TIAGO RICCIARDI CORREA LOPES

September 1, 2016 | Author: Victor Gabriel Meneses Porto | Category: N/A
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1 UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS UNISINOS UNIDADE ACADÊMICA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃ...

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UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS – UNISINOS UNIDADE ACADÊMICA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO NÍVEL DOUTORADO

TIAGO RICCIARDI CORREA LOPES

AURA E VESTÍGIOS DO AUDIOVISUAL EM EXPERIÊNCIAS ESTÉTICAS COM MÍDIAS LOCATIVAS: PERFORMANCES ALGORÍTMICAS DO CORPO NO ESPAÇO URBANO

SÃO LEOPOLDO 2014

Tiago Ricciardi Correa Lopes

AURA E VESTÍGIOS DO AUDIOVISUAL EM EXPERIÊNCIAS ESTÉTICAS COM MÍDIAS LOCATIVAS: PERFORMANCES ALGORÍTMICAS DO CORPO NO ESPAÇO URBANO

Tese apresentada como requisito parcial para obtenção de título de Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos. Área de atuação: Comunicação Orientadora: Prof.ª Dra. Suzana Kilpp

São Leopoldo 2014

L864a

Lopes, Tiago Ricciardi Correa. Aura e vestígios do audiovisual em experiências estéticas com mídias locativas : performances algorítmicas do corpo no espaço urbano / Tiago Ricciardi Correa Lopes. – 2014. 235 f. : il. ; 30 cm. Tese (doutorado) – Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação, 2013. “Orientadora: Prof.ª Dra. Suzana Kilpp.” 1. Mídias locativas. 2. Audiovisualidades. 3. Espaço urbano. 4. Performance. 5. Deriva. I. Título. CDU 659.3

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Bibliotecário: Flávio Nunes – CRB 10/1298)

TIAGO RICCIARDI CORREA LOPES

AURA E VESTÍGIOS DO AUDIOVISUAL EM EXPERIÊNCIAS ESTÉTICAS COM MÍDIAS LOCATIVAS: PERFORMANCES ALGORÍTMICAS DO CORPO NO ESPAÇO URBANO

Tese apresentada como requisito parcial para obtenção de título de Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos:

Aprovado em 16 de janeiro de 2014

BANCA EXAMINADORA

AGRADECIMENTOS Que uma tese de Doutorado não se faz sozinho, todos sabem. Daí a importância de agradecer aos que me acompanharam ao longo de um caminho em que os obstáculos não foram poucos nem fáceis de transpor. Agradeço aos coordenadores de curso da Unisinos pelas manobras em minha alocação nas turmas de graduação e pela compreensão às ausências nas reuniões de colegiado: Cybeli Moraes e Daniel Bittencourt (Comunicação Digital); Sérgio Trein (Publicidade e Propaganda); Edelberto Behs (Jornalismo); João Bittencourt, Luiz Gonzaga Jr. e Fernando Marson (Jogos Digitais); Milton do Prado (Realização Audiovisual). À Sonia Montaño, por ter se disposto a ler e comentar com muita competência trechos do trabalho e, acima de tudo, por me incentivar com sua leveza, positividade e humor incomparáveis. Ao Rumenig Pires, o último filósofo de Sapucaia do Sul, por ter me ajudado a encontrar vários casos e referências que aparecem neste relatório de pesquisa. Aos amigos (e também colegas) Fabricio Silveira, Guilherme Caon e Adriana Amaral pelos momentos de “descontração produtiva” em congressos, eventos e outros tantos fóruns de discussão. Ao Gustavo Fischer, pelos seus conselhos que conseguem combinar de forma única sabedoria ancestral com referências da cultura pop. Num momento crucial foi ele quem chegou e me disse algo mais ou menos assim: “Há momentos na vida de um homem em que é necessário retirar ‘certos ídolos’ do pedestal”. Sem esse conselho talvez eu não conseguisse completar esta tese antes dos 40 anos. Mas se todos sabem que uma tese de Doutorado não se faz sozinho, somente quem já passou por uma sabe também o quão solitário é o trabalho de pesquisa. É por isso que deixei para o final o meu agradecimento à Suzana Kilpp. Para além de me orientar no processo de realização do trabalho, a Suzana teve também a árdua tarefa de me ajudar a enxergar e a conter as minhas (muitas) linhas de fuga. “Mais importante do que aprender a fazer uma pesquisa de tese é aprender o caminho para ser um pesquisador – e um pesquisador não se faz sem imersão”, já diria Suzana durante o período de “internação” que tivemos na reta final do trabalho. E não poderia deixar de agradecer também aos meus familiares e amigos por compreenderem a minha ausência, principalmente nos últimos meses. Mas meu maior agradecimento é à Camila Farina, que ao longo desse tempo foi também um pouco doutoranda. É bem provável que seja ela a pessoa que mais tenha a comemorar o término desta pesquisa, afinal, termina-se uma tese, ganha-se (de volta) um marido.

RESUMO Esta tese trata dos regimes de visualidade que surgem como consequência da presença massiva de tecnologias de computação móvel na cultura midiática contemporânea. Em especial, interessam os processos de agenciamento do olhar (e do corpo) que se efetuam no campo dos novos formatos audiovisuais que empregam tecnologias móveis de comunicação e geolocalização em seus processos formais e estéticos (os quais chamamos no contexto desta pesquisa de audiovisuais locativos). Questionamos, em primeiro lugar, quais relações (estéticas, simbólicas, performáticas) podem ser estabelecidas entre as imagens técnicas exibidas nas telas de dispositivos móveis e as paisagens das cidades. Questionamos também qual o papel assumido pelo corpo dos usuários de dispositivos móveis em contextos de interação com aplicações de audiovisuais locativos. Para tanto, desenvolvemos com base nas cartografias benjaminianas um método de invenção de constelações de afinidades, a partir do qual desenvolvemos nossas observação através de um duplo movimento: por um lado, traçamos conexões com outros fenômenos contemporâneos que tomam forma no campo da produção estética e experimental com mídias locativas; por outro lado, procuramos cartografar movimentos genealógicos de recuperação, filiação e ruptura das tendências autenticadas nos objetos empíricos analisados com formas culturais do passado. Com isso, colocamos em perspectiva noções oriundas do campo de estudos da imagem, tais como as de “tela”, “quadro” e “enquadramento”, “campo” e “fora de campo”, “montagem”, dentre outras. Por fim, procuramos defender a ideia de que as imagens que despontam hoje atravessadas pelos códigos culturais das mídias locativas são produzidas para serem, acima de tudo, intuídas através do engajamento todo do corpo e por isso demandam metodologias de análise de imagens que deem conta de seu potencial para produzirem efeitos de presença mais do que para representarem ou simularem outros mundos. Palavras-chave: Mídias locativas. Audiovisualidades. Performance. Deriva. Espaço urbano.

ABSTRACT This thesis deals with the regimes of visuality which arise as consequence of the massive presence of mobile computing technologies in the contemporary mediatic culture. As a matter of fact, it specially concerns the processes of agency of the look (and body) that are effected in the field of new audiovisual formats - which are called locative audiovisual employing communication and geolocation mobile technologies on their formal and aesthetic processes. It is called into question what relations (aesthetic, symbolic, performative) are established among technical images on the screens of mobile devices and cityscape. It is also questioned the role taken over by the body of users of mobile devices in contexts of interaction with locative audiovisual applications. Therefore, we have developed a method of inventive constellations of affinities, based on Walter Benjamin’s cartography, from which we carry out our observation through a double movement: on one hand we draw connections to other contemporary phenomena that take form in the field of aesthetic and experimental production with locative media. On the other hand we tried to establish genealogical movements of retrieval, comparison, belonging and rupture of the perceived trends in the analyzed objects with cultural forms from the past. This way we put notions derived from the image field of study - such as canvas, frame and framing, field and off the field, assembly, among others - into perspective. Finally we aim to defend the idea that today images that stand out crossed by cultural codes of locative medias are produced in order to be intuited rather than perceived and thus they require analysis that are able to comprehend their potential to produce effects of presence more than to represent or simulate other worlds. Keywords: Locative media. Audiovisualities. Performance. Drift. Urban space.

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Fotograma do vídeo de divulgação de Augmented Reality Cinema ........................ 19 Figura 2 – Sobreposição de imagens em Street Musueum of London ...................................... 20 Figura 3 – Divulgação Playstation Move ................................................................................. 60 Figura 4 – GPS Alien Attack ..................................................................................................... 65 Figura 5 – Funeral do Papa João Paulo II em 2005 .................................................................. 87 Figura 6 – Posse do Papa Francisco em 2013 .......................................................................... 87 Figura 7 – Capela Scrovegni .................................................................................................... 90 Figura 8 – Cidadão Kane ......................................................................................................... 92 Figura 9 – The Wilderness Downtown...................................................................................... 97 Figura 10 – Tell me TV ........................................................................................................... 108 Figura 11 – Theme Song ........................................................................................................ 110 Figura 12 – Compartilhamento de imagens entre telefones celulares .................................... 112 Figura 13 – Tactil Table ......................................................................................................... 113 Figura 14 – Google Glass ....................................................................................................... 114 Figura 15 – Sixth Sense........................................................................................................... 115 Figura 16 – Afresco da Capela Sistina ................................................................................... 118 Figura 17 – Escapando de la crítica....................................................................................... 118 Figura 18 – Técnica de trompe-l’oeil em intervenção urbana ................................................ 119 Figura 19 – Building projection mapping 555 Kubik ............................................................. 120 Figura 20 – Laser tag Graffiti Research Lab ......................................................................... 122 Figura 21 – D-Tower .............................................................................................................. 124 Figura 22 – Aplicativo Layar de realidade aumentada .......................................................... 127 Figura 23 – Fotogramas de vídeos de divulgação de aplicativos de cinema de caminhada ... 137 Figura 24 – Aviso em Walking Cinema: Murder on Beacon Hill .......................................... 138 Figura 25 – Sequência de fotogramas do vídeo de divulgação de Nine Lives........................ 146 Figura 26 – Fotograma do vídeo de divulgação de Augmented Reality Cinema .................... 150 Figura 27 – Tavoletta de Brunelleschi .................................................................................... 161 Figura 28 – Street Museum of London ................................................................................... 164 Figura 29 – Pôster da visita dadaísta à igreja Saint-Julien-le-Pauvre.................................... 178 Figura 30 – A Line Made By Walking.................................................................................... 186 Figura 31 – A Six-Day Walk Over Roads... ............................................................................ 187 Figura 32 – Projeto da instalação Life and Creativity of Charles Rosenthal ......................... 200 Figura 33 – Algoritmo .walk anotado em uma folha de papel ............................................... 205 Figura 34 – Algoritmo performativo de deriva ...................................................................... 205 Figura 35 – Registro do algoritmo performativo de deriva .................................................... 206 Figura 36 – Mapa do aplicativo Walking Cinema: Murder on Beacon Hill .......................... 210

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 9 1. 1.1 1.2 1.3

AMBIÊNCIA TECNOCULTURAL DAS MÍDIAS LOCATIVAS.......................... 33 ESPAÇO ACÚSTICO DOS MEIOS COMPUTACIONAIS MÓVEIS ......................... 40 VIRADA ESPACIAL E ESPAÇOS MULTIRRELACIONAIS .................................... 55 ESPAÇOS AURÁTICOS ............................................................................................... 69

2. 2.1 2.2 2.3

APONTAMENTOS GENEALÓGICOS DA IMAGEM COMO PRESENÇA....... 85 TELAS DENTRO DE TELAS ....................................................................................... 89 INSTALAÇÕES MULTIMÍDIA .................................................................................. 100 TELAS URBANAS ...................................................................................................... 112

3. 3.1 3.2 3.3

PAISAGENS AURÁTICAS: IMAGEM-MAPA E MIXAGEM ESPACIAL ....... 130 CAMPO, FORA DE CAMPO E MONTAGEM ESPACIAL ...................................... 136 PAISAGEM AURÁTICA E IMAGEM-MAPA........................................................... 151 MIXAGENS ESPACIAIS ............................................................................................. 155

4. 4.1 4.2 4.3 4.4

ALGORITMOS PERFORMATIVOS DE NARRATIVA E DERIVA .................. 172 DERIVAS, EXPLORAÇÕES E INSCRIÇÕES DO CORPO NO ESPAÇO ............... 175 DEVIRES AUDIOVISUAIS DO ESPAÇO URBANO PERCORRIDO ..................... 189 DERIVA E NARRATIVA EM AMBIENTES DIGITAIS .......................................... 193 ALGORITMOS PERFORMATIVOS........................................................................... 202

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 221 REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 228

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INTRODUÇÃO

Desde meados dos anos 1980, quando as tecnologias digitais passaram a estar presentes com maior intensidade nas estruturas formais das mídias, as consequências desse movimento começaram a ser percebidos em diversas áreas da cultura. No campo da Comunicação, a base técnica digital acelerou o movimento de dissolução das fronteiras entre os meios, acarretando processos de convergência tecnológica e de contaminações estéticas entre as mais diversas formas expressivas. No que se refere aos processos de criação de imagens técnicas, tal processo alterou (e continua a alterar) o próprio entendimento sobre o que é, hoje em dia, uma “imagem”. Nesse sentido, a crescente proliferação de tecnologias de captura, edição, distribuição e recepção de conteúdos digitais imagéticos1 apresenta como uma de suas consequências um intenso processo de audiovisualização da cultura (KILPP, 2010), a partir do qual surgem ambientes urbanos em que os dispositivos de transmissão (painéis eletrônicos, aparelhos televisores, celulares, displays de informação, dentre outros) e de captura de imagens (câmeras de vigilância, webcams, câmeras de celulares e todo o tipo de microcâmeras) se mostram tão simbioticamente integrados ao contexto das cidades que, de certa maneira, já não se diferenciam mais de outros elementos que compartilham com eles os mesmos espaços. Tudo isso conduz a um novo cenário do qual emergem, atualmente, novos regimes de visibilidade e de conhecimento que desafiam a compreensão de teóricos dos meios de comunicação, profissionais de mídia, artistas e todos aqueles que se dedicam a pensar sobre o estatuto da imagem contemporânea. Ainda como decorrência da assimilação das bases técnicas digitais pelos meios de comunicação, presenciamos também, no último decênio, a acelerada expansão de tecnologias computacionais móveis2 e serviços de informação baseados em localização. Após vivenciarmos os impactos da presença massiva de computadores pessoais em nossa sociedade e, posteriormente, a revolução das redes de compartilhamento que tornaram possível a conexão generalizada de hardwares computacionais através de imensos sistemas coletivos 1

Pensemos no surgimento da câmera de vídeo, nos anos 1960, e do videocassete nos anos 1970 (e de todos os players de vídeo de uso doméstico que o sucederam); no barateamento dos aparelhos televisores; na popularização dos computadores e dos softwares de edição de imagens; na multiplicação de displays de informação em espaços públicos. 2 Por “tecnologias computacionais móveis” compreende-se o conjunto de equipamentos e serviços baseados em tecnologias computacionais de telecomunicação móvel e de acesso a redes telemáticas, que se multiplicam nas sociedades contemporâneas. Ao longo do texto, por vezes utilizaremos a forma contraída “tecnologias móveis”, como também os termos “mídias computacionais móveis” e “mídias móveis” como sinônimos. Já o termo “dispositivo móvel” acaba ficando mais restrito a hardwares portáteis, como os telefones celulares.

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(em que a web se tornou a grande referência desse tipo de configuração), estaríamos entrando agora numa terceira fase das telecomunicações, a dos “computadores coletivos móveis” (LEMOS, 2004, p. 19), fundada no conceito de computação ubíqua e sem fio.3 Com efeito, até hoje nenhuma tecnologia se espalhou tanto e tão rapidamente quanto as chamadas mídias móveis (BAMBOZZI, 2010). Em larga medida, já não nos surpreendem mais as telas touch screen dos telefones celulares e tablets multifuncionais, nem a presença de sistemas de navegação (GPS) acoplados aos painéis dos automóveis, assim como já se tornaram banais as zonas Wi-Fi de acesso irrestrito à web em lugares públicos. Quando colocados em perspectiva, os hardwares computacionais móveis (celulares, videogames portáteis, tablets, navegadores GPS, dentre outros) conectados às redes de telecomunicação (Wi-Fi, 3G, 4G, Bluetooth etc.) surgem como parte de um conjunto mais amplo de fenômenos contemporâneos que respondem a certas disposições de nossa época, dentre as quais se destacam os desejos por trânsito e mobilidade, mas também – e paradoxalmente – por espacialização e territorialização, conforme veremos ao longo deste relatório de pesquisa. Com a ascensão das tecnologias e dos sistemas baseados em localização e comunicação, passamos a dispor de meios para a geração de vínculos entre sistemas de dados digitais e ambientes espaciais físicos e geográficos que dão origem a novas formas de configuração e uso do espaço público. Assim, presenciamos a emergência de um estágio em que, como consequência de processos que colocam em interconexão redes on e offline, pode-se estar sempre vinculado a espacialidades e temporalidades múltiplas – as configurações cíbridas de que nos fala Beiguelman (2010). Nesse cenário, o termo “mídias locativas” 4 tornou-se uma espécie de guarda-chuva conceitual que cobre um amplo espectro de estratégias e táticas em torno do emprego de tais tecnologias para o desenvolvimento de novas formas de articulação entre dados informacionais e espacialidades físicas e geográficas. À medida que se tornam acessíveis a parcelas cada vez mais amplas da sociedade, um conjunto de novas formas de apropriação das mídias locativas surge como alternativa para a criação de possibilidades expressivas, com motivações e finalidades muito distintas entre si,

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Conforme tentaremos mostrar ao longo do trabalho, em nosso discurso predomina uma abordagem que procura encontrar nos fenômenos contemporâneos os traços ou vestígios de tendências virtuais que nunca cessaram de existir e, nesse sentido, passado e presente se mostram por vezes como um amálgama em que as qualidades de um e outro se contaminam reciprocamente. No entanto, se em algumas passagens do texto adotamos perspectivas historicizantes, colocando o presente em relação de causa e efeito com o passado, o fazemos apenas como estratégia retórica para introduzir didaticamente processos diferenciantes que se mostram, ao fim, muito mais ricos e complexos. 4 Segundo Griffis (2010), o conceito de “mídias locativas” faz referência a processos de interação social gerados a partir da articulação entre meios computacionais móveis e territórios geográficos, sejam eles para fins comerciais ou de vanguarda crítica.

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que de longe superam as expectativas de funcionalidade para as quais foram originalmente previstas pelas empresas e organizações institucionais responsáveis por sua fabricação e comercialização. No campo da produção criativa com mídias locativas surgem novas formas culturais (MANOVICH, 2006) que oferecem estratégias inusitadas de articulação entre espacialidades físicas e informacionais. Uma das principais características de projetos (sobretudo artísticos, mas não somente) que se efetuam com o uso de mídias locativas é a incorporação do espaço físico, geralmente urbano, como parte fundamental da experiência. Com efeito, vários trabalhos com mídias locativas utilizam alta tecnologia para estabelecerem um fecundo diálogo com práticas cotidianas que se efetuam nas ruas, a céu aberto: caminhadas, visitas a locais turísticos, jogos de rua, fotografia amadora, entre outras atividades, são apropriadas e recodificadas nos contextos de uso dos dispositivos móveis com finalidades locativas. Assim, não somente o sentido humano da visão, mas todos os outros sentidos do corpo (seja o corpo dos artistas ou dos participantes) se constituem como destinatários dos estímulos (visuais, sonoros, táteis, cinestésicos) produzidos tanto pelo aparato técnico quanto pelos elementos que integram o ambiente espacial em que a performance é experimentada. Dessa maneira, o corpo como um todo é demandado a se envolver e a participar ativamente no processo comunicacional que toma forma com o aporte de tais tecnologias: ora assumindo-se como um corpo que se movimenta pelo espaço sob a regência de instruções pré-programadas na memória do dispositivo técnico, ora como um corpo produtor de rastros e inscrições por onde passa e que são captadas, analisadas e interpretadas pelo aparato midiático e traduzidas em imagens. À medida que se popularizam, os dispositivos móveis transformam a paisagem contemporânea, colorindo com suas telas luminescentes os ambientes públicos e privados das cidades. Se a tela do cinema pode ser considerado o marco referencial a partir do qual se funda o pensamento sobre a imagem em movimento, ao longo do último século outros tantos tipos de telas juntaram-se a ela. Primeiramente foram as telas dos monitores de vídeo (especialmente a dos aparelhos televisivos), as quais deram origem a outras formas de entendimento sobre o audiovisual – o estado-vídeo de que nos fala Dubois (2004). Na virada para o século XXI, às já consagradas telas do cinema e do vídeo se somaram as telas dos computadores pessoais, e, mais recentemente, são as telas dos dispositivos móveis que nos oferecem um quarto cenário de reflexão sobre o estatuto das imagens técnicas na contemporaneidade, a partir do qual passam a operar novas lógicas de produção e consumo, de controle e liberdade, e também de éticas e estéticas tecnológicas (SANTAELLA, 2007),

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que indicam modos específicos de inscrição da subjetividade através de usos e apropriações táticas sobre tecnologias de comunicação conectivas e móveis. Assim, no que tange aos interesses de investigação que norteiam esta pesquisa, em meio a um vasto universo de manifestações estéticas que tomam forma através das práticas de experimentação com mídias locativas, nos interessam particularmente algumas delas que expressam um claro desejo de articulação entre a imagem, o espaço e o corpo nos ambientes urbanos contemporâneos. Tais manifestações, que se dão a ver na forma de projetos artísticos, turísticos, publicitários etc., tensionam o entendimento sobre o que é hoje uma “imagem” ao produzirem experiências estéticas que colocam em diálogo performance corporal, percepção espacial e produção imagética. No mais das vezes, trata-se de propostas de experimentação com mídias móveis que atualizam o cinema e outras formas audiovisuais em situações em que a paisagem do ambiente e a performance corporal do espectador ganham centralidade. Nessas situações, nem sempre nos deparamos com uma configuração da imagem tal como estamos habituados a encontrar nas mídias audiovisuais “tradicionais”5 (como no cinema e na televisão): são imagens que em sua constituição material se mostram “precárias” e que por isso tendem ao “desaparecimento”, conforme a argumentação defendida neste texto. Em outros termos, trata-se de projetos e obras artísticas com mídias locativas que nos chamam a atenção justamente por comunicarem à nossa intuição certa qualidade audiovisual, algo que os inscreve no domínio da tradição do cinema, do vídeo, dentre outras formas que atualizam a virtualidade audiovisual, mas que, contudo, parecem apontar ainda para outras direções (as quais não sabíamos quais eram até iniciarmos esta pesquisa). Para que o leitor não tenha de ficar imaginando sobre qual tipo de objeto estamos nos referindo, vamos ao exemplo do “filme de GPS” Nine Lives – o primeiro caso a que tivemos acesso, tendo sido, portanto, o deflagrador dos movimentos que se sucederam depois e que culminaram no que está aqui exposto. No site do filme de GPS 6 Nine Lives (2008), encontramos já na página de abertura uma descrição do projeto: “O filme de GPS oferece uma nova forma de assistir a filmes usando o lugar e o movimento do espectador para revelar a história.”7 (HESSELS, 2008, s/p, tradução nossa). Nine Lives foi desenvolvido pelo artista de artes visuais Scott Hessels em parceria 5

O termo “tradicional” vai assim, entre aspas, porque temos consciência de que uma divisão do tipo “mídias tradicionais” em oposição a “novas mídias” é sempre frágil e pouco interessante para o debate. Dizer que o cinema e a televisão são “tradicionais”, no contexto deste trabalho, significa apenas enfatizar o fato de que a assimilação das linguagens e das estéticas destes meios por nossa cultura é tão completa que o surgimento de novos formatos audiovisuais se faz sempre com referência e em comparação a eles. 6 No original, em inglês: GPS film. Trata-se, inclusive, de uma marca registrada pelo artista. 7 No original, em inglês: GPS Film invents a new form of film-viewing experience by using the place and movement of the viewer to reveal the story.

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com alunos da Nanyang Technological University de Singapura e se tornou conhecido por ter sido um dos pioneiros a empregar o sistema de localização GPS como parte do dispositivo de recepção de uma obra cinematográfica. Trata-se de um aplicativo para dispositivos móveis8 que contém em sua estrutura uma grande quantidade de arquivos de vídeo que correspondem, cada um deles, a uma das cenas do filme. Se assistido em separado do contexto do projeto, o conteúdo de cada arquivo nada mais é do que um trecho de um filme comum (desses que assistimos no cinema, na televisão ou na tela do computador), seja em termos de estética, de linguagem ou de narrativa. O diferencial do referido projeto encontra-se, portanto, no modo como o espectador assiste ao filme: para conseguir ter acesso a cada uma de suas cenas ele deve (preferencialmente)9 estar situado em determinados pontos geográficos da cidade (neste caso, da cidade de Singapura). O processo funciona mais ou menos assim: na medida em que o usuário-espectador se desloca pela cidade, o sistema de rastreamento via GPS embarcado no dispositivo móvel vai reconhecendo seu posicionamento no espaço geográfico; quando então alcança as coordenadas de latitude e longitude correspondentes a uma determinada localidade pré-programada na memória do aparelho, o sistema então libera um conteúdo – no caso em questão uma cena do filme é desbloqueada para ser assistida. Assim, o espectador tem a chance de assistir a um trecho do filme que tem como cenário o próprio ambiente em que ele se encontra situado. O que nos chamou a atenção em Nine Lives, longe de ter sido o conteúdo fílmico propriamente dito, foi a relação estabelecida entre a imagem, o espaço e o corpo em deslocamento do usuário do dispositivo móvel pelo território da cidade. Foi, portanto, a partir de nossa inquietação frente a este projeto em particular que surgiram as principais questões que motivaram o desenvolvimento desta pesquisa, as quais poderiam ser formuladas assim: dada a peculiaridade do dispositivo de recepção audiovisual apresentado em Nine Lives, poderíamos considerá-lo, mesmo assim, como um “filme”? Em caso afirmativo, num contexto em que a imagem faz referência direta ao espaço em que o espectador encontra-se situado, como esta característica do dispositivo de recepção afeta a recepção da imagem? E como, por outro lado, afeta a percepção do ambiente (espacial) em que a experiência toma forma? O fato 8

Na época em que Nine Lives foi concluído, em 2008, ele havia sido projetado para palm tops que traziam embarcada uma das primeiras versões do Windows Mobile, o sistema operacional para dispositivos móveis da empresa Microsoft. Infelizmente o software não foi atualizado desde então e tampouco foi portado para outras plataformas. Por conta disso, não conseguimos testar o projeto em nenhum dos dispositivos atuais. 9 Com relativa facilidade é possível abrir o arquivo do sistema do aplicativo no computador e ter acesso à pasta em que os arquivos de vídeo estão armazenados. Não chegamos a testar o aplicativo (vide nota anterior), mas desconfiamos que a restrição ao acesso dos vídeos, condicionada à localização do espectador, seja apenas parcial, sendo possível acessá-los mesmo estando longe do local apontado (ainda que, evidentemente, não seja esta a forma “correta” de fruição sugerida pelo artista que desenvolveu o projeto).

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de que o espectador tenha que se deslocar pelo território da cidade para conseguir acessar os trechos de conteúdo audiovisual altera em que sentido a recepção de seu conteúdo (narrativo)? Quais outras variações deste dispositivo existem? A quais tradições da cultura visual poderíamos associar a visualidade emergente no referido projeto e com quais tendências da imagem contemporânea demonstra afinidade? Na época em que tivemos contato com Nine Lives pensávamos que se tratava de uma experiência isolada de articulação entre audiovisual e espaço geográfico com uso de mídias locativas. Contudo, tendo em vista que percebíamos em Nine Lives algo que parecia apontar para um fenômeno maior do que aquilo que nos dava a ver, passamos a procurar outros casos que demonstrassem afinidade com ele. Com certa dificuldade, devemos admitir, encontramos mais alguns projetos com características bastante semelhantes, isto é, audiovisuais que para serem assistidos demandam o deslocamento e o posicionamento geográfico específico do espectador e que são acessados por intermédio de dispositivos móveis. Mais adiante nesta introdução vamos apontá-los um a um, por ora importa somente destacar que, com o tempo, passamos a chamar de “audiovisuais locativos” o conjunto genérico de casos que apresentassem características semelhantes às de Nine Lives. A nosso ver, os audiovisuais locativos sinalizam o sintoma da emergência de uma cultura audiovisuoespacial (MANOVICH, 2006) que começa a tomar forma na medida em que os bancos de dados que integram as mídias digitais10 passam por determinados processos de estetização que, ao invés de enunciá-los como imagens que representam “janelas” para outros mundos, acabam por projetá-los estética e conceitualmente em direção ao ambiente espacial, tal como encontramos nos já bastante difundidos casos de aplicações de tecnologias de realidade aumentada, nos atuais consoles de videogames que demandam o movimento do corpo do jogador, nos óculos inteligentes e outros acessórios vestíveis que se acoplam ao corpo dos usuários, como também nos aplicativos para dispositivos móveis que auxiliam em atividades esportivas e turísticas que se realizam a céu aberto. Conforme procuramos argumentar ao longo desta pesquisa, a visualidade emergente que encontramos em projetos muito específicos – os audiovisuais locativos – é solidária a fenômenos mais abrangentes que estão tomando forma em diferentes áreas da cultura visual e que em larga medida surgem como consequência de processos de digitalização e audiovisualização da experiência contemporânea. Em outros termos, nosso pensamento se

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Empregamos aqui o termo “mídias digitais” como referência a todo meio de comunicação que apresente na base de seus processos formais o emprego de tecnologias computacionais. Eventualmente, outros termos, como “mídias computacionais” e “tecnologias informacionais de comunicação”, podem ser usados como sinônimos.

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desenvolve da seguinte maneira: tendo em vista o avançado estágio de ubiquidade e pervasividade das tecnologias computacionais em todos os aspectos da vida cotidiana contemporânea, consideramos que em seu conjunto elas se apresentam como os principais meios ambientais (MCLUHAN, 2007) de nossa época, o que significa que estão se tornando, por um lado, cada vez mais invisíveis aos nossos olhos, ao passo que, por outro lado, suas lógicas, linguagens e estéticas começam a se fazer presentes em todo o ecossistema midiático e mesmo em todos os aspectos da cultura de um modo geral. Curiosamente, numa etapa preliminar de inserção e disseminação dos meios computacionais em nossa sociedade, algumas perspectivas apocalípticas alardeavam o medo da “perda” do contato com o “Real”, visto que uma das principais funções das tecnologias digitais é justamente traduzir para a esfera do digital todo o espectro de experiências individuais e coletivas. Contudo, à medida que tal processo de digitalização da experiência atinge um ponto máximo de saturação, seu avanço começa a se dar no sentido de uma “reversão” do meio (MCLUHAN; POWERS, 1995), isto é, ao contrário da desterritorialização generalizada e da “perda” do contato com a “realidade”, os meios digitais nos oferecem hoje inúmeras formas de reconexão com o espaço e de valorização de atividades que demandam participação intensa do corpo humano. Prova disso é que, longe das telas de computadores do tipo desktop (mas nem por isso distante das tecnologias computacionais), não param de surgir aplicações para dispositivos móveis que estimulam diferentes tipos de atividades para serem realizadas no ambiente da rua, cobrindo um extenso leque de possibilidades que vai desde a prática esportiva e o passeio turístico até jogos de rua adaptados para o contexto das tecnologias móveis. Portanto, consideramos que uma análise das relações entre a imagem, o espaço e o corpo pode ser iniciada tomando-se como base a corrente de estudos batizada de “virada espacial” (spatial turn) (JANSSON, 2005, p. 2), a qual vem tomando forma no campo da Comunicação e da Geografia à medida que expandem-se em nossa cultura os usos de tecnologias móveis para auxiliarem e promoverem atividades que se realizam nas ruas. Nossa contribuição a tal corrente de pensamento é apontar algumas tendências da imagem que ganham força quando articulam-se as propriedades algorítmicas dos meios computacionais a atividades performativas do corpo humano que se desenvolvem em espaços urbanos. Nesse movimento de (re)conexão com o mundo “out of screen”, que acontece en plein air, operado por intermédio de práticas que se realizam sobre tecnologias de comunicação móvel e de localização, interessa, portanto, compreender a natureza estética das novas formas de consumo audiovisual vinculadas aos espaços urbanos. A escolha por enfocarmos o uso de mídias locativas em articulação com o campo da produção e consumo de audiovisual se

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justifica, em grande parte, por percebermos aí uma lacuna nos estudos de Comunicação que se voltam ao tema da produção estética e midiática com tecnologias móveis. De modo geral, a maioria das análises sobre o tema é dedicada ou à problematização das formas de utilização de telefones celulares (e de outros dispositivos móveis) como meio de registro imagético, seja para fins jornalísticos, artísticos, turísticos etc., ou ao uso desses aparelhos para o consumo de vídeos, como, por exemplo, com a finalidade de assistir à programação de TV ou para acessar vídeos na web. 11 Reconhecemos que as pesquisas que se desenvolvem sob tais perspectivas são importantes para a formação de um pensamento comunicacional e crítico sobre o consumo de mídias móveis, principalmente por terem pautado o período inicial de investigações sobre o uso dessas tecnologias de comunicação desde o viés estético e midiático, no entanto, consideramos que elas se mostram por vezes demasiadamente presas a operações de remediação (BOLTER; GRUSIN, 2000), seja quando afirmam o uso da câmera dos dispositivos móveis para fins de registro (afiliando-se à tradição das câmera móveis de todos os tipos), ou quando tratam da “tela” desses aparelhos como mera extensão das funções de superfície de exibição de imagens já consagradas pelas telas de cinema, televisão, computadores, dentre outras. A nosso ver, a mera utilização de celulares como player de vídeo ou como câmera corresponde a regimes de exibição e captação ainda modelados pelas lógicas de meios audiovisuais tradicionais (cinema, TV, fotografia), o que acaba por obscurecer outras características – como as funções de geolocalização e de conectividade móvel presentes nestes aparelhos – muito mais contundentes para pensarmos os modos de inscrição das tecnologias móveis no contexto da produção de audiovisual. Consideramos que a incorporação de elementos como o posicionamento do espectador em uma localização específica no espaço, seu deslocamento pelo território, os gestos que efetua com o corpo, os objetos e demais elementos que integram o ambiente de recepção, dentre outros fatores associados à experiência espacial, oferecem uma ampla gama de possibilidades que vai muito além da simples adaptação e reprodução de formatos e práticas audiovisuais televisivas ou cinematográficas para o contexto dos dispositivos móveis. Para Beiguelman (2010), uma questão importante é saber diferenciar a produção de conteúdos feita para dispositivos móveis daquela que é feita com dispositivos móveis: a adaptação de um website tradicional para uma versão mobile diz respeito a um conteúdo feito para dispositivos móveis, enquanto que o uso de telefones celulares para organizar uma flash 11

De modo geral, as questões relacionadas aos processos de captação e exibição de vídeos em dispositivos móveis não são contempladas no escopo deste trabalho. Para uma boa recuperação e análise do uso de telefones celulares com essas finalidades, ver o texto Imagens em trânsito – estatuto do audiovisual em telefones celulares de Oswaldo Norbim (2010).

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mob se refere a uma ação de performance artística realizada com dispositivos móveis. Portanto, nesta pesquisa, procuramos tratar de questões relacionadas à produção audiovisual com mídias locativas, enfatizando os novos regimes de visualidade que surgem quando as imagens operam como mediadores entre o corpo e a percepção espacial. Mark Tuters e Kazys Varenlis (2006), André Lemos (2007), Michael Epstein (2009), Gemma Cornelio (2010), dentre outros autores, buscaram classificar os usos artísticos e expressivos de mídias locativas em diferentes tipos de categorias: projetos anotativos e fenomenológicos (TUTERS; VARNELIS, 2006); mapeamentos digitais, anotações urbanas eletrônicas, jogos locativos móveis e realidade aumentada móvel (LEMOS, 2007); narrativas terrestres (EPSTEIN, 2009); narrativas móveis (CORNELIO, 2010), são algumas delas. Tendo em vista que nenhuma dessas classificações se atém à discussão sobre os regimes de visualidade emergentes no contexto da produção estética com mídias locativas, buscamos também oferecer uma contribuição ao campo de estudos que se dedica a compreender o impacto de tais tecnologias em nossa cultura (áudio)visual. Em uma etapa preliminar deste texto trabalhávamos com uma proposta de divisão dos casos de audiovisuais locativos em três categorias: cinema de caminhada, anotações arqueológicas e performatizações algorítimicas. Ainda que não tenhamos mantido tal divisão ao longo da pesquisa (tratava-se de uma primeira etapa de observação dos objetos), cremos que seja pertinente apresentá-las aqui, principalmente para dar a ver também outros casos de audiovisuais locativos que eventualmente serão citados ao longo do texto. A primeira das três categorias, cinema de caminhada, corresponde ao tipo de experiência oferecida por um projeto de audiovisual locativo como Nine Lives. Assim como este, descobrimos que há outros tantos projetos produzidos que seguem características semelhantes. O aplicativo para celular Walking Cinema: Murder on Beacon Hill (2009), desenvolvido pela companhia norte-americana Untravel Media12, oferece uma versão geolocalizada do documentário para televisão Murder at Harvard, de Eric Stange, que narra a história do assassinato de George Parkman ocorrido no ano de 1849, em Boston, nos Estados Unidos. A história impressiona até hoje pela brutalidade do fato e também por toda a repercussão em torno do julgamento, que terminou com a condenação de John Webster à pena de morte por enforcamento – Webster era um professor de química da universidade Harvard, em cujo laboratório foram encontradas partes do corpo de Parkman. 13

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Disponível em: < http://www.untravelmedia.com>. Acessado em 06 de junho de 2012. Outras informações relevantes que podem ser encontradas no site da companhia dizem respeito à repercussão do aplicativo na imprensa, em que destacamos a menção obtida na edição de 2010 do Boston Film Festival como

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A mesma companhia que produziu Walking Cinema: Murder on Beacon Hill também produziu o aplicativo de cinema de caminhada Walking Cinema: Gloucester Walk (2011), que oferece uma experiência de exploração turística na cidade de Gloucester, localizada no estado de Massachusetts, nos Estados Unidos. O aplicativo reúne vídeos de documentário, imagens de cartões-postais e outras informações sobre o lugar, que é conhecido pela tradição da pesca.14 Em nossas pesquisas também encontramos alguns projetos de cinema de caminhada anteriores aos que referimos até aqui. O M-Views foi um sistema desenvolvido por estudantes do Media Laboratory do MIT que oferecia tanto um player de vídeo para dispositivos móveis (do tipo palm top) quanto um software para criação de projetos de cinema de caminhada. Os criadores do sistema M-Views lograram produzir dois protótipos, os quais foram projetados tomando como cenário da experiência o próprio campus universitário. Contudo, ao que parece, o projeto não teve prosseguimento, tendo sido encerrado por volta de 2003.15 Encontramos também alguns vídeos de divulgação de aplicativos de cinema de caminhada que nunca chegaram a ser lançados. São vídeos conceituais, que cumprem o papel de apresentar o funcionamento do aplicativo, sem que, no entanto, este tenha sido efetivamente produzido e disponibilizado ao público. Ainda assim, tais vídeos se mostraram interessantes por apontarem, de modo geral, numa mesma direção em termos de linguagem e estética comum a todos os exemplares que integram a categoria dos audiovisuais locativos de cinema de caminhada.16 Em síntese, ao longo do percurso de pesquisa consideramos a categoria cinema de caminhada como aquela que expressa de um modo muito direto o desejo de transposição do cinema para o cenário urbano. Se tomarmos isoladamente os conteúdos de vídeo exibidos em cada um dos exemplos de aplicativos de cinema de caminhada descritos até aqui, percebemos que em termos estéticos e narrativos trata-se de vídeos comuns, produzidos nos mesmos moldes de outros produtos audiovisuais para cinema e televisão.17 Em todos eles a imagem

o primeiro aplicativo para iPhone a ganhar um prêmio em um festival de cinema, além de também ter recebido o prêmio “New Media Documentary” neste mesmo evento. 14 Dada a semelhança da dinâmica de acesso a conteúdos audiovisuais apresentada entre ambos, optamos por citar, ao longo do texto, apenas o primeiro deles – Walking Cinema: Murder on Beacon Hill. 15 O site do projeto, ainda ativo até a época em que concluímos esta pesquisa, apresenta mais informações sobre o sistema M-Views. Disponível em: . Acesso em: 05 de dezembro de 2013. 16 Um desses casos é o projeto The Witness (2011), supostamente produzido pelo canal alemão de TV a cabo 13th Street Universal. Disponível em: . Acesso em: 18 de dezembro de 2013. 17 Em entrevista concedida às pesquisadoras de comunicação Karla Brunet e Marilei Fiorelli (2008), o realizador do projeto Nine Lives, Scott Hessels, afirma que o filme foi captado em formato digital de alta definição (HDV)

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mantém-se “íntegra”, ocupando rigorosamente o quadro fílmico em toda a sua dimensão, conforme podemos ver no vídeo demonstrativo do projeto Augmented Reality Cinema (Figura 1), o qual, até onde nossas buscas alcançaram, trata-se de um desses casos de vídeos de demonstração cujo aplicativo não chegou a ser desenvolvido. Figura 1 – Fotograma do vídeo de divulgação de Augmented Reality Cinema

Fonte: YouTube. Disponível em: . Acesso em: 27 de novembro de 2013.

Além dos audiovisuais locativos que integram a categoria de cinema de caminhada, passamos a considerar também outros projetos com características semelhantes, mas que, entretanto, apresentam algumas variações principalmente em relação a como a imagem apresenta-se técnica e esteticamente disposta na tela do telefone celular. Há projetos que fazem uso de tecnologias de realidade aumentada móvel, outros que estimulam a geolocalização colaborativa de conteúdos audiovisuais em alguns pontos da cidade e existem também aqueles que promovem performances dos usuários apenas utilizando instruções sonoras. Portanto, visto que os projetos de cinema de caminhada formavam, em si, um grupo mais ou menos homogêneo, consideramos que os casos dissonantes deveriam ser agrupados em outros conjuntos. Projetos como Street Museum of London (2010), Streetmuseum: Londinium (2012), Invisíveis (2008), Tactical Sound Garden (2004) e 34N118W (2003), integram o grupo de projetos que chamamos de anotações arqueológicas. Tais projetos se caracterizam por estimularem o resgate de elementos narrativos do passado através de fragmentos dispersos pela cidade. Distintamente dos projetos de cinema de caminhada, em que o percurso do usuário dentro da cidade é orientado por um fio condutor narrativo que conecta um ponto do e que os equipamentos utilizados nas gravações foram os mesmos de produções convencionais para cinema e televisão, assim como a equipe, composta por cerca de cinquenta pessoas, que também seguiu o mesmo modelo adotado nas produções para esses meios.

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trajeto ao outro, nos projetos de anotações arqueológicas os conteúdos não se apresentam “amarrados” uns aos outros, isto é, cabe ao usuário acessá-los na ordem que desejar. Street Museum of London18 é uma aplicação para dispositivos móveis que permite a visualização de um vasto acervo de fotografias e pinturas que retratam o cotidiano da cidade de Londres ao longo de quatro séculos. As imagens podem ser acessadas através de uma interface gráfica que apresenta o mapa de Londres com algumas marcações, as quais indicam a existência de conteúdo geolocalizado. Além dessa modalidade de acesso aos conteúdos, o aplicativo oferece ainda um modo de visualização em três dimensões (3D view), seguindo o conceito de aplicações que empregam técnicas de realidade aumentada móvel. Caso o usuário do aplicativo esteja fisicamente posicionado no lugar em que uma fotografia do acervo museológico tenha sido captada, ele pode então visualizá-la sobreposta à paisagem da cidade atual – o software habilita a visão da câmera do dispositivo móvel, sobrepondo à imagem da paisagem atual a fotografia histórica correspondente àquela localidade, provocando um efeito de fusão entre imagens do presente e do passado (Figura 2).

Figura 2 – Sobreposição de imagens em Street Musueum of London

Fonte: My Modern Metropolis. Disponível em: . Acesso em: 06 de dezembro de 2013.

Produzido pelos mesmos criadores de Street Museum of London, o aplicativo Streetmuseum: Londinium19 (2012) também emprega recursos tecnológicos de realidade aumentada móvel para oferecer um passeio de exploração arqueológica em Londres, 18

Disponível em: . Acesso em: 05 de julho de 2013. 19 Disponível em: . Acesso em: 18 de dezembro de 2013.

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resgatando elementos da época em que a cidade pertencia ao Império Romano. Basicamente os recursos são os mesmos, com a diferença que em Streetmuseum: Londinium o usuário pode acessar alguns conteúdos em vídeo que também propõem a sobreposição de imagens de diferentes épocas à paisagem atual da cidade, além de oferecer mais algumas funcionalidades, como a possibilidade de visualizar imagens de artefatos da época e seguir alguns percursos apontados no mapa do aplicativo.20 A tecnologia de realidade aumentada móvel é também usada no projeto Invisíveis, do artista brasileiro Bruno Vianna. Portando um celular preparado com o aplicativo do projeto, o participante é convidado a caminhar pelo Parque Municipal de Belo Horizonte e, através da câmera do dispositivo, é possível descobrir personagens que contam a história do lugar. Um algoritmo de reconhecimento de imagem faz com que as imagens “flutuem” em frente ao visor do telefone, sobrepondo-se à imagem capturada pela câmera, mostrando personagens sentados em bancos, deitados na grama, caminhando pelo parque. O efeito alcançado é a sobreposição à tela do telefone celular de imagens fantasmagóricas dos personagens em locais específicos do parque. Com proposta semelhante à dos projetos que utilizam técnicas de realidade aumentada, integram ainda a categoria anotações arqueológicas alguns casos em que a imagem dá lugar ao som. Projetado em 2006 por Mark Shepard, com o apoio do Conselho de Artes de Nova York e dos departamentos de arquitetura e estudos midiáticos da Universidade de Buffalo, também em Nova York, Tactical Sound Garden oferece uma plataforma open source que pode ser instalada em qualquer aparelho com conexão Wi-Fi, desde notebooks até smartphones. A plataforma permite que o usuário “plante” sons no espaço urbano. Outra pessoa equipada com o software em seu celular, ao passar por algum desses lugares, será capaz de ouvir a trilha “plantada” pelo outro usuário – que pode ser uma música, um depoimento de voz, o som do ambiente etc. À medida que vários usuários vão preenchendo uma região da cidade com sons, uma espécie de “jardim sonoro” vai se formando. Apresentando características próximas às de Tactical Sound Garden, o projeto 44 North 118 West (também conhecido como 34N118N) foi criado por Jeff Knowlton, Naomi Spellman e Jeremy Hight em 2003. Trata-se de um trabalho experimental de arte em que o usuário percorre um trajeto urbano em Los Angeles e, conforme caminha, ativa informações de áudio

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Dada a semelhança em termos de dinâmica de acesso aos conteúdos audiovisuais entre Street Museum of London e Streetmuseum: Londinium, optamos por referir apenas o primeiro deles em nossas observações.

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em seu dispositivo móvel.21 Tais informações de áudio apresentam micronarrativas (em sua maioria depoimentos de homens e mulheres que ali viveram) que contam a história daquela, a qual teria sido um importante distrito industrial da cidade. Os projetos que integram o conjunto a que chamamos anotações arqueológicas oferecem aos usuários de dispositivos móveis experiências de exploração do ambiente urbano que dão a ver rastros do passado, desde acontecimentos históricos, lembranças pessoais ou mensagens deixadas a estranhos. Tais conteúdos podem apresentar-se na forma de narrações em áudio (Tactical Sound Garden, 34N118N) ou representados através de fotografias e vídeos (Street Museum of London, Streetmuseum: Londinium, Invisíveis). Não seguem uma linha narrativa tão firme quanto a que conduz o percurso dos usuários de dispositivos móveis em experiências oferecidas pelos projetos que agrupamos sob a categoria cinema de caminhada. Ainda, importa destacar que a imagem nos referidos casos de anotações arqueológicas se mostra diferente daquela que encontramos na primeira categoria: por fazerem uso de técnicas de realidade aumentada, as imagens mostram-se semitransparentes, promovendo a sobreposição entre a imagem atual da paisagem e as imagens pré-gravadas na memória dos aparelhos. Nos casos em que há somente o uso de conteúdos de áudio, como em Tactical Sound Garden e em 34N118N, sequer há “imagens” para serem sobrepostas. Indo da imagem “íntegra” exibida na tela do dispositivo móvel a uma imagem semitransparente, produzida por intermédio de técnicas de realidade aumentada móvel, rumamos a uma terceira configuração da imagem cuja constituição depende da combinação entre o áudio produzido pelo dispositivo móvel e outros estímulos sensoriais que emergem do contato do corpo do usuário com o ambiente no qual encontra-se situado. Em certa altura, passamos a nos interessar por um certo caráter “imaterial” que tais imagens pareciam dar a ver: era como se quanto mais nos distanciássemos dos primeiros casos de cinema de caminhada, mais longe também nos encontrávamos de uma imagem com todos os traços materiais que remetem ao cinema. Com isso, passamos a também estar atentos a casos em que o áudio exercesse um papel de mediador entre o corpo e o espaço. Particularmente o projeto A Machine to See With, desenvolvido pelo grupo de artistas Blast Theory em 2010, se destacou dentre os demais, demonstrando algo que não tínhamos ainda visto nos outros: uma experiência de narrativa que se estendia pelas ruas da cidade por quase uma hora totalmente mediada por estímulos sonoros. Em A Machine to See With os participantes se cadastram para participar de um “filme” 21

Como na época ainda não havia aparelhos multifuncionais como os de hoje, os criadores utilizaram computadores portáteis conectados a navegadores GPS

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no qual atuam como protagonistas e cujo enredo gira em torno do planejamento e da realização de um assalto a banco. Via ligações de telefone celular, os participantes interagem com uma “voz” que solicita que tarefas sejam realizadas e decisões sejam tomadas a todo momento. Enquanto isso, eles se deslocam a pé e exploram regiões da cidade conforme instruções que vão sendo dadas ao longo das ligações telefônicas. A jornada avança pelas ruas da cidade como num filme de ação. As referências aos gêneros policiais são claras: o convite ao assalto, o planejamento, a preparação, as ações clandestinas, a dissimulação, os picos de tensão. Em A Machine to See With os códigos cinematográficos foram mapeados e traduzidos para um contexto de performance urbana no qual o corpo do usuário do dispositivo móvel exerce um papel central. Por conta da forma como a experiência acontece nesse e em outros projetos semelhantes, através de um conjunto de instruções que geram uma espécie de passoa-passo a ser executado pelo participante, atribuímos a eles uma qualidade “algorítmica” e por isso a categoria a qual integram foi nominada performatizações algorítmicas. Consideramos que os méritos desta pesquisa não estão nas categorizações que eventualmente propomos a partir dos diferentes tipos de materiais analisados. As categorias são, na verdade, pontos de partida definidos segundo critérios arbitrários, que de forma alguma dão conta de explicar, por elas mesmas, a complexidade das redes de relações que, por um lado, inscrevem os audiovisuais locativos em uma memória dos meios audiovisuais e, por outro lado, promovem conexões com outros fenômenos de nossa época que são movidos pelas mesmas tendências que buscamos mapear em nossa investigação. Nesse sentido, convém comentarmos sobre os caminhos escolhidos para abordar o tema da visualidade emergente em práticas criativas com mídias locativas. Com base nas cartografias benjaminianas, procuramos desenvolver um método de invenção de constelações de afinidade. O termo “afinidade” traz em si uma qualidade afetiva que nos parece bastante adequada e em sintonia com o sentimento que nutrimos pelo tema e pelo objeto de pesquisa: há algo que nos conecta aos fenômenos pesquisados, que nos faz “ser” neles. Por outro lado, há algo neles que parece ressoar, por contiguidade, em outros fenômenos de nosso tempo. Assim se justifica o movimento que fazemos sempre em direção ao todo, sempre em direção às margens dos acontecimentos. Partimos, é verdade, de um conjunto de casos bastante pontuais (os audiovisuais locativos), contudo, se os tomamos como base de nossas reflexões é por percebermos neles afinidades com outras formas culturais que emergem, hoje, como dissonâncias no contexto da produção imagética. Nesse sentido, interessa, primeiramente, situar nossas preocupações de pesquisa no interior do contexto midiático e cultural contemporâneo através de uma abordagem que não

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perca de vista as relações entre a técnica, as práticas sociais e a produção de imaginários, as quais constituem-se como elementos indissociáveis para a compreensão dos fenômenos comunicacionais que tomam forma atualmente. O conceito que desenvolvemos para uma abordagem desse tipo é o de ambiência tecnocultural. Compreender os fenômenos investigados dentro de um quadro maior – a ambiência tecnocultural – demanda analisá-los no nível das redes de relações que estabelecem com distintas formas culturais, sejam elas reconhecidamente audiovisuais, como a TV e o cinema, ou outras que tangenciam o campo expandido do audiovisual, como a arquitetura, a escultura, as instalações, as artes performáticas, dentre outras. Assim se justifica a nossa filiação a autores como Walter Benjamin, Marshall McLuhan e Lev Manovich, os quais, como poucos, conseguiram desenhar quadros gerais bastante elucidativos sobre os traços culturais de suas épocas através de análises que tomavam como base os aspectos materiais e formais dos meios de comunicação. Contudo, é importante destacar que tal movimento é, na verdade, um duplo movimento do olhar investigativo. Se, por um lado, buscamos traçar linhas de afinidade com outros fenômenos de nossa época, por outro lado, e em simultâneo a este movimento, tal esforço não se dá sem que com isso nos esforcemos por reconhecer a força do passado que emerge no presente. Mais uma vez é em Benjamin que estamos nos apoiando. Assim também se justifica o emprego do conceito de “constelação” em nossa proposta de método, o qual tomamos de empréstimo de Benjamin (passim). Uma constelação faz referência a conjuntos de imagens que traçam entre si relações de afinidade, ainda que se mostrem muito diferentes umas das outras. O uso metafórico desse termo na obra de Walter Benjamin indica uma recorrência que traz à tona, fundamentalmente, um esforço de constituição de um método historiográfico a partir do qual busca-se romper com a linearidade do historicismo tradicional, na qual um evento é sempre a causa de outro, em sucessão contínua, de tal modo que o passado é aquilo que dá origem ao presente, mas que após ter acontecido jamais retorna. Inversamente, a analogia das constelações aponta para um método específico de buscar nos elementos do presente os vestígios de um passado que dura e que se dá a ver através de lampejos. Segundo Otte e Volpe (2000, p. 46), cabe ao intelecto que se volta ao passado a partir do presente empreender o esforço de encontrar vestígios e “promover entre eles uma possibilidade de releitura que os aproxime”. Tal releitura se inicia, segundo Benjamin (2006), através de um movimento que tem por objetivo rastrear virtualmente as conexões entre os estilhaços de saber que vêm de longe no espaço e no tempo em suas múltiplas dimensões. A tarefa do historiador-narrador seria, assim,

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uma possibilidade de mapear, com contornos e fronteiras móveis e imaginárias, os acontecimentos que relampejam do passado para o presente. Assim se justifica também o movimento que fazemos de tentar estabelecer conexões entre projetos que fazem uso de mídias locativas em seu processo produtivo e diversas práticas realizadas por artistas de vanguardas do século XX que, em larga medida, trabalhavam com práticas de apropriação e transformação dos espaços como base de suas intervenções (fossem estes espaços públicos ou institucionais, como os das galerias de arte) – destacamos, nesse sentido, uma parte da produção artística realizada a partir dos anos 1950, período em que observamos uma transição entre o modernismo, sobretudo aquele praticado pelos artistas dadaístas e futuristas, e uma nova etapa em que despontam movimentos de arte conceitual e processual, como o movimento Fluxus, o Situacionismo, os trabalhos de Land Art, as experimentações com cinema expandido e com vídeo, dentre outros. Especificamente, observamos as relações dialógicas, ora de continuidade e ora de ruptura, que trabalhos contemporâneos com mídias locativas estabelecem com propostas estéticas de outras épocas, de modo a encontrar nos objetos analisados certas “novas-velhas” imagens – as imagens dialéticas de que nos fala Benjamin – que colocam em curto-circuito o antes e o agora, o passado e o presente das propostas estéticas no mundo das artes, provocando uma colisão entre elementos distantes que se juntam, de pronto, para formar uma imagem complexa, multifacetada. Ao estabelecermos um olhar para os projetos aqui analisados que os situam entre o passado e o presente das formas de expressão artísticas – o lugar indefinível que se situa entre o ocorrido e o agora, segundo Benjamin –, estamos tentando definir um método genealógico a partir do qual seja possível compreender certos movimentos cíclicos de surgimento e obsolescência encontrados em todos os meios técnicos. É novamente em Benjamin que nos apoiamos (mas também em McLuhan, conforme ficará mais claro já no primeiro capítulo) para tentar refinar nosso método genelógico. Para Benjamin (2011), toda a forma de arte amadurecida está no ponto de intersecção de três linhas evolutivas. Em primeiro lugar, Benjamin afirma que transformações sociais muitas vezes imperceptíveis acarretam mudanças na estrutura da recepção que serão mais tarde utilizadas pelas novas formas de arte. Tomando como base a invenção do cinema, Benjamin faz referência a um período de transição entre formas de recepção midiática individual para formas coletivas. Até o surgimento do cinema, os aparatos que ofereciam experiências com imagens em movimento eram projetados para um tipo de recepção individual e intimista. Esse era o caso do cinetoscópio, do zoótropo e de outros dispositivos do século XIX que ofereciam

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pequenos trechos de imagens animadas que podiam ser vistas através de visores projetados para que uma só pessoa pudesse assistir à obra. No entanto, observa-se que ao final do século XIX se popularizava na Europa ambientes em que essas experiências eram realizadas coletivamente. Benjamin cita o Panorama do Imperador, uma sala com vários estereoscópicos que pressupunham uma grande audiência. Benjamin percebe aí uma espécie de transição que vai do consumo individual de imagens (afinal de contas, no Panorama do Imperador cada espectador dispunha de seu próprio aparelho) para formas de recepção coletiva que de certa forma já estavam preparando o terreno para a chegada do cinema. Atualizando o pensamento benjaminiano para o contexto desta pesquisa, sugerimos que as experiências com audiovisuais locativos surgem como o sintoma aparente de um ambiente que começa a dar mostras de um desejo por novos modos de consumo de imagens, que já não mais se satisfaz com as experiências oferecidas por mídias que exigem a imobilidade do espectador (o cinema e a televisão, obviamente, mas também o computador pessoal, do tipo desktop, que também estimula a falta de atividade do corpo). Noutra direção, os fenômenos observados que giram em torno das práticas criativas com mídias locativas parecem exercitar uma disposição contemporânea para formas de engajamento que ultrapassam o sentido da visão e se irradiam para todo o corpo. Em segundo lugar, Benjamin afirma que uma nova técnica artística sempre atua sobre uma forma de arte prévia – por exemplo, antes de haver o dispositivo da sala de cinema tal como o conhecemos hoje, existiam vários outros aparelhos óticos que também buscavam entreter seus espectadores com imagens postas em movimento. Assim, para Benjamin, o que o cinema fez foi condensar e operar ajustes sobre formas de arte já bastante difundidas na época em que foi inventado. No caso dos projetos de arte com mídias locativas o movimento é semelhante: boa parte deles opera sobre práticas sociais de apropriação do meio urbano que desde sempre existiram, ou seja, são projetos que de certa forma capturam a essência de diferentes atividades que acontecem no espaço das cidades, desde as brincadeiras de rua realizadas pelas crianças; as manifestações de grafite e pichações; os comícios, passeatas e outros tipos de mobilização urbana; até o ato de caminhada despreocupada e contemplativa exercido pelos turistas. Em terceiro lugar, segundo Benjamin, à medida que uma forma de arte evolui, várias são as tentativas de produzir com ela certos efeitos que a forçam além de seus limites. Geralmente tais tentativas são postas de lado e esquecidas, contudo, é frequente que, mais tarde, quando então novos meios técnicos se colocam à disposição dos artistas, os mesmos efeitos pretendidos em experiências prévias ressurjam integrados à base da experiência

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sensorial dos novos meios. Conforme nos diz Benjamin, certos efeitos de estranhamento buscados no nível das performances dadaístas foram alcançados com naturalidade posteriormente no cinema. Também no campo das imagens em movimento, ainda que seja possível encontrar vários exemplos de como a montagem espacial (na qual vários planos são compostos no interior de um mesmo quadro) ocorre no cinema, foi somente com as possibilidades trazidas pelo vídeo – e mais recentemente pelos processos de edição digital – que esse tipo de operação estética passou a ser amplamente explorada e naturalizada, sobretudo na televisão e nas interfaces digitais. De forma semelhante, o que vem acontecendo no campo da produção cultural com as mídias locativas parece ser o mesmo: de certa maneira elas estão potencializando uma série de práticas sociais que até então estavam restritas a guetos periféricos, como aqueles ocupados pelos artistas de vanguarda.22 Cabe ainda darmos um passo a mais para trás, em direção aos bastidores epistemológicos que fundamentam os processos metodológicos empregados ao longo de nossas observações. Dizíamos que nossas análises orientam-se através de um duplo movimento, ao mesmo tempo sincrônico e diacrônico, a partir do qual conectamos a atualidade dos objetos empíricos analisados a tendências virtuais, as quais podem ser autenticadas tanto em outros fenômenos de nossa época quanto nas qualidades de certas formas culturais antigas. Portanto, é apropriado tornar explícita neste ponto a importância do conceito de memória, tal como tratado por Bergson (1999) e por Deleuze (1996), sobretudo no que tange à inscrição do objeto de nossa pesquisa no fluxo das multiplicidades virtuais. Pensar o “audiovisual locativo” enquanto multiplicidade virtual é, para nós, um estado ou uma disposição que assumimos frente ao objeto a partir da qual busca-se a todo momento transcender sua condição atual (a materialidade com que se apresenta aos nossos sentidos) e irmos em direção ao seu modo de ser virtual. Dessa maneira, cada caso observado em sua individualidade, antes de ser matéria, é fluxo de um tempo incessante que acrescenta-se a si mesmo – uma memória, nos termos do bergsonismo. Para Deleuze (1996, p. 49), não há objeto puramente atual, pois todo atual “rodeia-se sempre de uma névoa de imagens virtuais”. Portanto, ainda que tenhamos de nos aproximar dos casos observados tomando como ponto de partida suas materialidades, categorizando-os e classificando-os segundo características captadas do pouco que nos mostram num primeiro

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Em Avant-garde as Software, Manovich (2003) estabelece um modelo de análise semelhante quando traça paralelos genealógicos entre as formas de arte de vanguarda do início do século XX com formas culturais computacionais do século XXI.

