundo esta autora, trabalhar as entrevistas dessa forma, permite mostrar como se articulam as diferentes dimensões familiares e profissionais ao longo do itinerário biográfico, evidenciando os acontecimentos que assinalam os pontos de inflexão e os momentos de (re) composição das trajetórias, o que possibilitará conhecer os “acontecimentos marcantes” na vida do entrevistado/a. A autora afirma ainda, que a trajetória social é o encadeamento temporal das posições sucessivamente ocupadas pelos indivíduos nos diferentes campos do espaço social. A cada momento de sua existência, esses atores sociais, ocupam simultaneamente várias posições, resultantes de seus lugares nos campos profissional e familiar. Com o tempo estas posições se redefinem, traçando uma trajetória social constituída de um feixe de itinerários (BATAGLIOLA, op cit, p. 22). 92

Segundo Alberti, o tempo de duração de uma entrevista depende da relação entrevistador/entrevistado, e também das circunstâncias. O entrevistador, deve respeitar os limites do entrevistado. Para Alberti, uma entrevista não deveria durar mais que duas horas, para não prejudicar a sua finalidade. No entanto, caberá ao entrevistador, ter sensibilidade suficiente, para perceber o melhor momento de se encerrar uma entrevista.

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Na senda da metodologia desenvolvida por Batagliola, optou-se por apresentar as mini-biografias de dona M.S.e de seu J.P.S., atores sociais que ocupam em comum, o espaço urbano do município de Sorriso. A intenção é então, compreender suas representações, seus modos de ver o mundo; a dinâmica social e histórica da vida de cada um.

A trajetória de dona M.S. Era 23 de setembro de 2001. Uma bonita e ensolarada tarde de primavera. O calor do sol se tornava ameno quando a brisa da tarde soprava suave, espalhando o perfume das flores da árvore que fazia sombra à frente da casa de dona M.S. Residindo em Sorriso desde os primeiros tempos da colonização, após tomar conhecimento dos objetivos da pesquisa, concordou em gravar sua história de vida. Na ocasião da entrevista, usava um vestido de tonalidade azul claro que realçava ainda mais a cor de seus expressivos olhos. É uma mulher forte e que sozinha, criou doze filhos. Dona M.S. nasceu em Teófilo Otoni, Minas Gerais, em 1949. Vive em Sorriso há 27 anos. Ex-trabalhadora rural, afirmou: “a gente sempre mexeu com a terra”. Em seu relato as lembranças da infância quase não aparecem, talvez por ter se casado muito cedo, “ainda criança”. Relatou que vieram para Mato Grosso porque o esposo queria trabalhar. “Ele queria aventurar, aprender com o maquinário porque sempre só no braço, só trabalhando braçal era muito difícil, daí veio pra cá”. A expressão “se aventurar” referindo-se ao esposo, na perspectiva da entrevistada, simboliza que ao invés de continuar trabalhando (no local onde moravam) usando apenas a força física, em Mato Grosso ele poderia “aprender com o maquinário”, o que significava menos esforço físico e quem sabe, mais renda, o que garantiria uma vida com menos privações. Em Campina da Lagoa onde morava dona M.S., as terras em que trabalhavam não pertenciam a eles, “só a sogra que tinha terra, desde que eu casei nós já fomos direto trabaiá com a sogra”.

A gente trabalhava lá em Campina da Lagoa e daí ele... nós sempre trabalhava na lavoura. Eu trabalhei de bóia-fria muito tempo, levava minhas criança piquenim nas leira arrancar soja de mão assim, plantava feijão, colhia, maiava de cambão, eu sofri muito na minha vida, desde pequena toda vida trabalhando e daí ele disse: ‘eu vou aprender trabalhar com máquina de esteira’, e aí começou trabalhar um pouco assim e parecia que já tava trabalhando bem, quis vim pra Mato Grosso (...), daí nós ... ficamo primeiro ali em Lucas, pra cá de Lucas ali na fazenda Progresso, ali nós ficamo eu acho que uns dois anos por alí, daí as crianças pequena precisava de

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estudo e alí não tinha, a gente tinha que fazer compra só uma vez por mês, ia em Nobres ou então em Sinop, mas tinha só um ônibus que ia e daí o outro dia retornava, era difícil.

A entrevistada relata que desde quando era criança trabalhava na lavoura. Enfrentou o árduo trabalho de bóia-fria. Ressalta o sofrimento do difícil trabalho na roça, local para onde levava os filhos. A mão-de-obra das crianças era de extrema necessidade. A fala como ato que constitui os sujeitos remetem ao entendimento das relações históricas que explicam as formas como se posicionam diante da vida.O esposo insatisfeito com as condições de vida que levavam, decidiu então que aprenderia a trabalhar com “máquina de esteira”. Em 1977 quando a entrevistada veio com a família eles não conheciam ainda o lugar que se tornaria, posteriormente, o município de Sorriso. Dona M.S. que sempre trabalhou “na roça” como ela mesmo relatou, chegou em Sorriso já na condição de trabalhadora urbana.

Nós só via falar Mato Grosso, mas de Sorriso nós fomos conhecer o nome de Sorriso depois que tava aqui, daí então nós ia fazer compra em Nobres ia em SINOP, daí um dia nós passando na BR eu falei, se um dia for pra mim morar aqui em Mato Grosso eu gostaria de morar aqui nesse lugar eu me agrado tanto e parece que Deus ajudou que no outro ano daí eu tive que ponhá as criança na escola que tinha que estudá daí nós veio pra Sorriso (...) daí as criança foi cresceno depois eu passei pra cá e tô até hoje já caiu uma casa de véia fizero outra (risos) e agora tamo fazeno outra (risos) e sempre no mesmo lugar.