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contato com sua superfície atual, pouco a pouco tentamos penetrar estratos mais profundos de sua memória, tentando alcançar as imagens virtuais de que nos fala Deleuze. Entender o conjunto a que chamamos de “audiovisuais locativos” como atualizações de um virtual é, portanto, remeter a sua condição atual às suas imagens virtuais, isto é, à sua memória, que reúne a um só tempo todos os “audiovisuais locativos” atualizados e não atualizados. Contudo, podemos ir ainda mais longe e compreender que em seus estratos mais distantes a virtualidade dos audiovisuais locativos se conecta a toda uma memória do audiovisual. Isso explica porque os virtuais de um atual integram círculos concêntricos “sempre renovados de virtualidades, cada um deles emitindo um outro, e todos rodeando e reagindo sobre o atual” (DELEUZE, 1996, p. 49). Trata-se, portanto, de círculos (ou estratos) da memória que se sobrepõem uns aos outros, expandindo-se em direção ao passado. É nesse sentido que a memória dos audiovisuais locativos se mistura em seus estratos mais distantes com a memória mesma do audiovisual. Isto é, com uma memória que reúne em si não somente os estratos que correspondem às formas audiovisuais que subscrevemos a este ou àquele conjunto atual, mas que dá conta de todo o passado do audiovisual. Tal memória que abarca todo o passado do audiovisual e que se diferencia de si mesmo para se atualizar em formas singulares é entendida como o modo de ser virtual do audiovisual, ou, ainda, como audiovisualidade. É nesse sentido que Kilpp (2007) associa o termo “audiovisualidade” a um modo de ser virtual do audiovisual que se atualiza nas mídias, mas que a elas não se reduz, transcendendo-as rizomaticamente. É antes uma qualidade que reúne sob o mesmo desenrolar as ocorrências de uma tendência: cinema, televisão, vídeo, webvídeo, audiovisual locativo, trata-se da multiplicidade audiovisual que se diferencia a cada atualização, carregando em sua face atual a imagem virtual de sua singularidade, ao mesmo tempo que se comunica, através de sua face virtual, com os estratos mais profundos da memória que conecta o atual a todo o passado do audiovisual. Importante enfatizar que a virtualidade a que remete o termo “audiovisualidade” é, ainda, uma qualidade que não se limita a estar presente somente nos meios reconhecidamente audiovisuais. conforme Montaño (2012, p. 204), tal qualidade encontra-se também “fora do audiovisual, é anterior a ele; faz parte do cotidiano, da vida, da cultura”. Tal como descreve Na introdução da edição em português de A forma do filme, Avellar (2002) refere a uma certa qualidade cinematográfica que Eisenstein já percebia em obras realizadas antes mesmo do invento do cinema. Conforme veremos mais adiante, Eisenstein (2002) percebia na Acrópole de Atenas uma qualidade audiovisual que se mostrava no modo como os elementos da cidade, seus prédios, monumentos, caminhos, foram dispostos através de uma sequência de vistas que

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poderiam ser comparadas ao processo de montagem fílmica. Também numa obra de pintura como Vista y plano de Toledo, de El Greco, Eisenstein (idem) encontrou o esboço de uma visualidade cinematográfica que se daria na junção em simultâneo de vistas aproximadas e distantes da cidade. É nesse sentido que poderíamos dizer que cada audiovisual locativo é um corte no devir audiovisual que o atualiza não necessariamente através de uma “imagem”, no sentido de uma figura materialmente exibida em uma superfície qualquer, mas, por outro lado, o atualiza sobretudo no interfaceamento produzido por intermédio de dispositivos móveis que conectam o corpo a múltiplas espacialidades. É nesse entrelaçamento entre o corpo e o espaço que emerge a qualidade de imagem das audiovisualidades de mídias locativas. Conforme veremos, variam os modos como atualizam-se as audiovisualidades de mídias locativas, atravessando um continuum que vai desde a presença da imagem (exibida na tela de dispositivos móveis) até a imagem como presença, isto é, a imagem despida de sua forma tradicional, mas ainda assim atuante pela via da intuição de um corpo que se desloca pelo espaço urbano. Portanto, e em resumo, nosso estudo é menos sobre os formatos específicos que aqui juntamos todos sob um mesmo invólucro – os audiovisuais locativos – do que sobre as audiovisualidades de mídias locativas, ou, ainda, sobre as audiovisualidades locativas, que podem ser definidas como a potência audiovisual que se atualiza na performance do corpo em interação com o espaço (sobretudo o espaço urbano), conforme veremos em vários exemplos mostrados ao longo deste texto. Em conclusão, poderíamos afirmar que este trabalho trata dos regimes de visualidade que surgem como consequência da presença massiva de tecnologias de computação móvel na cultura midiática contemporânea. Em especial, interessam os processos de agenciamento do olhar (e do corpo) que se efetuam no campo dos novos formatos audiovisuais aportados pelo emprego de tecnologias móveis de comunicação e geolocalização em seus processos formais e estéticos. Questionamos quais relações (estéticas, simbólicas, performáticas) podem ser estabelecidas entre as imagens técnicas exibidas nas telas de dispositivos móveis e a paisagem urbana. Questionamos também qual o papel assumido pelo corpo dos usuários de dispositivos móveis em contextos de interação com aplicações de audiovisuais locativos. Com isso, colocamos em perspectiva noções oriundas do campo de estudos da imagem, tais como as de “tela”, “quadro” e “enquadramento”, “campo” e “fora de campo”, “composição”, “montagem”, dentre outras. Assim, procuramos defender a ideia de que as imagens que despontam hoje atravessadas pelos códigos culturais das mídias locativas são produzidas para serem intuídas mais do que percebidas e por isso demandam análises que consigam dar conta

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de compreender o seu potencial para produzir efeitos de presença mais do que para representar ou simular outros mundos. Tendo apresentado em linhas gerais o contexto em que esta investigação toma forma, apresentamos a seguir um apanhado dos capítulos e das seções que o integram. O primeiro capítulo objetiva situar as reflexões sobre a produção criativa com mídias locativas dentro de uma perspectiva comunicacional. A principal questão tratada nessa etapa do trabalho interroga sobre como o fenômeno de disseminação das mídias locativas introduz dissonâncias e instabilidades nas concepções (cultural, epistemológica e fenomenológica) do espaço na contemporaneidade. Para tanto, o tópico é abordado a partir de três perspectivas complementares: uma primeira, que se volta às formas de representação e concepção espacial (GIEDION, 1980, MCLUHAN; PARKER, 1991) resultantes da disseminação das tecnologias móveis de comunicação e localização em nossa sociedade; uma segunda, que enfoca o papel das mídias locativas de atender a certas demandas que tomam forma no interior da cultura e da sociedade contemporâneas e que apontam para desejos de reconexão com o espaço (JANSSON, 2005, THIELMANN, 2011) e de experiências que produzam sensações de presença (GUMBRECHT, 2010); uma terceira, a partir da qual buscamos compreender como processos de subjetivação emergentes na relação corpo-espaço-dispositivo (tecnológico) deslocam a percepção espacial à condição de experiência aurática (DIDI-HUBERMANN, 2004). No segundo capítulo enfocamos como o processo de audiovisualização da cultura (KILPP, 2010) conduz a um estado de saturação da presença de telas audiovisuais nos ambientes urbanos de modo que a própria noção do que entende-se por “tela” é tensionada, demando novos posicionamentos conceituais. Nesse sentido, apontamos, desde uma perspectiva genealógica, três processos que nos ajudam a compreender a condição de presença (GUMBRECHT, 2010) que as imagens assumem hoje principalmente quando se mostram “acopladas” à materialidade dos espaços públicos urbanos e ao corpo humano: primeiramente, procuramos compreender como a tradição de acúmulo de imagens no interior de telas (sobretudo das telas audiovisuais, mas não somente) através de operações de montagem espacial (MANOVICH, 2006) corresponde a uma das principais estratégias de produção de efeitos de presença em nossa cultura; em seguida, enfocamos os trabalhos de projeção em múltiplas telas, as videoinstalações e as instalações multimídia como estratégias que buscam extrair da imagem um efeito de presença que ora é resultante da intensificação da dimensão espacial da imagem (através da projeção em múltiplas telas, por exemplo), ora é alcançada através de recursos de intensificação da qualidade temporal da imagem (através de

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técnicas de plano sequência e de desaceleração, por exemplo); por fim, na terceira seção do referido capítulo, são observados os processos de acoplagem das imagens à materialidade dos espaços urbanos, com ênfase, por um lado, nas estratégias de projeção e incrustação de imagens dinâmicas em fachadas de edifícios e, por outro lado, nas técnicas de realidade aumentada móvel que vão sendo ampliadas à medida que aumenta o número de hardwares móveis com funções multimídia e de geolocalização. No terceiro capítulo passamos de um interesse centrado na relação da imagem com o espaço para gradativamente começar a refletir sobre o papel do corpo (e do olhar) assumido por um sujeito que interage com o dispositivo técnico e com o ambiente urbano. Partimos de uma noção de imagem e corpo como instâncias separadas, sendo a imagem algo dotado de materialidade que se apresenta ao corpo através do sentido da visão, para, em seguida, começarmos a implodir essa separação. Passamos então a uma concepção da imagem não como algo que se dá a ver, mas que fundamentalmente atua como um operador da vista, um instrumento que se integra ao corpo desde o seu interior, armazenando-se em sua memória e impregnando com sua substância a percepção da matéria; atuando, portanto, como um filtro que transforma e orienta o olhar. É também no terceiro capítulo que nos dedicaremos a colocar em perspectiva conceitos oriundos do campo de estudos da imagem, tais como a noções de quadro (e enquadramento), campo (e fora de campo), composição, montagem, dentre outras. Tendo abordado as principais operações de composição das imagens (técnicas) com a paisagem e termos começado a introduzir o papel assumido pelo corpo no processo de percepção espacial, no quarto capítulo avançamos em direção a situações em que a atualização das virtualidades audiovisuais é produzida sobretudo a partir do deslocamento do usuário de dispositivos móveis pelos espaços das cidades. Assim, propomos, no quarto capítulo, analisar o corpo em sua dimensão performativa, isto é, nos desdobramentos performáticos que se dão a ver tanto no modo como o corpo percorre o espaço como também nas relações dialógicas com o dispositivo móvel, com a geografia do território, com o entorno social e com a esfera dos imaginários acionados em experiências com audiovisuais locativos. No referido capítulo interessa primeiramente observar um conjunto de práticas de deslocamento pelo espaço que, em comum, apresentam finalidades estéticas, narrativas ou performáticas. Tais práticas podem ser tanto baseadas no deslocamento do corpo pelo território urbano (como as derivas situacionistas, mas não somente) ou de um corpo eletrônico que navega em ambientes computacionais (como nos jogos de videogame). Outra forma de abordar a questão da mobilidade do corpo é buscar também compreender a genealogia do

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olhar engendrado por esse corpo em movimento, que, segundo a perspectiva oferecida por autores como Benjamin (2011) e Eisenstein (1989 e 2002b), constitui matriz comum ao cinema e à arquitetura. O capítulo fecha com a retomada da análise de casos de audiovisuais locativos, os quais são discutidos desde a perspectiva das formas de enunciação imagética que produzem sobre o espaço quando atravessado por corpos em movimento orientados por algoritmos performativos.

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1. AMBIÊNCIA TECNOCULTURAL DAS MÍDIAS LOCATIVAS

Ao longo do último século, autores como Benjamin, McLuhan e, mais recentemente, Manovich estão entre aqueles que contribuíram para a formulação de um campo de reflexão sobre os impactos e os efeitos das tecnologias de comunicação sobre a cultura de nossa época. Em comum, tais autores compartilham olhar aguçado para as relações entre as esferas das práticas de disseminação e usos dos meios tecnológicos (sobretudo os de natureza comunicacional) e a dos imaginários (o universo simbólico) que se formam ao seu redor e que ressoam por toda a extensão da rede de fenômenos socioculturais a que estão conectados. Foi seguindo as pistas deixadas em suas obras que gradualmente fomos estabelecendo um pensamento sobre os desdobramentos (sensoriais, epistemológicos, culturais, estéticos) observados hoje no campo de experimentação expressiva com mídias locativas. Em certa altura de nossa investigação indagávamos acerca do contexto em que os fenômenos observados tomavam forma e assim questionávamos sobre quais vetores sociais, culturais, históricos, estéticos e epistemológicos estariam operando em conjunção com a emergência dos objetos que mobilizavam nossos interesses. Nessa etapa, passamos a utilizar a expressão “ambiência tecnocultural” como forma de nos referirmos genericamente a um contexto dinâmico, sempre em mutação, que surge das tensões e dos atravessamentos provocados pelas práticas sociais que se efetuam sobre os meios técnicos de uma dada cultura. O sentido aqui empregado do termo “ambiência” é próximo ao sugerido por Kilpp (2003). Em seu estudo sobre o meio televisivo, a autora (2003, p. 42-43) considera que a ambiência pode ser pensada como o “contexto, o meio, a sociocultura, as condições sociais de produção”. Ainda segundo Kilpp (idem, ibidem), a ambiência institui as condições para o consumo de imagens (no caso, imagens televisivas, mas não somente) e são responsáveis por estabelecerem “quadros de experiência, que produzem determinados sentidos e não outros”. A principal diferença no modo como a autora utiliza o termo e aquele por nós adotado reside na inflexão provocada pela adição do adjetivo “tecnocultural”, que enfatiza a ingerência dos meios técnicos (sobretudo comunicacionais) nos modos como os sujeitos de uma determinada sociedade se relacionam com o mundo e com os outros, em nível cultural, epistêmico e fenomenológico. Em nossa época, a ambiência tecnocultural se caracteriza sobretudo pela forma como os meios se mostram em constante processo de negociação – ora atuando em conjunto, ora confrontando-se – de modo que se torna mais produtivo pensarmos neles em termos de configurações complexas – os arranjos midiáticos de que nos fala Pereira (2008) – do que

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tomando-os separadamente, tentando encontrar um específico de cada meio. Aos olhos dos sujeitos envoltos pela ambiência tecnocultural, ela se torna invisível, contudo, seus efeitos podem ser sentidos na dimensão expressiva dos fenômenos que tomam forma em seu interior: desde um evento microscópico até um espetáculo que envolve milhões de pessoas, todos eles compartilham algo em comum, uma afinidade que os conecta a uma rede invisível formada por fluxos e agenciamentos diversos. Quando um dado meio técnico consolida sua atuação no interior de uma cultura, nunca o faz de forma isolada, descontextualizada do entorno em que encontra-se inserido. Sua assimilação é sempre o resultado de complexas relações que envolvem a sociedade como um todo e, nesse sentido, a consolidação de práticas que se efetuam sobre ele se realizam em solidariedade a outros fenômenos socioculturais, os quais se afiliam ou se opõem ao seu movimento de expansão. Tomemos como exemplo o surgimento do cinema. Para Benjamin (2011), o surgimento do cinema não só instaurou uma nova forma de percepção (a percepção distraída de que nos fala), diversa daquela vinculada às formas culturais anteriores, em especial a percepção contemplativa e introspectiva que marca a fruição de obras pictóricas, mas, através de certos aspectos de seu aparato tecnoestético, notadamente as operações de montagem e reprodução, o cinema encarnou como nenhuma outra arte o havia feito antes o movimento e a velocidade, que, por certo, eram duas das principais características da mentalidade evocada pelo dispositivo da modernidade na virada do século XIX para o XX. É nesse sentido que podemos situar o cinema como uma imagem dialética da mentalidade moderna, à qual se filiam outros sistemas de imagens, que, em conjunto, contribuem para formar um quadro geral – uma constelação – da cultura de uma época. A nosso ver, tomar as técnicas, os processos e as materialidades do cinema para se atingir zonas cada vez mais distantes de compreensão deste conjunto a que nos referimos como sendo um instantâneo de uma época é promover solidariamente uma certa visada sobre os meios técnicos a que remetemos o conceito de “tecnocultura”. É esse olhar que buscamos desenvolver quando tomamos as mídias móveis e locativas como um dos centros (uma imagem dialética) de nossa época. Para o leitor já familiarizado com a obra de Marshall McLuhan, não é difícil deduzir que o conceito de ambiência tecnocultural toma como referência uma de suas teses mais conhecidas: a de que todo o meio tecnológico carrega consigo o potencial de geração de um ambiente23 na medida em que se dissemina e passa a ser amplamente adotado pelos 23

Um dos motivos para não termos adotado o conceito de “ambiente” em lugar do termo “ambiência”, tal como tratado por McLuhan, é que ao longo do texto frequentemente recorremos ao termo “ambiente” não como

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indivíduos de uma dada sociedade. Um dos grandes diferenciais das proposições que derivam deste postulado é que elas se aplicam não somente aos meios de comunicação, mas partem do princípio de que todos os meios, desde a eletricidade até os automóveis, são potencialmente configuradores da sociedade e da cultura. Como bem sabemos, o centro gravitacional ao redor do qual orbita o pensamento de McLuhan (passim) apoia-se na célebre afirmação de que os meios são extensões dos sentidos e do corpo humano. Assim, a roda seria uma extensão dos pés; a máquina fotográfica, uma extensão da visão; a roupa, uma extensão da pele e assim por diante. No entanto, o potencial de um meio técnico não se limita a sua dimensão instrumental, a qual cumpre a função de substituir procedimentos humanos por meio de inovações materiais e de funcionamento. Na medida em que passa a ser amplamente assimilado por uma sociedade, o acúmulo de práticas que se desenvolvem em torno dele gera efeitos que alteram a lógica de funcionamento de outros setores da cultura. É desse modo que um dado meio transcende sua condição instrumental para assumir-se como um meio ambiental, isto é, como um ambiente cujo raio de abrangência de seus efeitos alcança todos os meandros do contexto cultural do qual faz parte. Por exemplo, o surgimento da escrita não representou somente a invenção de uma forma altamente eficiente e especializada de armazenamento e distribuição de informação, mas foi responsável, sobretudo, por promover a ênfase do sentido da visão sobre todos os outros, de modo que seus efeitos contribuíram para provocar mudanças profundas em todas as áreas das sociedades que a adotaram. Na introdução de Os meios como extensões do homem (MCLUHAN, 2005), Tom Wolfe desenvolve um sobrevoo sobre as ideias de McLuhan, abordando diversas facetas de sua teoria sobre os impactos dos meios na cultura. Em uma determinada passagem Wolfe nos faz perceber a variedade de “efeitos colaterais” que McLuhan atribuiu ao impacto da escrita nas sociedades letradas, especialmente após a invenção da prensa de tipos móveis de Johann Gutenberg, que foi a base para o surgimento da imprensa:

McLuhan teorizou que a imprensa promoveu o sentido visual do homem ocidental em detrimento de seus outros sentidos, que, por sua vez, levaram a muitas formas de especialização e fragmentação, desde a burocracia, o exército moderno e as guerras nacionalistas até a esquizofrenia, as úlceras pépticas, o culto da infância, que ele via como uma fragmentação por idade,

conceito mas com o mesmo sentido empregado pelo senso comum, um verbete, portanto, por nós utilizado para referir o espaço físico em que a experiência de interação com dispositivos móveis acontece. O termo “ambiência”, além de oferecer uma abrangência maior e mais fluída que a do termo “ambiente”, também cumpre o papel de posicioná-lo com um sentido específico adotado na pesquisa.

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e a pornografia, a fragmentação do sexo em relação ao amor. (WOLFE, 2005, p. 14).

Para McLuhan (2005), um meio pensado enquanto ambiente atua sempre como uma espécie de “fundo” sobre o qual uma “figura” irá se sobrepor. Quando interagimos com um meio como o cinema, nossa tendência é sempre tomar o seu conteúdo – as imagens dos atores que vemos na tela, a trama narrativa etc. – como a sua mensagem. Contudo, na perspectiva oferecida por McLuhan, o “fundo” sobre o qual o conteúdo nos é oferecido – as estruturas materiais do meio (sala de cinema, aparelho televisor, dispositivo móvel etc.) e as imateriais (a economia da indústria cinematográfica, as políticas de distribuição, a censura etc.) – constitui a dimensão que carrega verdadeiramente a mensagem que chega até nós através de seu conteúdo. A questão, no entanto, é que enquanto a “figura” é o que se dá a ver com mais facilidade, o “fundo” é sempre oculto, subliminar, invisível – uma das analogias usadas por McLuhan (passim) para explicar o fenômeno de invisibilidade do ambiente gerado por um meio evocava o fato de que um peixe é incapaz de dar-se conta de que está submerso em água justamente por ser a água o seu ambiente. Toda forma de ambiente tem, portanto, o potencial de “saturar a percepção” de modo que sua marca se torne imperceptível. É nesse sentido que o trabalho dos artistas se torna fundamental para desviar a atenção humana e aumentar o nível de percepção sobre o ambiente. Assim, para McLuhan (2007, p. 12), “à medida que tecnologias proliferam e criam séries inteiras de ambientes novos, os homens começam a considerar as artes como ‘antiambientes’ ou ‘contra-ambientes’ que nos fornecem meios de perceber o próprio ambiente” em que estamos envolvidos. Qualquer tipo de arte, mesmo as artes mais populares, “podem servir para aumentar o nível da percepção, ao menos até se tornarem totalmente ambientais e despercebidas” (MCLUHAN; PARKER, 1991, p. 2), quando então novas estratégias antiambientais devem ser inventadas.

Qualquer esforço artístico inclui o preparo de um ambiente para a atenção humana. Uma poesia ou uma pintura é em todos os sentidos uma máquina de ensino para o exercício da percepção e do discernimento. O artista é uma pessoa especialmente ciente do desafio e dos perigos dos novos ambientes apresentados à sensibilidade humana. Onde a pessoa comum busca segurança entorpecendo suas percepções diante do impacto da nova experiência, o artista usufrui desta novidade e instintivamente cria situações que tanto a revelam quanto a tornam compensadora. (MCLUHAN; PARKER, 1991, p. 242).

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Assim como a escrita e a eletricidade se estabelecem como dois dos principais meios ambientais na história da cultura ocidental, mais recentemente as tecnologias computacionais estão contribuindo para o surgimento de uma nova dimensão da ambiência tecnocultural de nossa época, de modo que seus efeitos de longo alcance começam a provocar transformações culturais e sociais que estão alterando os rumos das interações sociais, das percepções e dos modos de conhecer o mundo. Por esse caminho, no contexto desta investigação nossas preocupações dão conta de buscarmos respostas para a questão que se coloca em torno dos efeitos de transformação cultural produzidos pela disseminação de tecnologias móveis, especialmente aquelas voltadas para o monitoramento de localização (GPS) e de outros dados produzidos pelos sujeitos em sua relação com os espaços físicos e geográficos. Conforme já antecipamos na introdução deste trabalho, o viés adotado é direcionado para as linguagens e estéticas que surgem relacionadas às táticas de apropriação (sobretudo artísticas) efetuadas sobre tais tecnologias de comunicação e informação. Antes de tudo, porém, é necessário traçarmos o esboço de um quadro sobre o qual se destacam os fenômenos que buscamos mapear e compreender. Tal quadro – ele próprio a ambiência tecnocultural das mídias locativas – deverá nos ajudar a estabelecer os vetores históricos, socioculturais e epistemológicos que sustentam o nosso olhar sobre os objetos descritos e analisados. Por certo, pensar a ambiência tecnocultural das mídias locativas é também se engajar em um exercício de olhar periférico: fixamos a atenção no objeto, mas é aquilo que se passa à margem do olhar o que mais interessa observar. Conforme sinalizamos anteriormente neste texto, nossa abordagem, inspirada nas cartografias benjaminianas, visa produzir imagens dialéticas. Quando iluminadas pela sonda da imaginação, tais imagens brilham e iluminam toda uma região, formando constelações. Assim desejamos fazer ao longo desta investigação. Um único fenômeno, por mais ínfimo e singular que possa parecer ao olhar desatento, contém em si o potencial para iluminar tudo o que está ao seu redor, dando a ver as relações de semelhança e de parentesco, isto é, de afinidades compartilhadas com outros fenômenos contemporâneos a ele. Mas o que define tais relações de afinidade? Qual a sua natureza? Com o sentido que lhe atribuímos, a ambiência tecnocultural remete também ao conjunto de desejos e disposições que movem uma dada sociedade em uma determinada época e que se dá a ver sobretudo através de suas estratégias de produção de formas culturais simbólicas (MANOVICH, 2006). Essa concepção ressoa especialmente no conceito de dispositivo, conforme Michel Foucault (passim) o emprega em suas obras. Ao longo desta pesquisa, o conceito de dispositivo se mostrou particularmente importante para a constituição

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de um olhar voltado às bases de disposição (de poderes, saberes e de produção de subjetividade) operantes no contexto de atuação das mídias móveis em nossa cultura. Sem que nos aprofundemos em seus labirintos epistemológicos e genealógicos, nos interessa apenas enfatizar que o dispositivo foucaultiano constitui um conjunto que inclui virtualmente qualquer tipo de elemento, discursivo ou não-discursivo, desde documentos, instituições, prédios, leis, proposições filosóficas, dentre outros, formando um tipo de rede de relações entre eles.24 (AGAMBEN, 2009). Ainda, um dispositivo é um tipo de formação que em um determinado momento histórico tem como função principal obter uma resposta imediata para enfrentar uma necessidade urgente, apresentando, portanto, uma “função estratégica dominante” (FOUCAULT, 1990, p. 138) que se institui a partir da interseção entre relações de poder e determinados conjuntos de saberes. Na esteira dessa perspectiva, encontraríamos no dispositivo contemporâneo (AGAMBEN, 2009) uma espécie de articulador em nível macroestrutural dos valores, crenças e desejos presentes nas práticas sociais e culturais das sociedades atuais. Então, para os nossos propósitos, tendo em vista a análise das formas culturais simbólicas produzidas com o aporte das mídias locativas, quais seriam as disposições que moveriam as crenças e os desejos de nossa época? Ao nos situarmos num terreno em que se fazem notar diversas práticas culturais com mídias móveis, estamos apontando para um cenário em que demandas com sentidos aparentemente contraditórios se estabelecem através de um jogo de forças dialético como grandes

urgências

do

dispositivo

contemporâneo:

nos

referimos

ao

desejo

à

“descorporificação” e à mobilidade que surgem vinculados aos discursos sobre tais tecnologias, mas também, e num sentido completamente inverso, à valorização de práticas que acontecem em lugares “reais” e que demandam o engajamento físico do corpo para se realizarem, as quais também se instituem como efeitos relacionados ao fenômeno de popularização e disseminação de mídias móveis. Mais do que nunca, podemos estar simultaneamente conectados a redes de informação diversas, navegando em espaços múltiplos, ao mesmo tempo que nos deslocamos pelo território; contudo, se, por um lado, hoje em dia as pessoas parecem habitar bolhas privadas quando estão conectadas aos seus dispositivos móveis, não podemos ignorar que os mesmos aparelhos oferecem possibilidades cada vez maiores de intensificação do sentimento de presença, principalmente através de 24

É conhecido o fato de que o conceito de dispositivo foi pouco explicado por Foucault em suas obras. Em contrapartida, no entanto, não foram poucos os autores que se empenharam em desvendá-lo, problematizá-lo e adaptá-lo para os mais diversos contextos de análise. Para os nossos propósitos, as interpretações de Agamben (2005 e 2009) e de Deleuze (1996) foram as que mais contribuíram para que pudéssemos torná-lo operacional nesta pesquisa.

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atividades que conectam performativamente o corpo ao espaço. A nosso ver, tais práticas, das quais tratamos extensamente ao longo desta pesquisa, articulam-se como respostas aos desejos de presença (GUMBRECHT, 2010) e de corporificação (embodiment) (HANSEN, 2004) que integram o dispositivo estratégico de nossa época (AGAMBEN, 2009).25 O paradoxo instaura-se da seguinte maneira: o desejo por conectividade se mostrou tão intenso nas últimas décadas, sobretudo a partir da popularização das redes de comunicação telemáticas (cuja representante maior é a web) e dos hardwares móveis que permitem conectividade constante, que gradualmente chegamos a um ponto em que nossas atividades cotidianas se tornam cada vez mais atravessadas pela ingerência de fluxos informacionais diversos; contudo, contrariamente à expectativa de que um tal estado de conexão total nos levaria à desterritorialização generalizada e à perda do contato com o “mundo material”, o que presenciamos no final desse caminho é um cenário que aponta em direção a formas de acoplagem (nem sempre harmoniosas) das mídias digitais com o corpo e com a concretude das coisas que nos cercam. Em síntese, todo o processo de digitalização da experiência contemporânea chegou a tal ponto de saturação que o resultado não poderia ser outro senão a sua reversão em novas formas de significação e valorização de conceitos como os de território, lugar, objetos físicos, paisagem, assim como de emergência de novos regimes sensoriais respaldados em formas expressivas que se baseiam nos sentidos do tato e da audição, mais do que da visão. Ao longo deste capítulo tentaremos apontar alguns dos vetores tecnoculturais que dão forma aos fenômenos expressivos com o uso de tecnologias móveis de comunicação e localização. De modo geral, tratamos de analisar a imagem dialética que emerge da tensão entre produção social do espaço – o processo de espacialização26 (LEMOS, 2012) – e meios de comunicação. Como os dados representados visualmente (ou sonoramente) através de uma interface tecnológica podem alterar a percepção espacial? Por outro lado, como o fato de estarmos situados em um determinado lugar afeta a percepção dos dados apresentados através de uma interface (gráfica ou sonora)? Partimos da premissa de que a noção de “espaço” é tributária de mediações sensoriais e culturais. Nesse sentido, o “espaço” é por natureza inapreensível e, portanto, dependente de meios para representá-lo a fim de que se possa ter com ele qualquer tipo de experiência. 25

A partir de agora não voltaremos a utilizar o termo “dispositivo” com este sentido. No entanto, ao longo do texto, ele aparecerá com outros significados: ora como sinônimo de aparato técnico (sobretudo na expressão “dispositivos móveis”), ora no sentido de ambiente de consumo de mídia, tal como se costuma utilizá-lo no contexto do cinema e das artes. 26 Lemos (2012) define o conceito de espacialização como uma ação social sobre o espaço que cria pontos de significado, os quais podem ser chamados de “lugares”.

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Reside aí a interface necessária para começarmos a aproximar os meios de comunicação de um debate que toma a questão espacial como centro de determinadas práticas que se efetuam com mídias móveis e locativas: para McLuhan (1991), por exemplo, cada cultura desenvolve um modo específico de concepção do espaço que se dá a ver nas formas de representação produzidas pelos meios artísticos e comunicacionais. Para outros autores, a efemeridade e aceleração que caracterizam a cultura e a sociedade contemporâneas despertam desejos de conexão com o espaço (JANSSON, 2005) e de experiências que produzam sensações de presença (GUMBRECHT, 2010), de modo que os meios de comunicação passam a assumir papel fundamental no sentido de atender a tais demandas. Para Didi-Huberman (2004) o espaço é sempre inacessível e por isso mesmo só pode ser sentido a uma certa distância, através de sua aura. Em suma, é por se constituir sempre como “relativo”, sempre como “um certo espaço”, que os meios de comunicação exercem papel fundamental no sentido de fornecerem formas de representá-lo em nossas vidas. Em síntese, nossa tarefa ao longo deste capítulo é lançar um olhar comunicacional ao processo de concepção espacial em nossa cultura. Para tanto, abordamos o tópico a partir de três perspectivas complementares: uma primeira, que se volta para os processos de transformação da percepção do espaço quando novos meios técnicos são introduzidos em uma dada cultura; uma segunda, de viés epistemológico, que busca mapear o paradigma do pensamento sobre o espaço a partir de um debate que toma os meios digitais como centro; por fim, uma terceira, de viés estético (ou fenomenológico), em que processos de subjetivação emergentes na relação corpo-espaço-dispositivo (tecnológico) deslocam a percepção espacial à condição de experiência artística (ou aurática). Em cada uma das referidas etapas conduzimos nossas reflexões de modo a tentar responder à questão central endereçada neste capítulo sobre como o fenômeno de disseminação das mídias móveis de comunicação e de localização introduzem dissonâncias e instabilidades nas concepções (cultural, epistemológica e fenomenológica) do espaço na contemporaneidade.

1.1

ESPAÇO ACÚSTICO DOS MEIOS COMPUTACIONAIS MÓVEIS Para nos aproximarmos das questões estéticas que emergem relacionadas às práticas de

experimentação artística com mídias locativas propomos, ao longo desta seção, nos ater primeiramente às diferentes formas de concepção espacial que surgem atreladas aos contextos de uso dos meios técnicos (sejam eles quais forem); em seguida, vamos redirecionar o foco

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para o contexto específico da percepção espacial associada às formas culturais produzidas através de meios digitais, com ênfase, evidentemente, naquelas que emergem vinculadas às mídias locativas. Comecemos então por compreender como os homens concebem o espaço através dos meios técnicos. Um dos autores que mais fortemente influenciaram o pensamento de McLuhan foi Sigfried Giedion. Historiador e crítico de arte e arquitetura, as teses de Giedion sobre os períodos de transformação histórica foram bem-recebidas pela comunidade acadêmica, especialmente por apresentarem uma abordagem baseada em relações entre ciência, arte e tecnologia. 27 Suas ideias tiveram um profundo impacto sobre a formulação de várias ideias de McLuhan, dentre as quais destacamos uma em especial: a noção de que cada modelo perceptivo elabora um estado de cultura e, consequentemente, de entendimento do espaço. Em seu artigo Concepção espacial na arte pré-histórica, Giedion (1980, p. 97) define a concepção espacial como a “capacidade de qualquer período para transformar um simples ato de percepção numa experiência emocional”. Uma concepção espacial resulta ser um registro físico automático da relação dos homens com o mundo à sua volta. Diz Giedion (idem, p. 97): “É por causa da sua manifestação inconsciente e, por assim dizer, compulsiva, que uma concepção espacial propicia um vislumbre da atitude assumida por um período em face do cosmos, do homem e dos valores eternos”. Dessa maneira, resulta que toda a forma de expressão artística guarda algum tipo de relação com o modo de conceber e expressar o “espaço” – “não existe arte que não se baseie numa relação com o espaço”, conclui o autor (idem, ibidem). A concepção espacial de um período é a projeção gráfica da sua atitude perante o mundo. Isso é verdadeiro, quer se considere a arte do Renascimento, em que tudo se encontra dominado pela visão do observador – uma concepção espacial que é graficamente representada pela projeção em perspectiva de extensas cenas em vários níveis sobre uma superfície plana; quer a arte egípcia, em que diversos aspectos do mesmo objeto são representados em planos horizontais e verticais, sem distorções e em suas dimensões naturais; quer, ainda, na arte neolítica, em que abstrações geométricas ficam pairando no espaço. (GIEDION, 1980, pp. 97-98).

Para o autor, as culturas primitivas produziram formas de arte que seguiam critérios de ordem e disposição dos elementos no espaço muito diferentes daqueles a que estamos acostumados: “A ambiguidade, a existência de contradições aparentes e dos eventos interligados sem consideração pelo nosso sentido de tempo (antes e depois), são matérias que 27

Especialmente em seus livros Space, Time and Architecture e Mechanization takes command, ambos publicados nos anos 1940.

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encontram expressão na arte primeva.” (GIEDION, 1980, pp. 98-99). Segundo o autor, em uma cultura primitiva como a dos esquimós aiviliques, se entregarmos a um membro de sua população uma fotografia virada de cabeça para baixo, ele não verá necessidade de desvirá-la. Já as crianças da cultura dos esquimós aiviliques quando não conseguem terminar o desenho de uma figura dentro dos limites do espaço da folha de papel, simplesmente viram a folha e continuam desenhando o resto da figura no outro lado. Segundo Giedion, todas as culturas primitivas apresentam um traço característico de concepção do espaço baseado na total liberdade da visão, o que para os padrões de percepção e criação pictórica contemporâneos resulta estranho. É recorrente nas artes primitivas o fato de que elas nunca colocam o objeto representado num meio circundante que cumpra a função de guiar o olhar de alguma maneira (uma moldura, um pedestal etc.), visto que a percepção visual dos membros de tais culturas se ajustaria com facilidade a qualquer posição concebível dos objetos representados. Ainda, para tais culturas, a representação da dimensão temporal também é diferente da nossa. Segundo Giedion (1980, p. 11), tudo parece se apresentar a partir de uma ideia de “presente contínuo, de perpétuo interfluxo de hoje, ontem e amanhã”. Todos esses elementos componentes das artes primevas estabelecem uma forma de representação do espaço cuja chave que dá acesso ao seu entendimento parece ter sido perdida por nossa cultura ocidental ao longo do tempo. A nossos olhos, a arte primitiva não apresenta regras de proporção, profundidade de campo e não é orientada segundo eixos verticais e paralelos (como no exemplo que citamos antes, em que os membros da cultura aivilique se sentem à vontade diante de imagens invertidas). Segundo Jacqueline Tyrwhitt (1980), em seu artigo Olho em movimento, chega a ser difícil para nós, ocidentais contemporâneos, percebermos que o modo como fomos condicionados a ver o mundo durante quinhentos anos, através da representação espacial orientada pelo critério intelectual do ponto de vista único e estático, não é o único método para vermos as coisas. Nos últimos cem anos, contudo, diversas transformações socioculturais causaram mudanças profundas na visualidade de nossa cultura. Conforme afirmávamos, uma das formas de buscar compreender tais mudanças é atentarmos aos modelos perceptivos oferecidos pelos meios técnicos de representação presentes em nossa cultura. Em A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica Benjamin (2011, p. 169) destaca o potencial dos aspectos culturais e históricos na transformação da vida sensorial das sociedades humanas:

No interior de grandes períodos históricos, a forma de percepção das coletividades humanas se transforma ao mesmo tempo que seu modo de

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existência. O modo pelo qual se organiza a percepção humana, o meio em que ela se dá, não é apenas condicionado naturalmente, mas também historicamente.

Em A obra de arte... Benjamin (2011) tomava o cinema como um laboratório de ensaio para especulações acerca dos novos regimes sensoriais que surgiam vinculados às mudanças sociais e econômicas que aconteciam na Europa na virada do século XIX para o século XX. Para o autor, tanto a materialidade sensorial do meio quanto as condições de sua produção refletiam o espírito de mudança que tomava corpo em outras esferas da cultura. Como Benjamin, outros autores propuseram interessantes paralelos entre os estados perceptuais incitados pelas técnicas envolvidas nos processos de produção e recepção cinematográficos e a vida sensorial e subjetiva que emergia junto com o crescimento das grandes cidades. Assim também se molda nossa intenção de produzir uma visada sobre os novos ambientes audiovisuais que surgem no contexto das mídias móveis. Por intermédio de nossas análises sobre casos particulares de artistas e produtores de mídia que estão experimentando novas propostas de linguagem e estética com mídias locativas, esperamos trilhar um caminho que nos conduza também à compreensão das mudanças nos regimes de percepção e representação do espaço na contemporaneidade. Com vistas a não tornarmos este percurso demasiadamente longo, acreditamos que não se faz necessário nos determos sobre as discussões fenomenológicas e socioculturais que envolvem o surgimento e a evolução do cinema28 e nos sentimos autorizados a passar para o capítulo seguinte desta história, já na etapa em que os chamados meios eletrônicos ajudaram a constituir a ambiência tecnocultural das sociedades ocidentais ao longo da segunda metade do último século. A partir dos anos 1950 o surgimento e a rápida disseminação dos meios eletrônicos trouxe consigo a materialização de um desejo de integração mundial que, em paralelo, começava a evoluir nos campos econômico e político através do processo de globalização. Com relação às mudanças sensoriais operadas pela emergência do novo meio, dizia McLuhan (2005) que a televisão iniciara um processo de reintegração dos sentidos humanos, os quais haviam sido “separados” em virtude da especialização e fragmentação produzida pela escrita e pelas tecnologias mecânicas do passado, as quais tendiam a estimular a hipertrofia da visão em detrimento dos outros sentidos. Um dos corolários mais instigantes do processo de reintegração sensorial operado pelo 28

Até porque vários autores já o fizeram com muito mais profundidade do que o escopo deste trabalho poderia permitir – ver, por exemplo, a coletânea de textos O cinema e a invenção da vida moderna (CHARNEY; SCHWARZ, 2010) – e também porque pretendemos retomar alguns tópicos relacionados a este tema em outros capítulos.

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advento televisivo foi a transformação observada por McLuhan da percepção cultural do espaço. Conforme mencionamos, para ele cada modelo perceptivo é responsável por elaborar um dado estado de concepção do espaço. Com efeito, a consequência imediata do modelo perceptual trazido pela televisão e por outros meios eletrônicos foi uma passagem do entendimento do espaço, então ainda fortemente influenciado pelos padrões renascentistas de imaginação, para um outro modelo, o de espaço acústico, o qual recupera um tipo particular de visualidade anterior à era das sociedades inteiramente letradas, como a que encontramos em várias culturas primitivas e também na visualidade que floresceu em períodos pósrenascentistas, como no Barroco. O espaço acústico sugere a integração total e simultânea dos sentidos, um espaço multissensorial por natureza que difere-se radicalmente das práticas de representação do espaço que surgiram durante o Renascimento com as técnicas de perspectivação que se baseavam no princípio do ponto de vista único. No contexto da representação espacial através de técnicas de perspectivação, ao situar o ponto de fuga em algum lugar no interior da representação pictórica, busca-se produzir um efeito de prolongamento do espaço ocupado pelo espectador em direção ao quadro – conforme sugerem McLuhan e Parker (1991, p. 13), com a técnica de perspectiva “o espectador transformou-se em partes das linhas de força que encontram seu foco no ponto de fuga”; já na pintura medieval observamos uma reversão da direção do ponto de fuga: em vez de se situar no interior do quadro, o ponto de fuga e o foco se situam no espectador, visto que as imagens são apresentadas sem uma hierarquia determinada de escala e organização – ou seja, de modo inverso ao que ocorre na pintura renascentista, em que a disposição dos elementos do quadro obedece às leis da perspectiva, diante de um quadro barroco é o espectador que opera como um vórtice que capta e opera a síntese dos elementos que se projetam sobre ele. Segundo Carpenter e McLuhan (1980), a forma de representação espacial presente na arte medieval (e, conforme vimos, também nas formas de arte de algumas culturas primitivas) é bastante próxima ao modo como o espaço é percebido por intermédio do sentido da audição. Enquanto que o sentido da visão constitui um espaço homogêneo e contínuo, no qual os objetos e elementos são inseridos para ocupá-lo, o sentido da audição gera uma representação do espaço heterogênea e fragmentada, que vai se formando dinamicamente enquanto escutamos o som do ambiente.

O espaço auditivo não tem um ponto de focalização favorecido. É uma esfera sem limites fixos, espaço feito pela própria coisa, não espaço

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contendo a coisa. Não é um espaço pictórico, encaixado, mas dinâmico, em fluxo constante, criando suas próprias dimensões de momento em momento. Não tem fronteiras rígidas; é indiferente ao background, ao meio circundante. Os olhos focalizam, localizam, abstraem, situam cada objeto no espaço físico, contra um fundo; o ouvido, porém, acolhe o som proveniente de qualquer direção. Ouvimos igualmente bem da direita ou da esquerda, da frente ou de trás, de cima ou de baixo. Não faz diferença se estamos deitados, ao passo que, no espaço visual, todo o espetáculo se altera. Podemos eliminar o campo visual fechando, simplesmente, os olhos, mas estamos sempre engatilhados para reagir ao som. (CARPENTER; MCLUHAN, 1980, p. 90).

Ainda, McLuhan e Parker (1991) discorrem sobre as relações de afinidade entre a concepção espacial que surgia vinculada ao ambiente eletrificado televisivo e as concepções de espaço anteriores ao Renascimento, como aquelas encontradas na Idade Média, no Barroco e em algumas sociedades primitivas. Em comum, tanto o espaço eletrônico televisivo quanto aqueles representados nos períodos supracitados, bem como em várias sociedades contemporâneas não-letradas, se configuram como espaços áudio-táteis, isto é, que privilegiam mais os sentidos do tato e da audição do que o da visão. Tais tipos de representação do espaço enunciam formas de subjetividade que dispensam modelos organizadores altamente estruturantes, tais como o alinhamento a um ponto de fuga, o fio condutor narrativo e a linha melódica. Conforme McLuhan e Parker (1991, p. 255):

Uma das metamorfoses mais evidentes nas artes de nosso tempo foi a queda da representação acompanhada da queda do fio condutor. Na poesia, no romance, no cinema, a continuidade da narrativa cedeu à variação temática. Tal variação em lugar do fio condutor ou linha melódica foi sempre norma nas sociedades nativas. Está presentemente se tornando norma em nossa própria sociedade, e pela mesma razão, a saber, estamos nos transformando numa sociedade não-visual.

Segundo McLuhan, o processo de assimilação de um meio técnico no interior de uma dada cultural pode atingir um pico de saturação, levando-o ao que o autor denomina de “reversão”, que, em poucas palavras, é um estado no qual o meio gera efeitos contrários às disposições iniciais quando de seu surgimento. (MCLUHAN; POWERS, 1995). Tomemos como exemplo a invenção do automóvel: como bem sabemos, o automóvel é um meio de locomoção que potencializa a prática de deslocamento por grandes distâncias, tanto é que em alguns países, como no Brasil, a chegada do automóvel representou a obsolescência de outros meios de transporte que lhe precederam, como o trem. Contudo, na medida em que o consumo de automóveis cresceu a níveis críticos, os sintomas da chegada ao ponto de

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saturação deste meio de transporte em nossa sociedade são os engarrafamentos, a falta de vagas nos estacionamentos e todos os outros problemas associados ao desequilíbrio em relação ao tamanho da frota de automóveis e à capacidade que se tem para gerenciar sua presença nas cidades. Logo, o engarrafamento é o fenômeno que aponta justamente para uma reversão da função inicial do automóvel – isto é, facilitar o transporte através de grandes distâncias. Curiosamente um dos efeitos da chegada ao ponto de reversão de um meio é justamente a emergência de desejos que, não raro, apontam para a recuperação de funções antes oferecidas por meios técnicos anteriores que, com o tempo, se tornaram obsoletos – não é à toa que hoje fala-se tanto no trem (metrô, trem-bala, aeromovel etc.) como uma das alternativas de solução ao problema do trânsito. Em relação ao processo de audiovisualização da cultura que presenciamos atualmente nos centros urbanos, poderíamos especular que tal é o nível de saturação da experiência imagética (ampliada constantemente pelas telas de todos os tipos) que o efeito desse processo não poderia ser outro senão a chegada a um ponto crítico, em que o audiovisual passa a não se diferenciar mais de outros tantos elementos que integram os ambientes em que se encontra inserido. Assim, sugerimos que as telas, entendidas enquanto o suporte material mais representativo da cultura visual, passam elas próprias por uma crise visto que estão gradualmente deixando de funcionar como “janelas” ou “quadros” para outros mundos para se tornarem os próprios mundos que representam – este é um ponto a que voltaremos nos próximos capítulos, por ora, cabe apenas enfatizar que nossa ideia se sustenta na noção de que cada vez menos as telas se apresentam como telas “tradicionais”, passando a assumirem-se enquanto objetos outros: interfaces táteis, projeções sobre fachadas de prédios e outros tipos de superfície, roupas e acessórios “vestíveis”, interfaces acionadas por comandos de voz, dentre outras. Visto que o estado de saturação de imagens a que estamos submetidos hoje tem origens que remontam ao processo de supervalorização da visão sobre os outros sentidos – processo este que tomou forma na cultura ocidental ao longo dos últimos séculos principalmente através da escrita alfabética –, então uma das consequências da hipertrofia do olhar é a condução de nossa cultura visual a um cenário em que as telas demandam cada vez mais a ação de outros sentidos (especialmente o tato e a audição). Trata-se do início de um processo de reversão (MCLUHAN; POWERS, 1995) que começa a tomar corpo em uma cultura saturada de informação visual. Irene Machado (2011, p. 8) aborda este ponto nos lembrando que:

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Se, por um lado, a cultura alfabética intensificou a visualidade, descartando o estado de alerta auditivo, por outro, não se pode ignorar a reversão proposta em termos de audiovisualidade que os meios elétricos desenvolvem.

Ainda segundo Machado (2011), a invisibilidade, o envolvimento, a simultaneidade e a interação são as principais qualidades presentes nos espaços acústicos produzidos na era dos meios elétricos. Para a autora, ao longo do último século tais propriedades foram dimensionadas e potencializadas pelos ambientes audiovisuais reproduzidos em mídias de telas – pictográficas, cinematográficas, videográficas, digitais etc. Se o ambiente de hoje encontra nos meios computacionais a base de sua estruturação, isso implica pensar também que junto com a disseminação das mídias digitais em nossa cultura multiplicam-se em igual proporção os ambientes audiovisuais, sobretudo devido aos displays de conteúdo dinâmico que geralmente acompanham os hardwares computacionais. Portanto, a nosso ver, estamos presenciando um momento em que as telas audiovisuais parecem já ter atingindo um ponto crítico de presença e ubiquidade nas sociedades contemporâneas, levando-as a um processo de reversão cujos efeitos de longo alcance começam a ser sentidos. Uma prova do processo de reversão pelo qual as telas estão passando é que na cultura dos meios digitais a condição de “janela” começa a dar lugar a novas metáforas: somente “ver” e “ouvir” já não são mais suficientes para descrever o tipo de experiência sensorial, cognitiva e sociocultural que desenvolvemos com os novos ambientes audiovisuais – mais do que nunca, é necessário interagir, compartilhar, qualificar, responder, remixar, enfim, são muitos os verbos que definem a nova gramática de usos dos audiovisuais em ambientes de meios digitais. Em nossa opinião, de modo semelhante às concepções espaciais representadas nas artes pictóricas medievais, barrocas e primitivas, as quais sugeriam uma noção de espaço que priorizava os sentidos do tato e da audição, o atual espectador-usuário de audiovisuais é convocado a operar as sínteses necessárias para “montar” fragmentos imagéticos que se oferecem à experiência de maneira dispersa. O audiovisual, nesse sentido, é pensado para além de sua unidade ontológica – a imagem que ocupa toda a dimensão do quadro cinematográfico, a narrativa linear, o jogo do campo e do contracampo na montagem, a tela interpretada como uma janela que nos dá acesso a outros mundos etc. –, passando a ser experimentado como um ambiente multissensorial que atualiza o espaço acústico mcluhniano na era dos bancos de dados informacionais. Manifestações desse estado assumido pela imagem contemporânea apontam para os

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novos formatos midiáticos em que as narrativas são oferecidas fragmentadamente através de múltiplas plataformas de acesso à informação – as chamadas narrativas crossmidiáticas (DENA, 2004) ou transmidiáticas (JENKINS, 2009), como as da franquia de filmes Matrix (Andy e Lana Wachowski, 1999) e as do seriado Lost (J. J. Abrams, Jeffrey Lieber, Damon Lindelof, 2004-2010), que tomam forma através de um intricado compósito de mídias (cinema, jogos digitais, webseries, vídeos para celular, histórias em quadrinhos, dentre outras). Ainda, manifestações contemporâneas como as que se apresentam através de mashups de todos os tipos – de vídeo, de música, de softwares – enfatizam a reciclagem e a síntese de restos culturais que recuperam e naturalizam práticas operadas por movimentos de vanguarda do século XX, como as técnicas de collage dos artistas modernistas, as telas pop de Andy Warhol, os détournement situacionistas, dentre outras. Lógicas semelhantes seguem os filmes de cinema de ensaio, os remixes musicais dos gêneros funk e technobrega e outras tantas formas culturais de nossa época que enfatizam a conexão entre materiais de arquivo e outros conteúdos “já-prontos” (ready-mades), gerando novas possibilidades expressivas e narrativas. Em tais contextos, o design de imagens (bem como o de qualquer tipo de conteúdo) apresenta-se muito mais como um jogo de ligar pontos em que o papel dos produtores é gerar sistemas de informação abertos o suficiente para que os públicos (espectadores, usuários, fãs) possam eles próprios utilizarem-no de diferentes formas, montando suas partes segundo propósitos muito diferentes entre si. Cada produtor atua, portanto, como um cartógrafo, gerando mapas a partir de coleções de conteúdos disponíveis para toda a sorte de usos e apropriações táticas. A nosso ver, tais manifestações expressivas da cultura contemporânea atualizam e elevam o potencial da metáfora da reversão da posição do ponto de fuga que encontramos na descrição de McLuhan e Parker (1991) sobre os espaços acústicos produzidos nas representações espaciais de sociedades primitivas não-letradas, na Idade Média e no Barroco. Tal como num quadro medieval, o ponto de fuga encontra-se hoje (e mais do que nunca) apontado para o espectador, tornando-o o centro de significação de um mundo que se apresenta cada vez mais fragmentado. Voltaremos a tratar do processo de reversão pelo qual as telas passam no próximo capítulo, quando discorrermos sobre o fenômeno de audiovisualização do espaço urbano decorrente da presença massiva de ambientes audiovisuais nas metrópoles contemporâneas. Por ora, é necessário darmos um passo a mais em direção ao universo das materialidades das mídias digitais, tendo em vista situarmos outro processo de reversão que toma pé no momento

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em que redes telemáticas e de geolocalização atingem um ponto de saturação em nossa atual sociedade. A hipótese com a qual trabalharemos em seguida é a de que as principais características dos meios técnicos computacionais – as estruturas de bancos de dados, a conectividade em redes de hipertexto, as interfaces interativas, dentre outras – começam a desenhar uma nova curva em sua espiral evolutiva uma vez que cresce a infraestrutura material que dá suporte a estas formas culturais: quando chega-se a um ponto em que a presença dessas tecnologias em nossa vida cotidiana alcança níveis de saturação elevados, é inevitável que suas propriedades comecem a extrapolar os limites das interfaces computacionais tradicionais (a tela dos computadores é ainda a principal referência) e por conta disso “transbordem” para o lado de fora das telas, contaminando com suas lógicas computacionais o espaço “exterior” e os elementos que o integram (incluindo-se aí os objetos físicos e o próprio corpo humano, que não passam incólumes a este processo). Para defender o nosso argumento, começaremos por tentar descrever alguns aspectos de como os meios computacionais introduzem novos processos de mapeamento e tradução de toda a experiência contemporânea para a linguagem digital, especialmente aquelas que se desenvolvem em interação com espacialidades físicas e geográficas. Lev Manovich (2004) sugere que a principal contribuição trazida pelos atuais meios computacionais é que eles não só permitem simular todas as funções e comportamentos de seus antepassados – escrita, fotografia, cinema, TV, rádio – como também oferecem o potencial para a criação de novos meios híbridos, que surgem por intermédio da combinação entre as propriedades técnicas de diferentes tipos de mídias.29 Devido a esta característica fundamental apresentada pelas mídias computacionais, Manovich conclui que os computadores constituem as primeiras “meta-mídias” (mídias produtoras de outras mídias) da história.