É interessante a forma como a entrevistada em sua narrativa, expressa o jogo com o futuro “se um dia for pra mim morar aqui em Mato Grosso eu gostaria de morar aqui nesse lugar”. Ela estava a planejar o futuro ao expressar a sua escolha. Após ter se passado um ano, a necessidade de colocar os filhos na escola, impulsionou nova migração para um local onde houvesse “estudo” para eles. A essa necessidade ela atribui um significado religioso “parece que Deus ajudou que no outro ano daí eu tive que ponhá as criança na escola que tinha que estudá daí nós veio pra Sorriso”. Uma nova vida (re) começava. As crianças na escola, possibilidades de trabalho para ela e para o esposo. A vida seria melhor. Quando foram morar em Sorriso, se instalaram primeiro na área agrícola. Dona M.S. e o esposo trabalhavam na mesma fazenda, mas em atividades distintas: (...) eu cozinhava pro gerente e cuidava as criação dele e trabaiava em casa e ele ia trabaiá de tratorista até que ele aprendeu trabaiá com máquina de esteira, abria assim as greba pra Colizadora, trabaiava pos outros assim com máquina de esteira. Aqui dentro da cidade os loteamento, ele que fazia os lote assim, fincava os marco pra Colonizadora.

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Um tempo depois, precisavam construir uma casa para se deslocarem para a área urbana. A compra do lote foi combinada “com a turma da Colonizadora”, ela afirmou. Ao expressar seu desejo de adquirir um terreno na área urbana a entrevistada relata que ouviu o seguinte: “se consegui pagá o lote até seis meis é um preço, se você não consegui a gente sobe”. Trabalharam intensamente, até que o objetivo foi alcançado. (...) “eu trabalhei, Deus me ajudô eu com as criança e juntamo as moedinha que tinha, paguei, daí ele falou: ‘agora se tem que construí pelo menos um coberto pra segurá o lote’(...) ”. Para ajudar o esposo com a construção da casa, dona M.S. contou que trabalhou muito em uma fazenda.

fui cozinhá numa fazenda ali.(...) Lá eu fiquei nove meis, cozinhava pra quarenta home, levantava quatro horas da manhã, tirava leite de quatro vaca, fazia o café praquela homaiada ali (risos), ponhava na mesa pra eis comê e saía trabaiá e eu já tratava das criação e fazia o armoço, quatro horas da tarde tinha que fechá os bezerro e fazê a janta, quando era dez hora da noite eu tinha que tá pronta pra ir dormí. Levantava às quatro da manhã e ia deitá às deiz da noite daí lá fique nove meis daquele jeito e guardando, daí ele pagava certinho pra mim o meu dinhero assim da pensão, que eu dava pensão pros peão, ele chegava o final do meis, ele cobrava de tudo os peão e ponhava na minha conta, daí quando deu nove meis eu falei eu tô cansada, eu dei uma discurpa pensei, já dá pra mim fazê minha casa, daí falei eu tô cansada eu quero ir pra cidade, daí ele falou que as porta da fazenda dele tá aberta pra mim vortá o dia que eu quizé vortá pra trabaiá com ele, daí eu peguei e vim embora (...) Daí chegamo aqui tava o mato cobrino o cobertinho da casa, que tava só coberto pra segurá o lote, assim no meio do mato, aqui era uma lera (...) daí o caminhão, uma caçamba ainda, foi, encostou ali, descarreguemo a mudança e entremos debaixo só do coberto assim, tudo no tempo alí, daí fomo batalhano (...) daí nóis doi feiz, só nóis dois que as criança era pequeno, só nóis dois feiz a casa e entremo debaixo morá, quando faltava um pouco ainda pra terminar... (a entrevistada dá uma pausa) daí fizemo de soalho a primeira veiz, daí ele já foi pro mato abrir gleba com a máquina e vinha cada quinze dias, um meis, e eu batalhano ali debaixo com as crianças e foi assim minha vida (...)

Às memórias do trabalho presentes na narrativa de dona M.S., mesclam-se atividades desenvolvidas por ela e as que eram desenvolvidas por seu esposo. A atuação dos dois no relato da entrevistada é reveladora de aspectos da vida cotidiana do casal. É indispensável considerar essas memórias do trabalho, práticas criadas e (re) criadas que imprimem significado à vida social. Depois, quando deslocaram-se para a área urbana dona M.S. falou sobre o esforço em ajudar o esposo nas despesas com a casa e com a família. “Eu fazia pão pra vendê, fazia pastel, lavava roupa pra fora, costurava pros outros (...), depois ele sumiu de casa (...) e me deixou com doze filhos (...)”.

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Após a memória de dona M.S. trazer à tona a lembrança do “sumiço” do esposo, seu relato tomou uma conotação de imensa tristeza. Quase todo o relato girou em torno dessa situação vivenciada por ela. O que possibilita considerar que é esta, a memória mais marcante em sua história de vida. O esposo havia dito à dona M.S. que precisaria se ausentar por “uns dias”. Explicoulhe que não demoraria a voltar. Arranjara um trabalho em outra cidade e logo voltaria para casa. Não forneceu-lhe mais detalhes da necessidade de sua ausência. Ela procurou entender e despediu-se dele na porta de casa numa noite chuvosa, era uma sexta-feira.

(...) e daí pegou e disse que ia passá uns dias fora e esses dias dele levou quinze ano, nunca mais deu notícia e nem foi visto, e daí quando no completá quinze ano um telefone dizeno que queriam falar comigo urgente. Ele tava em Rondônia, me chamaram, daí eu peguei fui lá peguei um cartão, fui nesse orelhão ali e liguei deu no hospital de Vilhena em Rondônia, e daí pedi pra falar com ele e a enfermeira chamou a outra e falou que não era mais possível que ‘ele tinha vindo a óbito hoje de manhã’ ela falou, então vai fazer quatro mês agora que ele retornou mas retornou num caxão, e daí o que eu fiz? corri atrás da fiarada, pensei vou buscar ele, eu não sei o motivo que foi leva ele a sumir porque nós vivia bem, num brigava nem nada (...), daí peguei reuni a fiarada e mandemo busca em Vilhena daí ... trouxeram ele nós fizemo o velório aqui foi sepultado aí.

Após esse relato ter sido trazido à tona através da memória do passado, todo o percurso da narrativa de dona M.S., foi direcionado para os anos que viveram (ela e os filhos/as), sem a companhia do esposo. Havia dor e muita mágoa quando relatou que foi preciso trabalhar intensamente para criar sozinha os doze filhos. Ela jamais soube a razão pela qual o esposo a abandonara. Mesmo assim, reuniu os filhos e tomou a decisão de trazê-lo de volta para casa para proceder à última cerimônia. Emocionada, dona M.S. dá um desfecho ao relato de sua história de vida.

(...) mas sei que eu passei as minha aqui no Mato Grosso Nossa Senhora (ri emocionada), mas agora graças a Deus o que eu não tinha eu consegui tudo depois que ele saiu de casa eu trabalhando, depois que ele saiu (...) sempre uma vidinha de doméstica assim (...) limpava a casa, lavava roupa, ,trabaiei até minhas criança consegui trabaiá (...) agora começaram trabaiá, eles foram crescendo, cada um ia ajudando, agora só eles trabáia e põe as coisa dentro de casa, agora eu só trabaio em casa aqui, pra fora eu não trabaio mais (...).

A entrevistada afirma que depois que os filhos cresceram ela deixou de trabalhar fora, agora vive apenas para o trabalho da casa. Contudo, continua a cuidar da família sozinha. Alguns dos filhos já se casaram, vieram os netos e ela, dona M.S., continua a desempenhar o importante papel de matriarca da família.

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Todos os relatos privilegiados para análise nessa dissertação remetem às práticas microssociais vivenciadas por atores os mais diversos. As práticas desses atores anônimos, adquirem visibilidade através das narrativas que descrevem suas experiências cotidianas. A história de dona M.S., expressa o papel atuante da mulher que precisa tomar as rédeas no comando da família. Sua rica experiência (não fosse a possibilidade do trabalho com a memória oral), certamente estaria perdida nos desvãos da história, oculta por uma memória que se pretende “unificada”. A trajetória de seu J.P.S. Na ocasião da entrevista, na primeira sessão, seu J.P.S. recebeu uma folha com o mapa do Brasil, para que localizasse o lugar onde nasceu, onde morou, enfim, os lugares por onde passou. Além de investigar sua relação com a terra, pretendia-se perscrutar em sua trajetória de vida, que fatos foram marcantes em sua memória. Com um lápis na mão, ele se pôs a localizar o lugar onde nasceu. Ficou por uns instantes em silêncio como se pensasse longe, aí começou localizando primeiro em voz baixa, procurando o estado onde nasceu: “Alagoas, Alagoas, Alagoas (...) Ceará, Maranhão, Piauí, Bahia, Alagoas, tá por aqui... Alagoas”. A partir de então, passou a relatar sua história de vida com firmeza na voz. Nascimento

Seu J.P.S. nasceu em Viçosa, município de Alagoas, no ano de 1944. Seus pais eram agricultores, Quando tinha 10 anos de idade, seu pai mudou-se com a família para São Paulo “em busca de melhora”, afirmou. Viveu com a família até os 19 anos, mas antes de se separar dela, se deslocaram por vários estados. De Alagoas em direção à Bahia, sua família viajou de ônibus, de trem e de caminhão. Da Bahia em direção a Minas Gerais, andaram “um punhado de trecho de pé”. Ele contou que saiu em um grande grupo. (...) não tinha grandes conhecimentos das distâncias (...) não sabia quanto pagava de Alagoas, direto a São Paulo, capital, fazia uma aproximação assim meio por meio, como o nordestino e muita gente aflagelado (risos) é meio desesperado não fazia caso da quantia de dinheiro, o dinheiro acabou em Caculé na Bahia (risos), aí ficou todo mundo (...) no êpa... numa linguagem minha, no êpa (risos), fui trabalhar pra prefeitura fazer aterro de BR com carrinho de mão (...) Na Bahia, em Caculé, fazendo uma estrada (...) pra Brumado, uma BR (risos)... Nisso, arrumamos um meio por lá não sei nem como (...) viemos pra Monte Azul, Minas Gerais, (...) de Monte Azul (..) pra Mato Verde, de pé, de Mato Verde (...) pra Porteirinha, de pé

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também (risos), e ainda com o cacaio na cabeça não tinha negócio de coisa com coisa não (...).