É por esse motivo que me refiro a esse tipo de novas mídias como “metamídia”. Um objeto de meta-mídia contém tanto linguagem como metalinguagem; tanto estrutura da mídia original (um filme, um espaço arquitetônico, uma trilha sonora), como ferramentas de software que permitem ao usuário gerar descrições dessa estrutura e alterá-la. (MANOVICH, 2004, p. 152)

A criação de novos meios pelos computadores é para Manovich (2004) uma operação

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Manovich (2013) chama de deep remix o processo de combinação entre elementos técnicos de diferentes tipos de meios, derivando a expressão do termo “remix”, o qual é comumente utilizado para se referir à montagem de elementos expressivos (estéticos) de diferentes produtos de uma mesma mídia.

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que só é viável devido à presença dos softwares (programas) executados no interior de todo e qualquer hardware computacional. É nesse sentido que o autor nos chama a atenção para pensarmos no ambiente em que vivemos hoje como um ambiente dominado pelo software – o qual dá origem a uma “cultura do software” (software culture) (MANOVICH, 2013, p. 27, tradução nossa), conforme a tese que embasa o livro Software takes command. Os softwares são, portanto, os responsáveis por “traduzir” para o domínio dos meios digitais toda a experiência com as mídias anteriores ao seu surgimento. Manovich (2004) enxerga esse processo de tradução das funcionalidades e propriedades das mídias antigas para contextos computacionais como uma operação de mapeamento. Tal como a arte representacional que em épocas passadas assumia o papel de “mapear” toda a gama de experiências de um indivíduo ou de uma comunidade e “traduzi-las” em imagens, narrativas ou quaisquer outras estruturas que conferissem unicidade e coerência à representação, o que presenciamos hoje no âmbito das mídias computacionais é um processo semelhante. Segundo Manovich (2004, p. 151):

É também adequado (e mais interessante) usar o termo mapeamento para descrever o que as novas mídias fazem com as mídias antigas. Os softwares permitem-nos re-mapear os objetos das mídias antigas em novas estruturas – transformando, assim, as mídias no que chamo de “meta-mídias”.

Na medida em que os diferentes tipos de softwares com os quais lidamos diariamente substituem o papel antes outorgado às mídias analógicas, passamos a nos deparar com uma oferta cada vez maior de possibilidades de mapeamento e tradução de dados para contextos computacionais. Hoje em dia, tudo é potencialmente “mapeável” pelas mídias digitais: desde o interior do corpo humano até o comportamento de uma população inteira de usuários de redes sociais online. No caso mais simples, temos a tradução de um objeto analógico para o contexto digital. É o caso, por exemplo, dos formatos digitais de texto, música e vídeo: arquivos com extensão “.avi” ou “.mov” são interpretados pelos computadores como sendo conteúdos de vídeo; já os arquivos com extensão “.mp3” ou “.wav” são interpretados como sendo conteúdos de som; etc. Uma vez “traduzidos” para o contexto digital, todos os conteúdos passam a dispor de uma mesma base material – a matriz digital – a qual permite realizar um número potencialmente infinito de operações, que vão desde os comandos básicos como copiar e colar até os complexos processos de combinação entre as técnicas de diferentes tipos de mídias para dar origem a novos meios híbridos. Mas o que ocorre quando, para além do mapeamento de imagens, sons e textos, os

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softwares começam a permitir o mapeamento do espaço geográfico? Quando convertidos para a matriz digital de código abstrato, quais as possibilidades (sobretudo estéticas) de tradução dos dados de informação espacial em representações visuais, sonoras, táteis que tomam forma no nível das interfaces dos dispositivos técnicos? Quais operações passam a ser possíveis e qual o impacto desse processo no modo como passamos a perceber e compreender o espaço? A hipótese que defendemos é a de que os processos de estetização de bancos de dados que dão origem a espaços digitais começam eles próprios a produzir um novo paradigma perceptual e por consequência de concepção de quaisquer tipos de espaços, mesmo o espaço da vida cotidiana que se produz sem a mediação direta de aparelhos. Em outros termos, argumentamos que na medida em que as representações de espaços navegáveis exibidas nas interfaces computacionais de todos os tipos (computadores, videogames, dispositivos móveis, painéis urbanos etc.) se confundem com o próprio ambiente em que se inserem, todo e qualquer espaço, mesmo aqueles que se encontram no lado de “fora” da tela, passam a ser assimilados, compreendidos e utilizados segundo as lógicas operativas, as estéticas e as qualidades dos espaços digitais. Um sintoma disso que afirmamos é a ideia de que o hipertexto, enquanto forma cultural que dá origem a determinados modelos perceptuais e cognitivos, atingiu tal ponto de saturação em nossas vidas contemporâneas que uma das consequências deste processo é a transposição de suas lógicas para o “exterior” da própria internet. A principal qualidade enunciada tanto pela tecnologia quanto, principalmente, pelo conceito de hipertexto é a conectividade entre elementos armazenados em diferentes tipos de bases de dados. Nesse sentido, ao ser transportado para o território geográfico em atividades que empregam o uso de tecnologias locativas, o hipertexto atua como uma moldura (KILPP, 2003) que enuncia o espaço territorial como uma extensão da web, e nesse sentido traduz para a esfera da experiência tátil algumas características dela, sobretudo as facetas de mídia, de banco de dados e de ambiente de socialização (FISCHER, 2008). Embora o processo que acabamos de descrever esteja em marcha há algum tempo, desde pelos menos o período em que tecnologias de geolocalização foram liberadas para uso civil nos anos 1990, foi somente devido à consolidação dos aspectos de infraestrutura tecnológica que se permitiu o estabelecimento de redes conectivas e a popularização de hardwares com capacidades suficientes de armazenamento e processamento de informação – só agora começamos a sentir efetivamente, em nível simbólico e cultural, os resultados tangíveis desse processo. No artigo Grab your Palm, plug in your GPS, and head for the 3-D Internet, publicado há cerca de dez anos (portanto antes dos primeiros modelos de

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smartphones e de outros gadgets multifuncionais de hoje em dia), Steven Johnson (2003) já antecipava a ideia de uma estrutura em hipertexto que se efetivaria tomando o “mundo real” como plataforma. Nesse texto Johnson afirmava que a grande revolução trazida pela liberação para uso civil do sistema GPS foi nos permitir pensar nas coordenadas geográficas como uma espécie de URL do mundo real: “Pense nesses dígitos não só como a descrição de um ponto no espaço mas como um lugar para armazenar informações”30 (2003, s/p, tradução nossa), alertava Johnson. De fato, uma vez que usuários de dispositivos móveis podem vincular diferentes tipos de dados informacionais de multimídia a qualquer ponto geográfico, logo é possível imaginar toda a superfície do planeta como uma extensão da imensa base de dados representada pela web. Quando Johnson chamava a atenção para a possibilidade de vincular informações a coordenadas geográficas, sua intenção era provocar um deslocamento da noção de espaço enquanto sistema de pontos matemáticos em favor de uma ideia de espaço como mídia, isto é, como um meio de armazenamento e transmissão de informação e interação social. Por esse caminho, ele apontava para um vasto campo de possibilidades que viriam a se consolidar, anos mais tarde, como uma nova fase de expansão do conceito de hipertexto, que gradualmente estaria começando a se fazer presente não somente em ambientes “puramente” computacionais, mas de certo modo estaria transbordando para diversos âmbitos de nossa vida cotidiana, inclusive nas práticas que se realizam sobre espaços físicos e geográficos. Se antes os hiperlinks eram vinculados exclusivamente a palavras e, posteriormente, a imagens, à medida que a técnica avançava eles passaram a ser vinculados a praticamente qualquer tipo de elemento da interface – gráficos, vídeos, animações, dentre outros. Atualmente, as lógicas conectivas do hipertexto começam ser percebidas na esfera dos fenômenos que tomam forma “fora” das telas. Em outros termos, quando as técnicas de criação de hipertextos se combinam com as técnicas das mídias locativas, criam-se novos tipos de hiperlinks que transpõem os limites das interfaces bidimensionais e avançam em direção ao espaço tridimensional: territórios geográficos, objetos e até mesmo o corpo humano adquirem o potencial de se tornarem superfícies “lincáveis”. Ao especular sobre as possibilidades de uso dessas tecnologias para aplicações no cotidiano das pessoas, Johnson se arriscava em previsões que, vistas sob a perspectiva atual, se mostraram completamente acertadas.

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No original, em inglês: Think of those digits not simply as a description of a point in space but as a place to store information.

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Hoje você pode criar um endereço na Web e publicar lá páginas e páginas de tudo o que você quiser. Mas logo você será capaz de tomar uma localização de GPS – vamos dizer, 40°43.833' N, 073°59.814' W, que são as coordenadas do Washington Square Park em Nova York – e publicar conteúdo lá também.31 (JOHNSON, 2003, s/p, tradução nossa).

Mais adiante, complementa:

Qualquer um que caminhasse pelo parque poderia então ser capaz de recuperar os dados que você armazenou lá. Algumas dessas informações poderiam ser direcionadas para um público amplo e incluiria recomendações sobre restaurantes próximos, ou fóruns de discussões sobre melhorias para o próprio parque.32 (idem, ibidem, tradução nossa).

Dessa maneira, Johnson ensaiava algumas possibilidades de práticas que se poderiam desenvolver com o aporte das tecnologias de localização via GPS. Passado uma década desde a publicação de seu artigo, suas previsões se consolidaram como a base de aplicações móveis amplamente conhecidas. O primeiro exemplo trazido por ele, a possiblidade de associar comentários e outros tipos de informações sobre estabelecimentos comerciais ou quaisquer outros lugares, constitui uma das funcionalidades mais utilizadas pelos usuários dos serviços oferecidos por redes de compartilhamento de localização como o Foursquare33 ou em aplicações móveis como o Foodspotting34. Não surpreende, contudo, que a inspiração para sugerir tal tipo de emprego do GPS tenha surgido quando Johnson relatava o seu contato com a prática de Geocaching35, uma espécie de jogo que consiste basicamente em encontrar com a ajuda do GPS pequenos containers escondidos em espaços públicos. Conforme já mencionamos, são as práticas experimentais, geralmente realizadas por cientistas e artistas, as que primeiro dão a ver os sintomas da formação de um novo ambiente sensorial. Assim, práticas como a de geocaching já apontavam, desde aquela época, para uma forma emergente de concepção do espaço urbano – o espaço pensado como mídia de armazenamento de conteúdos físicos vinculados a redes de 31

No original, em inglês: Today you can create a Web address and publish pages and pages of anything you want there. But soon you'll be able to take a GPS location – say, 40°43.833' N, 073°59.814' W, the coordinates for Washington Square Park in New York – and publish material there as well. 32 No original, em inglês: Anyone walking through the park would then be able to browse through the data you've uploaded. Some of this information might be targeted at a general audience and include recommendations for nearby restaurants, or a public bulletin board for discussing improvements to the park itself. 33 Serviço de rede social baseada no compartilhamento de informações sobre locais frequentados por seus membros. Disponível em: . Acesso em 05 de julho de 2013. 34 Aplicativo que tem como foco a troca de informações entre os seus usuários sobre estabelecimentos alimentícios. Disponível em: . Acesso em: 25 de outubro de 2013. 35 Disponível em: . Acesso em: 11 de dezembro de 2013.

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comunicação informacionais – que, atualmente, se tornou o padrão de base para muitas aplicações de dispositivos móveis. Mas as previsões de Johnson não foram, ainda, de todo realizadas. Sua ideia de uso de GPS para adicionar informações virtuais no Washington Square Park incluiriam ainda outras possibilidades. Dizia ele que as mensagens armazenadas poderiam também ser mais pessoais, como “anotações em um diário armazenadas no lugar exato em que os eventos descritos aconteceram, uma espécie de geocache em primeira pessoa”36 (idem, s/p, tradução nossa). Contudo, se as modalidades de uso de tecnologias locativas voltadas para finalidades mais práticas são as mais conhecidas, como, por exemplo, saber qual a opção gastronômica do bairro que apresenta a melhor relação de custo-benefício ou qual o melhor lugar para sair à noite em uma determinada região, por outro lado, as aplicações que incentivam a associação de conteúdos a lugares com finalidades narrativas ou poéticas são mais raras. Mesmo assim, já é possível observamos a emergência de diferentes tipos de propostas com que conteúdos artísticos, poéticos e narrativos são associados ao espaço físico e geográfico, conforme os exemplos que trazemos ao longo deste texto. Em resumo, nesta seção buscamos chamar a atenção para um novo paradigma de percepção e concepção espacial que começa a surgir quando as bases técnicas computacionais passam a fazer parte de nossa sociedade e que de certa forma recupera e amplifica o conceito de espaço acústico proposto por McLuhan. A concepção de espaço acústico dos meios digitais formulada nesta etapa do trabalho de pesquisa baseia-se na ideia de que as tecnologias computacionais estão atingindo um ponto de saturação em nossa experiência cotidiana, de modo que suas lógicas operativas, suas linguagens e estéticas “transbordam” e se expandem em direção a contextos e práticas culturais até então pouco influenciados pelos domínios dos meios digitais. Nosso posicionamento aqui é de que as propriedades conectivas dos meios computacionais (sobretudo da web) são repropostas no espaço territorial à medida que multiplicam-se os suportes técnicos móveis e de localização. Tudo isso conduz a um deslocamento do próprio conceito de espaço, que, emoldurado pela ação dos ambientes computacionais, é enunciado como um espaço multissensorial, fragmentado e dinâmico, atualizando e potencializando um tipo de concepção espacial – a de espaço acústico – característica de algumas culturas não-visuais, bem como dos modos de representação espacial operados pelos meios eletrônicos de modo geral, segundo McLuhan. No contexto das mídias locativas, a noção de espaço acústico dos meios digitais torna36

No original, em inglês: But the messages stored might also be more personal, such as diary entries stored at the very place where the events described in the diary occurred, a kind of first-person geo-cache.

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se ainda mais radical, visto que a mistura analógico-digital possibilitada pelos aparatos técnicos locativos possibilita a geração de experiências híbridas de percepção espacial: casas, monumentos, ruas, pedestres, enfim, todos os elementos dos espaços físicos e geográficos são apropriados como dados de informação de um banco de dados expandido e por isso mesmo podem ser combinados, acoplados, montados com imagens, sons, animações, instruções algorítmicas de quaisquer ordens. A imagem que se forma é uma imagem sem perspectiva, sem profundidade, uma imagem plana em que a escala gigantesca das redes mundiais de computadores e satélites se equaliza com a escala humana. Tal como numa pintura medieval em que o ponto de fuga se situa não na tela mas no espectador, o espaço acústico dos meios móveis locativos se fundamenta no princípio da montagem enquanto operação de conexão entre elementos díspares, heterogêneos e fragmentados. O corpo do espectador torna-se um vórtice que capta e sintetiza imagens (virtuais), as quais são antes sentidas ou intuídas do que propriamente vistas. Assim, o espaço acústico dos meios computacionais dá origem a estéticas de conectividades híbridas, em que todos os elementos, sejam digitais ou analógicos, são alçados à categoria de dados e, portanto, podem ser combinados e recombinados entre si. Mais adiante, quando analisarmos em profundidade alguns casos de audiovisuais locativos, voltaremos a discorrer sobre como tais experiências recuperam a ideia de espaço acústico, dando origem a estéticas de conectividades híbridas. Por ora, tendo em vista que discorremos suficientemente sobre as características mais elementares dos novos espaços acústicos que emergem nos contextos computacionais, cabe então avançarmos na direção dos vetores epistemológicos que surgem atrelados às práticas sociais e culturais realizadas sobre mídias locativas.

1.2

VIRADA ESPACIAL E ESPAÇOS MULTIRRELACIONAIS Há cerca de dez anos, o termo “locative media” (apropriado para o português como

“mídias locativas”) surgia como uma resposta tanto ao controle militar das tecnologias de mapeamento e geolocalização quanto à estética descorporificada da arte com mídias digitais – em especial a net art, software art, data visualization, dentre outras variações. Por essa via, os artistas de mídias locativas reivindicavam em seus trabalhos o mundo para além das telas dos computadores e das galerias de arte como território para criação de experiências estéticas. Desde então, um amplo espectro de possibilidades vem se desenvolvendo a partir das funções oferecidas por essas tecnologias, permitindo que novas práticas sociais e culturais se realizem em diferentes áreas, sobretudo em atividades que exploram a interseção entre os domínios das

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artes e das tecnologias digitais. Portanto, desde que o termo “mídias locativas” foi cunhado, a ênfase das reflexões não tem sido sobre as tecnologias em si, mas sobre os modos de apropriação de tais tecnologias em contextos de comunicação, arte, cultura e ativismo.37 Na última década vem crescendo consideravelmente o número de publicações e eventos destinados ao tópico das mídias locativas, nos quais são retomadas com frequência as discussões acerca dos seus impactos sobre diversas áreas. Grande parte dos estudos de comunicação dedicados ao tema visam explorar, para além da discussão puramente tecnicista, as dimensões sociais e simbólicas presentes nos novos ambientes comunicacionais que emergem atravessados por tais tecnologias. Já no campo da produção estética, o emprego das mídias locativas vem incentivando um processo de incorporação das propriedades somáticas e performáticas do corpo humano como parte fundamental das estratégias expressivas de vários artistas, gerando zonas difusas com os domínios de distintas formas culturais – arte conceitual, performance, videogames, intervenção urbana, cinema, dentre outras, são algumas das formas culturais frequentemente evocadas nas análises sobre projetos que integram tecnologias locativas em suas bases formais e conceituais. A ingerência das mídias locativas sobre as estéticas contemporâneas reacende uma série de questões que, volta e meia, pautam os debates sobre a produção de imagens técnicas, dentre as quais destacamos uma em especial, que aponta para o problema da materialidade do objeto estético no contexto dos meios digitais. Tal problemática é antiga e está ligada antes de tudo à questão dos avanços das técnicas de representação. 38 Na medida em que se adicionam novas camadas tecnológicas às atividades de produção e recepção de conteúdos midiáticos, paradoxalmente, um dos efeitos apontados por algumas correntes dos estudos de mídia é aquele que exalta a perda de materialidade. Para não nos alongarmos numa recuperação histórica dessa questão (a qual já foi extensamente tratada por vários autores), uma retomada em sobrevoo do debate poderia começar pelas discussões travadas, ainda no século XIX, em torno da “perda” de materialidade a que a imagem (até então pictórica) foi submetida com o advento da fotografia – processo este que se intensificou com o surgimento do cinema e mais ainda com o trabalho desenvolvido por diversos grupos de vanguarda que se alternaram no papel de “atacar” a 37

Atribui-se a Karlis Kalnis a proposição inicial da expressão “mídias locativas” com essa finalidade. Kalnis apresentou o termo durante o Art+Communication 6, um festival organizado pelo RIXC New Media Culture, ocorrido na Letônia, em 2003. A esse respeito ver o texto Beyond Locative Media, de Marc Tuters e Varnelis (2006). 38 A esse respeito ver o primeiro capítulo de Cinema, video, Godard de Philpe Dubois (2004).

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materialidade do objeto artístico ao longo do último século. Segundo Dubois (2004), foi nas últimas décadas do século passado que o debate ganhou novo impulso, em especial a partir dos anos 1970, quando o alvo das especulações em torno da desmaterialização da imagem passou a ser o vídeo. Nos anos 1980, com a ascensão das bases técnicas computacionais nos meios de comunicação, chega-se a uma espécie de limiar epistemológico em que parte da crítica de arte e mídia apontava para os supostos perigos do desaparecimento da imagem, da perda de referência nos sistemas de representação, dentre outros temas que, não raro, lançavam um olhar sombrio sobre a produção artística e midiática em meios eletrônicos.39 Nos anos 1990, o foco da discussão sobre a materialidadeimaterialidade das imagens técnicas se deslocou para as então ainda emergentes tecnologias de realidade virtual e para a Internet, conduzindo a um cenário de análise e crítica da imagem em que se manifestava um claro desejo de transposição das experiências do mundo físico para sistemas e redes virtuais.40 Na virada do século XX para o XXI, as novas formas midiáticas, aportadas pelas tecnologias computacionais e pelas redes de telecomunicação, instauraram um cenário em que passaram a prevalecer as estéticas de liquidez (BAUMAN, 2001) ou de fluxo (ARANTES, 2010). Conforme descreve Arantes (2010, p. 77), no campo das artes as estéticas de fluxo correspondem à

[...] prática de deslocamentos, às desterritorializações, à crítica ao cubo branco41 e ao sistema da arte, à ruptura com os espaços expositivos tradicionais, como os museus e galerias de arte, às práticas de intervenções urbanas, às performances e happenings, às produções artísticas em rede, às experimentações em arte móvel, enfim, às novas configurações espaciais da arte que foram engendradas desde o início do século passado pelas novas vanguardas históricas e se estendem à atualidade.

Atualmente, o que se percebe é um olhar que, pelo menos em parte, parece relativizar a sensação ontológica de desterritorialização, deslocamento e descorporificação generalizados, dando a ver, pelo menos no campo da produção de imagens técnicas, outras alternativas para pensarmos a atuação dos meios de comunicação no que se refere a como o espaço e as materialidades são concebidos pelos sistemas de representação, seja nas artes ou no campo das mídias.

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A esse respeito ver o primeiro capítulo de O virtual e o hipertextual, de André Parente (1999). A esse respeito ver o artigo Poetics of augmented space, de Lev Manovich (2006b). 41 Expressão utilizada no meio artístico para se referir ao espaço expositivo das galerias, em que frequentemente as paredes, o chão e o teto são brancos. 40

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Ao que parece, o ícone emblemático da primeira geração das mídias computacionais, um usuário controlando seu avatar por um espaço infográfico tridimensional (pensemos no Second Life), foi se apagando para dar lugar à cena de pessoas acessando seus e-mails e seus perfis em redes sociais online desde seus dispositivos móveis, ao mesmo tempo que se deslocam em carros ou caminham pelas ruas, shopping centers, aeroportos e em quaisquer outros lugares. Trata-se, na visão de Lemos (2004), inspirado pelo pensamento de Deleuze e Guattari (1995), de um processo de des-re-territorialização, no qual ao mesmo tempo em que as mídias móveis possibilitariam a liberdade de deslocamento irrestrito (desterritorialização), simultaneamente também colocariam em marcha processos de conectividade acentuada (territorialização). 42 Ao sobreporem camadas de conteúdos midiáticos sobre espacialidades físicas e geográficas através do uso combinado de redes de telecomunicação e geolocalização, as mídias locativas produzem ambiguidades que abalam a concepção do espaço (físico e geográfico). Por outro lado, o próprio espaço das redes e dos conteúdos informacionais – o ciberespaço – também tem sua concepção alterada, passando a ser valorizado não como um “outro” espaço, mas como parte integrante e fundamental de toda a experiência que toma forma localmente, isto é, “fora” dos espaços “puramente” computacionais.

O ciberespaço, em um primeiro momento, é pensado como um espaço independente e à parte do mundo das coisas, um espaço lúdico, dionisíaco e do entretenimento. Aos poucos, os estudos em cibercultura mostram que não existem relações sociais sem enraizamento local e que as redes, enquanto espaço/lugar de socialização, de circulação de informação e de vínculos comunitários não está situado em um mundo à parte. O que acontece nas redes tem/é fruto de repercussões concretas de tudo que nos vincula às dimensões cotidianas e locais da experiência. (LEMOS, 2012, p. 98).

Outros autores apresentam pontos de vista que vão ao encontro do pensamento de Lemos. Para Jansson (2005), o rápido desenvolvimento de tecnologias de informação e comunicação em nossa sociedade vem provocando abalos no modo como os espaços são concebidos – mesmo em termos de suas dimensões materiais, simbólicas e imaginárias – e, nesse sentido, os estudos comunicacionais exercem um papel importante no que se refere à reflexão sobre as ambiguidades que se instauram nos modos como os espaços são socialmente 42

Ainda que meramente por razões de tentarmos alcançar clareza maior em nossa exposição, não podemos cair no risco de acreditar que as etapas desse processo se sucederam assim, de forma tão linear e sistemática. Tratase, é claro, de movimentos que se efetuam no interior da cultura e que, por conta de sua complexidade, apesar de despontarem com mais intensidade em um ou em outro momento, extravasam qualquer tentativa de cronologia linear.

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produzidos. Nesse sentido, Jansson (2005) defende que o dinamismo e a efemeridade que marcam a cultura e a sociedade atuais demandam uma “virada espacial” (spatial turn) (2005, p. 1, tradução nossa) nos estudos sobre os meios de comunicação, marcada pela urgência em se observar com mais atenção como a comunicação produz espaços e como o espaço produz comunicação. Para Gumbrecht (2010), paradoxalmente, se, por um lado, nosso ambiente midiático contemporâneo, constituído por uma intensa combinação e comunhão de aparelhos, é o responsável por construir uma barreira que nos separa das coisas do mundo até o ponto em que beiramos uma perda dos nossos corpos e da dimensão espacial da existência, por outro lado, esse mesmo ambiente é também capaz de nos devolver algumas dessas coisas através de efeitos de presença produzidos pelos meios de comunicação.

[...] se as imagens flutuantes nas telas que são o nosso mundo transformamse em barreiras que nos separam para sempre das coisas do mundo, essas mesmas telas também podem despertar novamente um medo e um desejo pela realidade substancial que perdemos. [...] quanto mais perto estamos de cumprir os sonhos de onipresença e quanto mais definitiva parece ser a subsequente perda dos nossos corpos e da dimensão espacial da nossa existência, maior se torna a possibilidade de reacender o desejo que nos atrai para as coisas do mundo e nos envolve no espaço dele. (GUMBRECHT, 2010, p. 172)

Ainda segundo Gumbrecht, a virada epistemológica em direção ao espaço que marca parte dos processos subjetivos de nossa época se manifesta como um reflexo compensatório de uma cultura que busca desesperadamente reconstituir efeitos de presença e materialidade: “em um nível primário, os efeitos de presença têm sido tão completamente banidos que agora regressam sob a forma de um intenso desejo de presença – reforçado ou até iniciado por muitos de nossos meios de comunicação contemporâneos.” (GUMBRECHT, 2010, p. 41). Para Dubois (2004, p. 64), tal movimento em direção ao espaço não poderia ter outra consequência senão a “hipertrofia do tato”, que se mostra, em especial, através de uma série de “máquinas que funcionam como próteses não do olho (estamos longe da câmara escura), mas da mão. Triunfo do controle remoto, magia do mouse, papel incontrolável do teclado, mesmo para fazer uma imagem”. Não é à toa que multiplicam-se cada vez mais as interfaces que demandam o toque e não param de surgir dispositivos que convidam o corpo do usuário a engajar-se performativamente em vários tipos de atividades, tais como nos mostram os videogames Wii,

Kinect e Playstation Move (Figura 3) e, recentemente, os aparelhos

televisores que oferecem a possibilidade de que operações básicas como trocar de canal,

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aumentar o volume, dentre outras, sejam controladas através de movimentos do corpo.43 Tudo isso parece apontar para uma época em que as imagens se moldam ao corpo e dele dependem para se tornarem completas.

Figura 3 – Divulgação Playstation Move

FONTE: Otakrazys. Disponível em: . Acesso em: 29 de outubro de 2013.

Giselle Beiguelman (2012), artista, curadora e pesquisadora dos campos de Comunicação e Artes, sugere que o movimento de dados informacionais em direção ao “tátil” pode ser interpretado como um dar-se conta por parte da indústria da informática de que a postura sedentária imposta pelos dispositivos de mídia contemporâneos (TV, cinema, computador) se opõe à vocação nômade dos seres humanos: “as pessoas não foram feitas para viver dentro de escritórios” (2012, p. 62), afirma a autora. Em complemento, Beiguelman recorre à matriz de pensamento aristotélica para afirmar o seguinte:

Para Aristóteles, o homem é um ser político, portanto, seu lugar é a polis, a cidade, a rua, e não sentado atrás de um computador, em um escritório. Acho que todas as inovações industriais propostas no campo dos produtos e dispositivos móveis têm respondido a essa demanda. As pessoas não querem ficar sentadas num escritório, atrás de uma espécie de máquina de escrever com uma televisão pendurada. (idem, ibid.)

Curiosamente, conforme já vínhamos assinalando, quando o processo de “digitalização” da experiência contemporânea parece atingir o seu potencial máximo, uma das consequências é a reversão em atividades que demandam que as pessoas saiam para as ruas. Alguns instantâneos de nossa época reforçam nosso argumento. Já há algum tempo que os dispositivos móveis se tornaram acessórios indispensáveis para várias práticas esportivas: é 43

Como o modelo de aparelho televisivo UN46ES8000, da empresa Samsung, em que funcionalidades como trocar de canais, controlar o volume, abrir aplicativos, dentre outras, podem ser acionadas com gestos das mãos.

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conhecido o hábito de utilizá-los como player musical enquanto se realizam atividades de caminhada, ciclismo, musculação etc., contudo, nos últimos anos, vem se tornando cada vez mais comum o uso dos dispositivos móveis como auxiliares de práticas esportivas principalmente em virtude da grande oferta de aplicações voltadas às atividades físicas. Por exemplo, o aplicativo da empresa Nike, o Nike Plus, monitora com bom nível de precisão o desempenho de usuários durante atividades de caminhada e corrida. Além de fornecer relatórios com dados sobre a distância percorrida pelo usuário, a quantidade de calorias gastas durante a atividade, as velocidades máxima e mínima atingidas durante o percurso, o aplicativo apresenta ainda como grande diferencial a possibilidade de conectar os dados do usuário a uma rede social exclusiva do aplicativo. Assim, além de poder acompanhar a própria evolução na prática esportiva, o usuário pode também ver (e se comparar ao) o desempenho de seus contatos na rede.44 Longe de ser simplesmente um auxiliar para a prática esportiva, o software se torna parte fundamental da experiência de correr. Todos os feedbacks de controle, relatórios de desempenho e parâmetros comparativos com outros usuários da rede – além de outras funcionalidades, como, por exemplo, escolher músicas para tocar em momentos cruciais do percurso (quando o usuário começa a diminuir o ritmo em função do cansaço ou nos momentos finais da corrida) – moldam um ambiente que potencializa o prazer obtido na experiência de corrida. Apesar de relativamente simples e restrito a um nicho específico de práticas sociais com dispositivos móveis, o caso do aplicativo Nike Plus remete a um fenômeno mais abrangente que toma forma em toda a cultura contemporânea. De certa forma, quando Beiguelman (2012) sugere que a indústria da informática finalmente percebeu a necessidade de promover meios para que o consumo de mídia ocorra em mobilidade, algo que, na visão da autora, parece tão natural a nós, seres humanos, ela estaria também sinalizando para uma espécie de “desvio de rota” na história evolutiva das mídias. Tal desvio teria sido provocado não pelos hardwares móveis, mas, bem pelo contrário, pelos, digamos assim, meios “imóveis” ou “estacionários”, como a TV e o cinema, que demandam o repouso do corpo em seus modos de recepção. Em outras palavras, o período de apogeu dos meios TV e cinema, basicamente ao longo da maior parte século XX, estabeleceu uma espécie de lapso no processo evolutivo dos meios de comunicação, visto que o que

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Mais informações sobre o Nike Plus podem ser encontradas em: . Acesso em: 15 de dezembro de 2013.

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ocorria antes e o que está acontecendo após o surgimento dessas mídias é justo o oposto de formas de recepção que tendem à paralização do corpo. Em sintonia com o pensamento de Beiguelman (2012), Tristan Thielmann (2011) propõe uma nova abordagem para o estudo da história das mídias móveis: em vez de tomar como ponto de referência inicial as mídias estacionárias, sua proposta é situar o ponto de partida nos chamados meios móveis pré-computacionais, em especial a fotografia, os livros e uma série de outros dispositivos imagéticos portáteis. Tal abordagem provocaria um deslocamento no entendimento sobre a função das mídias estacionárias, que passariam a integrar uma espécie de etapa de transição entre um período de predomínio de mídias móveis sobre outras. Para Thielmann (2011, s/p, tradução nossa):

Se não escolhermos como ponto de partida de nossas analises as mídias estacionárias (PC, TV, etc.), mas as mídias móveis (dispositivos portáteis, papel, etc.), um novo campo dos estudos do software se abre, e a história das mídias se reconfigura. Nesse sentido, a mobilidade da mídia consequentemente aparece como um antecedente, e as mídias estacionárias como um estágio de transição.45

Segundo Lemos (2012), os estudos em comunicação no Brasil e no mundo têm prestado pouca atenção à questão do espaço como fenômeno imprescindível para a compreensão da contemporaneidade. Na maioria das pesquisas em que a dimensão espacial é abordada, ela comparece apenas como um “fundo”, mas pouco se pensa sobre “a produção midiática do espaço, em como ela reconfigura as relações locais, como ela altera sentidos, práticas e hábitos ancorados em um lugar.” (LEMOS, 2012, p. 96). A mudança, segundo Lemos, deveria ocorrer no sentido de serem produzidas abordagens que enfatizem tanto as dimensões físicas e materiais do espaço quanto a sua dimensão simbólica.

Hoje, usar um tablet, o Twitter, o Foursquare, os mapas e o GPS embutidos em smartphone revelam, irredutivelmente, as dimensões locais, sociais e lúdicas da cultura da convergência digital. Compreender a comunicação contemporânea, em suas múltiplas facetas, passa não apenas pelas análises do impacto midiático na nossa percepção temporal, mas pelo reconhecimento de que as mídias em geral, e as digitais em particular, produzem relações locais e espaciais específicas que, sem essa perspectiva, a análise comunicacional das tecnologias de informação e comunicação estará incompleta. As mídias móveis, as redes ubíquas, a internet das coisas, apenas 45

No original, em inglês: If it is not the stationary (PC, TV, etc.) that is chosen as the starting point of examination, but rather the genuine mobile (hand-held devices, paper, etc.), a new disciplinary field of Software Studies opens up, and media history realigns. From that perspective, the mobility of media consequently appears as an antecedent, and the stationary as a transitional stage.

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amplificam essa importância. (LEMOS, 2012, p. 96-97).

A nosso ver, uma abordagem que traz importantes contribuições para pensarmos o estatuto da produção social do espaço nos é oferecida por Foucault, ainda nos 1960, no texto de sua conferência Outros espaços. Para Foucault, em contraposição à obsessão pela História que marcou o século XIX, estaríamos vivendo na atualidade uma “época do espaço” (FOUCAULT, 2009, p. 411). A época atual seria talvez de preferência a época do espaço. Estamos na época do simultâneo, estamos na época da justaposição, do próximo e do longínquo, do lado a lado, do disperso. Estamos em um momento em que o mundo se experimenta, acredito, menos como uma grande via que se desenvolveria através dos tempos do que como uma rede que religa pontos e entrecruza sua trama. (FOUCAULT, 2009, p. 412).

Para Foucault, estaríamos em uma época em que o espaço se oferece sobretudo sob a forma de relações de posicionamento. “Vivemos no interior de um conjunto de relações que definem posicionamentos irredutíveis uns aos outros e absolutamente impossíveis de serem sobrepostos” (2009, p. 414). Nesse sentido, a definição de espaço para Foucault estabelece que, antes de ser em si, um espaço se constitui a partir do que representa em relação a outros espaços e aos usos que dele são feitos pelas pessoas. O espaço de um restaurante, por exemplo, antes de ter a sua identidade definida pelo seu nome ou pela qualidade da comida que serve, poderia ser descrito por sua qualidade de lugar em que efetuamos uma parada provisória no fluxo de atividades do dia – o mesmo vale para os cinemas e os cafés, e, por comparação, seria possível então estabelecer relações que permitiriam defini-los uns em relação aos outros. Mesmo que o referido texto tenha sido originalmente apresentado em 1967, já naquela época não passava despercebido a Foucault a importância da noção de posicionamento no contexto dos processos de organização de informação através de meios computacionais. Com efeito, conforme já havíamos comentando anteriormente, numa sociedade em que os bancos de dados constituem a forma cultural hegemônica, o acúmulo de informação passa a ser menos importante do que encontrar formas apropriadas e variadas de acessá-la: [...] sabe-se da importância dos problemas de posicionamento na técnica contemporânea: armazenagem da informação ou dos resultados parciais de um cálculo na memória de uma máquina, circulação de elementos discretos, com saída aleatória [...], determinação de elementos, marcados ou codificados, no interior de um conjunto que é ora repartido ao acaso, ora

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classificado em uma classificação unívoca, ora classificado de acordo com uma classificação plurívoca etc. (FOUCAULT, 2009, p. 412).

Em larga medida, uma das questões recorrentes nesta investigação aponta para um problema de organização e acesso de informações de bancos de dados em conexão com os espaços (em especial com os espaços urbanos). Ao produzirem relações de montagem com os espaços, os dados de informação acessados via mídias móveis implicam em acumulações de camadas técnicas e culturais que conjugam propriedades de ambas instâncias. A experiência resultante da fusão de meios espaciais produz deslocamentos de sentidos atribuídos ao lugar, alterando, portanto, as condições de posicionamento que definem os lugares uns em relação aos outros. Tomemos como exemplo os jogos locativos móveis, os quais definem formas de apropriação lúdica dos espaços urbanos através do uso de tecnologias e serviços de geolocalização. (LEMOS, 2012). Um exemplo de jogo móvel locativo é o já referido Geocaching, que consiste numa atividade de procura e ocultação de pequenos containers (geralmente com algum souvenir para presentear o praticante que encontrá-lo) em espaços urbanos, rurais e selvagens. Existem jogos locativos móveis que reproduzem dinâmicas de jogos de rua tradicionais, como o jogo de pega-pega – este é o caso de Can You See Me Now, do grupo de artistas londrinos Blast Theory46, em que usuários online e offline interagem pelas ruas da cidade através de um jogo em que uns tentam “caçar” os outros, reproduzindo uma dinâmica semelhante a vários jogos de rua de perseguição. Nos jogos locativos móveis é comum que ruas e avenidas e outros espaços de trânsito da cidade sejam apropriadas e reposicionados temporariamente como partes de um mapa imaginário, que só faz sentido no contexto do jogo. Nesse sentido, durante o período correspondente ao tempo de jogo, ruas, avenidas, parques e praças têm seus usos redefinidos segundo as novas relações de posicionamento estabelecidas pelas regras do jogo – por exemplo, como linhas que definem os limites do espaço em que o jogo é jogado ou mesmo como as fronteiras imaginárias entre territórios de times de jogadores em disputa. Em GPS Alien Attack, um aplicativo de jogo locativo móvel para telefones celulares e tablets, o software toma como base a localização do usuário para gerar um ambiente de invasão alienígena em que o jogador deve correr para escapar de seus inimigos (que são agentes autônomos comandados via software). As ruas se transformam em caminhos por onde

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Mais informações sobre o jogo Can You See Me Now e sobre o grupo Blast Theory podem ser encontradas aqui: . Acesso em: 03 de dezembro de 2013.

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tanto o jogador quanto os alienígenas se movimentam. Enquanto tenta escapar de seus perseguidores, o objetivo de cada fase do jogo é coletar todos os itens espalhados pelo cenário (Figura 4). Figura 4 – GPS Alien Attack

Fonte: Imagem capturada do aplicativo Alien Attack. Disponível para download em: . Acesso em: 08 de dezembro de 2013.

Em uma experiência de jogo locativo móvel como a de Alien Attack, a noção de via urbana como espaço público, aberto, permanente e usado como meio de passagem entre um ponto e outro da cidade, se confunde com uma noção de espaço privado, fechado, temporário, usado para fins lúdicos e recreativos. O espaço assim configurado a partir de séries de oposições dialéticas (aberto-fechado, público-privado, perene-efêmero) produz um tipo particular de percepção espacial que conjuga múltiplas formas de significação concomitantes. Voltando a Foucault, outro aspecto de sua teoria, que a nosso ver dialoga com a noção de espaço acústico que abordamos anteriormente, está associado ao conceito de heterotopia. As heterotopias são espaços que têm, segundo Foucault (2009, p. 414), “a curiosa propriedade de estar em relação com todos os outros posicionamentos, mas de um tal modo que eles suspendem, neutralizam ou invertem o conjunto de relações que se encontram por eles designadas, refletidas ou pensadas”. O conceito de heterotopia se assemelha ao de utopia, contudo, a diferença fundamental é que enquanto as utopias podem ser definidas como espaços irreais, em que a sociedade é imaginada a partir de uma versão aperfeiçoada de si mesma, as heterotopias constituem espaços efetivamente concretos.

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Há, igualmente, e isso provavelmente em qualquer cultura, em qualquer civilização, lugares reais, lugares efetivos, lugares que são delineados na própria instituição da sociedade, e que são espécies de contraposicionamentos, espécies de utopias efetivamente realizadas nas quais os posicionamentos reais, todos os outros posicionamentos reais que se podem encontrar no interior da cultura estão ao mesmo tempo representados, contestados e invertidos, espécies de lugares que estão fora de todos os lugares, embora eles sejam efetivamente localizáveis. (2009, p. 415).

Dentre as principais características das heterotopias, destacamos primeiramente a ideia de que uma heterotopia apresenta o potencial de justapor em um só lugar vários espaços, vários posicionamentos que podem até ser incompatíveis entre si. O teatro e o cinema são exemplos de heterotopias desse tipo, pois conseguem representar e sobrepor, através de seus dispositivos, espaços e lugares estranhos uns aos outros. No entanto, para o autor, o exemplo mais emblemático desse tipo de heterotopia é o jardim. Historicamente, para distintas culturas, o jardim é o lugar em que se pode cultivar um microcosmo particular de posicionamentos espaciais incompatíveis: “o jardim é a menor parcela do mundo e é também a totalidade do mundo” (FOUCAULT, 2009, p. 418). Nesse ponto Foucault também menciona os tapetes como heterotopias que realizariam uma espécie de desejo de mobilidade dos jardins: “O jardim é um tapete em que o mundo inteiro vem realizar sua perfeição simbólica, e o tapete é uma espécie de jardim móvel através do espaço.” (idem, ibidem). A nosso ver muitas das experiências com mídias locativas são capazes de produzir esses lugares que reúnem em seu interior espaços incompatíveis. Retomando o exemplo que acabamos de dar sobre os jogos locativos móveis, como não pensar nessa sobreposição que se efetua sobre o espaço da cidade e um espaço representado informacionalmente? Trata-se sempre de sobreposição, de justaposição entre espaços incompatíveis, que de suas fronteiras fazem emergir um território efêmero que caracteriza o lugar da experiência estética com mídias locativas. Foucault também desenvolve a ideia de heterotopias heterocrônicas como lugares que produzem posicionamentos temporalmente incompatíveis com outros espaços, seja em virtude de um potencial para acumular temporalidades, como os museus e as bibliotecas, ou, ao contrário, em razão daquilo que o tempo tem de mais efêmero, como as feiras, as festas e outros acontecimentos passageiros: “assim são as feiras, esses maravilhosos locais vazios na periferia das cidades, que se povoam, uma ou duas vezes por ano, de barracas, mostruários, objetos heteróclitos, lutadores, mulheres-serpentes, videntes”. (FOUCAULT, 2009, p. 419).

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Geralmente as heterotopias pressupõem um recorte de tempo que de alguma forma estabelece uma ruptura absoluta com o tempo tradicional da sociedade – um exemplo citado por Foucault são os cemitérios, que constituem esse estranho lugar que conjuga o tempo da vida e da morte. Nas aplicações de jogos locativos móveis que comentávamos há pouco, percebemos também o caráter de transitoriedade que marca as heterotopias heterocrônicas, como as feiras e as festas populares realizadas em locais públicos. Um jogo como GPS Allien Attack propõe uma experiência lúdica no espaço urbano por um período de tempo predefinido, terminando assim que o jogador encerra a aplicação. Por outro lado, aplicações como Layar47, Wikitude48 e Junaio49 possibilitam a visualização de diversos tipos de dados através de técnicas de realidade aumentada: com o aplicativo habilitado, o usuário do dispositivo móvel pode ver, através do visor do telefone celular, fotografias, vídeos e outros tipos de conteúdos que tenham sido capturados nas imediações do lugar em que encontra-se situado. Isto é possível porque atualmente vários conteúdos produzidos através de telefones celulares carregam consigo metadados de informação em que as coordenadas de posicionamento ficam registradas. Assim, quando um usuário de smartphone tira uma fotografia com seu dispositivo e posta o conteúdo na web, se os metadados contiverem o registro de localização do lugar em que a fotografia foi capturada, ela poderá então ser visualizada por intermédio de aplicações capazes de identificar o seu posicionamento. Atualmente, dependendo do lugar em que estamos situados, é possível “garimpar” com o auxílio dos referidos aplicativos de realidade aumentada uma grande quantidade de fotografias, vídeos e outros tipos conteúdos. Os lugares turísticos de uma cidade são os melhores lugares para isso. De certa maneira, os referidos aplicativos transformam a tela do telefone celular em um suporte de visualização de imagens do passado. Quando sobrepostos à paisagem atual da cidade, os conteúdos geolocalizados exibidos nas telas dos dispositivos móveis se enunciam como acumulações de lembranças de uma memória particular do espaço, são como rastros arqueológicos que nos permitem vislumbrar, mesmo que precariamente, situações vividas por outras pessoas que por ali passaram. O resultado é um efeito fantasmático, em que espaços e tempos se misturam sem nunca chegarem a uma unidade. Presente e passado colidem na superfície da imagem, criando imagens singulares, dialéticas. O encontro entre os dois meios constitui um momento de verdade e revelação do qual nasce uma nova forma de visualidade

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Disponível em: . Acesso em: 11 de dezembro de 2013. Disponível em: . Acesso em: 11 de dezembro de 2013. 49 Disponível em: . Acesso em: 11 de dezembro de 2013. 48

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híbrida que, a nosso ver, se aproxima do conceito de heterotopia heterocrônica apontado por Foucault. As heterotopias também pressupõem sempre a existência de um sistema de abertura e fechamento responsável por controlar os fluxos de entrada e saída desses lugares. Foucault cita os ritos de passagem para se entrar em certos lugares ou ainda a obrigatoriedade que se impõe no caso de entrada na prisão ou em sanatórios. No âmbito dos projetos que envolvem o uso de mídias locativas, a posse de um dispositivo plenamente habilitado para que a experiência se realize com êxito é a chave mesma que separa o universo da vida cotidiana e o universo da experiência estética (lúdica, artística) e que se produz quando o sujeito aciona o aparato técnico. Nesse sentido, tais experiências também instauram certos protocolos de entrada e saída, de pertença e exclusão, que condicionam o acesso a determinados conjuntos de saberes sobre um lugar. Por fim, destaca-se o papel que as heterotopias exercem, enquanto espaços posicionais específicos (FOUCAULT, 2009) que denunciam, por intensificação, o caráter ilusório, artificial, compartimentalizado dos espaços da vida cotidiana – o exemplo aqui são as casas de prostituição, em que a sexualidade encontra um nível máximo de especialização e compartimentalização ao ser realizada ao mesmo tempo afastada e abrigada de todos os outros espaços. Por outro lado, os espaços posicionais específicos podem se apresentar através de espaços absolutamente perfeitos que, por contraste, acabam por denunciar o quão caóticos, maldispostos e confusos se mostram todos os outros espaços – aqui entram em jogo as colônias de férias, os parques temáticos do tipo Disney World, os shopping centers e toda a sorte de lugares que reproduzem, em tom exagerado, a segurança e a beleza que não encontramos na maior parte dos espaços da vida cotidiana. Também aqui o emprego de tecnologias locativas em serviços ou em projetos artísticos como os que analisamos nesta pesquisa costumam promover operações de denúncia a certas condições que se mostram veladas em nossos espaços cotidianos. Há aplicativos para dispositivos móveis como o B.O. Coletivo50, que servem para alertar os locais com índices de violência mais altos nas cidades, tornando evidente o que se tenta geralmente esconder. Por outro lado, os aplicativos como os de guias turísticos, que evitam justamente o trânsito em outras áreas que não sejam aquelas mais bonitas e mais seguras, visam gerar experiências urbanas ideais que contrastam com a realidade caótica e desorganizada que encontramos na maioria das grandes metrópoles. 50

Disponível para download em: . Acesso em: 03 de dezembro de 2013.

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Para Foucault, há muito que o espaço foi dessacralizado no plano teórico. Foi Galileu quem primeiro o fez, ainda no século XVII, ao constituir a noção de um espaço infinito e em movimento em oposição à ideia então ainda vigente de espaços finitos e localizados. Contudo, se no plano teórico o espaço foi dessacralizado, na prática, nossa época ainda guarda “um certo número de oposições nas quais não se pode tocar”, como “entre o espaço privado e o espaço público, entre o espaço da família e o espaço social, entre o espaço cultural e o espaço útil, entre o espaço de lazer e o espaço de trabalho: todos ainda movidos por uma secreta sacralização.” (FOUCAULT, 2009, p. 413). A nosso ver, as mídias locativas instauram relações dialéticas entre os polos de oposição que constituem muitos dos lugares na contemporaneidade. Sem nunca sobrepô-los totalmente, o mecanismo de base permite adicionar novas dimensões espaço-temporais sobre o ambiente, de modo a gerar processos dialógicos, ora de potencialização, ora de oposição, neutralização, inversão etc. Assim, poderíamos dizer que o tipo de espacialização produzida através de algumas práticas culturais com mídias locativas, como nos exemplos que trazemos, potencializa o caráter relacional de todo e qualquer tipo de espaço, visto que visam adicionar, mesmo que temporariamente, outras dimensões materiais, sociais e simbólicas no espaço, que por vezes contrastam com as características dos lugares em que as experiências tomam forma. É nesse sentido que consideramos que tais projetos produzem o que poderíamos chamar de espaços multirrelacionais, que, além de serem definidos pelas relações de posicionamento que instauram com outros espaços, seu significado pode variar ainda em função dos fluxos de informação (dados) que circulam em seu interior. Por exemplo, uma heterotopia heterocrônica, como uma feira, por exemplo, é, segundo Foucault, um espaço diferencial que estabelece um posicionamento com outros espaços baseado em sua efemeridade (dentre outras qualidades), contudo, tal espaço pode instaurar outros espaços na medida em que camadas de informação digital são sobrepostas sobre o território em que a feira acontece. Um lojista pode, por exemplo, criar a partir de um aplicativo como o Foursquare vantagens para os consumidores que sejam usuários deste serviço e, neste sentido, além das interações presenciais face a face no lugar, também outras transações podem estar acontecendo no espaço informacional sobreposto ao do território físico.

1.3

ESPAÇOS AURÁTICOS No campo da Comunicação, desde pelo menos os anos 1980, diversas correntes de

pensamento, em especial algumas de matriz alemã, representadas por nomes como Kittler

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(1999), Zumthor (1994) e Gumbrecht (2010), têm sido bem-sucedidas em chamar a atenção para a importância da experiência sensorial como complemento (ou mesmo como contraponto) à tradição hermenêutica das Humanidades. De modo geral, a perspectiva crítica adotada pelos autores das chamadas materialidades da comunicação ataca a tendência da tradição hermenêutica em promover a aproximação aos fenômenos do mundo pela via exclusiva de métodos interpretativos, que, não raro, demonstram completo descaso com questões relacionadas ao corpo e seus sentidos. Para Gumbrecht (2010), nossa cultura contemporânea estaria demandando, sob variadas formas de expressão, uma “relação espacial com o mundo e seus objetos” (2010, p. 13). Assim, o termo “presença” é aquele que melhor designa esse desejo manifesto de “reconexão com as coisas do mundo” (2010, p. 167).

Um coisa “presente” deve ser tangível por mãos humanas – o que implica, inversamente, que pode ter impacto imediato em corpos humanos. Assim, uso “produção” no sentido de sua raiz etimológica (do latim producere), que se refere ao ato de “trazer para diante” um objeto no espaço. (2010, p. 13)

O que mais nos interessa no conceito de “presença” (e suas derivações: produção de presença, efeitos de presença, presentificação) é a relação que pode ser traçada com a ideia de “experiência estética”. Para Gumbrecht a experiência estética ocorre sempre que vivenciamos em nosso contato com as coisas do mundo certas “sensações de intensidade” (2010, p. 128) que não encontramos em nosso cotidiano. Por esse motivo, o termo “estética” e suas derivações (experiência estética, objeto estético etc.) se referem a esses níveis de intensidade que surgem sempre que nos deparamos com fenômenos que escapam aos mundos histórica e culturalmente específicos do cotidiano em que vivemos. Por isso,

Se a experiência estética é sempre evocada por e sempre se refere a momentos de intensidade que não podem fazer parte dos respectivos mundos cotidianos em que ela ocorre, segue-se que a experiência estética se localizará necessariamente a certa distância desses mundos. (GUMBRECHT, 2010, p. 130)

Assim, quanto mais nos distanciamos dos mundos cotidianos em nosso encontro com o insuspeitado, com o objeto estético de que nos fala o autor, com mais propriedade se instaura a produção de uma presença. A presença, nesse sentido, não é propriamente a presença (física) de algo, mas a corporificação de algo que toma o corpo e a mente como veículo de sua presença. Nas ocasiões em que somos tomados pela presença, nesses momentos de

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intensidade, instaura-se uma oscilação entre a presença e a interpretação dessa presença, isto é, entre a presença e o seu sentido. Assim, para Gumbrecht, sentido e presença não são instâncias complementares. Pelo contrário, ao invés de estabelecer uma relação harmônica com a presença, o “sentido” constitui um vetor oposto, responsável por provocar desassossego e instabilidade no contato com os objetos estéticos. No contexto desta pesquisa, acreditamos que os movimentos em direção ao espaço que marcam as experiências com imagens atravessadas pelas bases técnicas de mídias locativas podem ser analisados segundo o seu potencial para provocar distanciamentos dos mundos cotidianos (os momentos de intensidade de que nos fala Gumbrecht). Nossa tendência é a de pensar que as imagens técnicas que se produzem em situações de consumo de audiovisuais locativos são imagens que, antes de representarem algo, antes de se mostrarem como uma janela para outros mundos (pensemos no cinema, na televisão e em todas as formas culturais filiadas à tradição pictórica), elas buscam, inversamente, se projetar em direção ao mundo que é por nós habitado e que compartilhamos com os objetos que nos cercam. São imagens que se caracterizam, segundo a linha de pensamento que estamos buscando desenvolver, pelo seu potencial de produzir presença, ou, melhor dizendo, de produzir efeitos de presença. Optamos por utilizar o termo “efeitos” porque ao contrário, por exemplo, da imagem de uma escultura, que de fato ocupa um volume no espaço, as imagens que tratamos guardam algo de intangível. Se, do ponto de vista dos seus aspectos técnicos, as imagens exibidas em telas de telefones celulares se mostram complexas, cheias de intricadas camadas tecnológicas, do ponto de vista formal elas são bastante precárias. Em primeiro lugar, o suporte sobre o qual elas se formam, digamos, a interface de um telefone celular, é pequena se comparada à de um computador ou à dos atuais aparelhos de televisão (e muitíssimo menor se comparada à tela do cinema). Sabemos que o tamanho e o nível de resolução da tela constituem fatores importantes para uma melhor experiência de recepção audiovisual – não é à toa que os preços dos aparelhos televisores são sempre proporcionais ao seu tamanho e ao nível de resolução de suas telas. Ainda em relação às condições de recepção, se tomarmos como referência o dispositivo da sala de cinema, que protege com sua escuridão a integridade da imagem projetada na tela, então a experiência de recepção de imagens de audiovisuais locativos se mostra a pior possível, pois quase sempre o espectador dessas imagens se encontra exposto a toda a sorte de distrações que caracterizam a experiência no ambiente urbano. Como diz Bambozzi (2010, p. 29) acerca das condições de recepção do vídeo em telas de dispositivos móveis: “ao invés da sala escura e contemplativa, o vídeo enfrenta lugares claros, ruidosos, entrópicos. Onde havia concentração, surge o

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estilhaçamento”. O aspecto fragmentário descrito por Bambozzi no âmbito da experiência visual com dispositivos móveis se estende também para as condições de recepção sonora: se tomamos como referência o dispositivo da sala de cinema, que, como sabemos, costuma ser vedado a estímulos sonoros externos aos que acompanham a projeção fílmica, nas experiências com audiovisuais locativos, ainda que os usuários apareçam (conforme podemos observar nos registros analisados) utilizando fones de ouvido, é pouco provável que os sons do ambiente não venham a eventualmente se sobrepor e, consequentemente, interferir no ato de escuta. Se Gumbrecht (2010) atribui ao avançado estágio das técnicas cinematográficas como aquelas empregadas nos efeitos especiais dos filmes de ação e as tecnologias de produção de filmes em 3D o papel de encarnar uma certa disposição para a produção de presença em nossa atual sociedade, então, dada a precariedade das condições de consumo das imagens (e dos sons) dos audiovisuais locativos, o que nos faz ainda acreditar que tais imagens são potentes em produzir (efeitos de) presença? Nossa hipótese é a de que os efeitos de presença produzidos por tais imagens pouco têm que ver com as técnicas de fabricação de imagens que se vinculam à tradição neoplatônica, isto é, que correspondem à linhagem dos dispositivos imersivos de imagens, como o cinema e as técnicas de realidade virtual. Por outro lado, percebemos que os audiovisuais locativos estão muito mais próximos de uma outra linhagem de dispositivos de imagens, os quais se caracterizam pela projeção imagética em direção à “concretude” dos elementos que integram os espaços físicos e geográficos – tal é a imagem dos dispositivos de realidade aumentada, dentre outras, conforme abordaremos mais adiante. Em tais contextos a imagem comparece como um efeito de presença, mais ou menos visível e mais ou menos duradouro, e que por próxima que esteja do corpo do espectador, ainda assim só pode ser apreendida a uma certa distância (por mais realistas que nos pareçam as imagens produzidas através de técnicas de realidade aumentada, sabemos que, no fundo, não passam de imagens projetadas em uma interface). Os momentos de intensidade que caracterizam a experiência estética em Gumbrecht e o próprio modo como o autor concebe a noção de “presença” podem ser relacionados com algumas passagens benjaminianas sobre o conceito de aura – especialmente se levarmos em conta a interpretação proposta pelo filósofo Didi-Huberman (2004) em O que vemos, o que nos olha, texto em que recupera o conceito de aura como categoria de análise de obras de arte em nossa época, e assim propõe uma leitura secularizada (isto é, não religiosa) do conceito. Como bem sabemos, em seu mais famoso ensaio, A obra de arte na era de sua

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reprodutibilidade técnica, Benjamin (2011) trata dos impactos dos meios de reprodução mecânica da era moderna sobre a produção artística; fenômeno que teria como uma de suas consequências mais radicais a decadência da aura dos objetos artísticos. Ao longo do século XX, a tese acerca da decadência da aura em Benjamin foi frequentemente interpretada por historiadores, críticos de arte e pesquisadores em comunicação como sinônimo de destruição ou desaparecimento. Para Didi-Huberman, no entanto, a decadência da aura não conduz à sua aniquilação, mas antes assume-se como uma “declinação” do conceito, um desvio ou inflexão nova, visto que também seria esse um dos possíveis sentidos assumidos pela palavra latina declinare que dá origem ao termo “decadência”. Em Benjamin (2011, p. 170) a aura se apresenta como uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: “a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja”. Na esteira desta citação, Didi-Huberman conclui então que a aura se configura a partir de uma relação de distância: a distância entre aquilo que vemos numa obra de arte e a imagem que, de longe, nos olha. Uma oscilação constante entre o simultaneamente próximo e longínquo.

Próximo e distante ao mesmo tempo, mas distante em sua proximidade mesma: o objeto aurático supõe assim uma forma de varredura ou de ir e vir incessante, uma forma heurística na qual as distâncias – as distâncias contraditórias – se experimentariam umas às outras, dialeticamente. O próprio objeto tornando-se, nessa operação, o índice de uma perda que ele sustenta, que ele opera visualmente: apresentando-se, aproximando-se, mas produzindo essa aproximação como o momento experimentado “único” (einmalig) e totalmente “estranho” (sonderbar) de um soberano distanciamento, de uma soberana estranheza ou de uma extravagância. Uma obra da ausência que vai e vem, sob nossos olhos e fora de nossa visão, uma obra anadiômena da ausência. (DIDI-HUBERMAN, 2004, p. 148).

O que vemos também nos olha – tal é a tese central do livro de Didi-Huberman e também do conceito de aura em Benjamin. A aura seria então uma espécie de “espaçamento tramado do olhante e do olhado, do olhante pelo olhado” (DIDI-HUBERMAN, 2004, p. 147). Dois aspectos são fundamentais para a compreensão do conceito de aura: em primeiro lugar, a subordinação do olhante pelo olhado. “Sob nossos olhos, fora de nossa visão: algo aqui nos fala tanto do assédio como do que nos acudiria de longe, nos concerniria, nos olharia e nos escaparia ao mesmo tempo.” (idem, ibid., p. 148). Quando vemos (não somente com os olhos, mas com todos os nossos sentidos) um objeto (de arte, mas não somente), seríamos, nós também, olhados de volta pela imagem que o esforço de nosso olhar acabaria por evocar. Portanto, e em segundo lugar, destaca-se o trabalho mesmo da memória no processo de

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evocação de imagens quando nos colocamos diante de um objeto aurático.

Aurático, em consequência, seria o objeto cuja aparição desdobra, para além de sua própria visibilidade, o que devemos denominar suas imagens, suas imagens em constelações ou em nuvens, que se impõem a nós como outras tantas figuras associadas, que surgem, se aproximam e se afastam para poetizar, trabalhar, abrir tanto seu aspecto quanto sua significação, para fazer delas uma obra do inconsciente. (DIDI-HUBERMAN, 2004, p. 149).

A imagem aurática é uma imagem que apela aos processos da memória, se constrói em conjunto com a memória, pois sua vocação é dilatar o presente ao introduzir nele os rastros de um passado reminiscente que encontra na memória sua fonte inesgotável de produção. A imagem aurática quebra a linearidade do tempo, introduz no presente um tempo outro que produz um abalo na historicidade, uma crise, um nó temporal que convoca um passado e um futuro, e que Didi-Huberman (2005) vai associar à figura do sintoma de uma doença que de tempos em tempos volta a assolar o corpo sadio. Há algo de humano (ou de quase humano) na aparição da aura. Segundo DidiHuberman (2004) o contato com a aura de um objeto se manifesta como uma aparição estranha e singular, um quase-ser que nos fita desde longe, o qual reconhecemos e estranhamos ao mesmo tempo. Trata-se mesmo de uma estranha e inquietante delegação de poderes quase-humanos a objetos inanimados, tal como encontramos nessa passagem de Certos temas em Baudelaire, de Benjamin (1994, p. 139): “A experiência da aura se baseia, portanto, sobre a transferência de uma forma de reação comum na sociedade humana à relação do inanimado ou da natureza com o homem”. Uma transferência que, segundo DidiHuberman (2004, p. 150), confere ao objeto que se mostra através de sua aura uma qualidade de “quase-sujeito, de quase-ser – ‘levantar os olhos’, aparecer, aproximar-se, afastar-se...”. Seria, portanto, segundo Didi-Huberman, no jogo de uma dupla distância experimentada sempre através de uma dialética da proximidade e da distância que reside a essência do conceito de aura em Benjamin. Ora, assim parece proceder também a experiência estética, tal como a encontramos em Gumbrecht (2010). Conforme dizíamos há poucas páginas, para Gumbrecht a experiência estética só pode se realizar a certa distância dos mundos cotidianos, e quanto maior for essa distância, mais intenso será o efeito de presença do objeto estético. Para Gumbrecht (2010), na ocasião da experiência estética, a relação entre a percepção sensorial e o sentido (interpretativo) dessa aparição instaura, assim como em Benjamin, uma relação dialética, em que aquilo que é percebido contrasta sobremaneira com o sentido emergente (o poder da memória, de que nos fala Benjamin). É dessa tensão dialética entre o

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próximo e o distante, o presente e o ausente, o olhante e o olhado, entre o passado e o futuro, entre a percepção e o sentido, entre a matéria e a memória, que emerge a força transformadora quando nos encontramos em presença do aurático.

Nesse momento, portanto, tudo parece desfigurar-se, ou transfigurar-se: a forma próxima se abisma ou se aprofunda, a forma plana se abre ou se escava, o volume se esvazia, o esvaziamento se torna obstáculo. Nesse momento, o trabalho da memória orienta e dinamiza o passado em destino, em futuro, em desejo [...]. (DIDI-HUBERMAN, 2004, p. 150-151)

Como bem sabemos, o recorte de observação desta pesquisa se efetua sobre um tipo particular de imagem, aquela que se mostra, em vários níveis e sob diversos ângulos, em relação dialética com o ambiente, isto é, justaposta, sobreposta, fusionada até o ponto crítico de um limiar de indiscernibilidade em que as propriedades de um e outro se contaminam reciprocamente. Mas qual seria a natureza da força aurática dessas imagens? Quais oposições binárias (dialéticas) estariam em jogo quando buscamos analisar a experiência de um sujeito que se desloca pelo espaço da paisagem urbana orientado pelos estímulos sonoros e visuais de um dispositivo móvel? Em que momento e de que maneira o ambiente deixa de ser percebido como espaço (matemático, geográfico, um “fundo” sobre o qual as coisas acontecem) e sofre uma transformação, um distanciamento, assumindo-se como figura, como objeto de arte? Qual o papel da memória no contato do sujeito com a aura desses fenômenos? A quais desejos respondem as imagens por ela evocadas? Não responderemos a estas questões frontalmente; o faremos ao longo dos próximos capítulos. Mas para que não terminemos esta etapa assim, sem que pelo menos façamos um exercício de reflexão sobre as afetações provocadas pelas mídias móveis na percepção espacial desde um viés fenomenológico, propomos aqui um breve ensaio, a partir de um estudo que em certa altura nos serviu de inspiração em diversos aspectos. Nosso interesse de investigação encontra referência, certamente, em muitos autores contemporâneos que reflexionam sobre o estatuto da imagem, principalmente aqueles que dirigem suas teses para o campo da experiência estética com mídias computacionais móveis. Contudo, justiça seja feita, no passado outros já haviam se ocupado de problemas semelhantes aos que endereçamos nesta pesquisa. Foi a partir de um estudo precursor, intitulado The walkman and the primary world of the senses, que buscamos inspiração para vários apontamentos que surgiram ao longo de nossas análises sobre as audiovisualidades de mídias locativas. Cabe então comentarmos, ainda que ligeiramente, alguns pontos do referido estudo,

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não só como forma de “fazer valer” o que foi feito antes, evitando assim o discurso do tipo tábula rasa, mas também como estratégia de ensaio de alguns dos movimentos analíticos que procuraremos realizar ao longo dos próximos capítulos. Publicado em 1989 na revista Phenomenology+Pedagogy, o artigo The walkman and the primary world of the senses, de Rainer Schönhammer (1989), apresenta um interessante estudo de viés fenomenológico sobre o hábito de escutar música em aparelhos portáteis do tipo Walkman. Historicamente, tais dispositivos foram os precursores de todos os players portáteis de música que conhecemos hoje em dia (cujo modelo mais conhecido ainda é o iPod, comercializado pela Apple). Na época em que começaram a ganhar as ruas das grandes cidades, no início da década de 1980, adotados principalmente pelo público jovem, algumas pessoas se sentiam incomodadas quando em presença de usuários do referido acessório musical – Schönhammer, ele próprio, confessava se sentir muito desconfortável quando tinha que compartilhar o mesmo espaço com alguém que estivesse ouvindo música em um Walkman. Dizia ele:

Ainda que esta nova tecnologia de entretenimento não seja em si misteriosa, ainda assim há alguma coisa estranha no fenômeno. Como muitos adultos, eu não estava interessado em pensar sobre os usuários de Walkman quando eu tomei contato com eles pela primeira vez no princípio dos anos 1980 – na verdade eu admito que eles até me irritavam.51 (SCHÖNHAMMER, 1989, p. 127, tradução nossa).

O desconforto sentido por Schönhammer em relação aos usuários de Walkman, e de modo geral compartilhado com outros membros de sua geração, se dava não tanto pelo dispositivo em si – que no mais das vezes ficava preso à cintura, ao braço, ou escondido em algum bolso da roupa, longe do olhar dos outros e, portanto, relativamente neutro –, mas principalmente pela presença dos fones de ouvido. Aos olhos do autor, os fones de ouvido representavam algo de antipático, pois davam a impressão de que produziam uma espécie de bolha privada em torno de quem os estivesse usando, de modo que seu conteúdo (a música) permanecia inacessível às pessoas ao seu redor e, desse modo, indiferente a elas. Para Schönhammer, uma exceção se faz quando a música escapa à vedação do acessório e pode ser escutada pelos outros, entretanto, neste momento a sensação de antipatia pode se tornar ainda mais intensa, pois, além de não poder compartilhar do mesmo “mundo” usufruído pelo 51

No original, em inglês: Although in itself this new technique of entertainment is not mysterious at all, there is still something strange about the phenomenon. Like many adults, I was not interested in thinking about Walkman users when I came across them for the first time in the early 1980’s — though I admit to having been irritated by them.

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portador do Walkman, ainda por cima se está sujeito às sobras (sonoras) de sua atividade privada. Foi justamente esse estranhamento que os usuários de Walkman causavam em Schönhammer que o levaram a produzir um estudo sobre o tema desde um ponto de vista fenomenológico. Apoiado no pensamento do fenomenologista alemão Erwin Straus, Schönhammer questionava sobre o que levava as pessoas a escutarem música neste tipo de aparelho e quais seriam as sensações físicas e cognitivas vivenciadas durante a atividade. Utilizando-se de métodos experimentais de coleta de dados, Schönhammer pediu para que voluntários percorressem determinadas distâncias repetidas vezes, alternando entre executar a tarefa com e sem o uso do Walkman. Variações dessa dinâmica também foram empregadas: em uma delas Schönhammer pedia para que os voluntários registrassem sua voz com um gravador enquanto caminhavam; em outra, pedia para que tirassem fotos durante o trajeto. Ao final, os voluntários eram solicitados a relatar suas impressões sobre as diferentes experiências. O ponto central das conclusões de Schönhammer é que as propriedades qualitativas do som afetavam de modo bastante peculiar a percepção espaço-temporal de usuários de Walkman. Para ele, tal sentimento de estranhamento seria decorrente não propriamente da eliminação dos sons do ambiente, ocasionada pelo uso dos fones de ouvido, mas devido à substituição dos sons “naturais” pela música do aparelho. No depoimento de um dos voluntários que participaram da referida pesquisa é particularmente notável a intensidade com que o efeito da música incidia sobre seu aparato sensorial e, por consequência, como isso afetava sua percepção do mundo. Quando estava “plugado” aos fones de ouvido, dizia ele,

[o] mundo parece magnífico, muito mais colorido, muito mais variado, muito mais livre. É como um panorama, como um filme, como um filme com uma narrativa. A realidade muda. A gente sente como se estivesse fora da realidade. No entanto, ainda estamos na realidade. Sentimos o tempo e o espaço muito mais calmamente. Minha percepção se torna mais apurada. O espaço se torna mais interessante também. Porque eu vejo o mundo como uma peça de teatro, eu acho, o espaço é o palco onde se pode mover livremente, em particular onde se pode fazer música.52 (SCHÖNHAMMER, 1989, p. 132, tradução nossa).

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No original, em inglês: The world again looks magnificent, much more colorful, much more varied, much freer. It is like a panorama, like a film, like a film with a story. Reality changes. One feels as if one were outside of reality. Yet one is in reality. One takes time and space much more calmly. My perception becomes richer. Space becomes richer too. Because I see the world like a play, I think, that space is the stage where one can move freely, in particular where one can play music.

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Para Schönhammer, este depoimento reflete um importante aspecto da alteração que se efetua na relação do sujeito com o mundo na experiência de uso do Walkman. O trajeto percorrido, quando sob a influência da música, parece perder a familiaridade ou, retomando alguns dos termos que vínhamos empregando na descrição do conceito benjaminiano de aura, parece perder algo de sua proximidade, torna-se estranho: “é como se estivéssemos fora da realidade”, diz o depoente num primeiro momento, para, em seguida, complementar que, ainda assim, se sentia “na realidade”. Sentimento verdadeiramente ambíguo, verdadeiramente dialético este que tomava conta de seu espírito. De certo modo, na passagem em que relata a atitude mais tranquila com que espaço e tempo passam a ser percebidos, ele nos faz compreender o significado de sentir-se simultaneamente ausente e presente. Sentir-se simultaneamente presente e ausente no mundo não significa que os aspectos ambientais percam importância para o usuário do Walkman, mas, ao contrário disso, o que está em jogo é, segundo Schönhammer, uma mudança na percepção qualitativa destes – as cores se tornam mais vivas, o tempo flui mais devagar, fazendo com que aquele que experimenta o mundo sob os estímulos sonoros do Walkman desfrute de cada uma dessas mudanças com atenção especial. A sobreposição da música sobre o som ambiente é diferente da supressão total dos ruídos do ambiente. Neste caso, a música se apresenta como uma outra ordem de sonoridade que se instala no lugar da primeira, compensando a sua perda e dotando de novo significado todo o conjunto visual.

Espírito e movimento se engajam na imagem se a perda de sons for compensada pela música. Então a imagem ganha sentido novamente. Mas trata-se de um sentido diferente do sentido familiar. Este último resulta de uma “atenção orientada à vida”. Portanto, nos tornamos aptos a atribuir descrições distintas [a partir] das [mesmas] aparências.53 (SCHÖNHAMMER, 1989, p. 141, tradução nossa).

O que se coloca em primeiro plano é o envolvimento de nossa atenção e do nosso corpo com a música, sendo a duração que experimentamos nesse momento a mistura plena de nossa duração com a da música. Por conta disso, para o autor, quando estamos em sintonia com a música, perdemos a noção de distância que separa o agora (presente/próximo) do depois (futuro/distante). Difícil não evocarmos aqui mais uma vez o mecanismo aurático 53

No original, em inglês: Spirit and movement are instilled into the picture if the loss of natural sound is compensated for by music. Then the picture again makes sense. But this sense is different from the familiar sense. The latter, that is, the familiar sense, results from our goal-oriented “attention to life.” Therefore, we are able to give distinct descriptions of meaningful appearances.

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benjaminiano. Conforme dizíamos a partir de Didi-Huberman, a aura de um objeto de arte, em Benjamin, se enuncia sempre através de uma dupla distância em que aquilo que nos é dado como próximo (os elementos vistos ao longo do trajeto, o “agora”) parece se afastar, dando lugar a uma experiência estranha e única em que algo inexprimível se impõe como uma presença, mesmo que sem ser “visto” efetivamente, mas apenas sentido – uma presença que nos acena, que nos olha, de longe. Aos olhos de quem tem o corpo tomado pelos efeitos da música o mundo parece se transformar, torna-se mais colorido, mais interessante, é o que afirma o relato há pouco citado: assume as qualidades de um panorama ou de um cinema, se transforma em palco (teatral, musical). Se para o espectador externo o usuário de Walkman parece “desconectado”, é porque de fato há uma diferença de natureza no modo como este percebe as coisas ao seu redor. Através da música, ele encontra outro modo de se reconectar com o ambiente – “o que vemos deixa de ser o que costumava ser”54, diz Schönhammer (1989, p. 141, tradução nossa) – e o mundo, quando animado pela música, passa a ser percebido como imagem em movimento (cinema) e como um palco que convida o corpo a movimentar-se livremente. Observamos aqui o poder da memória que convoca certos conjuntos de imagens para se juntarem ao objeto percebido. Somente alguém que já assistiu a um filme no cinema ou esteve em um espetáculo teatral ou musical poderia evocar tais imagens. Ora, qual o sentido por trás da evocação das formas culturais do cinema, do teatro ou do espetáculo musical? Talvez haja mesmo uma semelhança entre a sensação de “descolamento” da realidade causada com o uso do Walkman e a experiência que toma forma diante do cinema e de outras formas de espetáculo. Diante delas podemos experimentar a aura, mas dificilmente podemos descrever a experiência em palavras. Nos depoimentos dos voluntários da pesquisa de Schönhammer essa dificuldade de verbalização é particularmente notável e o uso de metáforas e analogias a outras experiências também únicas e singulares, porém presumivelmente familiares a outras pessoas, torna-se uma estratégia recorrente. Embora seja comum que as pessoas, de modo geral, tenham presenciado em algum momento de suas vidas uma apresentação musical marcante, ainda assim a forma como a experiência foi vivida se mostra radicalmente distinta de um indivíduo para o outro, mesmo em se tratando, por exemplo, de um mesmo evento. Por outro lado, o fato de evocarem “estas” e não “outras” lembranças é um indicativo da força que os meios audiovisuais exercem sobre a vida interior das sociedades tecnoculturais. Philipe Dubois (2004) afirma em

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No original, em inglês: What we see ceases to be what it used to be.

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Cinema, vídeo, Godard que o cinema se constitui hoje em um modelo de pensamento da imagem tecnológica que há mais de um século contribui para a formação de nosso imaginário: “queiramos ou não, nosso pensamento da imagem é hoje um pensamento ‘cinematográfico’” (DUBOIS, 2004, p. 25). Curiosamente, como forma de reforçar o argumento, Dubois (2004) apela a um exemplo bastante familiar a todos nós que remete diretamente ao teor do depoimento do voluntário da experiência realizada por Schönhammer que vínhamos comentando até aqui. No arremate de uma passagem do referido texto, Dubois (2004, p. 12) questiona: “Quem, ao percorrer de carro um longo trajeto numa vasta paisagem aberta, não pensou, com a ajuda da música no rádio, numa figura de travelling mergulhando na tela panorâmica de seu para-brisa?”. Para Schönhammer, o fato de os depoentes aludirem ao cinema em seus relatos (e também a outras formas de espetáculo) se deu em razão de que o filme cinematográfico, enquanto metáfora, estaria obviamente relacionado à sensação de sentir-se “fora do ar”. Poderíamos nos perguntar a que outras metáforas teriam recorrido os depoentes em seus relatos sobre a experiência de uso do Walkman, caso nunca tivessem tido contato com o cinema nem com outras formas de espetáculo semelhantes, como o teatro ou o espetáculo musical. Nosso palpite é que talvez a experiência de sonho (ou de pesadelo) fosse aquela escolhida por todos como metáfora para representar o que eles viveram durante os testes com o Walkman. Conforme nos lembra Valéry, citado por Didi-Huberman (2004), é no sonho que os objetos nos olham em pé de igualdade. Outro voluntário dos testes coordenados por Schönhammer afirmava ter a sensação de que, às vezes, os acontecimentos do mundo ao seu redor se comportavam em sincronia com a música que tocava no seu Walkman – em certa altura do percurso, o depoente viu alguém caminhando apressado pela rua, carregando uma pasta de executivo e nesse exato momento os Beatles cantavam “Let it be” no seu Walkman, gerando um estranho efeito de sincronização entre a imagem e o som. Quando esse tipo de sintonia acontecia, a sensação, segundo o seu relato, era como se a música, de alguma maneira, fosse a responsável por deflagrar e comandar certos eventos presenciados. Em nossa pesquisa sobre a estética das mídias móveis e locativas, percebemos que uma das características mais importantes dos objetos analisados é justamente a utilização do potencial oferecido por tais tecnologias para sincronizar e disparar diferentes ordens de eventos durante o trajeto de um sujeito que se desloca pelo espaço. Assim como na situação que acabamos de relatar, em que um dos voluntários da pesquisa do professor Schönhammer sentia que os eventos presenciados ao longo do percurso estavam de algum modo

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sincronizados com a música que tocava nos fones de ouvido, todos os projetos que analisamos evocam de uma forma ou de outra esse mesmo tipo de sensação. Por exemplo, os recursos de monitoramento de posição via GPS permitem que eventos sejam disparados toda vez que o usuário do dispositivo móvel passa por um determinado ponto geográfico, dessa maneira, é possível a produção de acontecimentos que evoquem a sensação de que a experiência vivida durante o trajeto esteja sincronizada com os conteúdos audiovisuais produzidos pelo aparelho. A sobreposição de estímulos visuais e sonoros sobre a experiência de percorrer um trecho de espaço, mesmo que familiar ao usuário, se altera completamente, visto que a duração dos eventos, por mais díspares que sejam, entram em um estado de sincronia que é sintetizado (montado) intelectualmente pelo usuário, dando origem a uma espécie de imagem complexa e heterogênea cujos fragmentos e dimensões são compostos por distintas ordens de sensações e afetos. Vamos evocar novamente a situação que acabamos de descrever referente à experiência relatada por um dos voluntários da pesquisa do professor Schönhammer: vemos um homem caminhando apressado, enquanto isso escutamos os Beatles cantando uma estrofe de “Let it be”, que entra como um comentário em voice over da cena observada. Embora aparentemente banal, uma “cena” como essa resulta em uma imagem complexa: por um lado, à sensação de caminharmos ao longo de um trajeto familiar (digamos, aquele que percorremos todos os dias para ir ao trabalho) e de ver um evento cotidiano qualquer (um homem carregando uma pasta enquanto caminha apressado) se misturam estímulos sensoriais outros (a música que toca no aparelho); a fusão dessas duas ordens de sensações provoca uma serie de trânsitos entre memórias afetivas cuja consequência pode ser o deslocamento dos significados tanto do ato de caminhar em direção ao trabalho quanto da atividade de escutar música. Ao entrar como um comentário do evento que se desdobra em frente ao olhar, a estrofe cantada por Paul McCartney deixa de ser “fundo” da experiência e passa a operar como um elemento central, impondo novo sentido ao que está sendo visto; o homem que caminha apressado também ganha destaque e por um instante se destaca da paisagem, ocupando o papel de protagonista da cena; nesse momento, os pensamentos geralmente evocados enquanto caminhamos em direção ao trabalho (por exemplo, repassar incessantemente a agenda de compromissos a serem realizados durante o dia), dá lugar a um outro grupo de memórias que tingem o quadro todo com as cores de uma experiência profundamente marcada pelo dinamismo próprio da experiência cinematográfica (ou do sonho). O próprio gesto de caminhada, enquanto ação orientada a um fim (chegar ao trabalho, por exemplo), tem seu sentido deslocado durante um tipo de experiência como essas que

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relatamos a partir da pesquisa do professor Schönhammer, em que, não raro, os depoentes sentiam que o movimento de seu corpo era ditado pelo ritmo da música. Caminhar, num contexto como esse, se transforma em um meio-termo entre se deslocar visando uma finalidade e dançar, que é em si uma finalidade. Chegamos aqui a outro ponto central. A dupla distância é antes a distância que ao mesmo tempo une e separa esses dois estados de espírito, estes dois mundos: o da vida cotidiana, em que, ao nos deslocarmos através do espaço, o fazemos tendo em vista uma orientação (chegar ao trabalho, por exemplo); e o de outras formas de ocupação do espaço nas quais o corpo se desloca sem uma orientação que não seja o próprio gesto em si – lembremos aqui dos jogos de rua praticados pelas crianças, nos quais a ocupação do espaço é motivada por regras e por objetivos que não encontram finalidades outras que não sejam aquelas definidas pela própria brincadeira ou jogo. Aqui entra em jogo também a natureza dos movimentos do corpo em relação ao espaço: geralmente quando caminhamos, o fazemos para ir de um ponto A para um ponto B, e assim vamos deixando o espaço para trás. Portanto, ao nos locomovermos, nós nos movemos através do espaço, nós o atravessamos como quem o faz para vencer um obstáculo que o separa de um objetivo; enquanto que na dança, nós nos movemos no espaço, ocupando-o com movimentos não limitados, e que seguem a sugestão do ritmo musical como motivação para acontecer. Neste caso, a ocupação do espaço pelo corpo é um fim em si mesmo, e o prazer advém justamente dessa experiência estética (aurática) que emerge a partir de um determinado tipo de relação sensorial e cognitiva do sujeito com o ambiente. Já no contexto dos audiovisuais produzidos para serem experimentados em conexão com espacialidades físicas e geográficas, surgem ainda outras formas de consumo, outras maneiras de interagir com as imagens relacionadas sobretudo com os novos significados que gestos muito simples passam a assumir – como a ação de deslocamento pelo território (a pé ou com a ajuda de um veículo) e o gesto de enquadramento de uma porção do espaço (com o olhar ou por intermédio de um dispositivo técnico). Seguindo por esse caminho, questionamos a quais transformações da vida sensorial e a quais processos socioculturais respondem as atuais imagens técnicas que despontam atravessadas pelas lógicas de mídias portáteis com funções de geolocalização. Retornaremos a esse tópico mais adiante. Por ora vamos fazer um breve retrospecto do que foi visto até aqui com o intuito de traçarmos alguns encaminhamentos para o restante do trabalho. Neste capítulo procuramos traçar algumas linhas de pensamento introdutórias sobre as relações entre o espaço, a imagem e o corpo, desde uma perspectiva comunicacional. Nosso percurso teve início enfocando os processos de transformação da percepção espacial na

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medida em que novos meios técnicos introduzem novas formas de representação de mundo; em seguida, avançamos sobre perspectivas que enfatizam a dimensão espacial como um tópico de interesse dos estudos de comunicação, que torna-se especialmente relevante na medida em que novas práticas sociais e culturais apoiadas nos usos de meios computacionais móveis se multiplicam no interior da cultura; por fim, buscamos introduzir, através de uma discussão sobre os conceitos de presença (GUMBRECHT, 2010) e de aura (DIDIHUBERMAN, 2004, BENJAMIN, 2011), um olhar fenomenológico sobre a percepção espacial do corpo no contexto de utilização de dispositivos portáteis multifuncionais. Um dos pontos enfatizados ao longo deste capítulo foi a nossa posição em relação aos processos de reversão (ou inversão, conforme McLuhan e Powers) pelos quais os meios audiovisuais estão passando na medida em que atingem pontos críticos de saturação em nossa cultura contemporânea. Várias são as consequências deste fenômeno, contudo, nesta etapa do trabalho enfocamos uma em particular: sugerimos que, na medida em que as telas audiovisuais se multiplicam em nossa sociedade, elas passariam a não mais se diferenciarem dos ambientes em que encontram-se inseridas, o que conduziria a um estado de transição do entendimento da noção de “imagem” como sinônimo de “janela” ou “quadro” para uma outra noção, em que as imagens se apresentariam cada vez mais a partir de sua condição de presença, exigindo interação e confrontamento constantes com o corpo dos indivíduos. O “corpo”, no contexto que começa a ser esboçado aqui, passaria a assumir um papel cada vez mais central no processo constitutivo das imagens. Mais adiante, retomaremos este ponto em mais de uma ocasião, ora para apontar esta condição da imagem em obras de artistas contemporâneos que trabalham experimentalmente com o vídeo, ora para analisá-la no contexto das audiovisualidades de mídias locativas. Processo semelhante e em larga medida vinculado ao que ocorre no âmbito da produção e consumo de imagens na atualidade é a reversão que algumas formas culturais relacionadas aos universos computacionais começam a apresentar na medida em que as tecnologias digitais se entranham e desaparecem em meio à vida cotidiana contemporânea. Sugerimos que as principais características dos meios técnicos computacionais – as estruturas de bancos de dados, a conectividade em redes de hipertexto, as interfaces interativas, dentre outras – estão começando a extrapolar os limites dos hardwares e softwares computacionais e por consequência iniciam um avanço em direção ao espaço “fora das telas”. Nesse cenário por nós vislumbrado, as qualidades dos chamados espaços digitais navegáveis produzidos através de processos de estetização de bancos de dados dão origem a um paradigma perceptual no qual todo e qualquer tipo de espaço, até mesmo os espaços não-computacionais que se encontram

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“fora das telas”, passam a ser assimilados, compreendidos e utilizados segundo as lógicas operativas, as estéticas e as linguagens dos espaços digitalmente construídos. No contexto específico das práticas culturais que se efetuam sobre as mídias locativas, temos a impressão de que começamos a adentrar uma nova etapa dos processos de estetização de bancos de dados, na qual as tecnologias de geolocalização autorizam a transferência das principais qualidades do conceito de hipertexto para a esfera da experiência tátil, principalmente a ideia de vinculação de diversos tipos de conteúdos midiáticos a coordenadas de latitude e longitude. Nesse sentido, sugerimos que muitas das práticas culturais que tomam forma a partir das tecnologias de geolocalização enunciam o espaço territorial como uma extensão do meio web, de modo que os lugares, os objetos físicos e até mesmo o corpo humano adquirem o potencial para se tornarem “superfícies hiperlincáveis”.55 Assim, do ponto de vista da produção criativa com mídias locativas, as obras produzidas com tais tecnologias dão origem a estéticas de conectividades híbridas, em que tanto os elementos digitais que integram os bancos de dados computacionais quanto os elementos físicos, orgânicos e “concretos” que integram o espaço físico e geográfico passariam a ser combinados entre si, segundo novas lógicas de montagem promovidas por diferentes tipos de algoritmos que unem performativamente contextos físicos e informacionais. Assim, sugerimos também que o tipo de espacialidade produzida através de algumas práticas culturais com mídias locativas potencializam o caráter relacional dos lugares ao adicionarem, mesmo que temporariamente, outras dimensões simbólicas ao espaço, dando origem ao que poderíamos chamar de espaços multirrelacionais. Tais espaços se definem tanto pelas relações de posicionamento que estabelecem com outros espaços como também através de novos regimes de significação que tomam forma em função dos fluxos de informação digital que circulam em seu interior. Assim, referimos à possibilidade de criação de lugares “dentro” de lugares, como nos casos de jogos locativos móveis que se caracterizam pela criação de experiências lúdicas e temporárias em ambientes urbanos, como praças, parques e outros territórios geográficos. Voltaremos a abordar, no próximo capítulo, a noção de espaços multirrelacionais quando tratarmos das sobreposições que se efetuam entre a imagem e a materialidade de 55

Prova disso é que hoje muitas decisões relacionadas ao uso dos espaços urbanos (deslocar-se pela cidade, procurar um lugar para almoçar) podem ser planejadas tomando-se como base informações de usuários de aplicativos como o Foursquare ou o Waze (aplicativo para navegação de trânsito, que se diferencia dos demais por oferecer funcionalidades de rede social). Na web, acompanhar comentários e sugestões de usuários como estratégia de balizar uma decisão de compra, por exemplo, constitui prática comum há bastante tempo. Hoje, tal prática parece se estender ao espaço na medida em que os dispositivos móveis promovem a conexão entre redes de satélites e redes de telecomunicação.

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espaços arquitetônicos. Conforme veremos, diferentemente dos jogos locativos móveis, que estabelecem heterotopias heterocrônicas com base na apropriação lúdica do espaço urbano, a relação entre a imagem e o espaço se funda antes no acionamento de imaginários audiovisuais, que são evocados na medida em que o corpo, ao interagir com o entorno espacial sob a mediação de dispositivos móveis, se estabelece como um agente responsável por dar “corpo” a informações abstratas que lhe chegam através de diferentes tipos de estímulos sensoriais. Nesse sentido, a “imagem” se funda antes como um entrelaçamento entre o corpo e o espaço – entre o olhante e olhado, como diria Didi-Huberman sobre o conceito de aura – dando origem ao que chamamos de paisagens auráticas. No próximo capítulo vamos examinar, desde uma perspectiva genealógica, algumas operações de acoplagem entre as imagens e o espaço territorial. Tal abordagem institui uma transição em nossas reflexões sobre as audiovisualidades de mídias locativas: avançamos de uma discussão tramada neste capítulo sobre algumas questões envolvendo a percepção do espaço no contexto das interações com mídias móveis para uma reflexão mais afinada com o nosso interesse em particular pela imagem. A nosso ver, o processo de acoplagem entre imagens técnicas e espacialidades urbanas é tributário de uma longa tradição de muitas formas de montagem, mas em especial daquela que Manovich (2006) chama de montagem espacial. Mas não vamos antecipar mais do que isso, passemos então ao próximo capítulo.

2. APONTAMENTOS GENEALÓGICOS SOBRE A IMAGEM COMO PRESENÇA

Nunca estivemos tão cercados por “telas” 56 como na época em que vivemos. Elas estão por toda a parte: fixadas nas paredes de locais públicos e privados; apoiadas nas mesas de escritórios, cafés, restaurantes, salas de aula, salas de espera, salas de embarque ou de estar; suspensas a grandes alturas, como nas empenas de prédios, nos estádios de futebol e em 56

A palavra “tela” é usada aqui em sentido amplo, podendo designar tanto a superfície sobre a qual um filme é projetado no cinema quanto a interface interativa de um computador ou telefone celular. Para uma discussão etimológica sobre o conceito de tela ver Pellanda et al. (2012).

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shows de rock; circulando nos consoles de automóveis privados, em táxis e metrôs. Para Dubois (2009), já deixou de ser novidade o fato de que as artes foram acometidas, neste último decênio, por um certo “efeito cinema” decorrente da presença constante de monitores e projetores audiovisuais que tomam conta de galerias, museus, mostras e exposições. Mas o que dizer do atual estágio da técnica, em que as telas (e, arriscamos, as “não-telas”) de todos os tipos passaram a estar presentes em todo o lugar, justapondo-se, sobrepondo-se, acavalando-se umas sobre as outras? Televisão–computador–celular, para alguns o conteúdo audiovisual cruza todas as mídias (cross media); para outros, ele as transcende (transmídia), enfim, são várias as metáforas, as analogias, as figuras de linguagem que surgem na medida em que se diversificam os suportes e os meios de produção e distribuição de imagens em nossa época. A bem da verdade, não se trata de “um” fenômeno de multiplicação de telas, mas de vários processos que se desenvolvem em diferentes áreas, diante dos quais nos deparamos com um vasto cenário de estilhaçamento da imagem e multiplicação crescente de hardwares audiovisuais. Em cada caso, são as mudanças dos dispositivos de recepção de imagens que estão em jogo, cada um deles colaborando de alguma maneira para produzir novos ambientes em que a ação da imagem ganha alcance maior e assume novos sentidos. No que tange ao escopo deste trabalho, gostaríamos de destacar os impactos nos hábitos de fabricação e consumo de imagens em nossa época que decorrem da expansão dos dispositivos móveis pessoais, como os smartphones, tablets, videogames portáteis e outros acessórios que não param de surgir (óculos e relógios inteligentes, tênis com funções computacionais etc.). A título de oferecermos uma imagem síntese para representar visualmente as mudanças que se efetuam na paisagem urbana em virtude da penetração das mídias móveis em nossas vidas, trazemos aqui duas fotografias que circularam pelas redes sociais online no início de 2013. A comparação entre ambas resulta em uma imagem contrastante, decorrente das mudanças pelas quais a paisagem contemporânea vem passando na medida em que as telas (especialmente as telas dos dispositivos móveis) se multiplicam ao nosso redor. Na primeira das duas fotos (Figura 5) vemos a imagem do funeral do Papa João Paulo II, ocorrido em 2005, tomada desde um ângulo superior que enquadra pelas costas a multidão de fiéis que se aglomeram em frente à Basílica São Pedro, no Vaticano.

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Figura 5 – Funeral do Papa João Paulo II em 2005

Fonte: NBCNews. Disponível em: . Acesso em: 27 de outubro de 2013.

Já na outra foto (Figura 6), capturada em ângulo e enquadramento semelhantes ao da primeira, vemos uma imagem da cerimônia de posse do Papa Francisco, ocorrida em março de 2013 no mesmo lugar. Figura 6 – Posse do Papa Francisco em 2013

Fonte: NBCNews. Disponível em: . Acesso em: 27 de outubro de 2013.

Passados apenas alguns anos desde a época em que a primeira das duas fotografias foi captada, a imagem recente da posse do Papa Francisco chama a atenção por revelar uma mudança radical operada pela popularização de dispositivos móveis multifuncionais, a qual impacta profundamente a paisagem urbana contemporânea.57 Tal mudança diz respeito, 57

Há que se fazer uma ressalva em relação ao espírito de cada um dos eventos retratados. No primeiro, tratava-se de um funeral, momento solene e de introspecção que naturalmente tende a inibir o uso das câmeras portáteis; diferentemente do segundo, em que a excitação da multidão para saudar o novo Papa tende a estimular o uso de tais dispositivos. Ainda assim, se levarmos em consideração que o evento de 2005 ocorreu dois anos antes da geração de smartphones multifuncionais que acompanhou o surgimento do iPhone, da Apple, então é bem provável que a comparação entre as duas fotografias seja de fato válida para apontar a mudança na paisagem de grandes eventos após esse período.

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sobretudo, ao considerável aumento de telas dinâmicas em nossa sociedade que, cada vez mais, parece atingir tal ponto de saturação que coloca em xeque, inclusive, a própria noção do que entendemos, hoje, por “tela”. Por um lado, multiplicaram-se os suportes, cada um com sua tela, entretanto, por outro lado, também as telas dentro das telas vêm se multiplicando – telas que disputam entre si o espaço de cada superfície disponível. A imagem “limpa”, que ocupa toda a dimensão do enquadramento visual, está se tornando cada vez mais rara. Na grade de programação televisiva, uma imagem com estas características aparece ainda nos filmes, seriados e telenovelas (sendo que tal generalização já se torna perigosa). São como ilhas ou bolsões de resistência da imagem “íntegra”, uma herança do cinema, que sobrevive com dificuldade em meio a um oceano de imagens fragmentadas, recortadas, sobrepostas, misturadas com outras, que habitam hoje os panoramas televisivos (KILPP, 2003); seja nos telejornais, nos programas de auditório ou de entrevista, nas coberturas esportivas, na publicidade, nos reality shows, em toda a parte encontramos imagens que se constituem a partir de diferentes tipos de combinações com outras imagens. A montagem espacial de que nos fala Manovich (2006) é a operação fundamental que dá origem a um tipo de visualidade marcada pela combinação de várias qualidades de imagens no interior de um mesmo quadro. Presente nos antigos afrescos ou nas modernas histórias em quadrinhos, a montagem espacial, que historicamente contrapõe-se à montagem temporal, retorna vigorosamente na televisão, conforme já sinalizamos, mas é sobretudo nas telas dos computadores, quando o usuário nativo abre inúmeras janelas dentro das quais realiza simultaneamente várias atividades, que seu potencial atinge patamares de atuação ainda mais elevados. Opondo-se à narrativa linear e ao ponto de vista monocular e centralizador, a montagem espacial é a operação de base das estéticas de conectividades híbridas que marcam a ação das mídias computacionais nas sociedades contemporâneas. Na montagem espacial, o tempo da narrativa se distribui no espaço da tela (telas dentro de telas) e se estende para além dela: sua natureza se diversifica principalmente nas experiências com múltiplas projeções (lembremos das videoinstalações), nas ações de building projection mapping em fachadas de edifícios e, mais recentemente, com as mídias locativas, que reúnem usuários, softwares e espaço público em complexas redes de relações, de modo que o próprio conceito de imagem enquanto modelo de “representação” é deslocado e substituído por uma noção de imagem como presença (GUMBRECHT, 2010), estabelecendo o corpo do espectador como o centro de ação a partir do qual ela ganha forma.

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Com isso, abordaremos, ao logo deste capítulo, três perspectivas genealógicas sobre o processo de multiplicação de telas que, em conjunto, nos dão pistas para pensarmos na condição de presença que as imagens assumem hoje, principalmente quando se mostram “acopladas” à materialidade dos espaços públicos urbanos e ao corpo humano: na primeira delas vamos nos ater ao conceito de montagem espacial, enfocando diferentes tipos de operações audiovisuais em que a disposição da imagem na tela ocorre por intermédio de acumulações espaço-temporais em detrimento da sucessão linear; em seguida, iremos enfocar dois processos de multiplicação de telas, a nosso ver complementares, que se efetuam tanto no campo das artes plásticas quanto no cinema e que atingem um ponto de convergência nas formas de artes híbridas das videoinstalações e instalações multimídia; por fim, procuraremos abordar o fenômeno da multiplicação de telas em nosso cotidiano desde uma perspectiva que atenta para os impactos culturais decorrentes da invasão de displays de informação e aparelhos televisores em espaços públicos e da oferta crescente de novos hardwares portáteis (DVDs e videogames portáreis, celulares e tablets, sistemas de navegação GPS). Ao longo deste percurso, buscaremos apontar para a condição de presença das imagens, que ora se mostra através de uma qualidade de impenetrabilidade, isto é, como imagem-dispositivo (DUBOIS, 2004) que rebate o olhar do espectador; ora como uma imagem performativa, que demanda o engajamento todo do corpo do sujeito para tomar forma e que se produz em conexão com a materialidade espacial de prédios e outros elementos do mobiliário urbano.

2.1 TELAS DENTRO DE TELAS Comparada por Benjamin (2011) à legendagem da fotografia na revista ilustrada e definida por Eisenstein (2002) como qualidade que está também fora do audiovisual propriamente dito, sendo antes uma qualidade da vida, a montagem continua sendo um elemento-chave na composição audiovisual. Em nossa cultura visual, duas formas de montagem estabelecem os polos de uma antiga disputa. O primeiro deles pende para o lado da montagem temporal, enquanto que o segundo para o lado da montagem espacial. A montagem temporal conhecemos muito bem: corresponde à justaposição em sequência de fragmentos imagéticos de modo que o resultado é um fluxo no qual imagens substituem-se umas às outras incessantemente. Esse tipo de montagem é, de longe, aquele que recebeu mais atenção por parte dos estudos cinematográficos. Entretanto, no que tange aos problemas investigados nesta pesquisa, interessa mais observar a segunda, a montagem espacial, encontrada sobretudo nas mídias audiovisuais (mas não somente), cuja característica

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é a justaposição dos elementos imagéticos no interior dos quadros, panoramas ou planos, que ocorre através de técnicas de composição, sobreposição, fusão, incrustação, dentre outras. Dessa maneira, a montagem espacial estabelece uma forma de expressão em que a dimensão diacrônica, isto é, a passagem linear do tempo, tem menos importância do que a dimensão sincrônica, em que vários fluxos são mostrados em paralelo. Historicamente, a montagem espacial se estabelece como uma alternativa (de forma alguma excludente, mas complementar) à montagem temporal, a partir da qual a ênfase das operações técnicas se volta menos para o modo sequencial de narrar do que para as formas de organização de diferentes tipos de imagens em um mesmo espaço. A exploração de técnicas de montagem espacial para construção narrativa desempenhou importante papel na cultura europeia durante séculos, principalmente nos períodos do Renascimento e do Barroco. Em obras como a de Giotto, que recobre as paredes e o teto da Capela Scrovegni de Pádua (Figura 7), os artistas apresentavam uma variedade de acontecimentos distintos dentro de um mesmo espaço em que o espectador poderia abarcar com o olhar o todo de uma só vez ou se ater minuciosamente aos detalhes de uma variedade impressionante de quadros, ilustrações, ornamentos e outras imagens. Nessas ocorrências do uso de técnicas de montagem espacial o que prevalecia era uma estética da saturação e de densidade informacional. Figura 7 – Capela Scrovegni

Fonte: The Fake Economist. Disponível em: . Acesso em: 26 de novembro de 2013.

Ainda que a montagem espacial tenha prevalecido como um tipo de visualidade narrativa predominante em períodos anteriores ao século XIX, contudo, na medida em que passamos a adentrar a era dos meios de reprodução mecânicos, a montagem temporal passou a

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prevalecer, sobretudo a partir do surgimento do cinema e, mais tarde, já no século XX, com a televisão. Os fatores que conduziram a essa situação foram, principalmente, de ordem sociocultural – tomando como base o pensamento do geólogo Edward Soja, Manovich (2006) argumenta que não se trata de coincidência o fato de que a narrativa sequencial tenha ganhado força em relação à narrativa espacial justamente na mesma época em que o paradigma histórico alcançou seu auge nas ciências humanas, momento em que ocorre uma diminuição do modo espacial de imaginação e análise social. Nesse sentido, pode-se atribuir às características técnicas e materiais dos meios em que as artes narrativas se desenvolveram a partir do século XIX uma certa vocação à diminuição do valor dado à montagem espacial. Se tomarmos como referência as bases formais tanto do cinema quanto da fotografia, perceberemos que ambos privilegiam o paradigma da imagem que ocupa toda a dimensão do quadro em detrimento de arranjos com imagens justapostas no mesmo quadro – conseguir efeitos de montagem espacial nessas mídias sempre foi algo trabalhoso, que exigia vários processos até que se conseguisse sobrepor uma imagem sobre a outra. Mesmo assim, a montagem espacial não desapareceu por completo ao longo do século XX. Mesmo no cinema, mas sobretudo nos quadrinhos e nas chamadas artes do vídeo, encontramos vários momentos em que seu uso foi praticado na experimentação de certos arranjos. Como exemplo, poderíamos evocar a célebre cena de A vida de um bombeiro americano (Edwin Porter, 1903), na qual vemos, sobre a cabeça de um homem que dorme em seu posto de trabalho, a imagem de seus sonhos. Em Um homem com uma câmera (Dziga Vertov, 1929) e em Roteiro do filme Paixão (Jean-Luc Godard, 1982), várias cenas apresentam dois ou mais planos sobrepostos através de técnicas de fusão; ainda, vários filmes mostram cenas em que a tela apresenta-se dividida em duas ou mais, um recurso exaustivamente utilizado quando dois personagens, distantes um do outro, conversam ao telefone, ocupando, cada um, uma das subtelas, como no filme Suspense (Phillips Smalley e Lois Weber, 1913), o pioneiro a usar este recurso. Também outra forma de produzir efeitos de montagem espacial no quadro fílmico inclui técnicas de enquadramento que criam, através da perspectiva, camadas de ação em profundidade – uma cena emblemática desse tipo de operação é aquela de Cidadão Kane (Orson Welles, 1941), em que os pais do então jovem Charles Foster Kane, o personagem principal do filme, aparecem discutindo sobre o futuro do garoto (conversam se ele deve ou não ser levado para Nova York), enquanto isso, vemos, ao fundo, enquadrado pela moldura da janela, o objeto do debate, isto é, o menino, brincando na área externa da residência (Figura 8).

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Figura 8 – Cidadão Kane

Fonte: Movie Images. Disponível em: . Acesso em: 26 de novembro de 2013.

Após a Segunda Guerra, o registro e a edição das imagens vão deixando pouco a pouco de se fazer sobre película para se tornarem eletrônicos. Essa mudança introduz novas operações de montagem espacial. Junto com as já conhecidas técnicas de justaposição (imagens colocadas lado a lado) e sobreposição (fusão de imagens), ganhou destaque, principalmente no meio televisivo, a técnica de incrustação58 – que, segundo Dubois (2004), trata-se da mais importante dentre as técnicas de montagem espacial por ser a mais específica ao funcionamento eletrônico da imagem. Bons exemplos de técnicas de incrustação na televisão são encontrados nos programas de telejornalismo em que, frequentemente, vemos imagens sendo exibidas atrás do apresentador, que mudam conforme ele narra um fato jornalístico. Ainda que os dois espaços, o do apresentador e o da imagem projetada atrás dele, estejam de certa forma conectados semanticamente – afinal de contas, espera-se uma sintonia entre o que é narrado por ele e o conteúdo que é mostrado nas imagens –, visualmente eles são incompatíveis, visto que não compartilham a mesma escala e nem a mesma perspectiva ótica. Diferente das técnicas de montagem cinematográficas, nas quais se evidencia uma intenção de ocultamento do processo técnico tendo em vista a construção de espaços narrativos coerentes, a mídia eletrônica, neste caso o telejornalismo televisivo, apresenta composições em que os espaços coexistentes no panorama se mostram claramente diferentes uns dos outros.

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Também conhecida como chroma key, essa técnica se caracteriza pela incrustação de partes de uma imagem sobre a outra através da anulação de uma cor, geralmente o azul ou verde.

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Para Philipe Dubois (2004), as técnicas de montagem espacial potencializadas pela tecnologia do vídeo permitem aumentar a “espessura” da imagem audiovisual na medida em que várias camadas podem ser sobrepostas e combinadas umas com as outras.

Daí podemos opor à noção cinematográfica de profundidade de campo a noção videográfica de espessura da imagem: esta mixagem visual não deixa de produzir efeitos de profundidade, mas uma profundidade, por assim dizer, de superfícies, fundada na estratificação da imagem em camadas. Nada que ver com a profundidade de campo. Embutir uma imagem na outra é engendrar um efeito de relevo (o “buraco” e seu preenchimento) que é invisível fora da imagem, e só existe para o espectador. (DUBOIS, 2004, p. 87).

Assim como a montagem espacial, a noção de espessura da imagem nasce de uma ideia de assimilação da montagem cinematográfica à própria imagem, ideia esta que também está presente no conceito de montagem dentro do quadro, de Eisenstein (2002), formulado ainda nos anos 1940. Em contraposição à noção de profundidade de campo, gerada a partir da técnica de perspectivação do olhar da câmera cinematográfica, define-se a noção de profundidade do vídeo como uma “profundidade em camadas”, que “desloca a ‘impressão de realidade’ do cinema e a substitui por uma vertigem: a imagem em si oferecida como experiência” (MACHADO, 2004, p. 14). No vídeo, “ainda que tudo provavelmente não passe de imagem”, afirma Dubois (2004, p. 86), “toda a imagem é matéria”. Para Dubois (2004), a montagem espacial provoca também a perda da relevância da noção de espaço fora de campo – conhecido também como o espaço “off” (BURCH, 1990). Sabemos que uma das operações mais constitutivas da linguagem cinematográfica é o jogo que faz alternar entre as porções do espaço que se mostram visíveis e não-visíveis no quadro fílmico (a conhecida operação de plano e contraplano é o melhor exemplo). Sempre que uma dimensão do espaço é apresentada no enquadramento, o espectador projeta, virtualmente, a sua continuação para fora do quadro – que poderá (ou não) ser revelada na sequência dos acontecimentos fílmicos. Distintamente, em se tratando do paradigma estabelecido pela montagem espacial, o incentivo é de que todas as porções do espaço se apresentem ao mesmo tempo no quadro. Dessa maneira, a noção de um “fora de campo” deixa de ser importante porque, segundo Machado (2004, p. 16):

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Em vídeo tudo está ali, na imagem (ou no som): nunca há necessidade de referência a um espaço off, pois se algum outro espaço precisa ser invocado, ele é imediatamente acrescentado ao quadro. [...] O modelo abstrato dessa lógica visual é, segundo Dubois, a lógica matemática dos fractais, em que qualquer parte da imagem já contém todas as imagens a ela relacionadas e, portanto, não há mais “dentro” nem “fora”, tudo já está contido nessa “espessura da imagem”.

Portanto, a própria noção de “plano”, tão cara ao cinema, se vê ameaçada no contexto das técnicas de montagem espacial videográficas: por um lado, um mesmo quadro pode ser composto não por uma única imagem, mas por várias imagens que obedecem, cada uma, a distintas ordens de enquadramentos, de tal modo que seus limites se tornem indiscerníveis; além disso, uma imagem pode desaparecer e ser substituída por outra, enquanto o restante das imagens presentes no mesmo espaço continuam visíveis. Portanto, tanto a dimensão espacial do plano (dada pelos limites do enquadramento) quanto a dimensão temporal (o intervalo de tempo antes do corte) são colocadas em xeque pela estética videográfica segundo essa concepção. Tal estética entre-imagens (BELLOUR, 1997) parece se intensificar ainda mais com o avanço da tecnologia em direção à digitalização de conteúdos e operações empregadas nos modos de produção de imagens técnicas, sobretudo nas duas últimas décadas. A evolução da informática em relação a formatos de imagens (JPG, MPG, MOV, AVI) que permitem, dentre outras coisas, a adição de links e outros recursos, fez com que os desenvolvedores passassem a pensar a produção de conteúdo audiovisual em termos modulares. Esse avanço trazido pelas tecnologias informacionais conduz também a uma reformulação conceitual da maneira como compreendemos a produção de imagens técnicas nas mídias digitais. Na cultura dos meios computacionais a montagem espacial se estabelece como um dos modos hegemônicos escolhidos para a organização de dados em interfaces. As páginas web, ao justaporem textos, imagens e vídeos em uma mesma interface, fornecem bons exemplos de procedimentos de montagem espacial. Segundo Manovich (2006), na medida em que essas formas de arranjo de informação baseadas em técnicas de montagem espacial se tornam cada vez mais frequentes, passaríamos a integrar o que ele chama de uma cultura audiovisuoespacial, na qual se adicionaria a dimensão do espaço às dimensões visuais e sonoras já consagradas. A montagem espacial presente nas interfaces de produtos digitais corresponde a uma estética que surge como um efeito das práticas contemporâneas de trabalho, em que constantemente somos impelidos a realizar múltiplas tarefas em simultaneidade. Não raro, a

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interface do computador em que estamos trabalhando se mostra abarrotada de janelas de diferentes programas que estão rodando ao mesmo tempo, umas sobrepondo-se às outras. Esse modo de multitarefa, que é familiar àqueles que estão acostumados à realização de atividades em computadores, demanda, em contrapartida, um modelo cognitivo que dê conta de fluir por diferentes estados de atenção e entre vários processos mentais voltados à resolução de problemas e ao gerenciamento de atividades simultâneas. Dado esse cenário, a compreensão dos meios audiovisuais hoje demanda um olhar voltado às funções que estes ocupam em sua relação com outras mídias. Afinal de contas, conforme descreve Manovich (2006, p. 276, tradução nossa):

A imagem cinematográfica, que começou dispondo de uma sala escura e era considerada a ilusão e o aparato terapêutico por excelência do século XX, foi reduzida a uma pequena janela na tela do computador, um fluxo entre muitos outros que nos chegam pela rede, um arquivo entre muitos outros que armazenamos no disco rígido.59

Os audiovisuais, circunscritos à moldura das mídias computacionais, têm sua estética e linguagem reconfiguradas: “A ilusão fica subordinada à ação, a profundidade à superfície, e a janela aberta a um universo imaginário fica subordinada ao painel de controle”60 (ídem, ibidem, tradução nossa). Ao analisar a obra de net art My boyfriend went from war!61 (Olia Lialina, 1996) Manovich (2006) destaca o potencial expressivo que surge das combinações entre as imagens que se mostram, todas ao mesmo tempo, no espaço da tela do computador. O autor percebe nessa obra uma nova dimensão das técnicas já exploradas pelo cinema, baseada não na substituição de planos, mas na adição e coexistência destes no mesmo panorama. Para o autor, através da montagem espacial o tempo se “espacializa” e se distribui pela superfície da tela, gerando uma coalescência espaço-temporal que pode ser comparada ao processo de acumulação e retenção de imagens na memória. Em comparação com o cinema, seria como se o espectador pudesse ver, de uma só vez, todos os planos que compõem um filme.

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No original, em espanhol: La imagen cinematográfica, que empezó disponiendo de una sala a oscuras para ella sola y fue la ilusión y el aparato terapéutico del siglo XX por excelencia, se ha visto reducida a una pequeña ventana en la pantalla del ordenador, a un flujo entre muchos otros que nos llegan por la red, a un archivo entre los otros muchos que guardamos en nuestro disco duro. 60 No original, em espanhol: La ilusión se queda subordinada a la acción, la profundidad a la superficie, y la ventana abierta a un universo imaginario queda subordinada a un panel de control. 61 Disponível em: Acesso em: 12 de dezembro de 2013.

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Na montagem espacial não é necessário esquecer-se de nada, e nada é excluído. Assim como usamos computadores para armazenar textos, mensagens, notas e dados infinitamente, e assim como uma pessoa ao longo de sua vida acumula cada vez mais memórias e o passado adquire gradualmente mais peso que o futuro, a montagem espacial pode acumular fatos e imagens à medida que a história avança. Ao contrário da tela de cinema, que basicamente funciona como um registro de percepção, neste caso, a tela do computador funciona como um registro de memória.62 (MANOVICH, 2006, p. 402, tradução nossa).

Atualmente, as possibilidades de combinação entre diferentes tipos de conteúdos numa mesma interface são ainda maiores do que no final da década de 1990, quando Manovich analisou My boyfriend went from war!. O projeto The Wilderness Downtown63 (Figura 9), lançado em 2011, da banda Arcade Fire em parceria com o Google Creative Lab, foi produzido com o objetivo de por à prova o potencial tecnológico do navegador web Google Chrome. Trata-se de um videoclipe interativo que reúne imagens captadas em película de 35 mm, animações em 2D e em 3D e imagens fotográficas capturadas diretamente dos bancos de dados dos serviços Google Maps64 e Google Street View. Durante a execução do videoclipe – que deve ser feita no navegador Google Chrome – abrem-se, simultaneamente, várias janelas, que passam a assumir diversos tipos de comportamentos: elas se expandem e se fecham automaticamente, saltam, criam composições em mosaico e seus conteúdos deslizam livremente para fora da moldura, invadindo o espaço umas das outras. No interior dessas janelas do navegador assistimos a um fluxo intenso de intercâmbios entre imagens audiovisuais de naturezas distintas – em um momento estamos diante de sequências fílmicas gravadas com atores; em outro, são os trechos de computação gráfica em 2D ou 3D que desfilam na tela do computador; em seguida, as imagens capturadas de bancos de dados do Google Maps e do Google Street View servem de cenário para animações.

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No original, em espanhol: En el montaje espacial no necesita olvidarse nada, y nada se borra. Igual que usamos los ordenadores para acumular textos, mensajes, notas y datos sin fin, e igual que una persona, a lo largo de su vida, acumula cada vez más recuerdos y el pasado adquiere poco a poco más peso que el futuro, el montaje espacial puede acumular hechos e imágenes a medida que avanza la historia. A diferencia de la pantalla del cine, que funciona básicamente como un registro de la percepción, en este caso la pantalla del ordenador funciona como registro de la memoria. 63 Disponível em: Acesso em: 12 de dezembro de 2013. 64 Serviço de pesquisa e visualização de mapas e imagens de satélite da Terra oferecido pela empresa estadunidense de tecnologia Google. Disponível em: Acesso em 05 de julho de 2013.