O relato do seu J.P.S. permite perceber a dificuldade da família que intencionava melhorar de vida. Falou pouco sobre sua infância. Aos dez anos, tendo que trabalhar para ajudar a família, não teve oportunidade de estudar. Buscando “melhorar de vida” sua família se deslocou diversas vezes. Ele criou uma linguagem própria para caracterizar o momento de suas vidas em que o dinheiro acabou e a situação estava muito difícil, “no êpa”. Embora considere que a situação “não está nada fácil”, o entrevistado vê com muito bom humor aqueles “tempos difíceis”. Prosseguindo na trajetória física, descreve que demoraram cerca de noventa dias em Caculé, na Bahia.

(...) nesse trecho de Minas (...) uma média de uns seis meses (...) paramos um pouco em Porteirinha, eu tenho um irmão sepultado lá, faleceu lá, precisava de médico, não teve condições, faleceu, foi sepultado lá. Aí daqui (Porteirinha) apareceu os japoneses, buscando gente no Nordeste pra panhar algodão (...) café, essas coisas assim. Aí nisso, nós entramos na imigração pra São Paulo, São José dos Campos (...).

Dando continuidade ao relato, quando falou sobre a imigração para São Paulo, lembrou-se de seu pai:

Meu pai quando eu conheci por gente ele foi gerente de uma fazenda de usina de cana 18 anos em Alagoas (...) ele era gerente da fazenda e tocava roça, lavoura de algodão, fumo, fava, feijão de corda, estilo nordestino, eu trabalhei muito, com 8 anos comecei a trabalhar, ele colocava a gente pra trabalhar, eu ia tomar de conta e trabalhar também (...).

Os pais do seu J.P.S. são falecidos. Eles trabalhavam na agricultura. Em sua lembrança, afirmou que em São Paulo trabalharam muito com área de 15 a 30 hectares, que considera “uma área até grande ... mas era arrendada”. “(...) Em São Paulo (...) rodamos o interior na agricultura muito tempo e depois eu separei de meus pais e fui pra cidade (...) trabalhando muito tempo em São Paulo (...) vim pra Mato Grosso, pra Mirassol D’Oeste”.

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A migração para Mato Grosso

(...) vim direto pra Mirassol D’Oeste. (...) Vim de caminhão, cinco dias de viagem (...) a estrada era muito ruim e os caminhão não desenvolvia muito, vim num chevrolet Brasil, carregado de mudança. (...)Veio uma média de umas doze pessoas entre criança e adulto, mulheres e homens, tudo dentro do caminhão e a mudança também. (...) nós trazia bóia, trazia o arroz, o feijão, (...) Parava na beira de um córgo (sic) e fazia a comida, acabava de comer, lavava as vasilhas colocava dentro e vamos embora, foi cinco dias de São José do Rio Preto a Mirassol D’Oeste (...) isso foi em 63, em julho de 63 é... aí eu... chegando em Mirassol D’Oeste duas horas da tarde do dia 25 de julho de 1963 (...).

Em alguns momentos, o entrevistado mostra que tem boa memória para fixar algumas datas. Ás vezes, embora as mencione com aparente segurança, se confunde. Contudo, se mostrou orgulhoso ao se lembrar o dia, o mês e o ano de sua chegada a Mirassol D’Oeste, em Mato Grosso, onde trabalhou fazendo serviço de topografia e serviços diversos. Mudou-se então para Cuiabá e de Cuiabá onde não ficou por muito tempo, foi para Rondônia trabalhar num seringal na cidade de Pimenta Bueno. Ele contou que subiu um rio numa viagem que durou cinco dias “(...) fui ficar o último da linha com 19 anos”. Falando pouco sobre a infância, as lembranças que ele reforça estão relacionadas ao seu deslocamento individual, e (raramente) após ter se casado.

(...) vim pra Rondônia, aí eu era seringueiro, e naquela época essa região não era tanto habitado, é... (...) isso aí era um desertão de meu Deus esse mundo por aqui, só tinha muito índio... e seringueiro... e garimpeiro, só... isso era um mundão, uma selva de meu Deus (.....) pra se mexer no meio desse mundo (....) só pessoa maluca igual eu e outros que se meteu dando uma de... bandeirante em cima disso daí.

Os relatos do seu J.P.S. são regados de muita emoção. Ás vezes, quando contava algo que colocava em evidência a sua coragem, ele alterava a voz. Considera-se um homem de bravura, ele e “alguns companheiros” que andaram por esse “mundão de meu Deus” em busca de melhores condições de vida, não podiam ter medo. Quando relatava algo relacionado a algum fracasso, sua voz tornava-se mais branda, triste. (...) fui me metendo dentro das matas pra esses mundo aí, fiquei sozinho cuidando da minha vida (...) no primeiro ano eu fiquei doze meses (...) eu acostumei trabalhando nessa vida assim ganhava bem (...) era seis meses uma safra e quatro meses a outra de... março a agosto e de outubro a dezembro, porque chovia muito (...) trabalhei 15 anos como seringueiro (...).