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Figura 9 – The Wilderness Downtown

Fonte: . Acesso em: 27 de outubro de 2013

As técnicas de montagem espacial presentes em The Wilderness Downtown e em tantas outras formas culturais com as quais interagimos cotidianamente conduzem a um modelo de experiência estética que se alinha ao conceito de hipermidiação, proposto por Bolter e Grusin (2000). A hipermidiação faz referência a um tipo de estética que privilegia a fragmentação, a heterogeneidade e a indeterminação entre os elementos dispostos na interface e é antes voltada para as performances e processos do que propriamente ao acabamento da obra artística. A lógica da hipermidiação comparece, por exemplo, na estética saturada de informações visuais presentes nos diversos programas de computador que utilizamos no dia a dia e em vários jogos de videogames. Ainda, a lógica da hipermidiação opõe-se à da imediação, que é justamente a tentativa de “apagamento” da interface tendo em vista simular o contato direto, isto é, não mediado, entre o usuário e o conteúdo apresentado. Em poucas palavras, se a lógica da imediação conduz ao apagamento do ato de representação, a lógica de hipermidiação reconhece os múltiplos atos de representação e os torna visíveis. Diferentemente da perspectiva da pintura ou dos gráficos 3D de computadores, que se inscrevem na lógica da imediação, as interfaces que operam sob a lógica da hipermidiação, sobretudo as que fazem uso de múltiplas janelas, não almejam unificar o espaço sob um ponto de vista determinado. Ao contrário, cada elemento mantém sua individualidade e define um ponto de vista em específico. A síntese de todos os elementos díspares exibidos na tela fica a cargo do espectador realizar – conforme tratamos no capítulo anterior, o espaço acústico dos meios computacionais instaura-se justamente desta maneira, em que o ponto de fuga se situa não no interior do quadro, mas no espectador, para o qual convergem as linhas de força da

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imagem. Adotando-se uma perspectiva genealógica, técnicas artísticas pré-computacionais como as de colagem e fotomontagem, amplamente exploradas por artistas de vários movimentos de vanguarda do século XX, são especialmente interessantes no sentido de apontar para uma mesma tendência a mostrar as descontinuidades entre os elementos representados através do meio. Tais características de justaposição e incorporação de elementos distintos num mesmo quadro se potencializa com os meios computacionais e se torna o padrão estético de muitas interfaces que estamos acostumados a lidar diariamente. Para Bolter e Grusin (2000), esse processo se torna ainda mais radical quando, em vez de justapor conteúdos de mesma natureza, por exemplo fotografias, a interface promove articulações entre conteúdos oriundos de diferentes mídias em que dialogam imagens com lógicas espaciais diferentes, tal como observamos em The Wilderness Downtown. Ainda, a lógica da hipermidiação aponta para uma tendência de fascinação ou maravilhamento com o meio, isto é, quando a própria materialidade do meio e seus efeitos sobre o corpo do observador se institui como objeto do olhar. The Wilderness Downtown evidencia de maneira muita clara essa fascinação com o meio: trata-se, no fim das contas, de um projeto que tem como proposta-chave exibir o potencial tecnológico do navegador web do Google e, como tal, utiliza um pesado contingente de plataformas e linguagens de programação que produzem encantamento pela abundância de operações automáticas que conseguem realizar. Mesmo que estejamos engajados em “mergulhar” no fluxo narrativo da experiência audiovisual, nosso êxito é sempre parcial, pois frequentemente acabamos retornando ao nível da superfície da interface para contemplá-la. Desse modo, a experiência que se desdobra no contato com a obra assume-se como uma operação de metalinguagem que convoca o sujeito a refletir constantemente sobre o meio. Em resumo, o que deve ser destacado em relação às operações de montagem espacial que se atualizam nos meios computacionais é a intensificação das estéticas de conectividades híbridas, as quais se dão a ver em obras que remetem à tendência de hipermidiação, à sensação de maravilhamento com a materialidade dos meios, à constituição de um espaço acústico que envolve sensorialmente (em um nível anterior à interpretação) o espectador. Trata-se de enfatizarmos aqui a qualidade de coalescência espaço-temporal que gera uma “espessura” na imagem, tornando-a impenetrável ao olhar do espectador, ao que lhe resta somente pairar sobre a superfície da imagem. Nisto reside o poder de presença destas imagens e, conforme tentaremos provar nos próximos capítulos, estas mesmas qualidades comparecem também no contexto das audiovisualidades de mídias locativas.

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Dando início à transição para a próxima seção deste capítulo, observamos que, na medida em que os hardwares de visualização de imagens (telas) se disseminam no interior de nossa cultura, surgem novos tipos de ambientes comunicacionais fortemente marcados pelos valores éticos e estéticos que tais imagens carregam consigo. As montagens espaciais, até aqui descritas como operações que se efetuam exclusivamente no interior de telas, se instituem então como um padrão estético que passa a funcionar em escala ainda maior, para além do universo circunscrito pelas quatro arestas do quadro pictórico. Quando as populações das sociedades informacionais têm suas sensibilidades afetadas pelas estéticas de fragmentação características das mídias computacionais, é de certa forma esperado que a montagem espacial se faça presente também em operações de acoplagem entre diferentes tipos de mídias. Apenas para citar um exemplo disso que estamos afirmando, observamos que um conceito como o de narrativa transmidiática (JENKINS, 2009), que se tornou muito popular nos últimos anos tanto nos círculos de discussão acadêmica quanto mercadológica, denota uma atualização das lógicas de montagem espacial no âmbito da produção de experiências narrativas, em que os públicos consumidores são constantemente incitados a buscar e unir fragmentos narrativos espalhados por diversas mídias, tendo em vista produzir suas próprias sínteses, que se montam como colchas de retalhos de referências heterogêneas, as quais dão a ver a subjetividade caleidoscópica de nossa época. As montagens entremídias instituem, portanto, uma outra faceta de nosso interesse pelo espaço acústico que emerge através dos processos de estetização de bancos de dados na atual sociedade informacional. Tal é também a forma como se estruturam grande parte dos projetos de experimentação com mídias locativas: ao promoverem a união de dados multimídia com dados de geolocalização (dentre outros tipos de dados que podem ser capturados e incorporados às representações), elas apontam para novos regimes de sensibilidade em que cada vez mais o contato com a “imagem” é antes o resultado de uma síntese operada pelo corpo como um todo para unir fragmentos de informação muito diferentes entre si. Um olhar em retomada genealógica dos processos de montagem entremídias aponta para as instalações multimídia. Compreendidas como densos espaços de informação que combinam estruturas físicas a imagens, vídeos, textos, sons e elementos gráficos tridimensionais, as instalações multimídia constituem uma das formas culturais em que o diálogo entre vários tipos de meios de comunicação se estabelece de maneira mais efetiva. Com origens que remontam aos trabalhos de videoinstalação, as instalações multimídia se inscrevem em um movimento que tomou forma no campo das artes ao longo do século XX e que conduziu ao deslocamento do conceito de obra de arte enquanto objeto material (quadro,

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escultura etc.) em direção ao seu entendimento enquanto contexto. Tendo em vista a importância desse processo de deslocamento da imagem, que gradualmente vai deixando o domínio exclusivo do plano bidimensional (o quadro) e passa a ser pensada como uma ambiência que ocupa todas as dimensões do ambiente de exposição, na próxima seção vamos retomar alguns pontos desta trajetória.

2.2

INSTALAÇÕES MULTIMÍDIA A presença dos meios audiovisuais, em especial do vídeo, na produção artística

contemporânea se inscreve em, pelo menos, dois movimentos mais abrangentes que já vinham tomando forma no campo da produção estética desde meados do século XX: por um lado, os trabalhos de artistas integrantes de movimentos de vanguarda que despontaram nas primeiras décadas do século passado (Futurismo, Dadaísmo, Surrealismo, Minimalismo, dentre outros) foram responsáveis por protagonizarem uma mudança radical na concepção de obra de arte, que gradualmente passava de um entendimento voltado exclusivamente à condição de objeto material (a escultura, o quadro fixado na parede) para assumir-se como conceito, enfatizando as qualidades contextuais e processuais (o tempo como inscrição) do trabalho artístico; por outro lado, no campo da produção audiovisual em cinema e em vídeo, observamos um movimento complementar a este que acabamos de descrever, e que se refere às estratégias de espacialização das imagens audiovisuais (DUBOIS, 2009) levadas a cabo por vários artistas, principalmente através do uso dos recursos de projeção de imagens em ambientes diversos e de circuitos fechados em vídeo. Em resumo, enfocamos, por um lado, os processos de expansão espaço-temporais das artes plásticas e, por outro lado, os processos de projeção audiovisual em ambientes diversos, que extrapolam em larga medida o dispositivo clássico de recepção cinematográfica – sala escura, espectador imóvel em seu assento, projeção vinda de trás, tela brilhante. A nosso ver, ambos os movimentos se intersecionam em obras que hibridizam as propriedades materiais de ambientes espaciais com as qualidades das imagens eletrônicas e informacionais, de tal modo que espaço e imagem contaminam-se reciprocamente com suas substâncias. As instalações, sobretudo as videoinstalações e as instalações multimídia, apresentam essas propriedades, visto que constituem lugares em que a imagem se apresenta como um agente que se projeta em direção ao espaço, modificando-o e sendo por ele modificada. Por outro lado, a noção de instalação como circunscrita a um lugar físico e territorial pode ser redutora. Para autores como Dubois (2009), a ideia de instalação é mais ampla que o dispositivo de instalação

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propriamente dito (digamos, por exemplo, o espaço expositivo e os materiais que integram a obra) e por isso mesmo pode ser experimentada para além das noções de espaço, território e matéria. Nesse sentido, a instalação enquanto potência virtual pode ser experimentada em algumas obras audiovisuais em que a imagem se apresenta mais como estímulo sensório, endereçado ao corpo como um todo e que coloca o espectador em uma condição de ativação física, do que como algo a ser interpretado cognitivamente. Dubois (2009, p. 204) fala de uma “interiorização do princípio de instalação” que se apresenta na medida em que o filme (ou qualquer obra audiovisual que remeta a essa ideia) seja pensado como um lugar (dotado de uma memória) ou como algo que se enuncia como uma imagem-dispositivo (DUBOIS, 2004). Esse movimento é particularmente interessante para explorarmos, mais adiante, as relações que se estabelecem entre o espaço físico territorial e as imagens técnicas em experiências com mídias locativas. Por ora, buscaremos, nesta seção, compreender o processo de desenvolvimento que conduz à emergência de ambientes espaciais com múltiplas telas, seja no espaço de exposição das galerias de arte ou em outros espaços, conforme veremos. Nosso ponto de partida retoma o processo que conduziu ao amadurecimento das formas de arte relacionadas à categoria de instalação65. Na medida em que as instalações passaram a assimilar recursos eletrônicos e informacionais em seus modos de produção, outros formatos artísticos surgiram, como a videoinstalação e a instalação multimídia, trazendo novas possibilidades de criação e utilização da totalidade do espaço expositivo, frequentemente com a presença de múltiplas projeções de imagens, aparelhos televisores, sistemas de circuito fechado de vídeo. É esse percurso que realizaremos a seguir. Uma das principais características das formas criativas do século XX foi a persistente tendência a questionar a longa linhagem das artes ditas tradicionais, em especial a pintura, como meios privilegiados de representação. Seguindo por esse caminho, movimentos de vanguarda, como o abstracionismo, o surrealismo, o conceitualismo, o minimalismo, dentre outros, protagonizaram intensos debates sobre a natureza e os limites da arte. Dentre as estratégias adotadas pelos artistas que integravam esses movimentos, incluíam-se a apropriação e contextualização de objetos do cotidiano como produtos de arte, as investidas contra a tela da pintura (respingos de tinta, cortes, perfurações, incorporação de objetos e materiais diversos etc.), as performances e instalações efêmeras, a valorização do ruído como parte da obra, além de outras formas de manifestação que apontavam para uma mudança

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Para Michael Rush (2006), a instalação é pensada como objeto tridimensional que se introduz e se integra ao ambiente da galeria, produzindo como efeito um processo em que o espaço e suas leis são moldados pela obra de arte, gerando um “contexto”, mais do que um “objeto” de arte.

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radical de paradigma, a partir da qual o foco do pensamento sobre a arte se deslocou da materialidade do objeto artístico para o seu conceito. Sem dúvida alguma, um dos principais responsáveis por essa virada no campo da produção e crítica nas artes foi o artista francês Marcel Duchamp, ao declarar com seus readymades (rodas, pás, cabides e outros materiais) que quaisquer objetos manufaturados poderiam assumir o status de obra de arte. Segundo Rush (2006, p. 2), a partir de Duchamp “[...] qualquer coisa que possa ser analisada como sujeito ou substantivo foi provavelmente incluída em uma obra de arte por alguém em algum lugar”. Na ocasião da morte deste artista emblemático, segundo Rush (2006, p. 211), dois de seus amigos, Gianfranco Baruchello e Henry Martin, escreveram: Preencher as coisas com uma atmosfera absolutamente sobrecarregada de significado é o que ele sempre fazia e que, afinal de contas, é a essência da arte moderna. Pega-se praticamente qualquer coisa e preenche-se com todo o significado que se possa atribuir-lhe, todos os significados completamente arbitrários e pessoais possíveis, todo o mistério, todo o enigma que ela possa conter. Esta é uma das lições mais fundamentais que Duchamp tinha para nos ensinar.

Seguindo as pegadas de Duchamp, outros tantos, como o americano Jackson Pollock, o argentino Lucio Fontan e o japonês Shozo Shimamoto, criaram, nos anos 1950, obras em que a ação artística passou a ter proeminência sobre a pintura. Ao colocar a tela de pintura no chão e respingar tinta sobre ela, em todas as direções, a vitalidade da arte gestual de Pollock provocava como resultado uma expansão do campo pictórico, incentivando o espectador de suas obras a acompanhar e a completar com a imaginação os movimentos que se insinuavam para além dos limites do quadro. Desse modo, Pollock contribuía para que os artistas de sua geração passassem a depositar sua energia criativa no “mundo fora das telas”, conforme descreve Gillian Sneed (2011, p. 172), abrindo as portas para que formas de expressão como as performances, os happenings e a arte contextual emergissem com força nesse período. Segundo Rush (2006, p. 30), “para artistas americanos em meados do século, era apenas uma questão de dar um pequeno passo entre a pintura de ação (a aplicação livre e generalizada de tinta de Jackson Pollock) e a própria ação como forma de arte”. Depois disso, vários outros artistas também tiveram sua parcela de contribuição para alargar ainda mais as fronteiras da arte, fortalecendo cada vez mais a ideia de que tão importante quanto o objeto de arte era o seu conceito e o seu contexto. Rush (2006, p. 72), descreve como em poucas

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décadas o pioneirismo de Duchamp viria mudar radicalmente todo o panorama da arte do século XX:

Talvez os críticos ainda estivessem (na verdade, ainda estão) debatendo a viabilidade estética de Fountain (o urinol de cabeça para baixo enviado a uma exposição de arte em 1917) de Marcel Duchamp em meados dos anos 60, mas já naquela época as fronteiras da arte tinham sido tão ampliadas que não existiam mais “limites”. Na verdade, objetos manufaturados, como Foutain, foram apenas o começo. Em Nova York os Happenings de Allan Kaprow, Claes Oldenburg e Jim Dine, as telas com diversos materiais (com camas, galinhas recheadas e cabos) de Robert Rauschenberg, as instalações corporais de Carole Schneemann e os painéis de néon de Dan Flavin são apenas alguns exemplos da multiplicidade das obras de arte em exposição naquela época. A máxima do crítico Clement Greenberg de que o significado da arte (que para ele significava pintura ou escultura) deveria ser encontrado no próprio objeto era agora contestada pela ideia de que, na prática da arte, o conceito e o contexto eram o fundamental.

Foi no compasso dessa tendência à desmaterialização do objeto da arte e à valorização do processo artístico em detrimento de seu produto final que movimentos de vanguarda artística e política surgiram em todo o mundo, principalmente no período compreendido entre o final dos anos 1950 e a primeira metade dos anos 1960. Para Venturelli (2004) foram três as grandes vertentes responsáveis pela revisão das fontes sensoriais promovidas pelas vanguardas desse período: as instalações, as performances e os trabalhos de videoarte. Em conjunto, essa três tendências da arte contemporânea promoveram o deslocamento do conceito de arte, que gradualmente foi deixando para trás a noção de obra de arte como objeto para assumir a importância do contexto de sua produção. No que se refere ao processo de extrapolação dos limites do espaço de representação bidimensional (o quadro), indo em direção ao uso de todo o espaço tridimensional da galeria de arte (e posteriormente ao próprio abandono desse espaço em direção a espaços exteriores), são diversas as contribuições oferecidas por artistas de diferentes períodos do século XX. Manovich (2006b) observa que desde os anos 10 do século XX, com as obras do artista russo Vladimir Tatlin, o padrão plano da pintura já havia sido quebrado – um processo que vai se consolidar definitivamente nos anos 1950, quando se popularizaram as estéticas híbridas de assemblage66, que extrapolavam os limites da pintura, da escultura e da instalação.

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Termo cunhado por Jean Dubuffet, em 1953, na ocasião de uma série de trabalhos que misturavam colagens em papel com asas de borboletas. Segundo Cooper (2009), a assemblage é uma forma de arte em que vários tipos de materiais e objetos “encontrados”, quase sempre objetos de uso cotidiano, são combinados entre si formando estruturas híbridas, nas quais ainda assim é possível perceber as características originais de cada um

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O movimento de ruptura dos limites impostos pela moldura e pela forma plana do quadro pictórico remonta aos anos 1920, com Lissitzky, Rodchencko, dentre outros artistas, os quais foram responsáveis pelo pioneirismo em relação ao uso de toda a superfície das paredes da galeria em suas exposições. Contudo, foi somente nos anos 1960, com escultores minimalistas como Carl Andre, Donal Judd e Robert Morris, que todo o espaço da galeria, inclusive o piso e o teto, passaram a ser utilizados pelos artistas. Para Manovich (2006b), foi nessa etapa que, finalmente, o “cubo branco”, como é conhecido o espaço de exposição das galerias de arte, se tornou, de fato, um cubo, mais do que propriamente um conjunto de superfícies bidimensionais. Assim, a instalação foi se popularizando para se tornar, a partir do final dos anos 1980, a forma mais comum em eventos de arte. Há três aspectos nas instalações que se mostram interessantes para os propósitos desta pesquisa. Em primeiro lugar, é particularmente importante a ideia de instalação enquanto elemento (ou conjunto de elementos) que se insere num dado ambiente espacial de modo a provocar alterações formais e semânticas em todo o contexto – esse tema será recuperado na próxima seção, quando abordamos as intervenções que se efetuam não no espaço institucional das galerias de arte, mas no espaço público urbano. Em segundo lugar, nos interessam as formas com que obras de instalação podem enunciar um caráter narrativo através do deslocamento corporal do sujeito que passa a habitar o espaço – este tópico será apenas mencionado na parte final desta seção, sendo retomado e explorado com maior profundidade no quarto capítulo. Ainda, interessa compreender os processos de assimilação e integração de recursos audiovisuais em obras de instalação. Esse é o tema que iremos tratar agora. A chegada do vídeo aos ambientes de instalação significou a possibilidade de incorporar elementos arquitetônicos adicionais ao espaço expositivo, elementos estes que significavam, sobretudo, uma ampliação da dimensão temporal das obras. Para Rush (2006) a imagem de vídeo permitiu a expansão do conceito de escultura, tornando-o mais fluido e ativo. Nesse sentido, se a exploração do tempo já era um ponto central em várias obras de videoarte, as possibilidade se tornaram ainda maiores com o emprego de recursos de vídeo nas instalações. A projeção com múltiplas telas (fossem telas cinematográficas ou telas de aparelhos televisores) foi, de longe, uma das estratégias mais exploradas. Para Dubois (2009), as telas múltiplas enunciam um princípio de transposição das formas temporais do cinema, em especial sua dinâmica ligada à montagem, para uma disposição espacial no ambiente expositivo, seja o da galeria de arte ou outro. dos elementos. Podem variar em termos de formato e escala, indo desde o seu uso aplicado em quadros quanto em esculturas e instalações.

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Desse modo, a sucessão temporal que se efetua na montagem cinematográfica é encenada por princípios de simultaneidade espacial através de inúmeros recursos, dentre os quais, a projeção em múltiplas telas se apresenta como uma das alternativas. No cinema, quando se quer mostrar duas porções de um mesmo cenário, corta-se para ângulos diferentes – por exemplo, através da técnica de plano-e-contraplano. Já num contexto de videoinstalação, é possível mostrar diferentes partes de um mesmo cenário utilizando-se múltiplas telas – em vez de utilizar o plano-e-contraplano, pode-se, simplesmente, posicionar duas telas, uma de frente para a outra, de modo que o espectador, ao colocar-se entre ambas, possa visualizar simultaneamente as duas metades do cenário. É importante destacar, no entanto, que o emprego de várias projeções de imagens em movimento não foi uma operação inaugurada pelos artistas do vídeo. Um marco importante no uso de projeções múltiplas é encontrado, ainda na década de 1920, no filme Napoleão (Abel Gance, 1927), que ganhou destaque por utilizar diversas técnicas consideradas inovadoras para a época (como o emprego de câmera na mão e de planos subaquáticos). Nas exibições desse filme foram utilizadas três projeções simultâneas, dispostas uma ao lado da outra, sendo que cada uma delas apresentava uma tomada distinta das outras duas, dando origem ao primeiro panorama de três telas da história do cinema (ao mesmo tempo que evocava as pinturas trípticas ensaiadas na Idade Média). O auge da exploração do recurso de múltiplas telas em ambientes expositivos ocorreu durante as décadas de sessenta e setenta do século XX, sobretudo entre artistas de vanguarda residentes nos Estados Unidos e na Europa. Segundo Weibel (2005), as qualidades estéticas alcançadas com o recurso de telas múltiplas acompanhava a manifestação juvenil nas artes desse período, motivada sobretudo pelas grandes transformações que se efetuavam nos planos econômico, político e cultural dos países ocidentais. Segundo Weibel (2005, p. 336):

Na era das revoltas sociais, drogas de expansão da consciência e visões cósmicas, os ambientes de projeções múltiplas tornaram-se um importante fator na busca por uma nova tecnologia de produção de imagens capaz de articular uma nova percepção do mundo.

Com efeito, à medida que foram desenvolvidos diversos mecanismos de projeção múltipla, especialmente pelo artista multimídia Nam June Paik, colocava-se em evidência novos tipos de sensibilidade a partir das quais era possível representar um certo estado perceptual daqueles tempos. Nas obras de Paik, o artista buscava frequentemente estimular uma percepção caótica e aleatória de várias imagens competindo constantemente por nossa

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atenção, em clara alusão crítica à televisão. Com o vídeo, abria-se um grande campo para que os artistas pudessem explorar a temporalidade e a saturação visual. Segundo Rush (2006, p. 111):

Se o tempo pode ser manipulado de várias formas dentro do vídeo singlechannel, as possibilidades aumentam dramaticamente em videoinstalações que utilizam diversos monitores ou superfícies de projeção, e quase sempre vários teipes, aumentando em grande número a quantidade de imagens. (RUSH, 2006, p. 111).

Na exposição multimídia Expo 67, ocorrida em 1967 na República Checa, artistas de vários países apresentaram instalações artísticas que exploravam o uso de múltiplas projeções. Apenas para ilustrar, citamos duas: em Diapolyeran, de Emil Radok, a instalação ocorreu em um grande espaço composto por 112 cubos, no interior de cada um dos quais havia um projetor de slides com capacidade para projetar até 160 imagens diferentes. Através de técnicas de automação, as paredes dos cubos se transformavam em imensos panoramas mutantes, que exibiam imagens que tão logo se formavam já se desfaziam em composições abstratas; em outra obra, In the Labyrinth, de Roman Kroitor, a instalação ocorreu em duas salas de exibição: uma com seis projeções simultâneas e outra que apresentava o formato de um teatro em que o público ficava em galerias laterais e assistia a duas projeções, uma das quais via-se no fundo da sala, enquanto a outra era apontada para o chão.67 O uso de recursos eletrônicos e digitais permitiu a expansão tanto das formas de exibição das instalações como das estratégias narrativas, que se intensificaram com o emprego dessas tecnologias. Uma das consequências desse processo foi, segundo Rush (2006), uma aproximação da arte de instalação com o teatro, principalmente no período em que movimentos de vanguarda que atuavam no campo da performance, como o Fluxus, viviam o seu auge. Segundo Mello (2008), no início dos anos 1960 os artistas do Fluxus passaram a gerar manifestações performáticas associando dispositivos tecnológicos ao happening e ao ambiente arquitetônico. Por esses motivos, para Rush (2006), não surpreende o fato de que o “teatral” tenha sido integrado à arte multimídia. Para Mello (2008), o artista Lucio Fontana, que trabalhava com o conceito de espaço em suas obras, ao escrever o Manifesto do Movimento Espacial para a Televisão, em 1952, reivindica uma liberdade sensória para além da tela da pintura, propondo a noção de uma arte espacial que não fosse mais atrelada aos materiais tradicionais e que fosse capaz de comportar 67

Para outros exemplos de experiências com projeções múltiplas, ver Weibel (2005).

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os fluxos informacionais televisivos. Segundo o artista Gary Hill (apud RUSH, 2006), do mesmo modo que outros tipos de arte de instalação extrapolam o processo criativo para além do espaço enclausurado da galeria de arte, a instalação com meios eletrônicos e digitais é o reconhecimento do espaço externo ao monitor. Indo numa direção semelhante à de Gary Hill, Peter Greenway, conhecido cineasta e artista plástico, produz vários de seus trabalhos baseando-se no princípio de projeção da imagem fílmica sobre o espaço. Para Manovich (2006, p. 306, tradução nossa), o desejo de “arrancar o cinema de dentro do cinema”68 de Peter Greenaway o levou a criar uma série de instalações e exposições em museus durante a década de 1990. Em suas instalações, ficava evidente seu esforço em dar a ver o caráter modular e fragmentado inerente à natureza do cinema. Para tanto, Greenaway buscava “transferir” para o espaço os elementos estéticos e narrativos cinematográficos, fosse no ambiente do museu ou em espaços urbanos. Em instalações como as produzidas por Greenway, as imagens e sons dispostos através de estruturas espaciais endereçam ao próprio corpo do participante a tarefa de agrupar e significar os estímulos sensoriais captados dispersamente no ambiente da exposição. Em obras como as realizadas por Oursler, a intenção do artista era “destacar” a imagem televisiva e projetá-la sobre o mundo “real”. Seguindo seus passos, outra artista, a norteamericana Amy Jenkins, projetava imagens sobre objetos comuns, como camisas ou banheiras. Neste ponto, já não estamos mais diante de um processo de inserção de telas audiovisuais em espaços antes ocupados pelas imagens-objeto (o quadro, a escultura), mas, por outro lado, estamos diante de um fenômeno em que o próprio cinema (ou a televisão) são projetados em direção ao espaço que habitamos e aos objetos do cotidiano (uma camisa, uma colher), tal como vemos na obra Tell Me TV (Figura 10) da artista Elizabeth Demaray, em que a projeção de uma figura humana é feita diretamente sobre um travesseiro, gerando uma qualidade de presença da imagem que inquieta a superfície amorfa do objeto cotidiano. Há algo de lúdico, certamente, na equivalência de proporções que geram o encaixe entre a imagem da figura humana e o travesseiro, mas arriscamos afirmar que a força desta obra reside mesmo na afecção que ela produz no corpo de quem a contempla: ao olhar para ela, o espectador se vê diante da imagem de seu próprio corpo, cansado após um dia de trabalho, jogado sobre a cama, deixando-se perder em meio ao fluxo luminoso que emana da tela, deixando-se transformar no familiar amálgama corpo-travesseiro-televisão.

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No original, em espanhol: [...] sacar el cine del cine.

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Figura 10 – Tell me TV

Fonte: V1b3. Disponível em: < http://v1b3.com/wp-content/uploads/2011/12/Demaray.jpg> Acesso em: 30 de novembro de 2013.

Obras como Tell Me TV produzem um distúrbio na superfície dos objetos cotidianos, tornando-os ao mesmo tempo estranhos e familiares (auráticos) aos olhos dos espectadores. O efeito lembra algumas das obras minimalistas de Robert Morris, que frequentemente se empenhava em “inquietar as circunscrições de objetos” (DIDI-HUBERMAN, 2004, p. 166), empregando revestimentos reverberantes ou opalescentes em suas obras, ou, ainda, adicionando elementos sonoros que emanavam do interior de seus objetos cúbicos como estranhas manifestações. “Tudo isso”, segundo Didi-Huberman (idem, ibidem), “tendia a ‘auratizar’ a geometria”, apresentando-a “distante, espaçada, equívoca”. Obras desse tipo, que lançam mão de expedientes audiovisuais sobre objetos concretos, sobretudo através de formas familiares (cubos, utensílios cotidianos etc.), tendem a produzir um distanciamento crítico provocado pela dupla distância que se instaura diante da presença de algo que se mostra, por um lado, conhecido, mas, por outro lado, se constitui como presença desconhecida, inalcançável e inexprimível. Se, por um lado, a videoarte introduziu a imagem de vídeo nas galerias de arte, por outro lado, foi o cinema que primeiro se manifestou a favor da “instalação”, em sentido amplo, através de inúmeras estratégias que promoviam uma expansão do seu campo em direção a outras formas de arte (DUBOIS, 2009). Por esse caminho, vários artistas passaram a trabalhar sobre a imagem cinematográfica, tendo em vista a exploração do seu potencial expositivo. Para Dubois (2009), em uma obra como 24 hours Psycho (Douglas Gordon, 1990), em que o artista se apropria do filme Psicose (Hitchcock, 1960) e o transforma numa projeção de vídeo que dura exatas 24 horas, o poder de exposição das imagens do filme atua no sentido contrário ao potencial de projeção. Enquanto a qualidade de projeção é responsável por acionar diversos mecanismos psicológicos do espectador (a empatia com os

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personagens, o voyeurismo escópico, o devaneio etc.), a qualidade expositiva, por outro lado, “deflagra mecanismos mais analíticos ou teóricos, e muitas vezes autorreflexivos, que levam o espectador a uma postura mais crítica ou desconstrucionista” (DUBOIS, 2009, p. 199). A imagem fílmica, quando trabalhada assim, de modo a potencializar suas qualidades expositivas, se apresenta diante do espectador como uma presença que necessariamente o conduz através de uma experiência analítica em que o próprio ato de ver imagens é interrogado. Assim, o conceito de imagem dialética, como imagem que provoca uma reflexão sobre si mesma, é aqui evocado como definidor do tipo de experiência estética que emerge na relação do espectador com obras como essas, que enfatizam a dimensão expositiva mais do que a projetiva. O olhar busca se aprofundar na imagem, mas rebate em sua superfície e se volta sobre si mesmo, colocando em questão as condições de sua própria fenomenologia. Videoartistas como Bruce Nauman e Vito Acconci também souberam extrair o poder expositivo do vídeo. Em várias de suas obras de videoarte, vemos o artista sozinho em seu estúdio trabalhando ou simplesmente não fazendo nada. “Nada” talvez seja a melhor palavra para definir a visualidade de algumas das obras dos referidos artistas, pois a imagem pouco tem para mostrar. O espectador deposita seu olhar sobre ela, mas ela o rebate de volta, como em um circuito fechado que provoca uma intensidade espaço-temporal cada vez maior. Como diria Dubois (2004), a imagem, neste contexto, assume-se como um dispositivo, um estrito ato performativo que deixa de lado tudo o que é supérfluo para substituir a ideia de representação pelo princípio mesmo da presença. Em Theme Song (1973), de Vito Acconci, vemos o artista deitado em um carpete do que parece ser a sua sala de estar (Figura 11). Ele está muito próximo da câmera, vemos seu rosto ocupando quase metade da tela. Ele acende um cigarro, coloca uma música para tocar (a música é I can’t see your face in my mind [1967], do The Doors). Ele olha para a câmera, ou melhor, olha para nós, espectadores. Ele dá uma tragada no cigarro, cantarola o início da canção, ele está relaxado. Já passamos de um minuto e meio do vídeo. A introdução da música termina e ouvimos Morrison cantar “eu não consigo ver seu rosto em minha mente”. É a deixa para Acconci começar a conversar com o espectador: “É claro que eu não consigo ver seu rosto, eu não tenho a menor ideia de como seu rosto se parece. Você poderia ser qualquer um aí desse lado. Você deve ser alguém olhando pra mim, alguém que quer se aproximar e estar aqui comigo. Eu poderia enroscar meu corpo no seu. Se eu poderia tocar em você quando você chegasse aqui? Claro que sim...”. E assim o vídeo segue por mais de meia hora, sempre com Acconci tentando convencer o espectador de se juntar a ele em sua sala de estar. A força desse vídeo reside justamente no poder dialético que se instaura entre o desejo do

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artista em ter o espectador ao seu lado e a impossibilidade de que o ato se realize. Mesmo que o espectador ceda aos encantos do artista e deseje também se juntar a ele, não há artista para estar junto, tudo se resume a uma imagem que apela com intimidade inquietante ao corpo do espectador. O espectador olha para a imagem, se apropria dela, mas ela olha de volta, não só correspondendo ao olhar, mas manifestando, ela própria, seu desejo de possuir o olhante. Contudo, permanece distante. Figura 11 – Theme Song

Fonte: Creative Loafing. Disponível em: . Acesso em: 13 de dezembro de 2013.

Eis aí o que Dubois (2009) se refere como sendo uma imagem-dispositivo, isto é, uma imagem que apela aos sentidos corpóreos mais do que aos sentidos semióticos, que se institui, portanto, não como imagem que representa alguma coisa, mas como imagem que se mostra, ela própria, como uma presença. Conforme veremos mais adiante, no próximo capítulo, o cinema soube muito bem se aproveitar desse poder de instituir uma força de presença da imagem que captura e aprisiona o olhar do espectador dentro de si, principalmente através de técnicas como o plano-sequência e o movimento de câmera em travelling. Conforme vimos até aqui, uma das tendências que despontam no campo das artes nas últimas décadas indica formas de experimentação que almejam uma apropriação cada vez mais plena e intensa do espaço expositivo. Os artistas do século XX conseguiram transpor os limites do quadro pictórico, expandindo-o para o espaço inteiro da galeria e, dessa maneira, mais do que criar um objeto para o qual os espectadores deveriam olhar, eles conseguiram, literalmente, colocar o espectador dentro do objeto. A força de presença das imagens nas obras de videoinstalação mencionadas parece oscilar entre dois polos: um primeiro, em que a

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imagem do cinema é arrancada do fluxo tradicional da sala escura e passa a estar disposta no espaço da galeria, tornando-o ele próprio um ambiente audiovisual que envolve mas sobretudo confronta o olhar do espectador, como em Tell Me TV (2011), de Elizabeth Demaray; um segundo, em que a imagem mantém sua integridade visual, mas que, entretanto, devido ao seu poder expositivo (DUBOIS, 2009), provoca um adensamento da experiência de recepção – aqui entram as obras de Vito Acconci, Bruce Nauman e Douglas Gordon, que exploram a duração do tempo de exposição do material, seja através da repetição monótona de ações triviais, que vão desde olhar para a câmera insistentemente (Theme Song [1973], de Vito Acconci), ou se balançar no canto de uma sala por uma hora (Boucing in the corner [1968], de Bruce Nauman), até a desaceleração de um conhecido filme para que sua duração atinja o equivalente a um dia inteiro de projeção (24 hours Psycho [1990], de Douglas Gordon). Atualmente, os artistas começam a se deparar com um cenário em que os espaços se apresentam cada vez mais atravessados por múltiplos fluxos de dados informacionais dinâmicos, com os quais é possível interagir e acrescentar novas camadas de conteúdo. Dessa maneira, poderíamos sugerir que, na medida em que as mídias locativas vêm sendo apropriadas pelos artistas para criação de obras que mesclam propriedades do espaço expositivo a camadas de conteúdo informacional que podem ser acessadas e modificadas pelos participantes das obras, tais tecnologias apontam para um novo campo de possibilidades que contribui ainda mais para o fortalecimento de um conceito de obra de arte como contexto ambiental. Como afirma Arantes (2010, p. 77), se nos anos 60 e 70 as práticas de intervenções urbanas já reclamavam pela ruptura com o cubo branco, “hoje a arte se abre para novas zonas de experimentação, ocupando espaços virtuais e/ou cíbridos”. As consequências desse novo cenário para o campo criativo ainda estão por ser descobertas, pois ainda estamos vivendo os primeiros estágios de um processo que, tudo indica, está apenas começando. No entanto, se no espaço fechado das galerias de arte e dos pavilhões de mostras e exposições as possibilidades crescem na medida em que novos recursos tecnológicos se colocam à disposição dos artistas, não podemos, no entanto, negligenciar um outro movimento também associado ao processo de audiovisualização da cultura e que se dá nas ruas, a céu aberto. Trata-se de um processo em que presenciamos um acúmulo cada vez maior de hardwares e softwares de imagens que passam a recobrir as cidades do mundo inteiro, transformando-as em imensas telas urbanas.

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2.3 TELAS URBANAS Como consequência da ampliação do espectro de possibilidades de que passam a dispor para serem produzidas e transmitidas, as imagens parecem estar cada vez mais se “libertando” de seus suportes de origem e ganhando maior autonomia para circularem em todas as direções. Sistemas de compartilhamento peer-to-peer e sites de publicação de conteúdo audiovisual, como o YouTube, alavancaram o processo de disseminação de imagens em nossa cultura. Contudo, especialmente nos últimos anos, um novo capítulo dessa história começou a ser escrito na medida em que propriedades computacionais estão cada vez mais presentes em uma quantidade muito grande de objetos com os quais lidamos diariamente. Uma consequência desse processo é que, para além das telas tradicionais do cinema, da televisão, dos computadores e, mais recentemente, dos dispositivos móveis, atualmente é bastante comum encontrarmos audiovisuais sendo exibidos em inúmeros tipos de interfaces. Nesse cenário, tudo aponta para um estado em que as edificações dos espaços urbanos, as superfícies dos móveis de nossos lares, e mesmo as roupas e acessórios que vestimos, começam a se transformar em interfaces expandidas de dados informacionais de natureza imagética. Não mais restritas às quatro arestas que delimitam as telas de todos os tipos – uma evidente herança do quadro pictórico – as imagens desfrutam agora de uma condição inédita: elas podem, literalmente, deslizar de uma superfície para outra, conforme é possível observar num trecho do vídeo conceitual do projeto TAT Open Innovation69 (Figura 12), em que uma imagem é transferida de um telefone celular para o outro.

Figura 12 – Compartilhamento de imagens entre telefones celulares

Fonte: Tat Innovation. Disponível em: . Acesso em: 06 de junho 2012.

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Disponível em: Acesso em: 06 de junho de 2012.

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Tudo leva a crer que o processo de “digitalização” da experiência contemporânea conduz a um estado em que as imagens técnicas que brotam sem parar em telas de todos os tipos se mostram cada vez mais “soltas” e em movimento. Sem que discordemos dessa ideia, cabe, no entanto, apontar para outra direção – que é acima de tudo complementar, mas de certo modo também inversa à ideia de autonomização e desterritorialização das imagens – em que observamos a tendência que algumas imagens que surgem no cenário da produção estética com mídias móveis assumem ao se acoplarem ao espaço (e ao corpo, não podemos esquecer). Nesse sentido, paradoxalmente e a contrapelo da desterritorialização generalizada, observamos que uma outra consequência do processo de audiovisualização da cultura (MONTAÑO, 2012) aponta para o fato de que as imagens estão se tornando cada vez mais territorializadas e, em certa medida, acopladas e misturadas à materialidade dos lugares e dos corpos humanos. Com efeito, ao se desprenderem das telas convencionais, as imagens passam a dispor de diversas estratégias de “aderência” a quaisquer superfícies, conforme podemos ver nessa demonstração da Tactil Table, da Microsoft (Figura 13), em que a superfície de uma mesa funciona como uma interface de interação e troca de informações entre diferentes tipos de hardwares. Figura 13 – Tactil Table

Fonte: Wikimedia. . Acesso em: 12 de agosto de 2013.

Com as máquinas computacionais vestíveis, as imagens podem agora se acoplar ao corpo humano, contribuindo decisivamente para fomentar ainda mais um quadro de ruptura com o modelo de tela tradicional. Recentemente, a Google lançou um modelo de óculos, o Google Glass (Figura 14), que oferece a possibilidade de apresentar informações gráficas sobrepostas ao campo visual de quem o utiliza. Como mostra o vídeo de lançamento desse

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produto70, o acessório oferece diversas funcionalidades: visualização de informações de previsão do tempo e horário, exibição e resposta de mensagens em redes sociais, realização de chamadas de voz e de vídeo-chamadas, navegação em mapas digitais, dentre outras, sendo que todos os seus comandos são acionados via comandos de voz. Figura 14 – Google Glass

Fonte: TecnoTec. Disponível em: . Acesso em: 12 de agosto de 2013.

Outro exemplo que vai na mesma direção é o protótipo Sixth Sense (Figura 15), projetado por Pranav Mistry, pesquisador indiano da área de computação, que permite projetar imagens sobre qualquer superfície, inclusive sobre o próprio corpo do usuário, dispensando o uso de telas convencionais para realizar tarefas como digitar mensagens de texto, acessar o e-mail, desenhar, escrever, fazer chamadas de telefone, fotografar.

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Até a época em que este texto foi escrito, o óculos da Google ainda não estava sendo comercializado no Brasil. O vídeo de lançamento pode ser visto aqui: Acesso em: 23 de julho de 2013.

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Figura 15 – Sixth Sense

Fonte: Kapitall Wire. Disponível em: Acesso em: 06 em junjo de 2012

Outras formas de projeção e aderência das imagens técnicas a superfícies materiais remetem às estratégias de vinculação de conteúdos informacionais a espacialidades físicas e geográficas. Chegamos aqui ao principal ponto desta seção: em contrapartida aos discursos que afirmam a perda das noções de “território” e “lugar”, que se estabelecem sobretudo em função do caráter telemático e descorporificado das tecnologias digitais de comunicação, por outro lado, não são poucas as iniciativas (sobretudo no campo das artes, mas também em outras áreas) que utilizam esse mesmo repertório de técnicas e tecnologias para proporem o contrário, isto é, para afirmar a identidade dos lugares. Em sintonia com tal perspectiva, Bulhões (2011, p. 101) afirma que:

No domínio da interatividade oferecida pelas novas ferramentas digitais no ciberespaço, os territórios geográficos aparentemente desaparecem, substituídos pelos espaços virtuais. Ao contrário disso, entretanto, várias propostas reafirmam que o indivíduo se encontra em lugares que permanecem interferindo em seu olhar, em suas percepções e em suas relações afetivas.

Proliferem na web iniciativas que buscam afirmar as identidades locais atravessadas por fluxos diversos (econômicos, sociais, afetivos etc.), como em vários projetos de mapeamentos alternativos71 (PARASKEVOPOULOU; CHARITOS; RIZOPOULOS, 2008). Tais projetos buscam novas maneiras de interpretar o entorno urbano, tornando visíveis diversas 71

Um exemplo de projeto de mapeamento alternativo é Love is everywhere. Trata-se de um projeto de cartografia online que possibilita aos visitantes do site registrar em um mapa digital mensagens amorosas. Disponível em: . Acesso em: 13 de dezembro de 2013.

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informações que integram os territórios mas que geralmente não aparecem nos mapas oficiais. Não raro, trata-se de mapeamentos subjetivos e colaborativos que buscam afirmar a necessidade de pensar o mapa não apenas como ferramenta de representação espacial, mas também como meio discursivo que permite aos indivíduos expressarem o que consideram importante nos territórios geográficos. As cartografias alternativas crescem em quantidade na medida em que tecnologias de mapeamento se tornam cada vez mais disponíveis. Por exemplo, o serviço de mapas lançado pela Google em 2005, o Google Maps, permite que usuários possam criar seus próprios mapeamentos. Além disso, é possível utilizar os mapas desse sistema integrando-os a outras tecnologias (mash up) para gerar diversos tipos de aplicações que desconstroem a noção de cartografia tradicional, sugerindo novas formas de representação do espaço. Apesar de reconhecermos que a discussão em torno dos mapeamentos alternativos está intimamente conectada às reflexões que propomos neste texto, nossos interesses de investigação ultrapassam o domínio das formas de representação do espaço propostas pelas cartografias online e avançam em direção aos processos de espacialização que surgem através de operações de acoplagem entre as imagens e as materialidades dos espaços urbanos. Com esse intuito destacamos nesta seção dois tipos de processos em que é possível observar a associação de imagens à materialidade dos espaços urbanos: por um lado, multiplicam-se nas cidades as edificações que apresentam estratégias bastante interessantes de integração de imagens eletrônicas em seus projetos arquitetônicos – pensemos nos painéis dinâmicos de LED que estampam com sua luminosidade frenética as empenas de edifícios nas grandes metrópoles, ou nos ambientes de lojas de departamento dos shopping centers, que misturam displays eletrônicos, espelhos e superfícies brilhantes e translúcidas, gerando a sensação de um espaço visualmente dinâmico; por outro lado, a expansão dos usos operados sobre mídias móveis pauta uma outra tendência em promover a associação de conteúdos informacionais às materialidades e territorialidades dos espaços urbanos – voltaremos a esse ponto mais adiante, por ora começaremos pela primeira das duas tendências apontadas. Inspirado pelas ideias do arquiteto norte-americano Robert Venturi, desenvolvidas ainda nos anos 1960, Manovich (2006b) sugere que o design de espaços eletronicamente ampliados deve ser abordado como um problema de arquitetura. Para Venturi, que defendia o conceito de arquitetura como comunicação, os displays eletrônicos de imagens não poderiam ser tratados simplesmente como acessórios opcionais no processo de elaboração de construções, mas, bem diferente disso, deveriam ocupar o próprio centro da arquitetura das sociedades informatizadas. Em larga medida, suas ideias remetiam a um retorno às origens da arquitetura,

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em que as construções eram ornamentadas com imagens, textos, relevos, texturas e outros recursos decorativos. Em síntese, o que Venturi propunha era a atualização de um certo entendimento sobre a arquitetura como iconografia, isto é, como “superfície de informação” (information surface) (MANOVICH, 2006b, p. 236). Estratégias que procuram fazer com que imagens tecnológicas sejam parte do objeto arquitetônico ocorrem, pelo menos, desde a passagem do século XIX para o século XX, período em que a modernidade elétrica transformou o espaço público. Desde então, arquitetos e artistas envolvidos com as transformações culturais emergentes buscam novas formas de apropriação de recursos tecnológicos de imagens em projetos arquitetônicos. Ao assumirem essa postura, tais estratégias enunciam a superfície de edificações como meio de expressão comunicacional. Nessas condições, a fachada assume uma dupla função: ao mesmo tempo que esconde o que há por detrás, ela revela o que nela é projetado, como uma tela de cinema. (DUARTE; DE MARCHI, 2010). Manovich (2006b, p. 219) se refere a esses ambientes permeados por conteúdos informacionais multimídia como “espaços ampliados” (augmented spaces) – espaços físicos e geográficos densamente preenchidos por dados informacionais, que são “despejados” por diferentes tipos de mídias digitais, desde displays e painéis luminosos anexados às paredes e fachadas de construções urbanas até as telas dos dispositivos móveis utilizados pelas pessoas que circulam nesses locais. O conceito de “espaço ampliado” deriva da expressão, mais antiga, “realidade aumentada”. Para Manovich, as técnicas de realidade aumentada se estabelecem na contramão das técnicas de realidade virtual: enquanto a realidade virtual se caracteriza pela simulação de espaços tridimensionais integralmente “virtuais” que são acessados através de capacetes especiais e outros acessórios que bloqueiam inteiramente os estímulos visuais e sonoros externos à representação projetada por esses dispositivos eletrônicos, a realidade aumentada se integra ao espaço físico exterior, projetando fluxos de informação (sobretudo gráfica) que se sobrepõem como camadas ao campo de visão do usuário.72 Para autores como Duarte e Firmino (2008), os espaços ampliados não deveriam constituir novidade, visto que comparecem ao longo de toda a história da humanidade estratégias artísticas e arquitetônicas – e mesmo religiosas ou metafísicas – que apresentavam no horizonte de seus propósitos estender, senão o espaço em si, a percepção que se tem do

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Segundo Manovich (2006b), as primeiras utilizações da realidade aumentada foram feitas pela empresa Xerox e incluíam a projeção de informações visuais sobre o campo de visão de técnicos que trabalhavam no conserto de impressoras para auxiliá-los nessas atividades.

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espaço. Técnicas seculares de trompe-l’oeil são utilizadas para promover a fusão entre o campo da representação imagética e a estrutura arquitetônica das edificações. O conhecido afresco renascentista de Michelangelo Buonarotti, que recobre o teto da Capela Sistina (Figura 16), realizado no início do século XVI, é um dos casos mais conhecidos de emprego da técnica de trompe-l’oeil. Figura 16 – Afresco da Capela Sistina

Fonte: Mercado Arte. Disponível em: . Acesso em: 16 de agosto de 2013.

Alguns artistas, como o pintor catalão Pere Borrel de Caso, dominavam tão bem a técnica de trompe-l’oeil que, não raro, utilizavam-na como forma de alusão crítica ou lúdica aos cânones da pintura realista, como na pintura intitulada Escapando de la crítica (Figura 17), produzida no século XIX pelo referido pintor, em que o personagem representado parece estar, literalmente, saindo para fora do quadro. Figura 17 – Escapando de la crítica

Fonte: Wikimedia. . Acesso em: 15 de agosto de 2013.

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As técnicas de trompe-l’oeil persistem ainda hoje como artifício utilizado para simulação de volumes em fachadas de prédios, interiores, cenários teatrais ou de apresentações musicais e em diferentes tipos de intervenções urbanas, como as realizadas pelos artistas Joe Hill e Max Lowry (Figura 18). Figura 18 – Técnica de trompe-l’oeil em intervenção urbana

Fonte: Vadeker. . Acesso em: 16 de agosto de 2013.

O que deve ser destacado nas técnicas de trompe-l’oeil é a sua capacidade de conferir à imagem uma qualidade que ultrapassa sua função de representação para adentrar o terreno da ilusão. Mais uma vez, o que estamos destacando é o poder de presença que a imagem pode alcançar, desta vez através de operações estéticas bem diferentes daquelas que vínhamos até agora listando (montagem espacial, videoarte, videoinstalação). Sua força de presença reside, é claro, em seu teor mimético, que comunica-se diretamente com os sentidos do corpo, antes mesmo de se relacionarem com os sentidos semióticos das obras apresentadas – nos surpreendemos com o menino que se projeta para fora do quadro de Pere Borrel de Caso primeiramente devido ao apelo aos sentidos físicos que a pintura oferece, antes mesmo de pensarmos nas questões de significação endereçadas através da obra. No entanto, há que se considerar diferenças em relação às estratégias de ampliação espacial adotadas nas técnicas, por assim dizer, analógicas (como a de trompe-l’oeil) daquelas que marcam a experiência proporcionada por tecnologias eletrônicas e informacionais, como as propostas pelo arquiteto Robert Venturi. Em primeiro lugar, o emprego de tecnologias computacionais em espaços físicos apresenta como principal vantagem a possibilidade de inserção de dados dinâmicos, isto é, conteúdos que podem ser alterados de diferentes

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maneiras e por isso oferecem um amplo repertório de possibilidades de diálogo com o contexto ambiental: uma fachada de prédio recoberta por displays eletrônicos pode ser utilizada tanto para comunicar mensagens publicitárias quanto funcionar como uma tela de cinema ou mesmo como elemento que se integra à arquitetura, como é o caso das projeções audiovisuais sobre edifícios, conhecidas como building projection mapping (Figura 19). Tais práticas tomam a superfície arquitetônica como o suporte para a projeção de imagens e, com isso, atualizam as técnicas de trompe-l’oeil para o contexto urbano contemporâneo, potencializando de forma radical os efeitos de anamorfose possibilitados através da projeção de audiovisuais sobre edificações. Figura 19 – Building projection mapping 555 Kubik

Fonte: Urban Screen. . Acesso em: 06 de junho de 2012

Como consequência desse tipo de intervenção, observamos a emergência de estéticas que mesclam a territorialidade de espaços físicos à efemeridade e leveza que caracterizam a (i)materialidade dessas imagens. Contudo, as alternativas de incorporação de tecnologias informacionais a edificações e demais objetos do mobiliário urbano extrapolam o uso de projetores ou de displays eletrônicos para geração de sequências pré-gravadas de audiovisuais, visto que a relação entre dados informacionais e espacialidades físicas não necessita estar, necessariamente, limitada a fluxos unidirecionais de informação “despejados” no ambiente sem nenhum tipo de feedback. Várias obras artísticas e projetos com tecnologias digitais estabelecem uma relação dialógica com o ambiente através do emprego de tecnologias que capturam dados contextuais, como aquelas empregadas em sistemas de vigilância e monitoramento, que captam e traduzem informações do ambiente em uma extensa gama de imagens (vídeos de câmeras de vigilância, gráficos de controle de temperatura e luminosidade, imagens obtidas através de sinal infravermelho, fotografias capturadas via-satélite). Nem mesmo o corpo humano escapa ao

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crivo dos processos de análise e digitalização, sendo esmiuçado e reconstituído até o nível de detalhamento das mais ínfimas partículas que o constituem – vide, por exemplo, a altíssima definição das imagens geradas pelas atuais técnicas de tomografia 3D. Em conjunto, todas essas tecnologias expressam um certo desejo de penetrar, capturar, mapear e remontar o “real” segundo as lógicas de manipulação e perfectibilidade que caracterizam os ambientes computacionais. Uma relação interessante que pode ser traçada entre esses dois modos de associação de dados informacionais a espacialidades físicas – isto é, ampliação espacial através da “entrega” e monitoramento através da “captura” de dados – é que, em larga medida, todo espaço ampliado é potencialmente também um espaço “monitorado”. De fato, muitas das tecnologias utilizadas para “aumentar” o espaço dependem diretamente dos dados “capturados” desses ambientes. Por exemplo, para que uma pessoa possa receber através de seu telefone celular informações de trajeto sobre o seu deslocamento de um ponto A para um B de uma cidade, ou mesmo para obter informações sobre estabelecimentos comerciais nas redondezas em que ela se encontra localizada, é necessário, por outro lado, que a sua própria localização seja revelada pelo sistema, através do monitoramento de dados de localização gerados pelo mesmo aparelho.73 Intervenções urbanas do tipo laser tag (Figura 20), como as realizadas pelo grupo de artistas Graffiti Research Lab,74 geram grafites tecnologizados (SILVEIRA, 2007) sobre fachadas de edificações com o uso de projetores e canetas laser, indicando mais uma alternativa de como técnicas de projeção de imagens podem transformar o mobiliário urbano em enormes superfícies de enunciação imagética.

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Para Manovich, essa estreita relação entre processos de monitoramento e entrega de conteúdo personalizado e customizado constitui uma importante característica de nossa sociedade altamente tecnologizada e, por isso mesmo, pode ser estendida para outras tantas situações que envolvam o uso de ferramentas digitais de comunicação. Por exemplo, nas ocasiões em que, ao acessarmos sites de compra online, como o da empresa Amazon.com, nos são oferecidas sugestões de produtos que potencialmente estão de acordo com nosso perfil de consumo. Como se sabe, essas sugestões são feitas a partir de informações obtidas através de agentes eletrônicos que monitoram o comportamento dos usuários do site. 74 Disponível em: . Acesso em 06 de junho de 2012.

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Figura 20 – Laser tag Graffiti Research Lab

Fonte: . Acesso em: 06 de junho de 2012.

Do ponto de vista de seu aparato e funcionamento técnico, os projetos de laser tag operam com quatro tipos de equipamentos: projetor de imagens, câmera de vídeo, computador e caneta laser. A função da caneta laser é simplesmente gerar um ponto luminoso que se desloca sobre a fachada do prédio. Na medida em que aquele que manuseia a caneta executa movimentos de deslocamento do laser sobre a superfície da edificação, o grafite tecnológico vai sendo criado. Porém, para que possa funcionar corretamente, o sistema prevê também a presença de uma câmera de vídeo, que cumpre a função de monitorar a ação do laser sobre a fachada do prédio que está sendo grafitado eletronicamente. A câmera de vídeo opera, portanto, dentro da segunda categoria (monitoramento) de ampliação espacial, pois ela extrai informações do ambiente. As imagens obtidas pela câmera são enviadas a um software instalado em um computador conectado a ela. Este, por sua vez, decodifica as informações recebidas e produz sequências de imagens que correspondem ao tracejado do laser na fachada do prédio, e as envia novamente para o equipamento de projeção. Nesse sentido, o projetor atua, portanto, dentro da primeira categoria de fluxos capazes de gerar efeitos de ampliação espacial, pois sua função é adicionar informação visual ao ambiente urbano. Em síntese, o efeito visual (o grafite tecnológico) que presenciamos em uma intervenção como essa é o resultado de processos técnicos que caracterizam, pelo menos, dois tipos de fluxos informacionais que atuam no sentido de promover efeitos de ampliação

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espacial: um fluxo que vai do equipamento de projeção em direção ao espaço e outro que vai do espaço em direção ao equipamento de captura de informação. Com isso, já não estamos mais na situação inicial, em que a ampliação espacial decorria da atuação de imagens analógicas e estáticas (as pinturas em trompe-l’oeil) e das imagens dinâmicas em displays fixados nas fachadas de edifícios (tal como propunha Robert Venturi) e tampouco das projeções mapeadas de ações de intervenções com build projection mapping. Avançamos agora mais um degrau em nosso mapeamento genealógico das estratégias de combinação de imagens às materialidades dos espaços urbanos. Um ponto a ser destacado em relação às estratégias de intervenções urbanas efêmeras, como as de laser tag (e poderíamos incluir aqui a técnica de building projection mapping anteriormente citada), é que em larga medida elas atualizam uma série de práticas artísticas compreendidas pelos trabalhos de site-specific. Termo de tradução difícil para o português, “site-specific” é um adjetivo comumente usado para obras que só fazem sentido no lugar específico em que foram criadas.75 Segundo Bambozzi et al. (2010, p. 222), o termo se popularizou nos anos 1970, a partir de trabalhos instalados em áreas urbanas que combinavam elementos da paisagem “com estruturas fixas inseridas como componentes de tensão ou diálogo” com o entorno. Passadas algumas décadas desde que os primeiros trabalhos de site-specific foram criados, o que vemos hoje é uma atualização desse conceito em projetos de intervenção urbana que buscam promover o diálogo com o entorno espacial, mas que, contudo, o fazem a partir do emprego de tecnologias eletrônicas e computacionais em suas estruturas formais. A adição dessas tecnologias nas obras de site-specific vem gerando novas possibilidades de estratégias de intervenção sobre a paisagem, que tomam como base a articulação entre os dados de informação (gerados pelos equipamentos eletrônicos) com as estruturas físicas do ambiente. Disso decorre que, para além da mera parafernália técnica envolvida nos projetos do grupo de artistas do Graffiti Research Lab, desdobramentos culturais se estabelecem com base nas interações entre os habitantes da cidade e as edificações que servem de suporte para os desenhos com laser. Dessa maneira, a espacialidade e a solidez das estruturas metálicas recobertas de concreto e vidro são apropriadas no interior de ambientes efêmeros, informacionalmente construídos, capazes de atribuir novas funções ao lugar em que a experiência acontece. Um exemplo de obra site-specific que promove articulações entre imagens técnicas e

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Para uma discussão acerca da tradução do termo site-specific para o português, ver Bambozzi (2010).

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arquitetura é D-Tower (Figura 21). Figura 21 – D-Tower

Fonte: ArcSpace. . Acesso em: 16 de agosto de 2013.

Trata-se de uma obra de site-specific, realizada entre os anos 2000 e 2002, que consistia em uma torre de 12 metros de altura, instalada no centro da cidade holandesa de Doetinchem, que mudava de cor conforme as emoções dos habitantes da cidade. A torre era conectada ao banco de dados de um website que poderia ser acessado pelos habitantes da cidade durante o período em que a instalação ocorreu. Aqueles que acessavam o site poderiam responder a um questionário com quatro questões, que variavam a cada dia e que tinham como objetivo “medir” as emoções da cidade. A partir das respostas a perguntas como “você está feliz com seu companheiro(a)?”, “você se sente seguro(a) em sua cidade?”, o sistema do website gerava gráficos que indicavam, através de um mapa da cidade, os locais em que, por exemplo, as pessoas estavam mais felizes, onde as pessoas estavam com medo, dentre outros. Com base nessas informações coletadas através do site, a torre, por sua vez, trocava de cor – as cores correspondiam à seguinte escala: vermelho para o sentimento de amor, azul para felicidade, amarelo para medo e verde para ódio. Do ponto de vista técnico, a D-Tower extrapola os limites da relação dialógica entre fluxos informacionais transmitidos e dados capturados do espaço ao adicionar um novo componente ao sistema que não estava presente em nenhum dos projetos anteriores: a conexão em rede. Portanto, vemos em sua estrutura a acoplagem de, pelo menos, três níveis de camadas tecnológicas: o site, que cumpre a função de “captura” de dados; a torre, que

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opera como uma das interfaces de visualização do processamento desses dados na forma de cores; e a rede, que conecta o site às pessoas e ao monumento. A sobreposição dessas três camadas produz como resultado um meio de representar as dinâmicas de mudanças dos humores e afetos da cidade. Quando a torre muda de cor, aqueles que por ela passam não percebem uma simples variação de ordem cromática, mas sim o desenrolar das emoções da cidade. Dessa maneira, ao tomar o humor da cidade como seu conteúdo, a instalação atua como moldura de enunciação da própria cidade como obra de arte: a cidade, representada nas cores da torre, deixa de ser invisível, e emerge como um pensamento reverberante, crítico, que faz refletir sobre a saúde sentimental dos seus cidadãos. Aquele que olha para a torre percebe muito mais do que seus olhos conseguem abarcar e do que suas mãos conseguem tocar; na dupla distância que se instaura, uma certa imagem da cidade se desloca, deixa uma fenda, fissura pela qual vão se introduzindo e se depositando, pouco a pouco, novos conjuntos de imagens, que chegam como uma presença estranha, humanizada, dialética. Nesse momento, olhar para a torre é olhar para um museu de afetos e lembranças sobre o meio urbano, é enxergar o devir humano, uma subjetividade instável e invisível que perpassa a geografia urbana, em suma, é ver, através da torre, a aura da cidade. Com isso, avançamos mais uma etapa em nossa proposta de mapeamento de formas de acoplagem de imagens com espacialidades urbanas. Nosso primeiro movimento foi passar da imagem estática e analógica (as pinturas em trompe-l’oeil), à imagem dinâmica digital (os displays de Robert Venturi, as projeções mapeadas em fachadas de prédios). Em seguida, enfocamos os fluxos dialógicos que podem ser estabelecidos com o aporte das tecnologias computacionais, tal como acontece na intervenção urbana com laser do grupo Graffiti Research Lab. Por fim, com a D-Tower, estamos diante de mais uma camada tecnológica que se adiciona ao sistema: trata-se, conforme vimos, da conexão da imagem a uma infraestrutura de rede (no caso, a Internet). Projetar imagens dinâmicas sobre o espaço arquitetônico, capturar dados ambientais, conectar o sistema a uma rede. Eis até onde fomos. Resta um último passo antes de chegarmos ao fim de nosso mapeamento. Afora os modos de acoplagem entre imagens e espaços urbanos descritas até aqui – seja através do emprego de displays eletrônicos para recobrir o interior ou o exterior de construções arquitetônicas, seja adotando-se diferentes tipos de estratégias de intervenção urbana –, há também uma outra tendência, esta relacionada à expansão das tecnologias computacionais móveis em nossa cultura, as quais intensificam processos de associação entre conteúdos informacionais imagéticos e espacialidades físicas urbanas. Nos contextos que se produzem a partir da disseminação de mídias móveis em nossa

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cultura, o emprego dos chamados serviços de informação baseados em localização estão se tornando cada vez mais comuns. Tais serviços oferecem informação customizada a partir do posicionamento no espaço geográfico. Entre os sistemas de localização mais conhecidos estão aqueles que operam através da rede GPS. Até alguns anos atrás, os dados da rede GPS só podiam ser acessados através de aparelhos especializados, contudo, nos últimos tempos, diversos hardwares portáteis – smartphones, tablets, videogames, relógios, dentre outros – já trazem essa funcionalidade embarcada em seus sistemas. Como consequência do processo de estandardização do sistema GPS nesses aparelhos, cresce em igual proporção a oferta de aplicações (softwares) que baseiam seus serviços em funções de geolocalização – o aplicativo da rede social Foursquare e o aplicativo de mapas digitais Google Maps são dois exemplos bastante populares. Tais serviços dependem de algum tipo de infraestrutura locativa que calcula a posição dos dispositivos no espaço físico e alimenta o serviço com coordenadas através das quais se pode transmitir informação filtrada geoespacialmente para o usuário. (SHEPARD, 2010). Portanto, a principal característica das tecnologias locativas é o seu potencial de extração de dados contextuais – sobretudo dados de localização, mas também outros tipos dados, como informações sonoras, temperatura, movimentações do corpo. Por conta disso, as tecnologias locativas acabam sendo, por vezes, alvo de discursos que se voltam, por assim dizer, a certos usos obscuros que delas se podem fazer, geralmente associados a propósitos de vigilância e monitoramento. Segundo Bambozzi (2010, p. 67): “em termos técnicos, o locativo é localizável, rastreável, tende a ser intrusivo, serve a operações vigilantes e tem vocações disciplinadoras”, no entanto, contrapõe o autor, para além de seus usos policialescos, apropriações dessas tecnologias com finalidades artísticas, políticas, comerciais, lúdicas e de socialização não param de surgir. Aplicativos para dispositivos móveis que articulam em seu funcionamento tecnologias de realidade aumentada, geolocalização e conexão em rede, como o Layar e o Wikitude (Figura 22), oferecem a possibilidades de mostrar, visualmente, uma variedade impressionante de conteúdos relacionados ao contexto dos lugares em que são acessados pelos seus usuários. Por exemplo, através desses aplicativos, é possível enxergar informações turísticas e de serviços gerais (como a localização de postos de gasolina ou supermercados), vídeos e fotografias produzidos por outras pessoas, dentre outros conteúdos que tenham sido disponibilizados na web e que estejam vinculados a coordenadas espaciais de latitude e longitude.

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Figura 22 – Aplicativo Layar de realidade aumentada

Fonte: Eurodroid. Disponível em: . Acesso em 06 de junho de 2012.

Em conjunto, os fenômenos descritos e analisados ao longo deste capítulo inauguram novos tipos de usos e apropriações sociais dos espaços, ao mesmo tempo que estabelecem novas relações comunicacionais distintas daquelas presentes nos modelos que vigoraram ao longo do século XX. Ainda, os exemplos citados referendam uma cultura audiovisuoespacial (MANOVICH, 2006) que emerge dos diferentes usos e apropriações das ferramentas hoje disponíveis para a produção de imagens, a partir do que se instauram estéticas de conectividades híbridas, em telas ou interfaces inaugurais, sem referência anterior nas mídias. Esse fenômeno demanda outros modos de se pensar as imagens técnicas contemporâneas, por exemplo, em sua articulação com a materialidade e a territorialidade de espaços físicos e geográficos, e também com o corpo humano, do qual é demandado um intenso trabalho de participação (perceptual e afetiva) no processo constitutivo de tais imagens. Ao longo deste capítulo buscamos descrever as relações travadas entre a imagem e o espaço desde um ponto de vista que enfatizou a passagem de um conceito de imagem enquanto modelo de representação da experiência, a um conceito de imagem atuante como agente produtor de experiência. Propusemos, através de uma visada genealógica, demarcar as principais tendências no campo estético que enunciam a imagem como uma superfície que não se deixa penetrar, que rebate o olhar do espectador, que o ataca com sua força, que assume-se como um dispositivo ou como um ato performativo, substituindo a ideia de imagem como sinônimo de “representação” pelo princípio da imagem concebida como presença. Seguindo por esse caminho, exploramos o conceito de montagem espacial (MANOVICH, 2006), no cinema, no vídeo e nas interfaces de computadores. Concluímos que

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a montagem espacial constitui a operação de base das estéticas de conectividades híbridas que marcam a ação das mídias computacionais nas sociedades contemporâneas. Um dos pontos trabalhados nessa etapa do trabalho foi a discussão em torno da relação que se estabelece entre o campo e o fora de campo no contexto das operações de montagem espacial. Segundo Dubois (2004), a operação de montagem espacial seria responsável por uma suposta perda do potencial do fora de campo, visto que no contexto das sobreposições, fusões e incrustações, sobretudo videográficas, virtualmente todas as imagens podem coabitar o mesmo espaço do enquadramento. Ao retomarmos esta discussão no próximo capítulo, colocaremos em pauta também a pertinência da noção de “plano” e questionaremos a adequação do termo “montagem espacial” em contextos em que as imagens se mostram cada vez mais carentes de materialidade. Na segunda seção, buscamos ultrapassar a noção de “tela” como sinônimo de um plano bidimensional limitado por quatro arestas e adentramos o terreno das instalações e videoinstalações para abordar as estratégias de constituição da imagem segundo a noção de imagem-dispositivo (DUBOIS, 2004). Disso depreendemos dois polos através dos quais as imagens atuam sobre os corpos dos espectadores: um primeiro em que a imagem é disposta de modo a ocupar o ambiente do espaço expositivo, envolvendo e confrontando o olhar do espectador; e um segundo, em que a força de presença da imagem advém de sua insistência, geralmente através do uso de técnicas de slow motion e plano-sequência. Por fim, exploramos os processos de acoplagem da imagem com os espaços arquitetônicos urbanos. Das imagens estáticas que ampliam a arquitetura através de efeitos de trompe-l’oeil, às imagens dinâmicas de painéis de LED fixados em fachadas de edifícios, passamos também por intervenções urbanas que instauram fluxos dialógicos com o espaço urbano, cujo passo final em nossa trajetória foi no sentido de apontar a conexão desses sistemas a diferentes tipos de redes – internet e rede de monitoramento via satélite (GPS). Para além da infraestrutura tecnológica que vai se acumulando no decorrer desse percurso evolutivo, o que está em jogo é um redimensionamento do conceito de “lugar”, que passa a ser percebido como um espaço de possibilidades (sobretudo simbólicas) que se expande na medida em que valores estéticos e simbólicos estão associados às camadas técnicas sobrepostas. O espaço, nesse sentido, também deixa de ser pensado em sua dimensão matemática, isto é, como uma intrincada rede formada por cruzamentos entre coordenadas geográficas de latitude e longitude aos quais se pode atribuir a indexação de conteúdos informacionais. Conforme veremos em maior profundidade no próximo capítulo, vários projetos com mídias locativas estabelecem sua força expressiva projetando para um primeiro

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plano os fluxos sociais e afetivos presentes nos lugares. Por essa via, tais dimensões se tornam “quase visíveis”, atingindo certos limiares de visibilidade. Os limiares de visibilidade a que nos referimos são autorizados pelos agenciamentos que se realizam através da sobreposição de camadas técnicas e culturais que se acumulam sobre o espaço em experiências com mídias locativas. Ainda, tal noção está associada a uma espécie de paradoxo ou contradição que marca a estética tecnológica de projetos com mídias locativas, visto que vários deles operam de forma reflexiva sobre grandes escalas e magnitudes (monumentos, prédios, praças, parques, cidades inteiras), ao mesmo tempo que, do ponto de vista formal e material, se apresentam como intervenções quase invisíveis no espaço físico. Como sugere Beiguelman (2010), as estruturas em macroescala produzidas com mídias móveis (pensemos nos projetos de mapeamento que recobrem uma cidade inteira), ainda que não possam existir sem a prerrogativa dos espaços físicos e geográficos, só se realizam, de fato, em territórios imaginários. Para Bambozzi (2010), o fato de se apresentarem assim, tão desprovidos de fisicalidade, justificaria a dependência que criam com o espaço. Trazendo esse pensamento para o âmbito da análise das audiovisualidades de mídias locativas, acrescentaríamos, no entanto, que a suposta “falta” de fisicalidade que acomete as imagens técnicas que se produzem nessas experiências é justamente o seu elemento de maior força expressiva. Isso porque, ao se desprenderem das amarras materiais dos suportes técnicos convencionais (pensemos nas telas de todos os tipos), as imagens emergentes em projetos de arte com mídias locativas demandam um maior engajamento do corpo no processo de percepção e reconhecimento de tais imagens. Inscritas em uma tendência à “desmaterialização” do suporte imagético, as audiovisualidades de mídias locativas raramente produzem imagens “tradicionais” (pictóricas, fotográficas, cinematográficas, eletrônicas, informacionais etc.), pois, conforme a ideia que buscamos defender nesta pesquisa, assumem-se no mais das vezes enquanto vestígios de imagens que tangenciam certos limiares de visibilidade e que por isso mesmo demandam um trabalho intenso do corpo e da memória para se constituírem enquanto “imagens”. Cabe ao espectador de tais imagens desenvolver novas habilidades perceptuais, tendo em vista produzir a síntese de grandes quantidades de fragmentos que se apresentam dispersos pelos espaços físicos e informacionais. Eis a centralidade do corpo no processo de concepção de tais imagens. Passemos, então, ao próximo capítulo.

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3. PAISAGENS AURÁTICAS: IMAGEM-MAPA E MIXAGEM ESPACIAL

Desde que os meios técnicos digitais começaram a ser integrados aos processos de fabricação de imagens, há quase três décadas, o tema da “descorporificação” vem sendo sistematicamente pautado pelos estudos críticos das chamadas novas mídias. Segundo Lenoir (2004), metáforas relacionadas à luz e à visão sempre foram acompanhadas de noções ligadas

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à abstração e à imaterialidade (a história da fotografia e do cinema estão cheias dessas associações), no entanto, numa época em que as imagens computacionais dominam todos os meandros da vida cotidiana, o tema da descorporificação tomou dimensões radicais. Tais imagens já foram acusadas de promoverem o esvanecimento do “Real”, de abolirem o referente, dentre outras associações que tendem a afirmar a “perda do sujeito” em um mundo dominado pelas tecnologias digitais. Jonathan Crary (1992, p. 2, tradução nossa), na abertura de seu livro Techniques of the observer, observa, em tom crítico, que “a maior parte das funções do olho humano historicamente importantes estão sendo suplantadas por práticas em que as imagens visuais não encontram mais referência em um espectador posicionado em um mundo ‘real’ e perceptível”.76 Em larga medida, posicionamentos desse tipo encontram correspondência no imaginário construído pela literatura e pelo cinema de ficção científica, que nunca se cansaram de explorar o tema da descorporificação através das descrições de mundos em que a consciência desfrutaria de uma condição autônoma em relação ao corpo – tal como encontramos em Neuromancer, de Willian Gibson, ou em filmes como Tron (Steven Lisberger, 1982) e Matrix (Andy Wachowski e Lana Wachowski, 1999). Tais concepções que ganham forma tanto no âmbito dos estudos acadêmicos como na indústria de entretenimento apontam para um cenário de crescente humanização das máquinas, a tal ponto que as características mais marcantes que definem nossa existência corporificada já não seriam suficientes para nos diferenciar da “vida” simulada por sistemas cibernéticos. A questão, entretanto, é que a perspectiva crítica adotada por esses autores tende a confundir questões de representação com outras relativas ao processo produtivo das imagens digitais. De fato, enquanto as imagens analógicas aderem ao real devido aos meios físicos e químicos de produção empregados em sua fabricação, as imagens digitais são fabricadas através de camadas de processamento algoritmo computacional sem traço algum da materialidade mimética que tanto caracterizava as imagens produzidas na fotografia, no cinema e na televisão na época anterior à assimilação dos recursos digitais por esses meios. Tal ruptura com os modelos de representação anteriores à era digital não autoriza, entretanto, afirmar que tais imagens já não operam mais no sentido de representar o mundo tal como as imagens analógicas outrora o faziam – como diz Parente (1999, p. 16): “Se, por um lado, a imagem de síntese não reproduz o real fenomênico, por outro lado, não se pode com isso querer deduzir que ela não seria mais da ordem da representação”.

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No original, em inglês: Most of the historically important functions of the human eye are being supplanted by practices in which visual images no longer have any reference to the position of an observer in a “real,” optically perceived world.

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Em contraste com a visão de autores que tendem a afirmar o caráter “autônomo” e “descorporificado” das informações digitais, Mark Hansen (2004) desenvolve, em New Philosophy for New Media, uma teoria fenomenológica baseada nos trabalhos de Walter Benjamin, Henri Bergson e Gilles Deleuze, enfatizando o papel afetivo, proprioceptivo e tátil da experiência de concepção espacial e, por consequência, de todo e qualquer tipo de experiência visual. Para Hansen, a visualidade é moldada a partir desses elementos intrínsecos ao corpo mais do que propriamente a partir do sentido da visão. Apoiado nas teses de Bergson, Hansen defende em sua teorização sobre os meios computacionais a ideia de que o corpo continua a ser a moldura (frame) principal no processo de produção imagética, mesmo quando nos situamos nos novos regimes de produção de imagens digitais. Para ele, as tecnologias alteram profundamente nossa experiência sensorial, afetando drasticamente também o modo como nos relacionamos com o mundo enquanto agentes “corporificados”. As transformações operadas pelos meios tecnológicos nos atingem primeiramente em um nível que é anterior ao da interpretação dos eventos com os quais nosso corpo interage. No domínio das imagens digitais, todos os elementos responsáveis por dar origem a especulações sobre o caráter descorporificado e abstrato das imagens – a automatização, a falta de correlação analógica entre os componentes materiais das imagens digitais e aquilo que elas representam etc. – são para Hansen justamente os fatores que tornam o corpo ainda mais central no processo de constituição dessas imagens. Uma vez que tais imagens carecem de “corporeidade”, é ao corpo que elas demandam a função de restituir-lhes essa falta. Conforme Lenoir (2004, p. xx-xxi, tradução nossa) descreve na introdução de New Philosophy for New Media: “[...] na medida em que a mídia perde a sua especificidade material, o corpo assume uma função proeminente de processador seletivo na criação das imagens”77. Conforme comentávamos em outro momento deste texto, em larga medida, a questão da centralidade do corpo está apoiada no potencial de transformação e manipulação oferecido pelas imagens digitais. Toda imagem digital se oferece como algo a ser alterado, explorado, combinado com outros tipos de elementos, antes mesmo de se oferecer como algo para ser “visto”. Para Hansen, antes de serem “visuais”, muitas imagens produzidas no contexto das mídias digitais se baseiam em uma visualidade que se realiza no interior do corpo, através de afecções hápticas, as quais não possuem relação com o espaço geométrico exterior a ele. Nesse sentido, a produção de imagens via satélite, imagens em infravermelho, dentre outras que assumem pontos de vista impossíveis a um espectador humano, representam um primeiro 77

No original, em inglês: […] as media lose their material specificity, the body takes on a more prominent function as selective processor in the creation of images.

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passo à constituição de uma imagem que não se realiza com referência na visão humana, mas na afecção, isto é, são imagens que são intuídas antes de serem percebidas e por isso demandam que o “espectador” trabalhe afetivamente sobre elas. Hansen atribui a Benjamin (2011), em seu clássico ensaio A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica, o papel de atribuir à arte moderna, que então surgia junto com o cinema na virada do século XIX para o XX, um tipo de estética baseada em efeitos de choque (sobretudo produzidos pela arte dadaísta e pelos procedimentos de montagem cinematográfica) que reafirmavam a experiência afetiva do corpo no processo de emolduramento78 da experiência artística. Para Hansen, no contato com o cinema e com as obras de arte de artistas modernistas, o corpo assumiria então o papel de converter as formas gerais dos objetos de arte em experiências singulares. Hansen (2004, p. 2-3, tradução nossa) então estende o comentário de Benjamin sobre a importância do corpo no processo de emolduramento e produção de experiências singulares atualizando-o para o domínio das estéticas tecnológicas das mídias digitais, afirmando o seu papel para produzir um novo tipo de contato com a “aura” (nos termos de Benjamin), que se realizaria no processo de “atualização de dados informacionais em experiências corporificadas”79. Hansen também parte da célebre formulação de Bergson (1999), na abertura de Matéria e Memória, em que o filósofo descreve o corpo como um centro de indeterminação em meio a um universo de imagens, no qual o próprio corpo seria uma delas – uma imagem, todavia, especial em relação às demais, visto que além de poder ser percebida, a imagem do corpo poderia também ser sentida através da afecção. Segundo a filosofia bergsoniana, o corpo atuaria como uma espécie de filtro que seleciona dentre todas as imagens que circulam ao seu redor aquelas que considera relevante para si, segundo sua necessidade de agir no presente. A principal contribuição de Bergson para o entendimento da centralidade do corpo no processo de mediação oferecido pelas imagens digitais se estabelece em sua proposta de 78

Hansen utiliza o termo “frame” que aqui traduzimos como “emolduramento”. Na verdade, tomamos de empréstimo o termo emolduramento de Kilpp (2003) para referir aos diferentes tipos de agenciamentos sensoriais que têm em comum a propriedade de promover alterações perceptivas em relação ao espaço. Cabe destacar que o modo como o termo é aqui empregado não se faz sem algum tensionamento do sentido original. Para Kilpp, os agenciamentos correspondem aos sentidos ofertados entre emissor e receptor: dizem respeito, portanto, a um processo fundamentalmente comunicacional, que se estabelece nos jogos e nos tensionamentos efetuados entre um agente midiático e o corpo do receptor. Aqui também o termo é usado com sentido semelhante, com a diferença, talvez, de que estamos enfatizando menos o caráter semiológico, isto é, dos sentidos que se produzem no processo comunicacional, do que sua dimensão sensorial. Ou seja, no sentido que aqui o empregamos ele se solidariza mais com os sistemas sensório-motores do corpo do que com o intelecto. Poderíamos, é verdade, forjar outro termo, ou adicionarmos um adjetivo ao conceito original - emolduramento háptico ou tátil, por exemplo - contudo, acreditamos que o conceito de Kilpp ofereça uma envergadura suficientemente ampla para abarcar em sua rede semântica também o sentido que conferimos a ele em nosso estudo. 79 No original em inglês: [...] actualization of data in embodied experience.

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trazer para junto da percepção a importância fundamental exercida tanto pelo afeto quanto pela memória – ambas instâncias tornariam a percepção das imagens algo “impuro”, pois sempre que percebemos uma imagem com nossos sentidos, tal compreensão do que percebemos já se mostra contaminada por nossos afetos e nossas lembranças que vêm de longe se juntarem ao ato perceptivo, formando um amálgama em que não se pode discernir a contribuição de uns e outros. O corpo assim pensado luta sempre para conseguir recortar em um vastíssimo universo de imagens aquelas que lhes são interessantes para agir no presente, ignorando todo o resto. Hansen deriva o termo “afetividade” da fenomenologia bergsoniana, referindo-se à capacidade do corpo humano em sentir-se para além de si mesmo, de modo a “empregar sua força sensório-motora para criar o imprevisível, o experimental e o novo”80 (HANSEN, 2004, p. 6-7, tradução nossa). A afetividade é, segundo Hansen, incentivada no contato com imagens digitais, visto que tais imagens tornam explícita a necessidade do corpo de agir sobre elas. Contudo, tal qualidade de incentivar a ação do corpo sobre a imagem não é única da imagem digital. A bem da verdade, segundo a perspectiva fenomenológica bergsoniana, toda e qualquer imagem, incluindo-se aí, evidentemente, aquelas que integram o regime das imagens “estáticas”, “analógicas e “não-interativas” (fotografia, pintura etc.), incitam o corpo a agir sobre elas. A questão é que só agora, nos regimes digitais de produção de imagens, tal propriedade pode ser compreendida com mais clareza. Para Manovich (2006), as imagens, hoje, se mostram muito mais como imagensinterface ou imagens-instrumento do que propriamente como imagens “tradicionais”. Nesse sentido, o processo de digitalização conduz à integração profunda entre o corpo do usuário e as imagens, ou seja, para além de ser simplesmente “interativa” ou de operar como uma interface que permite controlar outras imagens, a imagem digital se funda em uma dependência da afetividade (HANSEN, 2004) para se constituir enquanto imagem. O corpo, no contexto da digitalização cultural que toma conta de nossa sociedade contemporânea, assume em conjunto com os diversos aparatos técnicos que traduzem dados informacionais em informações perceptíveis a tarefa de dar forma – ou in-formar (in-form) (HANSEN, 2004) – a informação que lhe chega através das imagens. Tal cenário aponta para uma mudança de paradigma em que passamos do entendimento da imagem como um “objeto” autossuficiente para uma ideia de que a imagem

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No original, em inglês: […] to deploy its sensorimotor power to create the unpredictable.

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depende de processos de afecção produzidos corporalmente. Conforme Hansen (2004, p. 1213, tradução nossa):

Quando o corpo age para enquadrar a informação digital – ou, como digo, forjar a imagem digital – o que ele enquadra é de fato a si mesmo: sua própria sensação de afetividade experimentada ao entrar em contato com o digital. Nesse sentido, o ato de enquadramento da informação pode ser referido como “dar corpo” a dados digitais – transformar algo que não está enquadrado, descorporificado e sem forma em informação incorporada imbuída com significado (humano).81

Ao demandarem do corpo certas atividades de interação e de movimentação, os projetos de audiovisual locativo analisados nesta pesquisa geram ambientes para que as informações emolduradas pelo corpo sejam intuídas como imagens. A nosso ver, o engajamento corporal demandado por tais imagens dá continuidade ao projeto de dissolução de uma certa compreensão da imagem vinculada a noções como tela, quadro, superfície etc. Para Hansen (2004) – assim como para Manovich (passim), conforme vimos – os dados informacionais se tornam perceptíveis na forma de imagens (sobretudo imagens visuais, mas também auditivas e táteis), contudo, tais imagens se mostram instáveis e carecem de materialidade, demandando do corpo um trabalho maior para conferir-lhes forma. Esta seria a tese central da referida obra de Mark Hansen e por esse caminho propomos seguir em nossa investigação, com a diferença fundamental de que, diferentemente do autor, que centrou suas análises sobre projetos de artistas que trabalham sobretudo com realidade virtual, videoinstalação e outros tipos de dispositivos imersivos, estabelecemos nosso estudo nas relações entre corpo e espaço no contexto da produção estética com dispositivos móveis em experiências que atualizam o audiovisual sob formatos pouco explorados até então. Dessa maneira, colocamos em perspectiva noções e conceitos oriundos do campo de estudos da imagem, tais como a ideia de quadro (e enquadramento), campo (e fora de campo), composição, montagem, dentre outras. Este e o próximo capítulo constituem, portanto, uma tentativa de análise e sistematização de nossas observações sobre os audiovisuais locativos e também expressam um esforço para formular alguns conceitos que nos auxiliem a melhor compreender a visualidade emergente em audiovisualidades de mídias locativas. Em síntese, o percurso que 81

No original, em inglês: When the body acts to enframe digital information—or, as I put it, to forge the digital image—what it frames is in effect itself: its own affectively experienced sensation of coming into contact with the digital. In this way, the act of enframing information can be said to “give body” to digital data—to transform something that is unframed, disembodied, and formless into concrete embodied information intrinsically imbued with (human) meaning.

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realizaremos neste capítulo vai da imagem ao corpo. Partimos de uma noção de imagem e corpo como instâncias separadas, sendo a imagem algo dotado de materialidade que se apresenta ao corpo através do sentido da visão, para, em seguida, começarmos a implodir essa separação. Passamos então a uma concepção da imagem não como algo que se dá a ver, mas que fundamentalmente atua como um operador da vista, um instrumento que se integra ao corpo desde o seu interior, armazenando-se em sua memória e impregnando com sua substância a percepção da matéria; atuando, portanto, como um filtro que transforma e orienta o movimento do olhar sobre outras imagens. Comecemos, então, pela imagem, em sua configuração mais básica: uma imagem enquadrada, que se oferece ao corpo como um objeto a ser percebido sobretudo através do sentido da visão.

3.1

CAMPO, FORA DE CAMPO E MONTAGEM ESPACIAL Qual a natureza da imagem que emerge no contexto das audiovisualidades de mídias

locativas? Como ela opera? A quais sistemas de imagens ela se solidariza e a que outros ela se opõe? A quais operações técnicas, estéticas e culturais ela se mostra vinculada? Quais as relações que estabelece com o espaço e com o corpo? Tomemos, em primeiro lugar, a imagem em sua configuração mais básica, mais elementar: uma imagem íntegra, que ocupa a dimensão toda do enquadramento e que se apresenta fixada a um suporte retangular ao qual chamamos genericamente de “tela” ou “interface”. Tal tipo de imagem encontramos em todos os projetos que integram a categoria de observáveis a que decidimos chamar “cinema de caminhada”, que, conforme já foi descrito na introdução deste relatório de pesquisa, toma como fundamento de sua estética a disposição virtual de fragmentos de conteúdo audiovisual sobre o território geográfico, os quais podem ser acessados por intermédio de um dispositivo móvel com funcionalidades de geolocalização e cujas imagens, quando exibidas na tela do aparelho, não se diferem das de um vídeo comum. Ao analisarmos os vídeos de divulgação de aplicativos de cinema de caminhada encontramos uma forma recorrente de enunciação do modo como as imagens se apresentam dispostas nas telas dos dispositivos móveis de usuários que interagem com tais aplicações. A imagem abaixo (Figura 23) é uma montagem com fotogramas capturados a partir de três vídeos de divulgação de aplicativos para dispositivos móveis de cinema de caminhada: são eles Augmented Reality Cinema (fotograma 1), The Witness (fotograma 2), Walking Cinema: Murder on Beacon Hill (fotograma 3).

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Figura 23 – Fotogramas de vídeos de divulgação de aplicativos de cinema de caminhada

Fonte: elaborado pelo autor a partir dos vídeos Augmented Reality Cinema, The Witness e Walking Cinema: Murder on Beacon Hill.

Tomando como base essa figura, é possível observar que em todos os três fotogramas é apresentada a mesma estrutura de enquadramento: um plano detalhe da tela de um dispositivo móvel,82 na qual vemos uma cena cujo cenário coincide parcialmente com o lugar em que o usuário do aparelho está situado fisicamente, pois o quadro revela, ao fundo, o ambiente em que a tomada foi obtida e, se compararmos as duas vistas, aparentemente se trata da mesma paisagem representada na tela do aparelho. Então, para que comecemos uma análise sobre as imagens dos audiovisuais locativos, teremos de levar em consideração esta operação, aparentemente simples, de “sobreposição” da imagem exibida na tela do dispositivo móvel e a paisagem que se desvela ao fundo. É sobre essa tensão que se efetua nas bordas da imagem, entre o que é mostrado dentro do enquadramento e o ambiente em que a experiência toma forma, que iremos tratar a partir de agora. Sabemos por Aumont (2004) que as bordas do quadro pictórico (sua moldura) cumprem historicamente o duplo papel de separar a imagem enquadrada do ambiente em que ela encontra-se inserida, mobilizá-la, portanto, para que possa ser levada a outros ambientes, e também de definir os limites de um campo visual sobre o qual o olhar deve ser depositado. Ambas as funções estão presentes nas imagens exibidas em telas de telefones celulares e outros dispositivos móveis contemporâneos: poderíamos dizer que, de modo geral, os limites da moldura-tela dos dispositivos móveis cumpre tanto o papel de mobilização da imagem, que pode ser literalmente carregada para qualquer lugar, quanto de demarcação de um campo de visão para o qual o olhar do usuário é “puxado para dentro”. Mas a mesma constatação valeria também para as imagens de audiovisuais locativos que acabamos de exibir? Estaria a tela a serviço de uma visualidade móvel que permite ao espectador consumir imagens em qualquer

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Curiosamente, trata-se, também, do mesmo modelo de dispositivo móvel nos três exemplos. Coincidência ou não, especulamos que este fato seja sintomático do momento atual vivido pela indústria de smartphones, em que a fabricante Apple, que revolucionou este mercado há alguns anos, continua exercendo forte influência sobre artistas e desenvolvedores de software para dispositivos móveis.

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lugar? Seria sua função operar um recorte espacial sobre o qual o espectador depositaria toda a sua atenção, ignorando tanto quanto seja possível o entorno em que se encontra situado? Para a primeira das duas perguntas nossa resposta é, em princípio, positiva: tal como outras imagens exibidas em telas de telefones celulares, as imagens dos aplicativos de cinema de caminhada, bem como de outras atualizações de audiovisualidades locativas, se caracterizam por permitirem a mobilidade do corpo do observador. Mas uma ressalva fundamental deve ser feita. Ao contrário de outras imagens, que podem ser assistidas em quaisquer lugares, as imagens dos aplicativos de cinema de caminhada demandam explicitamente que o espectador se posicione em pontos específicos do espaço. Mesmo que em alguns casos os desenvolvedores deixem propositalmente livre o acesso aos conteúdos de modo que o usuário não tenha de deslocar-se até um ponto geográfico correspondente para acessá-los, assume-se que o modo “correto” para se conseguir desfrutar plenamente da experiência se dê através do deslocamento a tais lugares – a seguir, na figura 24, mostramos uma tela de abertura do aplicativo de cinema de caminhada Walking Cinema: Murder on Beacon Hill em que um aviso sinaliza justamente isso que acabamos de dizer, isto é, que a experiência é melhor desfrutada no lugar indicado. Figura 24 – Aviso em Walking Cinema: Murder on Beacon Hill

Fonte: Capturado pelo autor a partir do aplicativo Walking Cinema: Murder on Beacon Hill, disponível para download em: Acesso em: 27 de novembro de 2013.

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Então nos colocamos diante de um deslocamento do valor simbólico atribuído à mobilidade do dispositivo, que passa de uma enunciação do tipo “acesso móvel e em qualquer lugar” para algo como “acesso móvel mas em lugares específicos”. Conforme veremos mais adiante neste capítulo, em outros casos de audiovisualidades locativas, como nas anotações arqueológicas que fazem uso de técnicas de realidade aumentada móvel, poderíamos adicionar ainda a necessidade de um tipo também específico de posicionamento assumido pelo corpo do usuário (segurando o dispositivo a uma certa altura e ângulo, apontando-o para um determinado ponto do espaço) – e em outros ainda, como em A Machine to See With, a experiência é subordinada a fatores temporais, como a condição de que o projeto só aconteça durante um período de tempo predeterminado (durante um festival de cinema, por exemplo) ou que tenha as suas qualidades modificadas em função de fatores como a data ou a hora do dia em que acontece. Trata-se, portanto, de um tipo de imagem que impõe várias restrições e limitadores para que possa ser efetivamente percebida, o que as difere, pelo menos nesse sentido, de outras imagens de audiovisuais exibidos em telas de telefones celulares. Voltaremos a esse ponto mais adiante, mas por enquanto é suficiente começarmos a destacar aqui uma vocação dessas imagens para funcionarem como operadores de vistas, segundo regras e critérios de enquadramento da percepção bastante específicos. Passemos para a segunda questão, que interroga sobre a função da tela enquanto moldura que recorta uma porção do espaço e direciona o olhar do espectador para dentro do quadro. Por um lado, a moldura-tela parece, de fato, forçar o olhar do participante para “dentro” da interface; por outro lado, no entanto, a relação de continuidade que se estabelece entre o conteúdo exibido na interface e os estímulos visuais e sonoros do ambiente geram um apelo para que o campo perceptivo se expanda para fora dos limites do quadro da imagem. O espectador segue a imagem até o limite do quadro e, quando o quadro termina, ele ainda pode deslizar o olhar sobre a paisagem ao redor que, em tese, coincide em muitos aspectos com a representação mostrada na tela do aparelho. Nesse sentido, a oscilação entre a atenção que se atém aos detalhes (por exemplo, as informações apresentadas na tela do dispositivo móvel) e a atenção que se efetua em relação ao entorno espacial (a paisagem ao fundo), tende a produzir no corpo do participante uma síntese entre as imagens percebidas diretamente do ambiente em que a experiência se realiza (a paisagem ao fundo, o ruído do tráfego, os edifícios) e as imagens percebidas através de estímulos visuais e sonoros tecnicamente mediados pelos dispositivos móveis. Trata-se, portanto, de uma relação entre o campo e o fora de campo que se mostra diferente daquela que se efetua geralmente quando assistimos a, por exemplo, um vídeo qualquer no dispositivo

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móvel, momento em que tentamos nos concentrar em seu conteúdo e ignorar todo o resto ao redor. Mas tal diferença não reside propriamente no fato de que as imagens que aparecem na tela do dispositivo apontam para “fora” dela, isso o cinema dos primeiros tempos (e antes dele a fotografia e a pintura) já fazia e até com mais qualidade do que nos casos analisados. A diferença reside, portanto, no fato de que o termo “apontar”, nas relações entre o campo e o fora de campo nas aplicações de cinema de caminhada, sinaliza para uma operação de conectividade técnica e conceitual entre imagens de diferentes naturezas – neste caso, entre imagens técnicas e as imagens da paisagem. Eis aqui, novamente, a tendência que já vínhamos mapeando quando tratávamos das relações entre imagem e espaço no contexto do cinema e do vídeo, nas pinturas e intervenções urbanas em tromp-l’oeil e em aplicações de realidade aumentada móvel para dispositivos móveis. No capítulo anterior, relacionávamos tais operações a uma expansão do conceito de montagem espacial, que se efetua sobretudo no cinema e em vídeo, mas, conforme vimos, também se faz presente em outras formas culturais. Nesse sentido, é produtivo retomarmos aqui a noção de montagem espacial para analisarmos as relações que se instituem entre as porções do espaço visíveis (o campo) e não-visíveis (o fora de campo) no quadro audiovisual em experiências com meios locativos. Dizíamos antes que na cultura dos meios computacionais a montagem espacial se estabelece como procedimento hegemônico, estando presente em praticamente todas as interfaces de produtos digitais (programas de computador, aplicações para telefones celulares, websites, jogos de videogame etc.). Dizíamos também que a estética de conectividades híbridas que se institui através da montagem espacial é sintomática de uma época em que se tornou comum usarmos os meios computacionais para a realização de múltiplas tarefas, o que só se torna viável com a fragmentação da tela do computador em várias outras subtelas interdependentes, que misturam estéticas e funcionalidades muito diferentes entre si. Por esse caminho, e segundo Manovich (2006), as formas de arranjo de informação baseadas em técnicas de montagem espacial estariam conduzindo a uma visualidade orientada pela relação ecológica entre os sentidos da visão, da audição e aqueles relacionados ao tato (cinestesia, propriocepção, senso de localização), ou seja, uma cultura audiovisuoespacial dos meios de comunicação em que às dimensões visuais e sonoras dos meios tradicionais soma-se agora a dimensão háptica. Assim como em quaisquer outros meios computacionais, nos meios locativos a montagem espacial é também a forma mais comum de organização de conteúdos informacionais, estando presente, por exemplo, nas interfaces de aplicativos para telefones

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celulares. Contudo, não nos interessam tanto aqui as formas como são arranjados os menus de navegação dos aplicativos de audiovisuais locativos – no máximo, podem nos interessar as formas de representação de mapas digitais, mas não trataremos desse assunto neste momento. A questão aqui endereçada interroga, em primeiro lugar, em quais aspectos as técnicas de montagem espacial empregadas, por exemplo, em meios audiovisuais como o cinema e o vídeo (mas também nas formas de montagem presentes em websites e em outras formas culturais dos meios computacionais) se assemelham com as dos audiovisuais locativos? E em quais outros aspectos elas se diferem? Dizíamos no capítulo anterior que a montagem espacial se caracteriza pela junção de elementos imagéticos no interior de um mesmo quadro através de técnicas de justaposição, sobreposição, fusão, incrustação, dentre outras, de modo que a mescla entre as imagens se dá até um ponto em que o encaixe das imagens não seja perfeito, deixando entrever as descontinuidades entre elas (diferentemente de uma montagem realista, que busca ocultar as diferenças). Contudo, se observarmos a tela dos dispositivos móveis representados em cada um dos três fotogramas acima reunidos, perceberemos que em todos eles a imagem está disposta em sua integridade, não havendo nenhum tipo de divisão, fragmentação, sobreposição ou outra técnica que deixe explícita a junção de elementos imagéticos estrangeiros no interior do quadro. Portanto, em princípio, não poderíamos atribuir à constituição dessas imagens a presença de operações de montagem espacial, pelo menos não no mesmo sentido que vínhamos empregando esse termo no âmbito do cinema e do vídeo. Então, por que insistimos na afirmação de que há, nessas imagens, “algo” que nos incentiva a associá-las às técnicas de montagem espacial? Desconfiamos que a montagem espacial não ocorre na tela do telefone celular, mas com a imagem que se mostra em seu interior sobreposta à imagem da paisagem que se dá a ver ao fundo. Trata-se, portanto de uma montagem que, neste caso, não é de fato percebida, ainda que possa ser intuída – é, portanto, uma imagem virtual. Em outros termos, se tomarmos o conjunto composto tanto pela imagem sendo exibida pelo dispositivo e o contexto em que o usuário encontra-se localizado, perceberemos que, aí sim, há algum nível de sobreposição de camadas imagéticas: uma primeira imagem mais à frente (ou mais próxima à câmera) sendo exibida na tela do dispositivo móvel e, mais atrás (ou mais distante da câmera), a própria paisagem aparece como o fundo sobre o qual a primeira se projeta. Temos então duas imagens unidas por um procedimento de sobreposição em que, mesmo assim, é perfeitamente possível perceber uma em separado da outra. Mas, mesmo neste caso, poderíamos afirmar que se trata de uma operação de montagem espacial? Não

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deveriam as duas imagens estar tecnicamente sobrepostas no interior da mesma tela? Poderíamos assumir que a paisagem é uma “imagem” sobre a qual outra “imagem” (aquela estampada na tela do telefone celular) está assentada? Se é certo que em todos os casos em que há a presença de operações de montagem espacial há sempre a presença de um meio – um quadro, a fachada de um prédio, a tela da televisão, a tela do computador – responsável por servir de suporte e por estabelecer os limites da dimensão espacial em que as relações que se efetuam entre os diferentes elementos imagéticos vão acontecer, então qual seria esse “meio” nos casos de cinema locativo referidos? Nossa tendência é afirmar que é a própria tela do telefone celular que serve como suporte, mas nesse caso caímos novamente no problema que tentávamos escapar há pouco: a imagem estampada na tela do aparelho se mostra íntegra e, portanto, não poderia haver montagem espacial nela. Então, para não tomarmos mais tempo nesta questão, vamos adotar aqui uma estratégia que, provisoriamente, servirá para conseguirmos ir adiante. Consideraremos que, se não há montagem espacial propriamente dita nas imagens exibidas nas telas dos telefones celulares, então é razoável afirmar que há, pelo menos, um efeito de montagem espacial que se realiza na medida em que ao olharmos alternadamente entre a imagem do telefone celular e a paisagem ao fundo, percebemos aí uma relação de conexão entre as duas imagens – relação esta que é, em princípio, de semelhança: elas de fato se parecem, ainda que não totalmente, pois em cada caso há elementos que as diferem uma da outra. Mas para que essa estratégia por nós empregada possa funcionar corretamente é necessário que alguém estabeleça essa relação entre o que é mostrado em cada uma das duas imagens. O que há de novo nessa equação? Trata-se da presença de um “sujeito”, essa entidade capaz de perceber a relação entre as imagens que se oferecem ao seu olhar e dela depreender um efeito de montagem espacial. Portanto, já não estamos mais na situação de início, pois, se é fato que a imagem técnica do dispositivo móvel atua como um operador da vista, remetendo o olhar para o exterior da tela, é ainda, em última instância, o sujeito quem irá agenciar a união entre as duas pontas soltas que estávamos tentando amarrar. Agora que temos os três elementos de nosso dispositivo – paisagem, imagem técnica e sujeito – poderemos ir adiante em nossas análises sobre as relações que se estabelecem entre a imagem na tela do telefone celular e o ambiente de recepção. Para tratarmos dessa questão será necessário ampliar um pouco mais o nosso repertório sobre os jogos de sentido que se estabelecem entre a dimensão visível no quadro (o campo) e a dimensão invisível (o fora de campo). Não vamos nos ater aos detalhes de um extenso

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debate que já foi abordado em profundidade por diversos autores. Desse tema nos interessa somente o indispensável para começarmos, por nós mesmos, a avançar em direção às relações do que se passa no “interior” e no “exterior” da tela de dispositivos móveis em experiências com audiovisuais locativos. Para Aumont (2004), o quadro (fílmico, mas, sobretudo, o quadro pictorial) designa o limite de um campo. É o quadro que conflagra e centraliza a representação, de modo a guiar o olhar (e a imaginação). Mas acima de tudo o quadro cumpre a função de marcar uma separação entre dois mundos, aquele que ele representa em seu interior e o outro do qual faz parte. Para Bazin (1991), o quadro clássico, o quadro pictórico, dispõe de um elemento que, historicamente, estabelece através de sua materialidade a separação, visual e simbólica, entre o espaço de representação e o espaço exterior: trata-se da moldura pictórica.

Como o teatro pelo proscênio e pela arquitetura cênica, a pintura opõe-se à própria realidade e sobretudo à realidade que representa, pela moldura do quadro que a cerca. Com efeito, não poderíamos ver na moldura do quadro apenas uma função decorativa ou retórica. A valorização da composição do quadro é somente uma consequência secundária. Bem mais essencial, a moldura tem por missão, se não criar, pelo menos salientar a heterogeneidade do microcosmo pictural e do macrocosmo natural no qual o quadro vem se inserir. [...] Em outros termos, a moldura do quadro constitui uma zona de desorientação do espaço. Ao da natureza e de nossa experiência ativa que orla seus limites externos, ele opõe o espaço orientado do lado de dentro, o espaço contemplativo e somente aberto para o interior do quadro. (BAZIN, 1991, p. 173).

O quadro enquanto limitador do campo visual é composto, no entanto, por inúmeras imagens (personagens, objetos cênicos etc.) que apresentam-se dispostas em seu interior, variando em termos de uma maior saturação ou rarefação conforme a quantidade e qualidade desses elementos. Algumas dessas imagens determinam, inclusive, outros “quadros” no interior de um quadro – é o caso de janelas, portas, espelhos. Conforme os encaixes que se estabelecem entre os elementos confinados no interior de um quadro, o conjunto todo se modifica. A tela, enquanto quadro dos quadros, possui essa capacidade de conferir uma mesma medida a coisas que não possuem afinidade: enquadra-se um rosto humano ou uma paisagem na tela, não importa, qualquer elemento visível pode ser “traduzido” em enquadramento. Contudo, se, por um lado, o quadro, representado sobretudo pela moldura que o cerca, estabelece um dispositivo que força o olhar para o seu interior – uma força centrípeta segundo a tese de Bazin –, em contrapartida é também ele que institui um espaço exterior, um espaço

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fora de campo. Nesse sentido, se a moldura é o mecanismo que busca conflagrar o olhar, por outro lado a tela, em especial a tela de cinema, opera o prolongamento do espaço para além do que é mostrado em seu interior – uma força centrífuga, que complementa o jogo de tensões entre o espaço de representação e seu exterior. É no cinema, mais que na pintura, que os trânsitos entre o dentro e o fora de campo se estabelecem com maior intensidade. Para Aumont (2004, p. 40), o fora de campo institui, virtualmente, um espaço de “reserva ficcional”, principalmente no cinema, no qual se pode buscar, sempre que necessário, novo substrato de criatividade. Se o campo é a dimensão e a medida espaciais do enquadramento, o fora de campo é sua medida temporal, e não apenas de maneira figurada: é no tempo que se manifestam os efeitos do fora de campo. O fora de campo como lugar do potencial, do virtual, mas também do desaparecimento e do esvaecimento: lugar do futuro e do passado, bem antes de ser o do presente. (AUMONT, 2004, p. 40).

Sabemos por Burch (1992) que o fora de campo compreende, pelo menos, seis dimensões espaciais: para além daquelas que prolongam o campo nas direções das quatro margens do quadro (superior, inferior e as duas laterais), haveria também o espaço situado para mais adiante do que o limite da profundidade de campo imposta pelo cenário permite enxergar (por exemplo, aquele situado atrás de uma porta ou de uma janela) e ainda o espaço que se situa em direção oposta à do enquadramento, isto é, o seu contracampo, atrás de onde estaria posicionada a câmera. O cinema, mais do que qualquer outra arte, soube tirar todo o tipo de vantagens desses espaços ocultos, os quais já foram extensamente sistematizados por diversos autores.83 Um personagem que entra ou que sai do campo – seja pelas laterais do quadro, pelas bordas superior e inferior (subindo ou descendo uma escada), seja ainda por uma porta ao fundo do cenário – força a imaginação do espectador a responder às perguntas “de onde ele veio?” ou “para onde ele foi?”. Para Burch (1992), é sobretudo o espaço vazio que antecipa a entrada ou que sucede a saída do personagem de quadro o responsável por chamar a atenção para o que se passa no fora de campo, visto que nessas situações em que o personagem ainda não entrou ou já saiu de cena o olhar não tem onde se “agarrar”.

Evidentemente, uma saída que deixa um campo vazio chama o nosso espírito para uma porção determinada do espaço fora de campo, enquanto que um 83

A esse respeito ver, por exemplo, Praxis do Cinema, de Nöel Burch (1991), especialmente o subcapítulo intitulado “Nana” ou os dois espaços.

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plano que começa por um campo vazio nem sempre nos permite saber de que lado vai surgir a nossa personagem, ou sequer se alguma irá surgir [...]. (BURCH, 1992, p. 29).

Portanto, o espaço vazio, ao estabelecer a ausência de algo ou alguém no quadro, se instaura como uma zona de indeterminação que conduz a imaginação à duração mesma do filme, forçando-a a criar e recriar, incessantemente, todos os jogos de possibilidades que podem vir aí se instaurar como o suplemento espacial que antecipa ou que sucede uma presença em quadro. Ainda que o olho permaneça focado no espaço representado e contido no interior do enquadramento, a imaginação transcende esse espaço em busca de outros. É sabendo disso que muitos diretores de cinema puderam exercitar um sem número de operações que brincam e dialogam com esse inevitável impulso mental que acomete o espectador sempre que incitado a buscar uma resposta no espaço “off” do enquadramento. Mas vamos deixar um pouco de lado o cinema (o vídeo e a pintura) para então passarmos a analisar o que acontece nas relações entre o campo e o fora de campo em audiovisuais locativos. Retomamos aqui a figura há pouco referida, em que estão dispostos três fotogramas de vídeos de divulgação de aplicações de cinema locativo. De modo geral, ao observarmos alternadamente o que se passa no interior do quadro (representado pelos limites impostos pelas bordas da tela do telefone celular) e o seu exterior, podemos afirmar que há entre os dois espaços uma contaminação de sentidos, visto que, conforme já apontamos, é possível estabelecer correspondências visuais entre um e outro. No entanto, ao contrário do que se possa imaginar, na maior parte das cenas desses vídeos o que se passa dentro do quadro é uma ação centralizada, autossuficiente, que não joga com o fora de quadro: a ação se desenvolve até o ponto em que é cortada sem remissões explícitas ao fora de quadro, a não ser em um ou em outro caso. Entretanto, em alguns momentos, a tomada se desenrola de modo a operar algum tipo de tensionamento em relação às bordas do quadro. É nesses momentos que o fora de campo é acionado através de uma força centrífuga que joga a imaginação para o espaço exterior ao que está sendo mostrado em quadro. Vejamos como isso acontece. Invariavelmente, todos os vídeos de divulgação de projetos de cinema locativo encenam, com atores no papel de usuários de smartphones, o consumo de filmes nesse formato. A fórmula é a mesma em todos os casos: enquanto algumas cenas mostram o usuário do dispositivo móvel caminhando por cenários urbanos enquanto acessa trechos de vídeos geolocalizados, outras apresentam, não raro com a ajuda de recursos verbais (através de locução em voice over ou de informações escritas na tela), o enredo da história. Assim sucede

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no vídeo de divulgação de Nine Lives, em que vemos uma mulher jovem encenando a experiência de assistir ao filme (Figura 25).

Figura 25 – Sequência de fotogramas do vídeo de divulgação de Nine Lives

Fonte: elaborado pelo autor a partir do vídeo Nine Lives. Disponível em: Acesso em: 27 de novembro de 2013.

O plano que abre a cena enquadra a fachada de uma casa, enquanto que a referida usuária entra em quadro caminhando da direita para a esquerda, até ocupar o centro do enquadramento, sempre com os olhos fixos na tela do telefone celular (fotograma 1 da Figura 25). O segundo plano é complementar a este: assim que para de caminhar, ela ergue o telefone até a altura dos olhos (fotograma 2). Sua expressão é atenta e neste ponto há um corte que nos leva para um plano em que é mostrada, supostamente, uma cena do filme Nine Lives que está passando na tela do telefone celular naquele momento (supostamente, porque não vemos aí a moldura do aparelho, mas trata-se de um detalhe que não compromete a intenção de enunciar este plano como o contraplano correspondente ao ponto de vista da usuária). A imagem mostra um homem correndo em frente ao mesmo prédio que havíamos visto no início da cena (fotograma 3). O enquadramento é praticamente o mesmo do primeiro plano descrito – um plano geral da edificação – e o personagem aparece percorrendo toda a largura do quadro, da esquerda para a direita. Em seguida, mais um plano complementa a ação fílmica: nele vemos um close em ângulo inferior desse personagem, de modo que é possível enxergar a parte de baixo da marquise (alpendre) da edificação defronte à qual a cena foi captada (fotograma 4). O plano é muito breve, não dura mais do que dois ou três segundos, mas ainda assim por tempo suficiente para notarmos que há várias luminárias coloridas (do tipo lanterna chinesa)

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penduradas na estrutura. 84 A cena termina neste ponto; nisso há um corte e voltamos a ver a jovem espectadora do filme (fotograma 5). O plano começa com ela ainda olhando para a tela do telefone celular; em seguida ela levanta a cabeça e direciona seu olhar para cima; olha rapidamente para os dois lados; volta a olhar a tela do aparelho e sai de quadro. A sequência termina ainda com um último plano em que a vemos, em enquadramento geral, retomar a caminhada em direção à lateral esquerda do quadro (fotograma 6). Sobre as relações entre o que se passa no interior do quadro e o seu exterior, percebemos que nessa cena, na maior parte do tempo, a jovem portadora do dispositivo móvel aparece olhando fixamente para a tela do telefone celular – dos três planos em que ela aparece, em apenas um deles ela desvia sua atenção do celular (e somente por um único instante, porque tão logo termina de examinar o ambiente à sua volta, seu olhar é atraído de volta para a tela). Portanto, neste caso pelo menos, a experiência remete muito mais a um modo de consumo do audiovisual que se dá sobretudo com o olhar voltado quase que exclusivamente para o interior do quadro do que a uma alternância entre olhar a tela do celular e o ambiente que cerca a experiência de recepção fílmica. Entretanto, se na maior parte do tempo ela olha fixamente para a tela (olhar fixamente para uma tela tem sido, historicamente, o modo hegemônico como o audiovisual é consumido em quaisquer mídias), vamos nos ater ao único momento em que a usuária para de olhar para a tela e, finalmente, nota o ambiente ao seu redor. O que teria provocado a interrupção no ato de visualização? Qual o elemento mostrado na tela (ou no campo, conforme, vínhamos nos referindo a esse espaço interno ao quadro) teria desviado sua atenção para fora dela, em direção ao fora de campo? Nossa hipótese é a de que, possivelmente, o elemento deflagrador de uma perturbação na ordem do olhar que provocou a transição da atenção da espectadora para o ambiente ao redor tenham sido as muito discretas luminárias do tipo lanterna chinesa que aparecem penduradas na marquise (fotogramas 3 e 4) durante a cena do filme que está rodando na tela do aparelho. Não há como ter certeza, no entanto, parece haver correspondência em relação ao que afirmamos se levarmos em consideração dois indícios que aparecem nas imagens. O primeiro é sutil e exige atenção aos detalhes dos planos, mesmo quando congelados: se tomarmos como referência o fotograma 1, que mostra a jovem atriz entrando em quadro e parando para 84

Trata-se, na verdade, não de um, mas de dois planos muito parecidos, criados, provavelmente, a partir de cortes num mesmo e único plano contínuo, através de uma técnica também conhecida como jump cut. Visto que ambos mostram a mesma ação e apresentam os mesmos critérios de enquadramento, decidimos por exibir o fotograma de apenas um deles.