Casou-se em 1967, sua esposa dona L.J. conta que sempre o acompanhou nas “aventuras”: “(...) os meus filhos são quase todos nascidos nos seringais, esse aqui (apontou

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para o filho caçula que estava na casa) quando nasceu não tinha nem assistente pra olhar, primeiramente Deus e eu, sózinha jogada lá (...)”. Seu J.P.S. prosseguiu na narrativa, interrompendo a esposa: “36 anos... em dezembro agora se Deus apermitir e achar por bem vai completar 37 anos de vivência (...) ... e a vida é essa daí (...).” Dona L.J. contou que, além das dificuldades enfrentadas como a falta de assistência médica quando vivia nos seringais, enfrentou situações muito mais “complicadas”: (...) Eu já me vi arrodeada de... bandido, que ele ... fora de casa ... e eu dormindo e acordar escutando gente arrodeando em volta de casa ... as casas de barrote assim ... aqueles vãos ... focar a lanterna me alumiar em cima da cama e as crianças dormindo em tempo de matarem a gente ... dormirem no galho da mangueira em cima sondando a hora que sair pra fora pra matar, eu já passei apuro nessa minha vida (...).

O relato de dona L. J., carregado de tensões vividas juntamente com os filhos, sozinha, sem a companhia do esposo, revela o papel atuante das mulheres em áreas de fronteira na Amazônia. Sua experiência contém elementos da experiência vivenciada por vários outros homens e mulheres que se “aventuraram” em direção à Amazônia em busca de terra e trabalho. Em 1976, seu J.P.S. mudou seu “estilo de trabalho dentro de Rondônia”.

(...) aí passou a colonização do INCRA pra desenvolver a agricultura, aí nesse meio de tempo por eu ter uma prática que eu peguei em São Paulo na topografia, passei a trabalhar no serviço do INCRA cortando terra (...) tenho a maior vontade na minha vida de se um homem... de estudar... e me formar... tenho uma loucura. Mas lutei demais e não consegui (...) .

Para seu J.P.S. “o estudo é muito importante”. Nem ele, nem sua esposa concluíram o ensino fundamental e sua história de vida pode ser entendida como a de muitos outros homens e mulheres que não tiveram oportunidade de estudar e, possuindo como bem mais valioso apenas a sua força de trabalho, estão sempre em busca de um lugar onde ela possa ser mais valorizada. Depois de um certo tempo, morando em Rondônia, o entrevistado relatou que foi “mexer com terra”. Contou que possuiu duas áreas de terras. Uma em Rondônia, em Rolim de Moura, uma média de 100 hectares que ocupou por um ano e vendeu “(...) por uma boa benfeitoria (...) aí adquiri uma posse dentro do Mato Grosso, sem saber que era Mato Grosso, depois eu descobri quando desocupei”.

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A gleba em Mato Grosso onde adquiriu a área de terra chamava-se “sete de setembro” e situava-se no município de Aripuanã. Atualmente, pertence a Rondolândia.

Nessa

localidade seu J.P.S. vivenciou uma experiência que é, para ele, a mais marcante de sua vida.

(...) 70 e poucos hectares (...) eu fui representante da gleba e tenho os documentos também tudo, quase perdi a vida por causa dessa gleba, representei 12 mil psseiros ... e um mafioso colarinho branco meteu-se no nosso meio e me matou muito companheiro (...)Ele tinha umas 700 hectares dentro de Rondônia (...) não tinha topograficamente o divisor de Mato Grosso com Rondônia (...) viu a terra muito boa e queria nos grilar 45 mil hectares em cima das nossas benfeitorias ... porque ... o INCRA atendia quem tinha a benfeitoria, ele não tinha nenhuma (...) então matava o posseiro e ficava com a posse e pronto... Infelizmente é a lei do vale tudo, existe por aí ainda ... aí nós rebatia ... (...).

Nesse período que passou “nessa luta” em Rondolândia, contou que a sua mulher passou a ter complicações de saúde “passou a sofrer de pressão alta de tanta miséria que nós passamos”. Para o entrevistado, a experiência em Rondolândia foi a mais marcante de sua vida porque perdeu sua paz, não conseguia sequer dormir “(...) bandido, jagunço dia e noite nos pés da gente, não era muito fácil e eu gordo 50 quilos, só pesava o revólver e os esqueletos só (risos)”. É tocante o relato do entrevistado. Sua experiência de vida repleta de tensões vividas num espaço em que deveria ser local de alegria para a família, pois ele, juntamente com o grupo, estava em busca de terra para plantar. Havia toda uma luta pela subsistência, mas o enfrentamento e as parcas condições de vida o tornaram fisicamente fragilizado, porém, orgulha-se de sua coragem no “tempo da mocidade”. Entusiasmou-se ao dizer, “(...) era doidinho barrido que foi o que Deus me deu foi coragem, Deus me deu muita coragem ... agora hoje eu já to meio covarde, porque eu to meio velho (...)”. Sobre as condições de vida dentro da Gleba em Rondolândia, relatou: (...) Jogava 40, 50 quilos nas costas e viajava (...) 50, 60 quilômetros ... óleo, arroz, açúcar, sabão, é ... munição ... roupa ... enfim ... até o trabalho. Nós fazia um barraco e ia trabalhar, a hora que acabava a mercadoria a gente vinha embora (...)

De sua experiência em Sorriso, relatou a exploração do trabalho e visivelmente triste afirmou: “(...) a gente se mete nessas jogadas depois perde o medo de tudo ... e ... se vive bem acha bom e ... pra viver ruim é preferível morrer (...).”