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assistir à cena do filme no dispositivo móvel, perceberemos que nesse momento a casa em frente à qual tudo acontece não estava decorada com as lanternas chinesas que aparecem na cena do filme Nine Lives que ela assiste em seu aparelho, conforme podemos notar no fotograma 3, em que a fachada é mostrada com os referidos elementos decorativos pendurados na marquise. O segundo indício é o próprio gesto que ela efetua assim que para de olhar para a tela e dirige sua atenção para o ambiente ao redor: ela olha para o alto, conforme é possível notar no fotograma 5. Por que para o alto e não para a frente, na mesma direção em que o personagem do filme saiu de quadro? Olhar para o alto, neste caso, significa, para nós, que alguma coisa no filme Nine Lives tenha chamado a sua atenção e essa coisa só poderia estar na parte de cima do cenário. Assim, supomos que no momento em que o personagem do filme aparece correndo, enquadrado em close inferior, a espectadora tenha se dado conta de que as lanternas chinesas apesar de estarem presentes no enquadramento, no entanto, estavam ausentes naquele momento em que passava por debaixo do alpendre daquele prédio. Por isso mesmo, inferimos, ela pôs-se a olhar para cima, como que para ver (imaginar) aquilo que não estava lá, mas que se assumia, a partir do estímulo provocado pelas imagens na tela do seu dispositivo, como uma presença, ainda que imaginária, que veio se sobrepor a sua percepção dos elementos do ambiente em que estava situada. Curiosa inversão que começa a surgir aqui. Falávamos antes, há poucas páginas atrás, que o fora de campo institui uma espécie de “reserva” ou “suplemento” de imaginação que colabora no sentido de potencializar o que se passa no campo. Nos filmes de gênero horror, é comum a cena em que um personagem olha aterrorizado para fora do quadro, incitando-nos a buscar em nossa imaginação a origem daquele olhar. Neste caso, o fora de campo permanece imaginário até que, no transcorrer do tempo, se possa então torná-lo “concreto” com a revelação, no campo, da causa do espanto do personagem. O fora de campo institui-se então como essa reserva de combustível para a imaginação, fonte inesgotável de expectativa, cuja principal função é engajar o espectador num processo de remissão constante à sua memória, incitando a consciência a saltar, de estrato em estrato da memória, até encontrar uma imagem que possa vir a se encaixar entre o ato de percepção e a ação do corpo em resposta à imagem. Mas no caso dos audiovisuais locativos, pelo menos no caso em que acabamos de descrever, a situação parece outra. No momento em que a espectadora do filme se dá conta de que algo “falta” ao ambiente em que ela está situada, o lugar de onde sua imaginação irá obter subsídios para conduzi-la através dessa inquietação situa-se no próprio interior do quadro fílmico. Ou seja, as imagens que surgem na tela do dispositivo operam como uma fonte de

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repertório de imagens as quais tão logo são percebidas pelo corpo e assimiladas como lembranças

em sua

memória, retornam imediatamente como lembranças-imagens

(BERGSON, 1999) que irão se interpor ao processo de percepção e reconhecimento do ambiente ao redor. São imagens que representam o próprio lugar em que o espectador encontra-se situado e por isso a sensação de déjà vu é ainda mais intensa. Tão logo se tornam lembranças, tais imagens são evocadas prontamente durante o processo de percepção do ambiente, gerando uma perturbação na ordem dos sentidos provocada pelo embaralhamento das sensações hápticas e audiovisuais oriundas de diferentes fontes de estímulos. Nesse sentido, temos a impressão de que, inversamente ao que ocorre no cinema, em que o fora de campo corresponde ao espaço exterior ao quadro no qual encontramos uma reserva de imaginação, no caso aqui descrito de cinema de caminhada é o próprio quadro fílmico que acaba operando como uma espécie de fora de campo da experiência que ocorre em seu espaço exterior. Nesse sentido, a experiência de concepção do espaço de um espectador de audiovisual locativo fica, pelo menos em alguns raros momentos, subordinada ao que acontece no interior do quadro, a partir do qual a imagem técnica atua como uma “reserva de imaginação” que interfere diretamente sobre o modo como todo o ambiente de recepção passa a ser percebido e interpretado pelo sujeito. No caso da cena de Nine Lives que acabamos de descrever, o desequilíbrio decorre da constatação, por parte do espectador, de que falta ao espaço alguma coisa (as luminárias) e que, por hipótese, este elemento faltante acaba se inscrevendo virtualmente no espaço pela ação da imaginação quando incitada pelo estímulo audiovisual. Se isso que afirmamos é correto, então poderíamos questionar que outras operações relacionadas ao consumo de audiovisuais locativos apontam para esta condição da imagem técnica funcionando como um “fora de campo” de ambientes físicos e geográficos. Vejamos outro exemplo (Figura 26), desta vez extraído do vídeo-conceito da aplicação de cinema de caminhada Augmented Reality Cinema.

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Figura 26 – Fotograma do vídeo de divulgação de Augmented Reality Cinema

Fonte: YouTube. Disponível em: . Acesso em: 27 de novembro de 2013.

Nesta figura, vemos na tela do telefone celular a imagem de um homem caminhando sobre uma ponte deserta. Parece estar perdido e além dele não há mais ninguém em quadro, nem pedestres nem automóveis, e talvez seja essa a causa do seu olhar atormentado. Às margens do telefone celular é possível enxergarmos também o ambiente em que o usuário do dispositivo está situado. Trata-se, conforme é possível prever, do mesmo lugar representado na imagem técnica do telefone celular. No entanto, ao compararmos as duas paisagens, notamos que há uma diferença entre elas: se na paisagem estampada na tela do telefone vemos apenas um homem solitário, na paisagem que transborda para fora do quadro vemos pessoas transitando, além dos carros que circulam por ali. Portanto, e de modo inverso ao que havíamos percebido na sequência anterior, em que analisávamos o vídeo de divulgação de Nine Lives, aqui a diferença se dá antes pelo decréscimo de quantidades de elementos no quadro fílmico quando comparado ao ambiente de recepção em que o espectador encontra-se física e geograficamente situado enquanto assiste à cena. Nesse sentido, operando como um fora de quadro do ambiente físico e geográfico, a imagem técnica adiciona, virtualmente, a presença de uma ausência de elementos no espaço, provocando um contraste que se torna tanto maior quanto mais pessoas e carros estiverem circulando no local naquele momento. Seja por “adição”, seja por “supressão” de elementos, o que importa, de fato, é o modo como o audiovisual, nesse caso representado pelas imagens técnicas (e pelos sons) exibidos no telefone celular, provoca uma perturbação à percepção da paisagem. Adição, supressão, mais, menos, são termos adequados quando falamos em quantidades e em escalas espaciais, mas aqui, conforme, vimos, as mudanças que se efetuam sobre a percepção do espaço ocorrem antes qualitativamente do que quantitativamente. Assim, se apontamos até o momento alterações de grau percebidas na imagem, para “mais” ou para “menos”, foi

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somente para introduzirmos um processo que se mostra mais complexo. É antes em função do tempo do que do espaço que intuímos o movimento de transformação da paisagem no contexto de interação com aplicações de audiovisual locativo. O tempo se inscreve aqui como a mudança de algo – há algo que dura nas imagens, que se inscreve na percepção espacial como presença justamente por não estar mais ali (as lanternas chinesas), ou por estar e não estar simultaneamente (a multidão e os carros que circulam sobre a ponte), e tanto mais intensa é a sua presença quanto maiores forem os contrastes entre um estado e outro percebido na imagem. Cremos que aqui se encontra um elemento de força das experiências com audiovisuais locativos. Voltaremos a esse ponto em seguida, mas antes, contudo, vamos voltar à relação entre o campo e o fora de campo, desta vez questionando uma suposta perda de potência do fora de campo no contexto das operações de montagem espacial.

3.2 PAISAGEM AURÁTICA E IMAGEM-MAPA Para Philipe Dubois (2004), as operações de montagem espacial em vídeo (as fusões, sobreposições, incrustações) sugerem o enfraquecimento do espaço fora de campo. Em outros termos, uma vez que os planos podem se acumular, pelo menos em teoria, indefinidamente, nada impede que campo e contracampo, por exemplo, estejam ambos integrados em uma mesma composição de imagens; daí a hipótese de que o fora de campo, neste caso particular de montagem, deixa de operar com a mesma força do que em outras situações de montagem. Em relação às imagens dos aplicativos de cinema de caminhada que vínhamos analisando até aqui, consideramos que, assim como em cinema e em vídeo, há também um fora de campo nas imagens que aparecem na tela do telefone celular. No entanto, diferentemente do que ocorre nas mídias audiovisuais tradicionais, nos casos de cinema locativo analisados o espectador pode ter acesso, pelo menos parcialmente, à paisagem que prolonga o campo para além da tela do telefone. Dessa maneira, assim como sugere Dubois (2004) em relação às montagens espaciais em cinema e em vídeo, ocorreria também, no caso dos audiovisuais locativos, uma espécie de esvaziamento ou perda de potência do fora de campo, uma vez que, na medida em que o espectador pode ter acesso ao que lhe é ocultado no quadro, diminuiria também seu espaço de criação (imaginação) sobre a imagem técnica que lhe é mostrada – visto que sobraria “pouco” a ser imaginado; afinal de contas, o que não se encontra diretamente representado no quadro pode ser, potencialmente, buscado no fundo, isto é, na paisagem.

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Conforme vimos nos casos de aplicações de cinema de caminhada analisados até aqui, a paisagem sofre, necessariamente, a ação da imagem exibida no quadro, na medida em que o espectador-usuário é capaz de estabelecer relações de semelhança e de diferença entre um campo e outro. Portanto, as imagens técnicas atuariam como um espaço de reserva que abasteceria a memória do usuário do dispositivo móvel com novas imagens-lembranças, as quais seriam imediatamente evocadas no processo de percepção espacial, vindo a se juntar ao reconhecimento do ambiente, e tão logo conseguissem se “encaixar” em alguma fresta, deflagrariam uma transformação em toda a dimensão do conjunto. No entanto, a questão que fica é se essa montagem entre dois sistemas de imagens heterogêneos, as quais relacionamos até aqui ao conceito de montagem espacial, provocariam uma despotencialização do fora de campo. Para Deleuze (1990), o quadro (em princípio o quadro fílmico, mas o mesmo vale para qualquer tipo de quadro), compreendido enquanto conjunto complexo formado por outros “subquadros”, por mais “fechado” que possa parecer, sempre acaba por estabelecer um elo com um conjunto maior ao qual ele se integra e que nessa configuração se estabelece como o seu fora de campo. Para Deleuze (1990, p. 28), “se um conjunto é enquadrado, logo visto, há sempre um conjunto maior ou um outro com o qual o primeiro forma um maior, que por sua vez, pode ser visto desde que suscite um novo extracampo etc.”. Se concordamos com Deleuze, então o que Philipe Dubois (2004) afirma sobre a perda de potência do fora de campo em operações de montagem espacial merece um ajuste. Quando se adiciona, no mesmo quadro, o campo e o fora de campo, isso não significa que o segundo desapareça; antes pelo contrário, se há perda de potencial (sobretudo narrativo), isso se dá em decorrência da multiplicação e consequente acúmulo de “foras de campo” que passam a envolver o sistema de imagens. Também teremos de fazer um ajuste em uma das afirmações que fizemos há pouco. Havíamos apontado uma inversão a partir da qual a imagem técnica passaria a operar como o fora de campo da paisagem no contexto dos audiovisuais locativos. A partir de Deleuze, percebemos que tal inversão nos levou a um entendimento equivocado sobre o lugar e a função do fora de campo no contexto dos audiovisuais locativos. Na verdade, uma vez que a imagem (técnica) se mostra funcionando em sinergia com a paisagem, ambas constituem um mesmo sistema e, nesse sentido, o fora de campo deve ser buscado em outro lugar que não em uma ou em outra dessas duas instâncias. Portanto, o que parece ocorrer é um deslocamento do lugar do fora de campo, isto é, diferentemente do cinema ou do vídeo, em que muitas vezes buscamos o fora de campo como

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espaço ampliado – o cenário prolongado para além da tela – nos audiovisuais locativos a questão se coloca menos em termos de tentarmos definir esse “lugar” como um espaço propriamente dito e mais no sentido de buscarmos compreender sua natureza dialética. Ainda que o fora de campo corresponda a uma presença de algo que vem longe, não é no espaço que o encontramos, mas no tempo. Quando a paisagem se desvela, assim atravessada pela mediação do olhar softwarizado, mais do que o espaço é antes o lampejo de seus devires que vislumbramos: em uma cena vemos uma paisagem em guerra, quando tudo à volta é pura calmaria; em outra, é o vazio que se impõe como uma presença em meio à agitação frenética. Assim, nessa tensão entre o que nos mostra e o que pode vir a ser mostrado, entre o que é e o que pode vir a ser (mesmo que “vir a ser” possa significar a evocação do que já foi um dia), a paisagem se torna o conteúdo do meio, deixa de ser o fundo sobre o qual a vida cotidiana acontece e passa a ser ela mesma acontecimento – obra de arte, acontecimento aurático, fugaz e irrepetível. É nesse momento único que a paisagem devolve o nosso olhar (ou, nos termos de Didi-Huberman [2004], é o momento em que ela nos olha) e nos deixa a sós com nossas lembranças, fazendo-nos refletir sobre o ambiente que nos envolve – torna-se uma imagem verdadeiramente crítica (sic). A esta imagem da paisagem, que não é nem representação “pura” nem apreensão imediata do espaço, mas que se constitui num limiar de indiscernibilidade entre ambas, chamaremos de agora em diante de paisagem aurática. A paisagem aurática é o conceito que funda a relação do sujeito com seu entorno em certas ocasiões em que a percepção do espaço se dá a partir de uma proximidade distanciada. De modo algum subordinamos tal modo de percepção espacial ao contexto exclusivo da experiência estética com mídias locativas. Uma relação de tal tipo com o espaço pode acontecer, inclusive, sem a presença de meios técnicos de mediação. Lembremos aqui da célebre passagem em que Benjamin (2011, p. 170) descreve a aura como sendo “a aparição única de uma coisa distante, por mais próxima que ela esteja”. Trata-se de se chegar a uma “coisa” (imaterial e distante), por meio de outra “coisa” (material e próxima). Em sequência, Benjamin (idem, ibidem) complementa sua explicação dizendo que “Observar, em repouso, numa tarde de verão, uma cadeia de montanhas no horizonte, ou um galho, que projeta sua sombra sobre nós, significa respirar a aura dessas montanhas, desse galho”. Observa-se que Benjamin usa o termo “respirar” para se referir à percepção da aura: trata-se, na nossa interpretação, de uma metáfora, é claro, que serve ao propósito de enfatizar a qualidade nãovisual da aura, uma apreensão que se faz com o corpo todo, preenchendo-o com sua substância, e que é definitivamente alcançada a partir de um estado de espírito – neste caso, contemplativo, “em repouso” como nos diz o autor.

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As lanternas chinesas de Nine Lives se mostram simultaneamente presentes e ausentes, podemos imaginá-las quase que em detalhe, podemos até tocar na estrutura em que elas foram penduradas – com sorte, encontraremos os pequenos pregos em que um dia foram amarradas ainda fixados na madeira –, no entanto, o nosso contato com elas se dá apenas através dos rastros de sua presença, sua aura, portanto. Ali, debaixo do alpendre em que foram penduradas um dia, a presença-ausente das lanternas chinesas resulta de uma operação sinestésica, em que o tato, o olfato e a audição dialogam entre si para produzir uma imagem ao mesmo tempo vívida e invisível. Didi-Huberman (2004, p. 166), ao comentar uma obra de Tony Smith, afirma que o artista conseguiu “‘fabricar aura’, no sentido mais literal do termo”, ao propor uma instalação que era simplesmente uma exalação de vapor, uma fumaça branca informe que tão logo surgia já desaparecia ao ar livre. A nosso ver, a descrição que DidiHuberman faz da referida obra de Smith parece aproximar-se da ideia de paisagem transformada em obra de arte quando montada espacialmente com a imagem técnica exibida na tela de um dispositivo móvel: “obra sem perto nem longe, obra perfeitamente intangível e que, no entanto, acariciava todo corpo e seu espectador, obra sem ponto de vista definido, sem perto nem longe, repito, portanto sem detalhe e sem moldura.” (idem, ibidem). Aqui retornamos ao espaço acústico primitivo das pinturas rupestres e das esculturas dos esquimós aiviliques que citávamos no primeiro capítulo, as quais não eram fixadas a uma moldura ou pedestal e que não apresentavam “lado de cima” ou “lado de baixo”, isto é, um lado “certo” para serem olhadas. Retornamos à pintura medieval, sem perspectiva, sem profundidade, ou antes dotada de uma superficialidade profunda (ou profundidade plana). Contudo, não se trata de um retorno, tal como se o passado pudesse por algum milagre tornar-se presente novamente, mas de uma tendência que nunca cessou de durar, uma tendência que certamente toda a imagem carrega em devir, mas que no contexto dos audiovisuais locativos são potencializadas pelo modo como se mostram configuradas. Tal tendência a que nos referimos diz respeito à qualidade de oferecer-se ao olhar como um operador da vista, um “programa” com instruções que guiam o olhar por um certo caminho, ou, ainda, como um “mapa” que orienta a percepção em seu recorte sobre as imagens que integram o universo do qual o corpo faz parte. Um mapa que guia a consciência no processo de seleção de imagens-lembrança convocadas a se misturarem no processo de percepção. Assim, a essa imagem que se define, no contexto dos audiovisuais locativos, em função de sua qualidade para servir de guia do olhar de um sujeito situado no espaço, chamaremos de imagem-mapa. Tal imagem se apresenta menos como algo para ser “visto” do que como um programa de orientação espacial: ela instrui, enquadra e sugere o caminho do

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olhar (e do corpo) pelo espaço. Não é uma imagem que representa o mundo, mas um operador da vista e um algoritmo de utilização do espaço, conforme voltaremos a tratar no próximo capítulo.

3.3

MIXAGENS ESPACIAIS Quando, ao início deste capítulo, tínhamos a sensação de que havia algo nos

audiovisuais locativos que remetia às operações de montagem espacial no cinema e no vídeo, esbarramos no problema de atribuir à imagem exibida na tela do aparelho celular a função de hospedar e arranjar todas as diferentes ordens de imagens que remeteriam ao conceito de montagem espacial. Como poderia uma imagem “limpa”, que ocupa todo o quadro da tela do telefone celular, enunciar a estética de fragmentação e descontinuidade que tanto marcam as operações de montagem espacial? Contornamos esse problema inserindo, nesta equação, a presença do sujeito como o agente capaz de reunir e sobrepor (mentalmente) imagens de diferentes naturezas. Assim chegamos, indiretamente, à conclusão de que a relação entre a imagem técnica da tela do celular e a da paisagem se dá antes pela ação da primeira sobre a segunda: a imagem técnica sendo, portanto, uma espécie de “fundo”, sobre o qual a experiência no espaço se realiza e faz emergir uma imagem de paisagem reconfigurada. Como resultado dessas operações, percebíamos aí uma espécie de justaposição que se assemelha àquela da montagem espacial em cinema e em vídeo, principalmente quando passamos a analisar as relações que se efetuam entre o campo e o fora de campo. O mecanismo todo parece ter sido bem-explicado, a questão, no entanto, é que o termo montagem espacial já não parece ser aquele que melhor descreve o tipo de operação que descrevemos. Em suma, a relação que se estabelece entre imagens de diferentes naturezas resulta menos em uma possível comparação a um arranjo espacial, uma composição do tipo patchwork ou quebra-cabeça, em que as imagens se mostram “encaixadas” umas nas outras, do que a uma espécie de mistura entre sensações espaciais por vezes contraditórias entre si, que teriam origens nas diferentes respostas do corpo ao recortar no espaço tanto imagens técnicas quanto outras que integram o mesmo ambiente de recepção. Então, se podemos escolher outro termo para designar a atualização da operação de montagem espacial no contexto das audiovisualidades de mídias locativas, nós optaríamos por um que remetesse mais à ideia de fluxos que se misturam. Assim, o termo “mixagem” parece mais adequado do que o termo “montagem”, para nos referimos ao tipo de operação de sincronização entre

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fluxos espaciais produzidos pela mediação de dispositivos técnicos e outros fluxos que se desenrolam em atividades cotidianas, como andar pela rua, por exemplo. A mixagem é uma prática comum em atividades que lidam com o som, como a prática de DJ. A mixagem, como é conhecida a ação de sobreposição entre diferentes camadas de áudio, assume níveis de intensidade elevados na performance ao vivo, em que o DJ deve efetuar a passagem de uma faixa musical para outra – momento crucial em que o erro é facilmente percebido pelos ouvintes mais atentos. A mixagem ao vivo instaura, portanto, uma zona de indeterminação sonora que se produz temporariamente no limiar entre pelo menos duas instâncias sonoras que se afetam mutuamente. Durante a mixagem, o DJ pode jogar com os níveis de volume de uma e outra música (silenciando uma para destacar a outra, para em seguida inverter o processo), pode adicionar ao fluxo sonoridades de instrumentos musicais tocados ao vivo ou efeitos pré-gravados e armazenados na memória de seu equipamento, enfim, há na mixagem ao vivo todo um repertório de práticas de combinação de fluxos espaço-temporais que apontam numa direção de amplificação do potencial sugerido pelas técnicas de montagem espacial que se efetuam nas artes visuais. Não que não se possa montar visualmente como se monta sonoramente: não podemos esquecer aqui do trabalho de artistas como Jeffrey Shaw, que trabalham com instalações híbridas que conjugam estímulos oriundos de diferentes tipos de mídias em arranjos multissensoriais; também o trabalho do VJ não poderia ser aqui negligenciado, que estabelece no campo visual práticas semelhantes às que o DJ efetua no campo da música (embora consideremos que, na comparação, é ao DJ que se oferecem mais recursos para a criação ao vivo). Enfim, de todo modo, tanto no caso do DJ e dos VJs, quanto nos casos de artistas multimidiáticos como Jeffrey Shaw, a mixagem é o termo que melhor designa o tipo de prática que todos eles efetuam. Assim, poderíamos considerar que o termo “mixagem espacial” parece mais adequado para nos referirmos ao tipo de sobreposição espaço-temporal que começamos a descrever a partir da análise de alguns casos de cinema de caminhada. Por remeter antes ao som do que à imagem, o termo mixagem está mais próximo também do conceito de um espaço acústico que se cria em situações de representação espacial em que as dimensões visuais não são orientadas segundo os cânones da representação pictórica clássica. É antes modulação de ritmos espaciais distintos, que são equalizados pelo corpo do usuário, mais do que propriamente arranjados visualmente na interface do dispositivo móvel. A mixagem espacial se efetiva, portanto, no contexto dos audiovisuais locativos, como uma operação de base no processo de percepção e representação do espaço. É uma metáfora

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que ajuda a figurarmos o processo de modulação entre fluxos de sensações espaciais que iniciam ações de movimento no corpo do usuário, algumas chegando a se concretizar na forma de gestos (caminhar, olhar, enquadrar). Até aqui vimos como a alternância do olhar – que ora se detém na imagem representada na tela do dispositivo móvel e ora é desviado em direção à paisagem ao redor – produz um entrelaçamento de fluxos hápticos por vezes incompatíveis – os binômios de presençaausência, excesso-escassez, dentre outros, de que comentávamos nos exemplos referidos. Vimos que quanto maior a tensão alcançada em tal processo de entrelaçamento de fluxos hápticos, maior é o nível de atenção do usuário em relação ao espaço, o que implica em um engajamento do trabalho da consciência no processo de seleção de lembranças-imagem que irão se interpor entre a percepção e a resposta do corpo ao contato com o espaço. Por esse caminho, a percepção do espaço é alterada – já não olhamos para o espaço com um olhar habituado, mas um olhar atento a uma nova configuração – e novas camadas de significação vêm aí se interpor virtualmente, já não estamos mais no espaço da vida cotidiana – o qual se constitui como um “fundo” para nossas atividades corriqueiras – mas diante de uma paisagem que nos convida a mergulhar em seu universo de imagens que não param de brotar e de se conectar a conjuntos cada vez mais abrangentes de outras imagens que vêm aí se depositar. Trata-se, conforme vimos, de uma experiência que se desenrola diante de uma paisagem aurática. Afora o tipo de alternância de vistas que referimos até aqui – entre a imagem técnica no dispositivo móvel e a da paisagem vista ao fundo – haveria outros. Tratemos então de outra forma de visualidade que desempenha importante papel no processo de alteração da percepção espacial. Trata-se da alternância entre uma vista que se dá no nível do solo e outra que se produz desde as alturas, em sobrevoo, autorizada pelos mapas digitais que integram sistemas de localização via GPS. Conforme podemos notar, frequentemente encontramos a utilização de mapas como um recurso presente nos casos de cinema de caminhada analisados até aqui. De modo geral, em todos os casos os mapas mantém certa dependência com a função de localização, no entanto, cada qual guia os usuários a um tipo específico de conteúdo, que varia conforme a proposta do projeto: em Nine Lives, por exemplo, o mapa aponta para trechos de filmes dispostos em nove bairros da cidade de Singapura – trata-se, portanto, de um mapa que enuncia o território como interface de uma narrativa cinematográfica e, portanto, a forma híbrida espectadorturista é mais explícita que na maioria dos outros casos analisados; já em Walking Cinema: Murder on Beacon Hill, a estratégia de mapeamento se assemelha à de Nine Lives – um mapa

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dispõe conteúdos audiovisuais sobre o território da cidade de Boston – contudo, com a diferença de que neste caso a narrativa é linear e a enunciação fílmica flerta com o gênero de documentário policial de cinema e televisão, o que produz outro tipo de enunciação subjetiva do espectador-turista, mais próxima à noção de um espectador-detetive, como geralmente tais formatos apresentam. Além destes casos, a visão “de cima” está presente em outros projetos que integram outros casos de audiovisuais locativos. As aplicações Street Museum of London, 34N118W e Tactical Sound Garden também estimulam uma alternância entre a vista geral aérea (o mapa) e a visão localizada do indivíduo que se locomove pelas entranhas do espaço urbano. Mas o que representam esses mapas? Para que servem? Em Street Museum of London, o mapa dispõe fotografias históricas espalhadas pela cidade de Londres e enuncia o espaço urbano como um museu a céu aberto, que justapõe espaço-temporalidades diversas e produz como figura de subjetividade um espectadorarqueólogo; em 34N118W, o mapa também representa o território como plataforma de registro do passado, a questão, no entanto, é que o projeto se baseia exclusivamente em conteúdos de áudio (em sua maioria relatos pessoais), conferindo outra forma de sobreposição e deslocamento espaço-temporal a partir do acesso a tais conteúdos geolocalizados em um distrito industrial de Los Angeles, que forja uma subjetividade baseada na escuta das histórias contadas nas gravações de áudio; em Tactical Sound Garden, o mapa também produz uma enunciação sonora do território – um jardim tático sonoro –, com a diferença de que neste caso não se observa uma clara intenção de representar uma situação histórica específica (como no caso de 34N118W), mas sim de produzir uma enunciação do território como plataforma aberta para inserção de sons. Em todos os casos observados a performatização decorrente da manipulação do dispositivo móvel, somada ao deslocamento geográfico do usuário e às operações algorítmicas acionadas pelo software instalado no aparelho, possibilita a emergência das condições necessárias para que certos regimes de visibilidade tomem forma, produzindo modos de enunciação sobre o território e o corpo do usuário que variam de acordo com a proposta de cada projeto. Acompanhar, do alto, o posicionamento do corpo no espaço conecta, por afinidade, a visualidade dos audiovisuais locativos a outras formas culturais e práticas sociais que gradualmente ganham centralidade na contemporaneidade. É o caso mesmo das aplicações para dispositivos móveis com finalidades específicas de navegação, como o Google Maps, mas também de muitas outras, cujas funções e propósitos variam enormemente entre si: desde

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o auxílio à realização de práticas esportivas, até a descoberta de lugares frequentados por amigos, passando por aplicações que articulam funções de navegação e colaboração via redes sociais para monitoramento das condições de trânsito, todas elas exercitam a simulação de vista aérea como extensão de nossa capacidade de perceber o espaço sob diferentes perspectivas de altura. Poder alternar entre várias perspectivas de câmera já se tornou uma funcionalidade padrão em vários tipos de jogos, incluindo os de corrida, de luta e de ação em primeira pessoa: pode-se assumir a posição de uma câmera que vê o personagem desde cima ou de uma que assume o ponto de vista subjetivo, além disso, pode-se estar constantemente consultando um mapa, geralmente localizado em um dos cantos da tela, que dá ao jogador a visão global do terreno em que se desloca. No texto de Eisenstein (1996) intitulado Montage and Architecture – do qual trataremos com maior profundidade no próximo capítulo – o autor menciona a pintura Vista y plano de Toledo, de El Greco, na qual são representadas diferentes vistas de uma mesma cidade. Há, inclusive, no primeiro plano da imagem, uma figura humana que empunha um mapa da cidade, o que provoca uma inevitável comparação entre a cidade esboçada no mapa e aquela que se abre como a vista de uma paisagem, atrás da referida figura humana, de modo que o efeito de desequilíbrio resultante incita o olhar do espectador a mover-se pelo quadro, por vezes mergulhando e por vezes mantendo-se na superfície da imagem. Encontramos na referida obra de El Greco o protótipo de um tipo de visualidade que enaltece a visão cubista do espaço urbano, em que os pontos de vista (e de fuga) são multiplicados de modo que o objeto representado seja enunciado através de várias dimensões – tal como séculos mais tarde o cinema viria naturalizar com as operações de montagem temporal e tal como hoje em dia as operações de montagem espacial que caracterizam os processos de estetização de bancos de dados de mídias digitais estão fazendo. Tanto em Vista y plano de Toledo como em tantas outras obras de artistas contemporâneos explora-se a concepção de espaço desde uma perspectiva de multiplicação dos sentidos – produzindo espaços multirrelacionais, para usar uma noção que trabalhamos anteriormente. Neste ponto vamos recuperar o exemplo de The Wilderness Downtown, citado no segundo capítulo deste relatório de pesquisa, quando falávamos das operações de montagem espacial contemporâneas. Trata-se de um projeto artístico que também explora, no âmbito das estéticas tecnológicas dos bancos de dados da web, a fusão entre múltiplas visões e pontos de vista urbanos e, por isso, pode se mostrar útil para percebermos nele uma atualização da visualidade sugerida em Vista y plano de Toledo. Em The Wilderness Downtown – o

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videoclipe da banda Arcade Fire produzido em pareceria com o Google – a tônica imposta pelos algoritmos de programação marca um tipo de experiência sensorial e afetiva que em muitos aspectos lembram a visualidade produzida no quadro de El Greco, principalmente porque nele também nos colocamos diante de arranjos imagéticos que produzem uma intensa concatenação de vistas aéreas e vistas que se produzem no nível de um observador que caminha nas ruas da cidade. A diferença, no entanto, reside no dinamismo (áudio e visual) do videoclipe em comparação com a pintura. Conforme havíamos comentado, The Wilderness Downtown se apresenta como um projeto complexo em que os efeitos de montagem se originam da justaposição de imagens captadas de vários tipos de bancos de dados, dentre os quais aqueles dos serviços Google Maps e Google Street View. As imagens do Google Maps fornecem as bases para que sejam produzidas cenas de amplas vistas aéreas, que evoluem tal como se estivéssemos sobrevoando a cidade desde uma aeronave; enquanto isso, as imagens captadas das bases de dados do Google Street View são processadas pelo algoritmo do site de modo a gerarem efeitos de travelling que reproduzem o ponto de vista de quem caminha pelas ruas. A sobreposição destas e de outras imagens que também são convocadas ao longo do videoclipe (animações em 3D, cenas captadas com atores, dentre outros tipos de imagens) evocam a figura de um turista-espectador que desenvolve sua jornada colocando-se em um estado de percepção simultânea de múltiplas perspectivas, angulações e ritmos de deslocamento do olhar. Em The Wilderness Downtow, assim como em Vista y plano de Toledo, a concepção espacial decorre menos da representação realista do espaço do que através de um tipo de disposição que força o espectador a percorrer (como um turista) as descontinuidades provocadas pelo ato de (re)criação artística. As imagens aéreas capturadas da base de dados do Google Maps já não estão a serviço da necessidade de localização, já não são, portanto, versões contemporâneas de mapas tradicionais; por outro lado, enunciam metamapas afetivos: mapas de desorientação, de desfamiliarização e de agenciamentos afetivos que se produzem no embate entre o lugar mapeado e transcodificado e as memórias afetivas do usuário que se vê, simultaneamente, “dentro” e “fora”, próximo e distante do lugar representado. Turista e espectador, viajante e usuário de mídias digitais, flanêur e pássaro em sobrevoo, são múltiplas as figuras de subjetividade emergentes nos regimes de visualidade que comparecem não somente em The Wilderness Downtown mas em muitos projetos contemporâneos (dentre os quais incluímos, certamente, os casos de audiovisualidades de mídias locativas) que exploram o potencial estético e narrativo dos mapas digitais. Dada a importância da alternância de vistas em perspectiva aérea e no nível do solo para a compreensão das audiovisualidades emergentes em práticas estéticas com mídias locativas,

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voltaremos ainda a tratar novamente desse tópico no próximo capítulo. Por ora, devemos explorar outras possibilidades de como a mixagem espacial toma forma no contexto dos audiovisuais locativos. Até aqui vimos como a alternância de vistas se efetua em, pelo menos, dois procedimentos: um primeiro, que toma forma em um eixo horizontal ao solo, o qual faz variar o olhar entre duas distâncias, uma mais próxima, localizada na imagem técnica exibida na tela do telefone celular, outra mais ao longe, na paisagem que se abre ao fundo; um segundo procedimento, que se estabelece a partir de um eixo vertical, perpendicular ao solo, que faz variar as distâncias em função da altura, indo da visão no nível do solo até a perspectiva em grande plano geral vista do alto. Ultrapassemos então o mecanismo de alternância de vistas analisado até aqui e avancemos em direção a outra forma de mixagem espacial, a qual conjuga, no interior mesmo da tela do telefone celular, imagens capturadas diretamente através da câmera do aparelho com imagens pré-gravadas em sua memória. Trata-se de um tipo de visualidade que vem se popularizando nos dispositivos móveis através da chamada tecnologia de realidade aumentada móvel, a qual é usada, por exemplo, no aplicativo Street Museum of London, o qual já foi mencionado em outras partes do texto. Sob uma perspectiva genealógica, as tecnologias de realidade aumentada móvel remetem a dispositivos de simulação anteriores à computação e mesmo ao cinema. Um dos mais famosos instrumentos óticos pré-cinematográficos que apontam numa direção semelhante à visualidade que nos oferecem hoje as aplicações de realidade aumentada móvel é a famosa tavoletta de Brunelleschi, que foi provavelmente um dos primeiros dispositivos que permitiram simular uma vista híbrida a partir da combinação entre elementos pictóricos e outros da paisagem, obtida a partir do enquadramento do olhar do observador através de um mecanismo peculiar (Figura 27). Figura 27 – Tavoletta de Brunelleschi

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Fonte: Acesso em: 28 de novembro de 2013.

A tavoletta não era uma máquina que produzia inscrição de imagens como foi a fotografia, mas, antes, tratava-se de um dispositivo de enquadramento do olhar (DUBOIS, 2004), assim como havia sido também a câmara escura e o perspectógrafo de Dürer. Na tavoletta o olhar era organizado para “melhor ver” a paisagem, mas cabia ainda ao pintor a tarefa de dar forma à imagem. Dispositivos de imagem que vieram depois, dentre os quais a fotografia e o cinema, baseavam-se num princípio de automatização da fabricação da imagem que deslocava a função do artista para outras áreas (a composição do quadro, a montagem). Atualmente, no contexto das estéticas tecnológicas com mídias locativas, percebemos um desejo de retorno aos dispositivos como o da tavoletta. Tal desejo se expressa na incrustação do corpo no interior do dispositivo-ambiente, autorizado pelo software GPS, que lê a posição do usuário e não produz a imagem caso este não esteja no lugar certo. Portanto é a esse sujeito localizado espacial e temporalmente que as imagens vão se apresentar. Nos casos em que há o uso da tecnologia de realidade aumentada móvel a questão torna-se ainda mais perceptível: a imagem só se forma se, além de estar situado geograficamente no lugar correto, o usuário estiver empunhando o dispositivo numa posição também correta. Ora, tratase neste caso de estabelecer o “bom enquadramento” do olhar. E somente se o usuário estiver no “lugar certo” e o dispositivo estiver apontando para o alvo “certo” que a imagem se apresentará (virtualmente) ao usuário. Portanto, no âmbito de aplicações de realidade aumentada móvel, o dispositivo técnico cumpre não só a função de produzir imagens infográficas mas também de guiar o posicionamento do corpo e do gesto do usuário, de modo muito semelhante à função das máquinas de ordem um, descritas por Dubois (2004), que, assim como a tavoletta, antes de figurarem a imagem em um suporte, funcionavam apenas como um guia do olhar – eis que nos encontramos novamente diante de um devir mapa da imagem, isto é, uma tendência de funcionamento da imagem como um operador da vista que determina certas disposições do corpo no processo de percepção do espaço. Tal tendência, sabemos, não é exclusiva destes exemplos que trazemos, pois persiste em todo o tipo de imagem, no entanto, há de ser destacado que se expressa mais claramente em algumas mais do que em outras, como é o caso das imagens que analisamos até agora, as quais enquadram o olhar dentro de certos modelos de percepção. A tavoletta é assim um dispositivo técnico que inscreve (analogicamente) a imagem como simulação que se mistura ao “real” observado, de modo muito semelhante ao que

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acontece no campo das tecnologias de realidade aumentada. A quase indistinção entre o que é próprio da imagem pintada e a imagem do mundo que se desvela para além do quadro requer, evidentemente, um ponto de vista específico a partir do qual o observador deveria observar o que quer que seja (no caso de Brunelleschi, o batistério São Giovane). Entretanto, para que o espectador da tavoletta conseguisse ver a composição entre a imagem da pintura e aquela que se mostrava ao fundo, ele deveria, além de ocupar um lugar específico no espaço, se manter imóvel e olhar através de um pequeno orifício a fim de que o alinhamento perspectivo entre as imagens fosse perfeito; já no contexto das operações visuais com realidade aumentada, sobretudo aquelas executadas em diapositivos móveis, para que a sobreposição de imagens aconteça, não é necessário que o espectador mantenha-se o tempo todo imóvel, ele pode se deslocar assumindo variados pontos de vista e os grafismos continuam a agarrar-se à paisagem, tal como se “lá” estivessem de fato. Talvez aqui resida um dos pontos mais importantes da experiência do olhar que toma forma no contexto dos audiovisuais locativos. Em um primeiro momento, nossa tendência era a de relacionar o modo como tais imagens se montam a certa composição cubista, em que a imagem corresponde ao efeito resultante da sobreposição de múltiplas dimensões espaciais de uma cena. Tal ideia, que tomamos de empréstimo dos discursos sobre a estética audiovisual que se funda no princípio das operações de montagem espacial, parece não se efetivar na medida em que passamos a olhar mais de perto o que acontece no âmbito de alguns dos casos analisados. Nos casos de cinema de caminhada que citávamos há pouco, ainda que em todos eles o encaixe entre a imagem que se mostra na tela do aparelho e aquela que se mostra do lado de “fora”, ao fundo, não se mostre perfeita (ao contrário do encaixe sugerido em um dispositivo como o da tavolleta), ainda assim observamos nesses casos um desejo de fazer coincidir, em termos de profundidade de campo, ambas as instâncias do olhar, ainda que mantendo algo de suas propriedades individuais. Desejo esse que efetivamente se concretiza em um projeto como Street Museum of London (Figura 28), que se funda nos princípios de realidade aumentada, em que a integração entre a fotografia e a imagem atual da paisagem alcança um bom nível de encaixe.

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Figura 28 – Street Museum of London

Fonte: YouTube. Disponível em: . Acesso em 06 de junho de 2012.

Assim, não se poderia afirmar, portanto, que tais experiências visuais eliminariam a herança da perspectiva renascentista baseada no ponto de fuga pictórico. Ao contrário, poderíamos dizer que as imagens que comparecem em uma experiência de realidade aumentada como essa apresentada em Street Museum of London elevam ainda mais o potencial da técnica perspectivista, visto que, mesmo quando o dispositivo é movimentado, a tendência é a de que o software compense o movimento e ajuste automaticamente a imagem de modo que a perspectiva se mantenha funcionando. Ao espectador desse dispositivo não lhe é outorgado o direito de não adotar o “bom” ponto de vista. É claro que estamos exagerando um pouco para melhor expressar o desejo que se manifesta em todo o dispositivo contemporâneo baseado nas tecnologias de realidade aumentada – veja-se, por exemplo, os acessórios computacionais vestíveis, tais como o Google Glass, que fundam sua visualidade inteira neste princípio. Vitória do ponto de fuga, os dispositivos que se baseiam no princípio da realidade aumentada móvel também encontram referência na forma cultural dos antigos panoramas, que se popularizaram, sobretudo na Europa, no período dos séculos XVII e XVIII. Para Aumont, o panorama, sobretudo o panorama circular, ao abrir horizontes para que o olho possa vagar livremente está, sobretudo, aprisionando o olhar em seu dispositivo.

O panorama abre horizontes. Mas “horizonte” vem do grego horizein, limitar. Não asseguram, em uma anedota, talvez mítica, que o panorama foi inventado em uma prisão? E não foi ele aproximado do famoso panopticon, de Bentham, no qual o tudo-ver é reservado a um espectador privilegiado, o vigia, o monarca, o Estado? (AUMONT, 2004, p. 57).

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Tributários do panorama são também os movimentos de câmera do tipo panorâmico, os movimentos de grua, os travellings e os longos planos-sequência. Todos eles têm em comum, segundo Aumont, a ideia de nutrir incessantemente o olhar com imagens, prendendoo definitivamente: a panorâmica fílmica, diz Aumont (idem, ibid.), “atualiza assim essa ameaça potencial da perspectiva: fechar o espaço, terminá-lo, reduzi-lo”. Mas se encontramos aí uma tendência que aproxima as formas de audiovisual locativo baseadas em princípio de realidade aumentada móvel de dispositivos de retenção do olhar como os panoramas, os travellings e os planos-sequência, o fazemos apenas para ampliar ainda mais o quadro genealógico de formas de visualidade que se encontram, nem sempre de forma harmoniosa, no contexto das audiovisualidades de mídias locativas. Mesmo nos casos em que se consegue um bom nível de sincronização entre imagens pré-gravadas na memória do dispositivo e aquelas capturadas em simultâneo, o resultado final se difere em um aspecto fundamental de tais dispositivos de retenção do olhar: em tais dispositivos, a visualidade se constrói a partir de imagens “completas”, sejam elas cinematográficas ou videográficas, e no caso da realidade aumentada móvel, a visualidade se funda numa imagem semitransparente, que deixa ver o que há para além da superfície do aparelho, como no buraco através do qual o observador da tavoletta olha a paisagem, interpondo uma imagem pré-gravada ao seu campo de visão. Então, disso concluímos que neste aspecto que acabamos de descrever a técnica de realidade aumentada móvel se baseia na visualidade da tavoletta, entretanto, ela se filia, no que tange à mobilidade, à variação e à persistência da imagem, ao dispositivo do panorama circular, ao travelling e ao plano-sequência cinematográfico. Nesse sentido, trata-se de uma visualidade que se coloca a meio caminho de uma linha que conecta, em uma de suas pontas, a tavoletta de Brunelleschi e, na outra, os panoramas, travellings e planos-sequências. Talvez seja justamente este um dos aspectos que mais chamam a atenção em relação ao hibridismo provocado pela realidade aumentada móvel: colocar o usuário-espectador num entrelugar que é, na verdade, efêmero e instável. A metáfora poderia ser a de alguém que salta sobre uma fogueira: o momento em que se está passando por cima do fogo é o mais intenso, mas é também aquele que dura menos – não há como permanecer por muito tempo neste estado. Nos casos mais radicais, em que temos experiências audiovisuais através da tecnologia de áudio-guia, as imagens sequer chegam a formar-se e cabe mesmo ao participante desses formatos imaginá-las, operando com seu corpo a função do aparato produtor de imagens.

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Trata-se de verdadeiras máquinas de “imagens virtuais”, visto que tais imagens residem apenas como potência de atualização, variando conforme quem as imagina. Tais formas de imaginação se produziriam, por exemplo, em projetos como A Machine to See With, do grupo Blast Theory, no qual presenciamos a instauração de um devir cinema que se atualiza sem imagens, em que o espectador se integra ao “filme” e faz convergir o papel de ator e espectador simultaneamente. Uma vez estando “dentro” do universo ficcional, todo o ambiente ao redor passa a compor o grande cenário em que a narrativa toma palco, implodindo a dicotomia que separa o espaço da representação de outros espaços. Tal como sucedia com os usuários de Walkman que participaram do estudo fenomenológico do professor Schönhammer, em que, conforme relatavam, a música parecia assumir a força de uma moldura para o olhar, uma espécie de filtro cujo poder era o de transformar a paisagem toda em um imenso palco para a performance, em A Machine to See With o mundo todo se transforma em uma grande cena urbano-cinematográfica, na qual os participantes aceitam participar de um curioso filme em que a trama narrativa se desenrola sem ser narrada, os personagens agem sem atuar e as cenas acontecem ser nunca serem vistas. Eis aqui a atualização da dialética do olhante e do olhado, do que se mostra próximo sem ser visto. Raymond Bellour (1993) cita as imagens geradas por computador que simulam o crescimento de vegetais como um exemplo em que se entrecruzam o esquematismo do desenho e a reprodução fotográfica para compor uma analogia de um movimento invisível aos olhos (não conseguimos acompanhar o crescimento dos vegetais sem a ajuda da mediação de imagens técnicas) que só existe como “real” porque pode ser antes de tudo intuído pelo espírito, esquematizado, numerado e atualizado em imagens. É nessa intuição sobre o movimento de crescimento dos vegetais sugerido pelas imagens de síntese que reside a sua verdade e não propriamente em sua analogia fotográfica com esses vegetais (ainda que a computação gráfica seja capaz de produzir imagens cuja analogia fotográfica é absoluta). Portanto, e aqui reside um dos principais pontos que nos ajudam a pensar no estatuto das imagens contemporâneas, nos alinhamos a esse pensamento para propor que, na medida em que as imagens informacionais são acima de tudo construtos discretos, pura potência de atualização, a partir delas podemos pensar em contextos de representação nos quais as imagens não são necessariamente visuais, ainda que estejamos falando de experiências audiovisuais. Na medida em que perdem materialidade, se evanescem na imaterialidade do substrato digital, tornam-se diminutas nas pequenas telas dos dispositivos móveis, semitransparentes até (como é o caso das imagens de realidade aumentada que mesclam a visão da câmera com a

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imagem produzida pelo software) ou mesmo invisíveis, como no caso de A Machine to See With, maior se torna a dependência de um substrato material para se fazerem “reais”. Carentes de materialidade, as imagens se tornam potentes ao se atualizarem utilizando como “suporte” a concretude das fachadas de prédios, o ruído das ruas, o corpo dos usuários que se deslocam num espaço híbrido, dialético, que se situa a meio caminho entre o “real” imediato e a simulação “pura” acionada pelo dispositivo imagético. Uma montagem que não visa ao encaixe perfeito, mas que deixa transparecer propositalmente a diferença dos elementos que a integram. Aqui retornam as técnicas de incrustação em vídeo de que tanto nos fala Dubois (2004) – como diz o autor, o que mais chama a atenção nesse tipo de técnica é a possibilidade que ela cria de gerar composições de imagens provindas de diferentes tipos de fontes, sobretudo através de operações que combinam a imagem do corpo de atores com imagens projetadas ao fundo, que se mesclam “como duas realidades independentes agenciadas no mesmo quadro” (DUBOIS, 2004, p. 194). Não estamos mais diante da composição, mas da mixagem de fluxos de duração interdependentes que colidem em alguns pontos, criando zonas de tensão. Dubois cita uma cena do filme Sherlock Jr. (Buster Keaton, 1924) em que um projetista de cinema adormece durante uma sessão e sonha que está, literalmente, dentro do filme projetado: uma vez dentro do filme, na medida em que ocorrem as trocas de cenas, o personagem se vê sempre diante de um novo cenário – em um momento está prestes a sentar em um banco, quando há o corte e a cena muda para uma rua em que muitos carros estão passando, o banco desaparece e ele previsivelmente cai no chão ao mesmo tempo que é quase atropelado por um dos veículos; assim que se levanta, decide caminhar, mas a cena troca novamente para um cenário desértico e o personagem, que está agora à beira de um desfiladeiro, é obrigado a se equilibrar na ponta dos pés para não despencar. E assim a sequência do “filme dentro do filme” prossegue, sempre com o personagem escapando por um triz, para então mergulhar no plano seguinte. Apesar de não ter sido filmada em chroma key, a cena representa o espírito da operação de incrustação que mais tarde iria se naturalizar no vídeo, principalmente em relação a como o corpo dos atores é envolvido pelas trocas de imagens-cenários: para Dubois (2004, p. 199),

“[o] cenário é a imagem. O corpo é o

estrangeiro. Eles deslizam um sobre o outro até se incorporarem. Assim é a incrustação keatoniana”. E assim, poderíamos complementar, é também a lógica da incrustação migrando do cinema para o vídeo e do vídeo para os audiovisuais locativos. No fora de campo radical que é a memória evocada pelas imagens em experiência com mídias locativas, encontramos o cinema com todas as suas técnicas e toda a sua imaginação: o usuário do dispositivo móvel é

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como o personagem de Buster Keaton, o qual desejava habitar o filme, ser envolvido em todos os sentidos pelo mundo imaginário que se desdobrava em frente ao seu olhar, porém, não conseguindo permanecer de fato em nenhum lugar, acabava por tornar-se uma espécie de estrangeiro em todos os mundos pelos quais passava. Mas não é somente na memória do cinema, este inesgotável suplemento de imaginação de nossa cultura, que a experiência aurática com audiovisuais locativos evoca referências. Poderíamos trazer também todas as formas de transformação da paisagem que se atualizam em obras de arte site-specific e nos trabalhos de intervenção urbana realizados por vários artistas. Já tratamos um pouco da relação entre obras de site-specific e a montagem que se opera entre espacialidades urbanas e imagens técnicas no capítulo anterior, contudo, pouco falamos do papel do corpo e do potencial das intervenções como forma de alteração espacial. Nas estéticas de conectividades híbridas dos audiovisuais locativos, o mobiliário urbano e todos os elementos que integram o espaço são enunciados como parte de um banco de dados virtual que conjuga em pé de igualdade conteúdos físicos e informacionais. A intervenção é uma operação de transformação, sobretudo de significação, de lugares e objetos já-prontos (readymades) tal como fazia Duchamp ao transportar para o espaço das galerias objetos de uso cotidiano. Assim também procediam os membros de grupos de vanguarda do século XX, como os situacionistas, que desenvolveram a técnica de détournement (desvio) como uma das formas mais radicais de “desvio de elementos estéticos pré-fabricados” (I.S., 2003, p. 66). O détournement consiste em uma técnica de ressignificação operada através da intervenção sobre produtos culturais e midiáticos – geralmente propagandas, histórias em quadrinhos ou outras formas associadas à ideologia capitalista – com vistas a distorcer, alterar e inverter o sentido da mensagem original. Uma vez que se apresenta como uma técnica de apropriação e intervenção sobre coisas pré-fabricadas (uma operação que lembra os readymades de Marcel Duchamp), o détournement não seria propriamente um meio para produção de obras situacionistas, como música e pintura, mas, por outro lado, um modo de estimular um uso situacionista desses recursos. Assim como as intervenções situacionistas, que tinham como intuito provocar deslocamentos de sentido sobre objetos pré-fabricados, projetos de mídias locativas que se baseiam em práticas de anotações arqueológicas também expressam um desejo de transformação semântica através da adição de dados informacionais aos espaços urbanos – em ambos os casos são adotadas estratégias de intervenção pontuais (a troca de um elemento de lugar, a adição de um novo texto sobre uma composição) que resultam em algum tipo de mudança, deslocamento ou inversão do significado do objeto ou lugar que sofre a ação

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desviante. O projeto Tactical Sound Garden,85 que poderia ser traduzido para o português como “jardim tático sonoro”, do artista Mark Sheppard, é uma aplicação para dispositivos móveis que permite “plantar” sonoridades (músicas, depoimentos, ruídos etc.) em espaços urbanos. Na medida em que vários usuários geram indexações sonoras vinculadas a uma determinada região de uma cidade, gradualmente um “jardim sonoro” começa a surgir. Dessa maneira, quando qualquer pessoa munida de um dispositivo móvel com a aplicação instalada passa por uma área urbana em que sons tenham sido “plantados”, o software se encarrega de avisar e executar os conteúdos. As diferenças entre as práticas de anotações com mídias locativas e as de détournement situacionista começam pelos próprios objetos escolhidos para realização das intervenções: no caso dos situacionistas, a escolha se dava preferencialmente por produtos da indústria cultural (revistas em quadrinho, cartazes promocionais e propagandas, filmes, músicas etc.); já no caso dos projetos anotativos, a intervenção é realizada sobre lugares, vias de circulação e objetos do mobiliário urbano das cidades (ruas, praças, parques, edifícios, monumentos). Curiosamente, tal ideia de apropriação temporária de lugares e objetos do mobiliário urbano como “objetos” e “lugares” de arte readymade já havia sido antecipada tanto por Duchamp quanto pelos próprios situacionistas. Em 1917, Duchamp declarou o edifício Woolworth, de Nova York, como o primeiro readymade urbano da história da arte. Já os situacionistas sugeriam que a técnica de détournement poderia ser aplicada a um nível de intervenção urbanística. No texto Um guia para usuários do deturnamento, publicado originalmente em 1956, Guy Debord e Gil Wolman (2003) propuseram que bairros inteiros de uma cidade fossem “reconstruídos”, integralmente, em outra cidade:

Comenta-se que em sua velhice D’Annunzio, aquele suíno pró-fascista, mantinha a proa de um barco torpedeiro em seu parque. Sem considerar seus motivos patrióticos, a ideia de tal monumento não está isenta de um certo charme. Se o deturnamento fosse estendido a realizações urbanísticas, não seriam poucas as pessoas que seriam afetadas pela exata reconstrução em uma cidade de um bairro inteiro de outra. A vida nunca pode estar demasiado desorientada: o deturnamento neste nível realmente a faria bela. (DEBORD; WOLMAN, 2003, p. 137).

Por certo, o teor mesmo das intervenções propostas pelos situacionistas, quase sempre voltados para a crítica aos modelos modernistas da arte, da arquitetura e do urbanismo, nem sempre coincide com os de projetos com mídias locativas, que apresentam um leque mais amplo de abordagens temáticas, frequentemente voltadas à produção de memória sobre os 85

Disponível em: . Acesso em: 05 de julho de 2013.

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lugares, ao entretenimento e ao uso social dos espaços. De todo modo, ambas as práticas guardam semelhanças entre si, principalmente por atuarem através de processos de intervenção em nível simbólico sobre objetos e lugares, abrindo seus significados para novas interpretações e conectando o cotidiano ao imaginário artístico. Dessa maneira, o potencial expressivo oferecido pelas mídias locativas vem possibilitando uma espécie de naturalização e ampliação de certos conceitos e estéticas que já foram em muitos sentidos antecipados por artistas e movimentos de vanguarda intelectual do século passado. No próximo capítulo, aprofundaremos o olhar genealógico sobre o movimento situacionista que demos início aqui, desta vez com foco na teoria e prática da deriva, a qual se tornou referência central para muitos projetos artísticos com mídias locativas que buscam enunciar o ato de caminhada como um gesto estético de exploração e conhecimento de territórios. Mas antes de irmos adiante, façamos aqui um resumo do percurso realizado ao longo desta etapa. Partimos de um conjunto de imagens exibidas nas telas de telefones celulares. Tais imagens se mostravam “íntegras”, conforme observamos e delas extraímos uma primeira noção que nos serviu de base, ao longo do texto, para avançarmos em outras direções. Tal noção foi a de que tais imagens exibidas nas telas dos dispositivos móveis dialogavam com aquelas do ambiente de recepção em que o consumo dos chamados aplicativos de cinema de caminhada se dá. Até aí nada de novidade, a não ser o fato de que logo associamos a essa operação de vinculação entre diferentes sistemas de imagens outra operação, a montagem espacial, que já vínhamos perseguindo desde o capítulo anterior e que aqui se deu a ver novamente quando passamos a comparar as imagens enquadradas pelos dispositivos móveis com outros tipos de enquadramentos. Interrogamos então em quais aspectos o movimento que observávamos se desenrolar nos objetos analisados se relacionava com nosso conhecimento sobre as operações de montagem espacial cinematográficas e videográficas. Após nos embrenharmos um tanto nessa discussão sem resolvê-la de todo, incluímos no conjunto mais um elemento: um sujeito observador, responsável por hospedar, em seu corpo, distintas sensações espaciais produzidas durante a percepção de imagens técnicas e ambientais. Assim, avançamos sobre as análises de fotogramas extraídos de vídeos de divulgação de aplicações de cinema de caminhada e descobrimos que a base sobre a qual se fundam as relações entre as imagens “no campo” e as “fora de campo” se dão, sobretudo, pela oposição entre elementos presentes e ausentes, excessivos ou escassos etc., percebidos quando se comparava um tipo de imagem com outro. A essas oposições, que em princípio acreditávamos serem somente de ordem espacial, atribuímos uma qualidade temporal ao adicionarmos ao conjunto outro elemento: a memória de um sujeito engajado na experiência. O trabalho da consciência no

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processo de seleção de imagens-lembrança armazenadas na memória nos auxiliou a compreender o mecanismo responsável por interpor no fluxo da percepção conjuntos de imagens que passam a atuar como filtros entre o corpo e a percepção da matéria. É pela via desse mecanismo que mudanças na percepção espacial tomam forma no contexto dos audiovisuais locativos, o que nos levou a formular o conceito de paisagem aurática, a qual remete a uma experiência de proximidade distanciada entre o corpo e o espaço. Tal conceito constitui-se, para nós, como a base sobre a qual se funda a experiência espacial no contexto das estéticas de conectividades híbridas com mídias locativas. Conforme também começamos a esboçar ao longo deste capítulo, observamos uma tendência nas imagens dos audiovisuais locativos de atuarem não como representações do mundo mas como operadores da vista no processo de interação do corpo com espaços físicos e geográficos. Nesse sentido, atribuímos a tais imagens uma certa função de mapa (justamente por instruírem a interação do corpo no espaço) ou, ainda, conforme será melhor desenvolvido no próximo capítulo, uma certa função de algoritmo performativo. Na parte final do capítulo, nos dedicamos a analisar algumas modalidades de mixagens espaciais – conceito por nós formulado que atualiza a noção de montagem espacial num contexto em que as imagens já não são mais percebidas, mas intuídas no interior do corpo através de entrelaçamentos de sensações hápticas. Tais modalidades de mixagens espaciais se apresentam, segundo nossas análises, a partir de, pelo menos, duas operações que se destacam: a) Alternância da visão entre diferentes escalas de perspectiva e distância (tensão entre a imagem técnica, próxima ao observador, e a paisagem ao fundo, como nos casos de cinema de caminhada; tensão entre vista aérea [mapa] e a vista que se dá no nível do solo); b) Jogos de tensionamento no interior do quadro entre imagens pré-gravadas e imagens captadas em simultâneo pela câmera do dispositivo (como nos casos que empregam o princípio de realidade aumentada móvel).