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Sobre Sorriso, relatou: (...) vim pra aqui to com 2 anos... Cheguei em ... 2001 e ainda tô aqui chutando pela estrada (...), e doido pra ir embora daqui que aqui tá péssimo, (...) Eu vim pra cá porque ... o meu caso é dinheiro (...) hoje já com 60 anos to... meio que me sinto cansado (...) montei um comércio, abri uma firma (...) era mercearia São Judas Tadeu ... fechei. (...) fui vendendo e tava correndo dinheiro na praça tava tudo indo em paz, depois começou sumir o dinheiro (...) aí eu fui obrigado parar porque vi o rumo da falência, e antes que passá vergonha a gente corta o barato (...) porque nem só de pão vive o homem mas do poder de Deus, e comerciante pode viver de outra maneira ... (...) e agora ultimamente to sendo servente de pedreiro, pedreiro, uma hora eu sou pedreiro outra hora eu sou servente ... (...) tem hora que a gente passa bastante apurado, fome não passa porque o homem que tem fé em Deus (...) ele não passa fome e nem nueza também ... (...) pra interar nem casa eu não tenho, pago aluguel desse barraco aqui ... (...).

Aspecto interessante de se observar na narrativa do seu P.J é que seu relato vai a contrapelo do discurso oficial. Não possuindo condições de continuar vivendo num lugar onde vive “chutando pela estrada”, o entrevistado pretende “sair de cena”, se retirar. Planeja um novo deslocamento ao projetar o seu futuro. Não há o que o prenda, “pra interar nem casa eu não tenho”. Não possui um trabalho que possa servir como incentivo para se fixar. Atuou em profissões as mais diversas, no entanto, expressou uma profunda tristeza ao dizer que ás vezes “passa bastante apurado”. Expressão reveladora das privações que muitas famílias de trabalhadores pobres conhecem tão bem. Seu J.P.S. ao rememorar, busca reconstruir suas experiências através da fala. A partir de suas lembranças vai, paulatinamente, (re) vivendo a vida de lutas que sempre enfrentou. Quando afirma que “nem só de pão vive o homem, mas do poder de Deus”, ele atribui um significado religioso em que se apega para explicar o vivido. Ao rememorar, busca sentidos e significados específicos para os acontecimentos que marcaram sua história. Na última entrevista, encerrou o relato afirmando de maneira saudosa em sua sabedoria adquirida através da experiência: “(...) e assim que foi... a luta deste velho maluco...”. Seu J.P.S. deu um belo desfecho à sua narrativa. Imprimiu significado à sua história de vida por meio da memória. Benjamin (1994) assinala que articular historicamente o passado não significa conhecê-lo “como ele de fato foi”. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo. Segundo o autor, “(...) o passado só se deixa fixar, como imagem que relampeja irreversivelmente, no momento em que é reconhecido”. (Op. Cit, p. 224).

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Se a pesquisa empírica possibilitou constatar uma cidade de contrastes, uma revisão bibliográfica específica contribuiu para entender que “à medida que ocorre o povoamento, a conseqüência é a desigualdade constante” (CARDOSO E MÜLLER, 1997). Olhando mais detida e atentamente é possível perceber as táticas, práticas e representações de homens e mulheres que, ao longo de suas vidas, acumularam experiências, e, agora, têm em Sorriso o palco para desenvolverem ações presentes e descreverem vivências de outros tempos. No quebra-cabeça das experiências vivenciadas, as lembranças são peças que, ao encaixarem-se umas às outras, o decifram (re) construindo e dando sentido à narrativa das histórias de vida. A história da colonização em Sorriso pode ser analisada sob diversas perspectivas, possibilitando levantar questões sobre o poder da representação e sobre como e por que alguns significados são preferidos relativamente a outros. Considerando que as práticas de significação envolvem relações de poder, são essas práticas, definidoras do que se pode revelar e do que se deve ocultar.

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Considerações Finais

Nesta dissertação discutiram-se alguns aspectos relacionados à representação que o estado de Mato Grosso e alguns municípios, sobretudo aqueles cuja base econômica é a agricultura em larga escala, adquirem através da mídia. Nesse contexto, o município de Sorriso é representado como local promissor, como terra de prosperidade. A prática discursiva, em torno da produção agrícola de Sorriso, vai de uma certa forma, generalizando aquele espaço como se todo ele fora pleno de riquezas. A história oficial oferece uma visão do ponto de vista das elites, econômica e política. Nessa história que pretende homogeneizar, a população pobre não aparece, não têm vez e não tem voz. Todavia, para além das representações no mesmo espaço representado sob o ângulo da “riqueza” proporcionada pela agricultura, podem-se encontrar ambigüidades, considerando a complexa realidade social. Nesses locais podem-se destacar a presença de mulheres e homens destituídos de qualquer meio de subsistência (sem moradia ou em precárias habitações). “(...) as novas cidades (...) já nascem velhas, reproduzindo modelos carcomidos, revelando desde já os problemas da sociedade capitalista globalizada (...)” (GUIMARÃES NETO, 2000, p. 183). Nessas novas cidades os tempos históricos se fundem. O tempo da tecnologia, das modernas máquinas e equipamentos agrícolas não é o mesmo do trabalhador que ainda não aprendeu a operar com essa tecnologia moderna. A presença desse trabalhador nas áreas de colonização recente em Mato Grosso é, muitas vezes, estimulada pela mídia. Em busca de melhores condições de vida e (re) colocação no mercado de trabalho, trabalhadores e trabalhadoras são atraídos por diversas localidades em busca de trabalho e terra. Desconhecem a especificidade dos trabalhos oferecidos nessas cidades, se decepcionam com a situação encontrada, mas não desistem. Levam consigo o sonho de proporcionar à família uma vida com mais conforto e dignidade. Os relatos possibilitam conhecer os conflitos existentes em decorrência da multiplicidade de opiniões. Permitem também, perceber que há outras experiências relevantes a serem consideradas, além das generalizações dos sentidos atribuídos à história dominante. Segundo Laverdi: “é preciso sublinhar que as narrativas não nos poupam das tensões, sentimentos, dramas e sonhos nelas reveladas, sem dúvida alguma pouco dados a ver em registros escritos do cotidiano vivido” (2003, p. 231). Na ocasião das entrevistas, a relação construída entre entrevistadora e entrevistados/as

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é uma relação de respeito mútuo. Muitas passagens não foram registradas, pois foram contadas em confiança, como confidências, o que remete à afirmação de Ecléa Bosi (1997), de que lembrança puxa lembrança e seria preciso um escutador infinito. Ao poder (político, econômico) estabelecido não há interesse algum em focalizar histórias singulares de atores anônimos, não registradas nos documentos oficiais. Assim, uma história de orientação acadêmica, possibilita dar visibilidade a uma história silenciada, oculta. Quatro décadas após a implantação dos primeiros projetos de colonização em Mato Grosso, é possível constatar a diversidade e a complexidade das relações sociais constituídas nos espaços que deram origem a vários municípios, destacando-se especialmente aqueles cuja base da economia é a produção agrícola com alto grau de modernização e mecanização. Nesse amplo universo algumas ambigüidades podem ser observadas. Alguns municípios de Mato Grosso são representados pela mídia como locais onde é possível fazer fortuna muito facilmente. Há também uma maneira usual de se caracterizar os trabalhadores e trabalhadoras que convergem para esses municípios como “sonhadores”. A revista National Geographic (maio de 2004) publicou reportagem apresentando esses trabalhadores como os responsáveis pela formação de “guetos de pobreza”, o que caracterizaria a desigualdade social. Os novos núcleos urbanos que se formaram em Mato Grosso na segunda metade do século vinte, serviram de palco de convivência para grupos sociais heterogêneos. Dentre os entrevistados que eram agricultores em seu lugar de origem, muitos tiveram que aprender a trabalhar em garimpo e/ou se adequar ao trabalho urbano para garantir sua subsistência. Os relatos dos entrevistados e entrevistadas, tomados conjuntamente, revelam indícios que merecem atenção por sintetizarem a proposta desta dissertação de (des) construir a idéia de “predestinação para o sucesso”, desconsiderando questões mais amplas que estão intrinsecamente imbricadas. Como exemplo, pode-se citar a idéia sempre presente em diversas reportagens de que “os pioneiros se aventuraram”. Não eram pioneiros. Já haviam pessoas na área. A expressão “se aventurar” aliada à idéia de que os projetos de colonização que resultaram em algumas cidades em Mato Grosso, nasceram prósperas, predestinadas ao sucesso é um engodo. Nasceram do conflito, geraram (e geram) exclusão. Até mesmo a idéia de que esses projetos serviram para desafogar a pressão sobre a terra no Sul do país precisa ser revista, pois a concentração de terras naquela região, também aumentou. Se houve sucesso, foi algo efêmero.

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Se por um lado as representações referentes ao aspecto econômico que destacam a alta produtividade podem garantir investimentos no município em destaque, por outro, podem gerar no imaginário de muitos homens e mulheres sem trabalho e sem teto, a expectativa de poder se fixar no local em destaque, atraídos pelas imagens de riqueza disseminadas, as quais exercem atração e fascínio ao acenar com a possibilidade de um futuro promissor. Entretanto, vale lembrar, que as desigualdades sociais e a expropriação são características produzidas no e pelo próprio sistema capitalista. A colonização planejada oficial ou particular, contribuiu para a expansão da fronteira, em seu significado mais amplo. A política desenvolvida para executá-la (como os organismos e programas criados a partir do início da década de 70 do século XX), deveria servir de estratégia de controle para se evitar uma colonização maciçamente espontânea. Apesar disso, em Mato Grosso, os projetos de colonização geraram ocupação desordenada, intensa degradação ambiental, expulsão e extermínio de grupos indígenas, expropriação de comunidades de seringueiros, posseiros e imposição da grande propriedade. Em Sorriso como na maior parte das áreas com agricultura mecanizada (modernizada) em Mato Grosso, mais de 50% da área está apropriada por estabelecimentos com mais de 1000 hectares. Em relação às fontes orais, os relatos permitiram observar em Sorriso, que grande parte dos entrevistados para a pesquisa que se encontram na condição de trabalhadores urbanos, possuem origem agrária, rural. Como já se afirmou, ao proceder à utilização das fontes orais, descortina-se uma particularidade que não é possível de se perceber através da história oficial. Esta quer fazer crer que há apenas riqueza, contribuindo de certa forma, para ocultar as diferenças e as desigualdades existentes, assim como também não revela as situações de embate que muitas vezes ocorrem. Os relatos podem demonstrar ainda, que a memória pode ser identificada como processo de construção e (re) construção de lembranças na condição do tempo presente. A ação de (re) lembrar pode inserir-se nas múltiplas possibilidades de elaboração das representações e de reafirmação das identidades construídas na dinâmica da história, o que permite refletir sobre o significado dessas memórias na afirmação de alteridades e lutas abertas ao tempo presente, pois segundo Le.Goff:

Sabemos agora que o passado depende parcialmente do presente. Toda história é bem contemporânea, na medida em que o passado é apreendido no presente e responde, aos interesses, o que não é só inevitável, como legítimo. Pois que a história é duração, o passado é ao mesmo tempo passado e presente (1996, p. 51).

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Estudar as memórias dessas mulheres e homens, trabalhadoras e trabalhadores pobres possibilita entender um pouco mais a sua história de vida. Permite verificar suas motivações ao se deslocarem para um local que não conheciam. A trajetória de dona M.S é reveladora de suas aspirações futuras quando relatou que durante muito tempo trabalhou como bóia-fria. Vieram para Mato Grosso porque o esposo, ao “aprender a trabalhar com máquina de esteira”, pretendia, através de seu trabalho, possibilitar uma vida com menos privações à sua família. O “aprender a lidar com o maquinário” no relato de dons M. S. simbolizou, na perspectiva da entrevistada, uma possibilidade de menos esforço físico e maior renda. A história de vida dessa senhora expressa o papel atuante de uma mulher que, sozinha e com doze filhos, precisou desempenhar a função de chefe de família. A riqueza de sua experiência (não fosse a possibilidade do trabalho com a memória oral), certamente estaria perdida nos desvãos da história, oculta por uma memória que se pretende “unificada”. Enquanto o teor das várias reportagens já apontadas ao longo do texto, pretende disseminar a idéia de uma memória hegemônica, os relatos apontam em direção oposta: espaço de controle, falta de oportunidade de empregos, moradia, lazer. O relato do seu J.P.S. vai a contrapelo do discurso oficial ao afirmar que pretende “sair de cena”. Vivendo em Sorriso, desde 2001, relatou algumas memórias de estranhamento vivenciadas em Sorriso, além de expressar também seu descontentamento com a falta de oportunidade de emprego. Os relatos apontam para as tensões vivenciadas pelos entrevistados e entrevistadas que estão em uma busca constante por melhores condições de trabalho e conseqüentemente, melhores condições de vida. A história da colonização de Sorriso é, então, na perspectiva dessa pesquisa, abordada como um processo construído por homens e mulheres de maneira compartilhada, ambígua, complexa e contraditória. Trata-se de pessoas as mais diversas, com seus sonhos, anseios, suas lutas, enfim, que se fazem histórica e culturalmente, num processo em que as dimensões individual e social são e estão intrinsecamente imbricadas.

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Fontes

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EDÍLSON JOSÉ SANTOS – Nascido em 1953 no interior do estado do Espírito Santo, migrou da localidade em que vivia para São Paulo e depois, para Deodápolis em Mato Grosso do Sul. Casado, 3 filhos. Migrou com sua família de Deodápolis para Sorriso em 1982. Trabalhava como “catador de raiz”. Atualmente faz serviços diversos.

LUZIA FELIPE MACIEL – Nascida em 1953, natural de Santa Rita de Cássia, Minas Gerais. Ainda na adolescência conheceu o seu Anísio. Casaram-se e passaram a “procurar um lugar melhor pra viver”, conforme relataram. D. Luzia e seu Anísio explicaram que têm a saúde frágil em conseqüência das incontáveis malárias que “pegaram nas andanças”.

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MANOEL MESSIAS – Nascido em Viçosa, Alagoas em 1944. Filho de agricultores migrou com os pais por vários lugares antes de se casar. Casou-se em 1967, migrou para Rondônia no início da década de 1970 e logo depois, para Mato Grosso. Em Mato Grosso, migrou para diversas localidades “chutando pela estrada”, antes de se deslocar para Sorriso em 2001. Pretende sair novamente em busca de “um lugar melhor”, pois afirmou não ter se adaptado.

Outras entrevistas (transcrições cedidas pela professora Odila Bortoncello/Sorriso)

ALCINO MANFRÓI – Migrou de Curitiba para o local onde á atualmente o município de Sorriso em 1976. Segundo ele, um fator importante para que adquirisse terras na localidade citada, foi o projeto especial desenvolvido pelo Governo Federal para o cerrado, o POLOCENTRO. Produtor rural. ALBERTO FRÂNCIO – Irmão do colonizador Claudino, Alberto Frâncio foi um dos sócios no projeto inicial na compra de terras em maio de 1973 onde atualmente localiza-se o município de Sorriso. Residia em Curitiba. Produtor rural. Para ele, uma das maiores dificuldades enfrentadas na fase inicial, foi o fato de que em Mato Grosso, não havia muitas informações sobre como trabalhar com agricultura no cerrado. ARÉSSIO PAQUER – Atuando juntamente com a Colonizadora, foi um dos responsáveis pela empresa que prestava assistência técnica em relação ao manejo do solo na fase de implantação do projeto inicial (PLATEC). Em 1992, no governo de Jayme Campos, foi Secretário de Agricultura e Assuntos Fundiários. JOSÉ VÍGOLO – natural de Videira, Santa Catarina. Veio ver terras junto com um dos irmãos Frâncio em setembro de 1975. Produtor rural, afirmou que o POLOCENTRO foi fundamentalmente importante para que implantassem a agricultura no início de 1978.

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Anexo

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