Ainda, ao tratarmos brevemente sobre a natureza de imagens que se produzem em uma peça performática como A Machine to See With, deixamos aberta a possibilidade de uma terceira operação de mixagem espacial baseada em imagens não-visuais, isto é, que toma forma a partir de estímulos sonoros, os quais, ao serem assimilados pelo corpo, passariam a atuar como um filtro sobreposto à percepção do espaço na medida em que o usuário de dispositivos móveis se desloca pelo território. Aqui a imagem já não aponta nem para o seu

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interior nem para o seu exterior, ela simplesmente age em sincronia com a percepção do espaço (mixagem espacial), numa espécie de circuito fechado em que a percepção da paisagem emerge do próprio gesto de deslocamento do corpo pelo espaço quando orientado por conjuntos de instruções algorítmicas fornecidas através de diferentes fontes de estímulos. Dada a complexidade dessa última modalidade de mixagem espacial, dedicaremos o próximo capítulo a tentar melhor descrevê-la.

4. ALGORITMOS PERFORMATIVOS DE NARRATIVA E DERIVA

Num contexto em que o espaço físico e geográfico apresenta-se o tempo todo como “tela”, isto é, como o suporte para discursos e práticas criativas diversas, conceitos como os de movimento, locação, espaço e contexto se tornam instâncias fundamentais de análise e reflexão. E são esses eixos que fazem surgir a problemática do corpo como um importante vetor analítico para pensarmos a atualização de devires audiovisuais em espacialidades físicas e geográficas. Como diria Yeregui (2011), se atribuímos às mídias móveis o caráter de mobilidade, é antes à mobilidade do corpo que devemos nos referir. Ainda, complementa a autora (idem, p. 118), no contexto da criação estética com mídias locativas,

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[...] se as paisagens apresentam-se de maneiras peculiares, se os dispositivos transitam pelas geografias, se são produzidos movimentos traçáveis e visualizáveis dentro dos espaços sociais, é porque o corpo possibilita um perambular e um trânsito dinâmico, criador de discursos: uma espécie de motor físico e conceitual.

Assim, propomos, neste capítulo, analisar o corpo em sua dimensão performativa, isto é, nos desdobramentos performáticos que se dão a ver tanto no modo como o corpo percorre o espaço como também nas relações dialógicas com o dispositivo móvel, com a geografia do território, com o entorno social e com a esfera dos imaginários acionados em experiências com audiovisuais locativos. Nos trabalhos artísticos com mídias locativas, o caráter performativo se manifesta, certamente, quando o corpo dota de movimento o dispositivo, mas também, e em sentido complementar, quando o dispositivo responde ao movimento do corpo, incitando-o a prolongá-lo, impelindo-o à errância, à exploração do espaço, à deriva. É nessa encruzilhada que compreendemos a noção de corpo em movimento em simbiose com o dispositivo móvel, duas instâncias que devem ser pensadas em conjunto, de modo que a questão “quem está movendo quem?” deixa de ser produtiva. Interessa, portanto, compreender como a experiência de deslocamento do corpo no espaço – seja este o espaço urbano, o espaço fílmico que se desdobra diante do olhar de um espectador, o espaço informacional da web e dos ambientes imersivos (como o dos jogos de videogame, por exemplo), ou, ainda, o espaço intersticial derivado da fusão entre todos eles – produz experiências estéticas, narrativas e performáticas que assumem o audiovisual como um “fundo” (ou, ainda, como reserva de imaginação) para práticas que se efetuam em diálogo com o território e a paisagem urbanos. Questionamos, em primeiro lugar, como o movimento do corpo em deslocamento pode transformar a experiência de percepção e compreensão do espaço: quando caminhamos pelas ruas de uma cidade ou quando navegamos pelos links da web, ou, ainda, quando exploramos os cenários de um ambiente computacional imersivo (como num jogo de videogame), em quais momentos nos sentimos mais conscientes de nossos atos e em quais outros nos permitimos que o gesto de deslocamento se efetue ao azar, sem que controlemos o fluxo de nossas ações? Ainda, nos interessa intuir nas práticas de caminhada aportadas pelas mídias locativas os rastros de um imaginário audiovisual que encontra sua gênese no simples ato de deslocamento do corpo entre volumes, obstáculos e acidentes do território percorrido.

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Em termos gerais, tomamos como ponto de partida a ideia simples de um corpo (físico ou virtual, tanto faz) que se desloca por um espaço qualquer, observando as diferentes formas que este gesto pode assumir, desde a deambulação livre até o caminhar algoritmicamente orientado, para então avançarmos sobre as possibilidades estéticas, narrativas e performáticas que surgem quando o gesto de caminhada se efetua em diálogo com tecnologias computacionais móveis. Ainda que o gesto de caminhada não produza, em princípio, uma alteração física sobre o espaço percorrido, implica, assim mesmo, em uma transformação do lugar e de seus significados. Para Careri (2003), a simples variação das percepções corporais decorrentes da travessia do espaço constitui já uma forma de transformação da paisagem que, ainda que não deixe sinais tangíveis, modifica culturalmente o significado do espaço e, em consequência, o espaço em si. Por certo, uma das formas mais conhecidas de exploração do espaço (do espaço urbano mas também do espaço informacional) é a deriva, um conceito que já foi extensamente praticado e teorizado em diferentes contextos, sobretudo pelos integrantes do movimento de vanguarda do século XX batizado como Internacional Situacionista. A deriva constitui, portanto, o nosso ponto de referência a partir do qual avançaremos em direção a a diferentes práticas de exploração e conhecimento dos territórios urbanos através do gesto de caminhada, dentre as quais daremos especial ênfase a duas linhas de reflexão. Primeiramente argumentamos que o ato de caminhar pelo espaço urbano, a partir do qual o corpo em deslocamento conecta vários espaços pelos quais passa, encontra afinidades com o ato de consumo de audiovisual, no qual o corpo do espectador, mesmo que em repouso, também se coloca diante de uma experiência de mobilidade espaço-temporal à medida que o cinema (bem como qualquer tipo de audiovisual) apresenta o potencial para transportá-lo através de um caminho marcado pela passagem e pela alternância de lugares e tempos diversos. Nesse sentido, quando falamos em mobilidade do corpo, devemos buscar também compreender a genealogia do olhar engendrado por esse corpo em movimento, que, segundo a perspectiva oferecida por autores como Benjamin (2011) e Eisenstein (1989 e 2002b), constitui a matriz comum ao cinema e à arquitetura. Em segundo lugar, partimos do pressuposto de que hoje em dia o deslocamento do corpo pelos espaços (insistimos, quaisquer espaços) não pode ser pensado sem que levemos em consideração a mediação técnica dos aparelhos tecnológicos presentes nas sociedades computadorizadas, mesmo quando estes não estejam atuando de forma explícita sobre a experiência espacial. O que estamos propondo é que os espaços gerados computacionalmente assumem-se, cada vez mais, como meios que orientam e modelam nossa compreensão acerca

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de todos os espaços, inclusive dos espaços físicos e geográficos. Assim, interessa também compreender as propriedades narrativas, performáticas e estéticas que o deslocamento do corpo pode assumir em ambientes navegáveis imersivos (como nos jogos de videogame) e semi-imersivos (como em algumas instalações multimídia). Na etapa final do capítulo, buscamos analisar alguns casos de audiovisuais locativos, os quais são discutidos desde a perspectiva das formas de enunciação imagética que produzem sobre o espaço quando atravessado por corpos em movimento orientados por algoritmos performativos.

4.1

DERIVAS, EXPLORAÇÕES E INSCRIÇÕES DO CORPO NO ESPAÇO Foi no compasso de um certo desejo à desmaterialização do objeto da arte e à

valorização do processo artístico em detrimento de seu produto final que movimentos de vanguarda artística e política surgiram em todo o mundo desde o princípio do século XX, principalmente na Europa e nos Estados Unidos. Ao logo desse período ganharam destaque diversas formas de arte que priorizavam as estéticas de fluxo (ARANTES, 2010), tais como as performances, os happenings, as intervenções site-specific, a videoarte, dentre outras. Curiosamente, a acelerada e intensa penetração de recursos tecnológicos informacionais no campo das artes e da comunicação ocorrida na virada para o século XXI – sobretudo em decorrência do surgimento do vídeo digital, dos computadores, da internet e mais recentemente dos dispositivos móveis – ao contrário de ter provocado uma ruptura com as estéticas do século XX, intensificaram ainda mais algumas das propostas que já vinham sendo amplamente exploradas e difundidas pelos artistas do passado, dentre as quais se destacam as estratégias de ocupação e uso do espaço com o corpo, de modo a produzir novas formas de entendimento sobre a arquitetura e a geografia dos territórios urbanos. Tais práticas são encontradas nas ações urbanas realizadas por movimentos de vanguarda como o Dadaísmo, o Surrealismo e o Situacionismo, mas também nas performances de artistas como Richard Long, Vito Acconci, Yoko Ono e Janet Cardiff, conforme veremos neste capítulo. Em seu livro Walkscapes: walking as an aesthetic practice, Francesco Careri (2003) analisa diversas culturas e movimentos artísticos que demonstraram preocupação especial com a ideia de emprego consciente do ato de caminhada como instrumento fenomenológico de conhecimento e de interpretação simbólica dos territórios. A genealogia da prática de caminhada proposta por Careri remonta ao Egito e à Grécia antiga e percorre um longo caminho até alcançar movimentos de vanguarda como o Dadaísmo, Surrealismo e o

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Situacionismo. Em todas as suas variações, o deslocamento do corpo pelo espaço traz à tona um mesmo elemento: o desejo de constituir o ato de caminhar como gesto estético. Ao longo da história, o ato de deslocamento espacial do corpo, principalmente através do gesto de caminhada, esteve frequentemente associado a práticas sagradas e religiosas. Em algumas culturas primitivas, o deslocamento do corpo pelo espaço remetia a uma ideia de trajetória enquanto percurso mítico. Os povos ancestrais australianos, por exemplo, desenvolveram um eficiente sistema de caminhadas a parti do qual conseguiram mapear todo o continente. O walkabout86, como é conhecida esta prática de caminhada preservada até hoje entre os membros das comunidades aborígenes, associa a configuração territorial a narrativas: cada montanha, cada rio e cada poço de água pertence a um conjunto de histórias-trajetos que auxiliam a lembrar sua localização ao mesmo tempo que se entrelaçam para formar uma grande narrativa sobre as origens da humanidade. Assim, toda a tradição aborígene é transmitida de geração após geração através de uma complexa epopeia mitológica formada por histórias e geografias que estabelecem a ênfase sobre o próprio espaço. Cada caminho possui sua própria narrativa, que é apresentada na forma de um cântico, de modo que, em conjunto, todas as narrativas constituem uma espécie de guia ou mapa cantado dos lugares. Segundo Careri (2003, p. 48, tradução nossa), “[é] como se o Tempo e a História fossem reatualizados repetidas vezes ao serem ‘caminhados’, percorrendo novamente os lugares e os mitos ligados a eles, em uma deambulação musical que é ao mesmo tempo religiosa e geográfica”87. Na literatura, o tema do deslocamento espacial sempre esteve muito presente sobretudo nas histórias que narram as experiências, descobertas e reflexões vividas por um viajante durante sua jornada. Desde o poema épico a Odisseia, que teria sido escrito por Homero, por volta do século VIII a.C, são recorrentes as histórias de viagem, formando uma espécie de matriz literária da cultura ocidental baseada nos relatos de expedições a terras desconhecidas, nos romances de guerra, nas aventuras de personagens errantes, no testemunho de autores exilados, dentre outros temas que associam a jornada espacial com a narração literária. (LANGROUVA, 2003). A ideia de jornada na literatura de viagem geralmente está vinculada às experiências humanas de fuga, exílio, saudade da pátria e da família, regresso ao lar, bem como aos desejos de encontrar o desconhecido e de evolução espiritual; estão também 86

O termo walkabout não possui tradução literal em português, mas pode ser compreendido em seu idioma de origem, o inglês, como “andar ao redor” ou “andar por aí”. 87 No original, em inglês: It is as Time and History were updated again and again by “walking them”, recrossing the places and the myths associated with them in a musical deambulation that is simultaneously religious and geographic.

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associados ao tema da jornada os ritos de passagem que exprimem a necessidade de renovação e de regeneração, alcançadas através do enfrentamento de obstáculos que surgem ao longo do trajeto. No contexto religioso, a procissão e a peregrinação remetem a formas de encenação que representam espacialmente acontecimentos e histórias religiosas. Na tradição das peregrinações, frequentemente o itinerário dos peregrinos são criados segundo lendas e histórias de caráter sagrado. Segundo Bruno (2006), em uma peregrinação a viagem é orientada pela visitação de lugares específicos, dotados de significado histórico e religioso especiais. Ao longo do caminho a peregrinação estabelece pontos de parada, as chamadas “estações”, que se conectam narrativamente entre si. Assim, o caminho se desenrola narrativamente, “extraindo histórias de trajetórias espaciais e itinerários de histórias”88 (BRUNO, 2002, p. 63, tradução nossa). No entanto, é a partir do século XX que a caminhada passa a se distanciar mais dos temas narrativos literários e do contexto religioso para adquirir o estatuto de ato estético levado a cabo por artistas e movimentos de vanguarda cultural. Nos anos 1920, foram os dadaístas os primeiros a formularem um programa de desorientação no espaço urbano, organizando, em Paris, excursões urbanas aos lugares mais banais da cidade. Segundo Careri (2003), as excursões urbanas dadaístas marcam a primeira vez em que deliberadamente os lugares consagrados e reputados de exposição artística eram preteridos pelos artistas. Em 4 de abril de 1921, os então membros do movimento Dada, realizaram uma visita ao pequeno jardim que ficava em frente à igreja de Saint-Julien-le-Pauvre, em Paris. Apesar de ter sido um evento discreto e sem grandes repercussões, seria este o marco inicial de uma sequência de ações artísticas que deixavam as salas de exposição para se alojarem a céu aberto nas ruas da cidade (Figura 29).

88

No original, em inglês: […] making stories out of spatial trajectories and itineraries out of stories.

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Figura 29 – Pôster da visita dadaísta à igreja Saint-Julien-le-Pauvre

Fonte: Tate.org. Disponível em: . Acesso em: 15 de novembro de 2013.

Para Careri (2003), a visita dadaísta ao jardim da igreja de Saint-Julien-le-Pauvre marcava a passagem de um contexto de reflexão sobre o tema do movimento (então em voga sobretudo na arte do Futurismo) para a sua materialização efetiva na forma de ações que tomavam o ambiente urbano como cenário. Assim, os dadaístas contrapunham à representação da cidade do futuro, presente em obras de pintura e escultura dos futuristas, a ideia de habitar e percorrer a cidade da banalidade. Para Careri (2003, p. 73, tradução nossa):

A cidade dadaísta é uma cidade da banalidade que abandonou todas as utopias hipertecnológicas do Futurismo. A frequentação e as visitas a lugares insípidos representou para os dadaístas um modo concreto de alcançar a dessacralização total da arte com o fim de chegar à união da arte com a vida, do sublime com o cotidiano.89

89

No original, em inglês: The Dada city is a city of the banal that has abandoned all hypertechnological utopias of Futurism. The frequentation and visiting of insipid places represented, for the Dadaists, a concrete way of arriving at the total secularization of art, so as to achieve a union between art and life, the sublime and the quotidian.

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A subjetividade de um caminhante errante que marca o olhar para a cidade é retomada por Benjamin, sobretudo em seu livro Passagens, ao formular a ideia da cidade como um dispositivo de escritura da história, das vozes, desejos, sonhos e memórias que integram o imaginário social. É nesse contexto que encontramos a figura do flâneur, personagem urbano que expressa uma percepção dispersa e distraída para o espetáculo da cidade. Com os dadaístas, a flanerie é elevada ao nível de uma operação estética que se realiza no corpo da cidade, uma forma artística que se realiza com o próprio corpo em movimento, sem suportes materiais e em “tempo real”. Se em 1917 Duchamp havia declarado o edifício Woolworth, localizado em Nova York, como um primeiro objeto arquitetônico readymade, os dadaístas, ao organizarem uma visita ao jardim da igreja de Saint-Julien-le-Pauvre estavam propondo o primeiro readymade urbano da história da arte, produzido através de uma operação simbólica que atribuía valor estético a um lugar em vez de a um objeto. (CARERI, 2003). Esta seria a primeira vez que um lugar era colocado em primeiro plano sem que para isso o artista tivesse de representá-lo através de algum tipo de suporte material (pintura, filme, fotografia, escultura, cenografia) ou tivesse de intervir diretamente sobre ele (fosse através da instalação de objetos ou ornamentos, fosse deixando marcas físicas no espaço ou extraindo elementos do local visado pela ação artística). A errância no espaço urbano evocada pela visita dadaísta ao pequeno jardim da igreja Saint-Julien-le-Pauvre serviu de base para um conjunto de ações de intervenção artística sobre o espaço urbano realizadas por outro movimento artístico: o Surrealismo. Em 1924, alguns membros do grupo dadaísta de Paris organizaram um passeio a campo aberto em uma região rural na periferia da cidade. Nesta ocasião, o grupo descobria no andar um ativador do inconsciente, “uma espécie de escritura automática no espaço real capaz de revelar as zonas inconscientes do espaço e as memórias represadas da cidade”90 (CARERI, 2003, p. 22, tradução nossa). Mais tarde, alguns membros do movimento dadaísta que estiveram presente nesse passeio, dentre os quais Breton, foram os responsáveis pela fundação do Surrealismo. Os surrealistas buscaram superar o dadaísmo desviando o foco de suas ações do caráter francamente niilista para o terreno da psicologia, em que exploravam o potencial do inconsciente ativados pela via da arte. Com Breton, Aragon e Picabia, dentre outros, os surrealistas promoviam caminhadas que podiam durar até muitos dias e que tinham como objetivo promover estados perceptivos em que as fronteiras entre a vida consciente e o sonho

90

No original, em inglês: a sort of automatic writing in real space, capable of revealing the unconscious zones of space, the repressed memories of the city.

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se tornassem cada vez mais difusas, estabelecendo franca oposição à racionalidade cartesiana. Conforme Arantes (2010, p. 79):

A cidade dos surrealistas não revela um espaço regrado e seguro como as cidades de Platão e Descartes; não é metáfora das certezas e verdades prometidas pelos ideais da Razão, mas um espaço prenhe de sonhos, desejos, cruzamentos insólitos, imagens dialéticas, ambiguidades e passagens que devem ser decifradas. A cidade dos surrealistas revela espaços que, tais como os sonhos, trazem encruzilhadas, trechos contraditórios que se misturam, produzindo, muitas vezes, curtos-circuitos iluminadores (iluminação profana). Seus meandros e ruelas não descrevem e não são fruto de um arquiteto engenhoso, mas da vivência daqueles que, assim como Le paysan de Paris, ousam caminhar por outras bifurcações que não aquelas impostas pela razão instrumentalista.

A contribuição dos surrealistas em relação ao uso do gesto de caminhada como ação estética se deu, portanto, no terreno da criação de uma estratégia de liberação dos fluxos inconscientes do território percorrido. Contudo, foram os situacionistas que, ao atualizarem as deambulações surrealistas através da teoria e da prática da deriva, alçaram o gesto de caminhada a um novo patamar de transformação simbólica do território urbano. Com origens que remontam aos movimentos Letrista e Internacional Letrista, as preocupações iniciais dos situacionistas estavam ligadas à superação de certos paradigmas e padrões estéticos que haviam sido estabelecidos com os artistas modernistas do início do século XX. Nesse sentido, propunham a criação de uma noção de arte integrada à vida cotidiana, que transpusesse as fronteiras físicas e institucionais dos espaços de exposição e que fosse capaz de incentivar a participação ativa e efetiva dos públicos espectadores. Não demorou para que se dessem conta de que tal conceito de “arte integral” a que almejavam deveria necessariamente estar relacionada com o espaço das cidades e da vida urbana em geral – conforme afirmava Debord (2003b, p. 55), “[a] arte integral, de que tanto se falou, só se poderá realizar no âmbito do urbanismo”. É nessa fase do movimento que as preocupações com a arquitetura e o urbanismo crescem entre os seus membros, dando origem a uma série de textos e ações que se voltavam para o debate sobre como os ambientes das cidades poderiam ser transformados em espaços lúdicos e criativos. Contudo, ainda que houvesse no discurso dos situacionistas um claro desejo de renovação das cidades, o Urbanismo Unitário, termo criado para designar uma teoria de emprego conjunto de artes e técnicas para a construção de ambientes que interligariam de forma dinâmica experiências e comportamentos humanos, não seria propriamente uma doutrina do urbanismo mas sim uma crítica aos seus modelos e padrões baseados em preceitos

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funcionalistas. Inicialmente, como proposta para que uma integração total entre a arte e a vida cotidiana nos centros urbanos fosse plenamente atingida, os situacionistas sugeriam literalmente a construção de novas cidades, contudo, com o passar do tempo, passaram a se dedicar mais a propostas de criação de experiências efêmeras – ou situações – de apropriação dos espaços urbanos através de procedimentos e técnicas diversas que deveriam ser realizadas sobre as cidades e as construções existentes. Em larga medida, essa mudança gradual no posicionamento dos situacionistas se mostrava coerente com a ideia de que uma cidade “ideal” não poderia ser construída a partir de um modelo pré-concebido – um “modelo”, segundo Jacques (2003, p. 28), “acaba congelando, restringindo e aprisionando o próprio discurso que pregava a mobilidade, a liberdade total e a criação da cidade pelos seus habitantes” – mas, por outro lado, deveria emergir da vontade individual de cada cidadão e do coletivo. Como estratégia adotada para alcançar o projeto situacionista de construção de ambientes que estimulassem a vivência e a experimentação da cidade, foi criado um procedimento ou método, a psicogeografia, que, segundo Debord (2003a, p. 39), seria o “estudo dos efeitos exatos do meio geográfico, conscientemente planejado ou não, que agem diretamente sobre o comportamento afetivo dos indivíduos”. Segundo Jacques (2003, p. 23), a psicogeografia seria uma “geografia afetiva, subjetiva, que buscava cartografar diferentes ambiências psíquicas”. Para alcançar tal propósito, os situacionistas desenvolveram uma prática ou técnica, a deriva (dérive). A deriva pode ser descrita como uma “técnica da passagem rápida por ambiências variadas” (I.S., 2003, p. 65), um vagar por uma localidade, geralmente urbana, tendo como objetivo criar condições para que os estímulos sensoriais e afetivos que emanam do ambiente, suas sonoridades, aromas, formas arquitetônicas possam ser sentidos intensamente pelo sujeito que caminha pela cidade. Para Debord (2003c, p. 87), a prática da deriva estimula as pessoas a rejeitarem “os motivos de se deslocar e agir que costumam ter com os amigos, no trabalho e no lazer, para entregar-se às solicitações do terreno e das pessoas que nele venham a encontrar”. Nesse sentido, a deriva se configura como uma técnica experimental para construção de novos comportamentos e novas formas de habitar a cidade que se opõe a outras formas de utilização do espaço urbano, tais como o passeio turístico, de lazer ou terapêutico, o deslocamento para o trabalho, o uso do espaço para exercícios físicos e práticas esportivas, dentre outras. Além de se configurar como uma forma de ação no espaço, a deriva é também um meio experimental de conhecimento do espaço que se difere de outros procedimentos, como a

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leitura de fotos áreas e de mapas e o estudo de estatísticas, de gráficos ou de resultados de pesquisas sociológicas, os quais não apresentam a dimensão ativa e direta próprios da experiência empírica proporcionada pelas técnicas de deriva. Diferentemente

da

deambulação

surrealista,

que

baseava-se

fortemente

na

imprevisibilidade do acaso, a deriva situacionista apesar de dar continuidade à proposta de leitura subjetiva da cidade iniciada pelos surrealistas, propunha sua superação ao transformar o ato de caminhada em um método objetivo de exploração da cidade a partir do qual aquele que realiza a deriva detém o controle dos meios e dos comportamentos adotados durante a sua prática. Ainda que o acaso seja aceito como parte fundamental da experiência, a técnica de deriva não se baseia somente nele, posto que estabelece determinadas regras e parâmetros para acontecer: desde o raio de abrangência da região explorada durante a deriva, o número de participantes, os pontos de acesso ao território, a duração da prática, dentre outros balizadores. Portanto, todo o programa situacionista se diferencia da proposta surrealista por estabelecer a centralidade das regras como parte fundamental da experiência de compreensão e ação sobre o território das cidades (ainda que tais “regras” estivessem vinculadas, por vezes, à formulação de procedimentos subversivos, estabelecidos em oposição a certos padrões sociais, culturais e institucionais os quais os situacionistas buscavam desestabilizar com suas situações construídas). Outra diferença é que enquanto os surrealistas se esforçavam para buscar um descolamento do cotidiano pela via da deambulação, incentivando o mergulho nas profundezas do inconsciente, os situacionistas se voltavam para a ação transformadora do ambiente urbano. Para eles o sublime não deveria ser buscado fora do mundo cotidiano, mas, diferentemente, segundo Careri (2003, p. 94, tradução nossa), era “a própria realidade que deveria se transformar em algo maravilhoso”91. Em comum, dadaístas, surrealistas e situacionistas compartilhavam um gosto pelas intervenções urbanas, demonstrando sensibilidade para as transformações contemporâneas. Todos estes movimentos souberam como perscrutar o inconsciente da cidade (TIBERGHIEN, 2003), de modo muito próximo ao que fez Benjamin ao examinar, através da figura do flanêur, a Paris do século XIX. Além dos referidos movimentos de vanguarda, ao longo do século XX outros artistas propuseram estratégias de intervenção que tomavam o corpo em deslocamento como um gesto estético de transformação do espaço em paisagem.92

91

No original, em inglês: […] reality itself had to become marvelous. O termo “paisagem” é utilizado aqui no mesmo sentido proposto por Careri (2002), como referência ao ato de transformação do espaço, seja esta transformação física ou simbólica. 92

183

Além dos dadaístas, surrealistas e situacionistas, ao longo do século XX outros artistas também propuseram estratégias de orientação e regulação do gesto de caminhada pelo espaço da cidade com vistas à criação de experiências estéticas. Na performance Following Piece, de Vito Acconci, realizada em Nova York, em 1969, o artista selecionava uma pessoa qualquer que estivesse passando na rua e começava a segui-la até que ela entrasse em algum lugar no qual ele não pudesse entrar (como na residência de alguém ou em um táxi). O ato de seguir poderia durar de alguns poucos minutos a muitas horas – por exemplo, se a pessoa seguida resolvesse entrar em um cinema ou em um restaurante, Acconci também deveria entrar no lugar e esperá-la até que continuasse seguindo o seu trajeto até o final. Ao estabelecer certas “regras” para a performance – seguir uma pessoa qualquer que estivesse passando pela rua até que ela entrasse em algum lugar inacessível ao artista – Following Piece atualiza a estratégia de utilização de limitadores para definir o percurso de deslocamento do corpo do artista pelo espaço. A questão principal, contudo, é observarmos que as regras impostas por Acconci em sua performance visavam unicamente garantir que o percurso estabelecido não seria proposto pelo artista, isto é, garantir que o corpo do artista estivesse livre de quaisquer influências subjetivas (conscientes ou inconscientes) que viessem a orientar o ato de deslocamento espacial – afinal de contas, não há como prever o comportamento da pessoa seguida e, nesse sentido, seguir alguém na rua acaba se tornando um dispositivo bastante eficiente de desorientação espacial. Conforme vimos, mesmo os situacionistas ao realizarem as psicogeografias através das técnicas de deriva não o faziam de forma totalmente aleatória, mas buscavam produzir estratégias que os conduzissem a uma espécie de desorientação programada: por exemplo, utilizar um mapa de uma cidade para tentar se localizar em outra, ou procurar encontrar uma rota em meio à cidade utilizando apenas o sentido do olfato ou da audição. Em uma passagem do texto Teoria da deriva, Debord (2003c) propõe um exercício de deriva baseado no conceito de “encontro possível”: aquele que realiza a deriva deve ser convidado (por alguém que esteja responsável por organizar a deriva) a comparecer em uma hora e lugar determinados para, talvez, encontrar alguém. A incerteza em relação à efetividade ou não do encontro é o elemento responsável por despertar e aguçar os sentidos daquele que aceita participar da deriva: sua atenção ao ambiente (desconhecido) e à passagem de outras pessoas pelo lugar deve ser redobrada, afinal de contas, qualquer um que por ali passar representa uma possibilidade do encontro acontecer. Conforme a descrição de Debord (2003c, p. 90):

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O indivíduo é solicitado a se apresentar sozinho em determinada hora e lugar que lhe são marcados. Ele está liberado do ônus desagradável do encontro corriqueiro, já que não tem de esperar por ninguém. No entanto, como este “encontro possível” o leva inesperadamente a um lugar que ele conhece ou não, ele observa as adjacências do entorno. Pode ocorrer que tenham marcado no mesmo lugar um outro “encontro possível” a alguém cuja identidade ele não prevê. Talvez alguém que ele nunca tenha visto, o que o leva a se dirigir a vários passantes. Pode não encontrar ninguém, ou encontrar por acaso aquele que marcou o “encontro possível”. Seja como for, se o lugar e a hora foram bem escolhidos, o tempo que o sujeito aí passar terá um desenrolar imprevisto. Pode até pedir por telefone um outro “encontro possível” a alguém que ignore onde o primeiro o fez chegar.

Utilizando estratégias semelhantes de deslocamento do olhar para as cidades, artistas integrantes do grupo Fluxus também produziram peças para performances minimalistas que orientavam comportamentos imprevisíveis no espaço urbano. Citemos aqui, na íntegra, a obra intitulada Peça de mapa (map piece)93, de Yoko Ono (2009, p. 126), publicada originalmente em 1964: PEÇA DE MAPA Desenhe um mapa imaginário. Marque um ponto no mapa aonde deseja ir. Caminhe por uma rua verdadeira segundo seu mapa. Se não existe rua onde deveria haver segundo o mapa, faça uma colocando de lado os obstáculos. Quando alcançar a meta, pergunte o nome da cidade e dê flores à primeira pessoa que encontrar. O mapa deve ser seguido exatamente, ou o evento deverá ser totalmente abandonado. Peça aos amigos que escrevam mapas. Dê mapas aos amigos.

Em comum, as instruções e regras (sejam tais instruções verbais, icônicas ou de outra natureza) presentes em todas as propostas de exploração espacial através do deslocamento do corpo descritas até aqui atualizam o que poderíamos chamar de funções algorítmicas – num sentido muito próximo à noção de algoritmo proposta por Lévy (1998, p. 66), em A máquina universo, como “uma sequência finita e ordenada de operações perfeitamente definidas num conjunto circunscrito de objetos, com o intuito de chegar a um resultado num número finito de passos” – as quais são responsáveis por modelar o comportamento do artista em relação ao ambiente quando ele executa com seu corpo as ações inscritas nestes programas.

93

Convém destacar o duplo sentido que a palavra “peça” assume aqui, operando tanto no sentido de “peça teatral” quanto também de fragmento, pedaço, como sugere, por exemplo, a expressão piece of cake (pedaço de torta).

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Conforme veremos mais adiante, a criação de algoritmos conceituais de exploração espacial constitui a base de boa parte dos trabalhos de mídias locativas, a diferença, contudo, é que, ao serem transportados para o domínio dos meios digitais, tais algoritmos oferecem possibilidades para expandir e amplificar as propostas de desorientação espacial e ativação dos fluxos inconscientes do meio urbano desenvolvidas pelos artistas e movimentos de vanguarda do século XX. Além dos dadaístas, surrealistas e situacionistas, ao longo do século XX outros artistas também propuseram estratégias de orientação e regulação do gesto de caminhada pelo espaço da cidade com vistas à criação de experiências estéticas. Na performance Following Piece, de Vito Acconci, realizada em Nova York, em 1969, o artista selecionava uma pessoa qualquer que estivesse passando na rua e começava a segui-la até que ela entrasse em algum lugar no qual ele não pudesse entrar (como na residência de alguém ou em um táxi). O ato de seguir poderia durar de alguns poucos minutos a muitas horas – por exemplo, se a pessoa seguida resolvesse entrar em um cinema ou em um restaurante, Acconci também deveria entrar no lugar e esperá-la até que continuasse seguindo o seu trajeto até o final. Ainda, é importante citarmos outra vertente de artistas que se apoiaram no princípio de deslocamento do corpo pelo espaço como prática estética. Trata-se de artistas como Richard Long, Tony Smith, Robert Smithson, Carl Andre, dentre outros, que integraram o movimento que ficou conhecido como Land Art. Para Careri (2003), as obras dos referidos artistas representam um movimento que tomava forma sobretudo dentro do campo da escultura, que passaria a apresentar obras que tornariam cada vez mais difusas e inseparáveis as noções de escultura, arquitetura e paisagem. O ato de caminhada comparece então enroscado ao redor de muitas dessas obras que se estabelecem no campo expandido da escultura contemporânea e é redescoberto por artistas como Richard Long como uma ação de transformação simbólica do território que não demandava a alteração física do lugar – ao contrário, por exemplo, das obras de artistas como Robert Smithson, que se caracterizavam pelas grandes intervenções realizadas sobre o território. A obra inaugural que estabelece o gesto de deslocamento do corpo pelo espaço como estratégia de intervenção estética sobre a paisagem no contexto do movimento Land Art foi A line Made by Walking, de 1967. Realizada por Richard Long, a obra consistia em nada mais do que uma linha reta “esculpida” a partir da grama amassada pelos pés do artista ao caminhar repetidas vezes por um mesmo trajeto feito sobre um gramado. Uma obra efêmera, que durou somente o tempo necessário para que a grama reestabelecesse sua forma anterior à ação do artista, e cujo registro só existe em fotografia (Figura 30).

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Figura 30 – A Line Made By Walking

Fonte: Richard Long. Disponível em: . Acesso em: 17 de novembro de 2013.

Por sua radicalidade formal e absoluta simplicidade, A Line Made by Walking é considerado como um dos episódios mais importantes da arte contemporânea, justamente por passar-se, no campo da escultura, da presença do objeto para a sua ausência: a imagem da grama pisada é a presença mesmo de uma ausência – ausência de ação e do próprio corpo do artista – que, contudo, é potente por operar como uma imagem que deflagra processos reflexivos sobre a materialidade do objeto de arte, sobre a performance do artista e sobre a paisagem resultante de seu ato, provocando abalos que fazem estremecer todo o campo da escultura. Numa obra como A Line Made by Walking o corpo do artista torna-se a medida exata para toda a ação: o andar é usado como forma de sentir a variação climática, a força do vento, a dimensão da distância a ser percorrida, o tempo de duração da performance. Ao contrário de outros trabalhos de Land Art que trabalhavam com escalas de grandes proporções, impossíveis de serem realizados sem o auxílio de máquinas e que só poderiam ser visualizados a grandes alturas (como alguns trabalhos de Robert Smithson), em obras como A Line Made by Walking tudo deve ocorrer segundo a escala humana de percepção e ação – por exemplo, se o artista decidisse mover uma pedra, seu tamanho e peso não poderiam exceder a capacidade de seu corpo para erguê-la sem a ajuda de instrumentos.

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Em A Line Made by Walking, o corpo atua como um pincel que marca delicadamente a superfície terrestre e que, portanto, remete a uma forma de cartografia a partir da qual o mapa é produzido sobre o próprio território. O mundo enunciado assim, pelos passos do artista, converte-se em uma imensa tela, uma folha em branco, ou, ainda, em um intrincado arcabouço composto por sedimentos históricos e geológicos (um banco de dados) aos quais o artista pode adicionar outros mais. O território é pensado assim como um meio a partir do qual o artista pode, como seu corpo, conhecê-lo e inscrever nele suas marcas. Nas obras de Richard Long, também o mapa se mostra como um importante elemento de orientação do corpo do artista no espaço. Em algumas de suas caminhadas, o mapa precede o território, servindo como um suporte a partir do qual figuras são desenhadas e depois percorridas pelo artista no território: em A Six-Day Walk Over Roads, Lanes and Double Tracks Inside a Six-Mile-Wide Circle Centered on The Giant Centered of Cerne Abbas, de 1975, Long desenha um imenso círculo no mapa, centralizado logo acima da região em que se encontra gravada no solo a figura primitiva de proporções gigantescas conhecida como o Grande Gigante de Abbas (Figura 31), e em seguida percorre todas estradas e caminhos vicinais encontrados dentro do referido perímetro. Dessa maneira, Long atualiza uma primitiva técnica de criação de desenhos sobre o solo que só podem ser vistos por completo a grandes alturas. Figura 31 – A Six-Day Walk Over Roads...

Fonte: Tate. Disponível em: .

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Acesso em: 17 de novembro de 2013.

Ainda que haja diferenças marcantes entre as práticas de caminhada realizadas por cada um dos grupos e artistas referidos nesta seção, é possível ainda assim afirmarmos que em todos eles o ato de deslocamento do corpo pelo território sugere a transformação do espaço em paisagem. Se nos tempos atuais o caminhar é fortemente substituído pelos transportes a motor, sendo, inclusive, ainda assim há poetas, artistas e filósofos que encontram na caminhada uma prática poderosa para dar a ver certas dimensões do cotidiano que permanecem invisíveis aos olhos habituados do homem contemporâneo. O que todas essas referidas práticas de caminhada têm em comum é a ideia de que as estradas, as ruas, os passeios públicos, bem como todos e quaisquer tipos de caminhos, não são meros meios de passagem entre um lugar e outro, mas são, acima de tudo, lugares em si. Isso significa que ao caminhante urbano que adota o andar como prática artística, isto é, como meio produtor de experiência estética, é necessário estar atento ao caminho – algo que, nos dias de hoje, em que estamos sempre com os olhos voltados ao futuro (o que devo fazer quando chegar “lá”?), é extremamente custoso de se alcançar. Daí também se origina a proposta de formulação de um conceito de caminhada como prática estética, a partir do qual evidencia-se o poder revelador que reside no ato de deslocar-se com atenção por uma ambiência, pondo em movimento todo o corpo – o corpo individual, certamente, mas também o corpo todo de uma sociedade – com a finalidade de transformar o olhar numa sonda através da qual o espírito transforma o espaço em paisagem e, no limite, em obra de arte. Quando o corpo assim atravessa o espaço, ele se torna um corpo social. Como diz Yeregui (2011, p. 129), constitui-se como “um vetor de relações que, coletivamente e em função de intercâmbios e relações dinâmicas com outros corpos, vai definindo um espaço social, com suas linhas de fuga, com suas zonas de ruptura”. Dessa maneira, o que se percebe em todas estas concepções da cidade formuladas nas propostas de corpo em movimento é a construção de uma visão de espaços fluídos, relacionais, ambíguos, que são construídos junto com o processo de interação do corpo com a geografia e com a sociedade. Tal concepção de espaço é definidora de uma geografia baseada no tato e no contato, que se funda na ideia de que é o corpo que confere ao espaço a sua exata dimensão, uma “geografia háptica” (haptic geography), como define Bruno (2002, p. 64), que encontra afinidade com a formulação de espaço proposta por Henri Lefebvre (2002, p. 148), quando afirma que o “espaço, meu espaço, [...] é, de início, meu corpo, e é o outro de meu corpo, que o segue como seu reflexo e sua sombra: a intersecção movente entre o que toca, atinge, ameaça ou favorece meu corpo, e

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todos os outros corpos”. É particularmente difícil não remeter este pensamento de Lefebvre à célebre abertura de Matéria e memória, em que Bergson (1999) descreve o universo como um conjunto de imagens que se definem pelas relações (de favorecimento ou de ameaça) que expressam em relação a determinadas imagens que se destacam como centros de indeterminação e de ação nesse conjunto. O corpo assim definido, como instrumento que mede o espaço com dinamismo e exatidão, engendra, certamente, um olhar (inter)subjetivo sobre o espaço, que se funda nas relações tátil-sociais que estabelecem com outros corpos e com a arquitetura da cidade. Em Benjamin (2011), encontramos um paralelo entre o tipo de percepção que se desenvolve tanto na arquitetura quanto no consumo de produtos de mídia de massa, como o cinema. Para Benjamin, nossa relação com a arquitetura é antes uma relação de hábito e de uso, baseada no sentido do tato (nós a conhecemos pelo tato, antes do que pela visão). Portanto, excetuando-se o olhar de um turista que contempla maravilhado e em recolhimento as edificações das cidades que visita, de modo geral nossa percepção habitual da arquitetura é dispersa e distraída. Seria este também o padrão perceptivo cinematográfico, um padrão que se funda no hábito mais do que na atenção (segundo Benjamin, no cinema, não há tempo para contemplação: assim que olhamos uma imagem, ela logo desaparece e seu lugar é tomado por outra imagem, diferente da anterior). Assim se definiria uma linha de conexão entre os modos de percepção, baseados fundamentalmente num tipo de olhar moldado pelo sentido do tato, que se desenvolve tanto no cinema quanto na arquitetura. Em sintonia com a proposta de Benjamin, mas trilhando caminhos diferentes, para outros autores as relações entre cinema e arquitetura se fundamentam sobretudo no princípio do deslocamento espacial do corpo. Façamos aqui uma transição para este tema, relacionando então o ato de caminhada a uma prática estética capaz de atualizar os devires audiovisuais (o cinema sobretudo) do espaço no contato travado entre o corpo-em-descolamento e a cidade.

4.2

DEVIRES AUDIOVISUAIS DO ESPAÇO URBANO PERCORRIDO Em Montage and Architecture Eisenstein (1989) traça um paralelo histórico e

fenomenológico que conecta genealogicamente o espectador cinematográfico ao caminhante urbano. Para Eisenstein, haveria sempre uma dinâmica de mobilidade no ato de assistir filmes a partir da qual o espectador cinematográfico se moveria através de um caminho imaginário, atravessando e conectando espaço-temporalidades distantes umas das outras – uma ideia que

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nos remete ao pensamento de Foucault (2009) sobre as qualidades heterotópicas e heterocrônicas do cinema, conforme tratamos anteriormente. Os filmes, segundo Eisenstein, herdariam da arquitetura uma certa forma de percepção do espaço, ou seja, justamente aquela que se efetua no transcorrer de um observador que se desloca em meio a construções arquitetônicas de uma cidade, passando por diversas fachadas, alamedas, espaços fechados, abertos ou semiabertos, e nesse sentido o caminhante urbano seria uma espécie de protótipo ancestral do espectador fílmico. Assim, Eisenstein sinalizava, por um lado, a dimensão fílmica inerente à arquitetura e, por outro lado, a dimensão arquitetônica presente no cinema. Como afirma Alan Bois (1989), na introdução da referida edição de Montage and Architecture, um conjunto arquitetônico é uma montagem que resulta desde o ponto de vista de um espectador em movimento e assim é também a montagem cinematográfica: “um meio de ‘conectar’ em um ponto no espaço – na tela – vários elementos (fragmentos) de um fenômeno filmado em várias dimensões, desde pontos de vista e ângulos diversos”94 (BOIS, 1989, p. 111, tradução nossa). Ao traçar um paralelo entre arquitetura e montagem fílmica, Eisenstein (1989) analisa várias conformações urbanas de diferentes lugares e épocas, sempre buscando atualizar em tais contextos os rastros de um espectador fílmico em desenvolvimento. Em uma passagem bastante emblemática da comparação entre cinema e estruturas urbanas, ele descreve a Acrópole de Atenas – que, como se sabe, abriga algumas das mais conhecidas edificações do mundo antigo – como um exemplo de um dos “filmes” mais antigos da história da humanidade. Erguida a 150 metros do nível do mar, a disposição dos prédios da Acrópole de Atenas formava caminhos que guiavam seus visitantes através de uma sequência de vistas que poderiam ser comparadas ao processo de montagem fílmica: “uma montagem para conjuntos arquitetônicos [...] sutilmente composta, plano por plano”95 (EISENSTEIN, 1989, p. 117, tradução nossa). Imaginava Eisenstein que, ao se deslocar pela Acrópole, eram os “pés” do caminhante os responsáveis por ditar o ritmo da montagem que daria sentido ao conjunto de vistas em sequência. Em Atlas of Emotion: Journeys in Art, Architecture and Film, Giuliana Bruno (2002) comenta o ensaio de Eisenstein (1989), reforçando a ideia de que a mudança de posição do corpo no espaço se fundamenta tanto em bases arquiteturais quanto cinematográficas, visto que a relação entre filme e arquitetura envolve um processo de inscrição subjetiva de um

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No original, em inglês: a means to 'link' in one point-the screen-various elements (fragments) of a phenomenon filmed in diverse dimensions, from diverse points of view and sides. 95 No original, em inglês: a montage sequence for an architectural ensembles […] subtly composed, shot by shot.

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observador que se desloca através de um campo espacial dinâmico – algo que é comum tanto ao cinema quanto à arquitetura. Para Bruno (2002, p. 56, tradução nossa), tal “observador não é um espectador estático, um olhar fixo, desencarnado. É uma entidade física, um espectador dinâmico, um corpo que realiza trajetórias no espaço”96. Assim, uma aproximação entre cinema e arquitetura remeteria, segundo Bruno, a determinadas figuras de subjetividade que mesclariam propriedades psíquicas e performáticas tanto do espectador fílmico quanto de algumas das formas assumidas pelo caminhante urbano, em especial aquela que se define por seu caráter estrangeiro ao lugar visitado, ou seja, o turista. Quando um conjunto arquitetônico é cenicamente montado, tal como acontece frequentemente nas cidades, o efeito de visita turística é produzido. Tal efeito também é produzido pelo cinema. Os filmes criam espaços para serem vistos, examinados, atravessados. Tal como um viajante, o espectador itinerante do conjunto fílmico-arquitetônico consome vistas em movimento como uma prática de imaginação.97 (BRUNO, 2002, p. 59, tradução nossa)

Assistir filmes é, para a autora, uma prática de habitação de um espaço, assim como se habita uma construção arquitetônica. Tal prática guarda semelhança com aquela desempenhada pelo visitante de uma cidade, quando este busca alcançar diferentes ângulos e vistas para olhar a cidade: num momento o turista vai em busca de um ponto alto – uma colina, um arranha-céu, uma torre – para vislumbrar a paisagem urbana; noutro, já se encontra embrenhado com a anatomia da cidade, em suas profundezas, atravessando diferentes configurações urbanas. Tal é a dupla distância vivida na dialética entre vistas aproximadas e distantes que marcam a percepção tátil do turista em relação à cidade e à arquitetura e tal é também a multiplicidade de perspectivas – que pode ser comparada a uma montagem de vários planos em travelling que captam diversos ângulos – que também guiaria o cinema e a sua forma de visualidade: as mudanças de altura, tamanho, ângulo e escala de visão, como também de velocidade de deslocamento, fazem parte da linguagem das tomadas fílmicas, da edição e dos movimentos de câmera. É nesse sentido que toda uma cultura da viagem e do turismo se desenvolve, segundo Bruno (2002), em sintonia com as bases da visualidade cinematográfica.

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No original, em inglês: Such an observer is not a stactic contemplator, a fixed gaze, a disembodied eye/I. She is a physical entity, a moving spectator, a body making journeys in space. 97 No original, em inglês: When an architectural site is scenically assembled and mobilized, as cities often are, the effect of site-seeing is produced. Such traveloguing is also produced by the cinema. Film creates space for viewing, perusing, and wandering about. Acting like a voyager, the itinerant spectator of the architectural-filmic ensemble reads moving views as practices of imaging.

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De modo semelhante, a tradição da pintura de vistas urbanas permite, ainda, um outro tipo de comparação entre a visualidade urbana e o espaço visual cinematográfico, que se dá na interseção entre os códigos da pintura de paisagem com os da topografia da cidade, experimentada pelo indivíduo que a explora desde o seu interior. Nas suas várias configurações e formatos, a pintura de vista foi amplamente desenvolvida pelos pintores ambulantes, que migravam de um lugar para o outro, de cidade em cidade, criando imagens do cotidiano que variavam em relação aos pontos de vista e ângulos adotados pelo pintor: desde perspectivas que enquadravam atentamente os detalhes de atividades que aconteciam no “nível da rua” até as vistas panorâmicas e aéreas que abarcavam grandes porções das cidades. É especialmente em um quadro que mostra uma vista urbana da cidade de Toledo, pintado por El Greco, que Eisenstein (2002b), em O sentido do filme, perceberia um esboço de visualidade cinematográfica que se daria na junção, em simultâneo, de vistas aproximadas e distantes da cidade. Comentando o trabalho de El Greco, diz Eisenstein (2002b, p. 71): “Ele nos proporciona um exemplo do ponto de vista do artista saltando furiosamente para frente e para trás, fixando na mesma tela detalhes de uma cidade vistos não apenas a partir de vários pontos fora da cidade, mas até de várias ruas, alamedas e praças!”. Assim, o amálgama de perspectivas e pontos de vista produzidos em Vista y plano de Toledo seria suficiente, segundo Eisenstein, para colocar El Greco entre os antepassados da montagem cinematográfica. Conforme vimos até aqui, as formas de contato entre o corpo e a cidade expressam relações que a todo momento remetem a imagens e movimentos próprios de uma cultura visual forjada pelas técnicas, estéticas e imaginários cinematográficos. Canevacci (2001), em A antropologia da comunicação visual, fala sobre a expansão e reprodução dos códigos midiáticos da cultura visual baseada em imagens eletrônicas, a que ele chama de videoscape. À medida que se espalha e se enraíza em nossa cultura, o videoscape “se prolonga e se alonga nos espaços metropolitanos, configurando-os à sua imagem” (CANEVACCI, 2001, p. 247). Assim, estaríamos vivendo hoje um momento em que os ambientes urbanos estariam assumindo cada vez mais os traços distintivos dos videoscapes, tornando-se eles próprios parte de um grande panorama eletrônico que integra os “corpos” da cidade, dos cidadãos e das mídias num único corpo híbrido. Nas últimas duas décadas, a acelerada expansão dos espaços navegáveis computacionais vem estabelecendo um novo conjunto de códigos midiáticos da cultura visual baseados sobretudo nas formas de engajamento do corpo no processo de constituição das imagens. Se Canevacci percebia na cultura visual do final do século XX uma ingerência do videoscape sobre os espaços metropolitanos, convém agora analisarmos as

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propriedades estéticas, narrativas e performáticas dos ambientes navegáveis computacionais imersivos e semi-imersivos, os infoscapes, tendo em vista tentar estabelecer algumas relações de contaminação entre tais espaços e os territórios urbanos.

4.3

DERIVA E NARRATIVA EM AMBIENTES DIGITAIS Conforme mencionamos anteriormente, os espaços navegáveis se inscrevem em uma

tendência mais abrangente de como, hoje em dia, se efetuam as nossas interações com as mídias digitais, sobretudo através de interfaces gráficas que tornam visíveis (ou até mesmo “tangíveis”) os dados informáticos armazenados nas memórias dos computadores. Portanto, quando nos referirmos a “espaços navegáveis” no contexto da computação, é sobretudo como metáfora que aponta para uma das estratégias com que dados abstratos são traduzidos em formas materiais e espaciais mais aprazíveis aos nossos sentidos. Nesse sentido, para que possamos analisar o caráter performativo do corpo em movimento dos espaços navegáveis, é fundamental discorrermos também sobre como dados abstratos que operam por trás desses espaços são “estetizados” e convertidos em representações simbólicas através das quais nossa interação com eles se torna viável. Nesse cenário, compreender as relações que podem ser traçadas entre processos de estetização de bancos de dados e a criação de espaços navegáveis narrativos se torna central para os nossos interesses de investigação. Na atual sociedade dos meios computacionais, as práticas culturais que se realizam sobre bancos de dados ocupam, cada vez mais, um lugar central. Ao observarmos a área de trabalho (desktop) de nossos computadores pessoais, os displays dos caixas de banco eletrônicos, ou, ainda, a aparência dos ambientes da web (redes sociais online, enciclopédias colaborativas, sites de compras e de serviços de compartilhamento de fotos, vídeos e músicas), podemos notar que os modos como se mostram organizados – através de listas, mosaicos, coleções, dentre outras formas de arranjo – evidenciam diferentes estratégias adotadas pelos designers de interface diante da necessidade de representação e organização dos elementos que integram tais espaços. Visto que grande parte das atividades que realizamos diariamente são tecnicamente mediadas por sistemas desse tipo, à medida que se tornam mais presentes em nossas vidas, tais modelos de representação e organização de informações modificam nossas formas de percepção e compreensão da realidade. Como parte do fenômeno de expansão das bases de dados nas sociedades informatizadas, novas possibilidades de emprego de técnicas de transformação de dados abstratos em representações visuais (sonoras, táteis) surgem o tempo todo, motivadas

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sobretudo pelo desejo de aproximar o modo como lidamos com informações digitais daquele que experimentamos quando interagimos com objetos físicos e outros fenômenos do mundo “concreto”. Por isso mesmo, frequentemente os processos de estetização dos bancos de dados se efetuam através da criação de ambientes computacionais que mimetizam diversos aspectos dos espaços físicos – por exemplo, as bordas em cores dégradé, que simulam a incidência da luz sobre um objeto físico, se instituem, atualmente, como um padrão estético para simular o relevo de botões e molduras, estando presente na maior parte das interfaces dos softwares e aplicações computacionais. De fato, desde a criação da ideia de “ciberespaço”, por William Gibson, nos anos oitenta, até a época de desenvolvimento de programas computacionais nos anos noventa, a interação com dados e suportes informatizados se estabeleceu sempre em termos espaciais – expressões como “área de trabalho”, “página”, “barra de rolagem”, “navegador”, dentre outras, ilustram como a tendência de utilizar denominações com conotação espacial para se referir aos diferentes métodos de organizar e acessar interfaces computacionais se espalhou entre os profissionais que trabalham com informática. É bem provável que seja essa também a explicação do porquê de termos como “navegação” e “exploração”, que têm origem em atividades que se realizam sobre espaços físicos, serem usados com tanta frequência para descrever determinadas operações realizadas por um usuário que interage com mídias digitais. Contudo, ainda que tais expressões metafóricas sejam disseminadas em todas as áreas da cultura computacional, é nos ambientes imersivos navegáveis, sobretudo nos ambientes tridimensionais interativos de vários tipos de jogos digitais, simuladores e mundos virtuais online que seu emprego ocorre de maneira quase literal. Em tais ambientes, a simulação de espaços tridimensionais habitáveis e navegáveis beira a perfeição e neles os usuários podem vivenciar a sensação de serem transportados para mundos ficcionais inteiramente gerados por computador. Ainda que a presença de ambientes imersivos em nossa cultura seja relativamente recente, o conceito de “espaço navegável” não se reduz àquele gerado por meio de computadores. Enquanto forma cultural, o espaço navegável constitui-se como tendência que perpassa toda a nossa história, sendo encontrado, inclusive, em diversos dispositivos imersivos de imagem anteriores ao século XX, como, por exemplo, nos panoramas, dioramas, dentre outros tantos que se popularizaram por toda a Europa, principalmente entre os séculos XVIII e XIX. Em comum, os espaços navegáveis imersivos do passado, como os panoramas circulares, apresentavam-se como grandes cenários que misturavam técnicas de pintura e de escultura que literalmente envolviam todo o corpo do espectador. A diferença, entretanto, dos espaços

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navegáveis gerados por computador em relação a suas formas anteriores é que todas as operações possíveis de se realizar com os meios digitais podem ser aplicadas também às representações espaciais geradas através desses meios – tal como ocorre com outros tipos de mídia (áudio, vídeo, imagens, texto), que, ao serem transcodificados para uma matriz digital, podem ser manipuladas, combinadas, substituídas, apagadas, comprimidas, transmitidas, as representações espaciais geradas pelos meios digitais também se mostram como um tipo particular de mídia sujeita a todas essas ações. Portanto, tais possibilidades de manipulação dos espaços navegáveis computacionais se mostram importantes para a sua compreensão, pois trazem implícita a ideia de que não só podemos “navegar” entre os elementos que nos são oferecidos através da interface computacional, mas também autorizam o entendimento de que podemos alterar partes ou mesmo a totalidade do sistema com o qual interagimos. No que tange especificamente ao tópico desta seção, que objetiva compreender como bancos de dados são estetizados de modo a gerarem espaços a partir dos quais o corpo (ou a sua representação, na forma de um avatar, por exemplo) possa navegar, observamos que, assim como nas estratégias de deslocamento do corpo no espaço urbano das quais tratamos anteriormente, duas são as principais tendências de enunciação do espaço percorrido em tais contextos. A primeira tende mais à noção de navegação como forma de livre transitar entre lugares, segundo uma lógica próxima à ideia de deriva. Como sabemos, paralelos entre as teorias e práticas de deriva e os usos operados sobre as tecnologias digitais não são novidade. Como afirma Holmes (2003), hoje as qualidades sensoriais da deriva estão mimetizadas à navegação através dos hiperlinks que integram as paisagens de dados informacionais da web. Contudo, se a ideia de um corpo que navega pelo espaço informacional dos bancos de dados remete, em princípio, à figura de um sujeito que frui o percurso sem preocupar-se em “chegar” a algum lugar, por outro lado, a navegação pode ser orientada de modo que o espaço percorrido produza um efeito de narrativa. A questão, no entanto, não é simples, porque ao buscarmos associar a ideia de narrativa à navegação em um banco de dados, esbarramos, logo de largada, no problema da diferença estrutural com que uma e outra dessas duas instâncias geralmente se mostram organizadas. Enquanto os bancos de dados se mostram quase sempre na forma de listas, redes, coleções, dentre outras formas de arranjos que seguem critérios de associação muito variados, as narrativas, por outro lado, são compreendidas, na maioria dos casos, como cadeias de elementos significantes (geralmente acontecimentos narrativos) unidos por relações de causa e efeito. Assim, enquanto os primeiros (os bancos de dados) respondem a formas mais fragmentadas e descontínuas de nossa experiência com o mundo, as narrativas apontam para

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um outro tipo de ordem, mais homogêneo e contínuo. Evidentemente, tal antagonismo entre as formas culturais do bancos de dados e da narrativa é antigo, ocorrendo desde antes do surgimento dos meios digitais. No terreno do texto escrito, as enciclopédias e os dicionários afirmam, há bastante tempo, a característica do banco de dados em contraponto a formas literárias como a do romance clássico. Já no campo das imagens técnicas, a fotografia evidencia o caráter de banco de dados, principalmente através dos catálogos e dos álbuns fotográficos, enquanto que o cinema (e outras formas audiovisuais que despontaram ao longo do século XX) se estabeleceu hegemonicamente sobre o paradigma narrativo. Mais recentemente, com o surgimento de suportes computacionais de acesso não-linear, a forma do banco de dados encontrou um lugar privilegiado para se desenvolver. Segundo Manovich, o computador é “o meio perfeito para a forma do banco de dados”98 (2006, p. 301, tradução nossa). Todos os produtos culturais derivados de meios computacionais são constituídos, em sua estrutura mais profunda, por bancos de dados, ainda que nem todos se mostrem dessa maneira. Portanto, a criação de produtos culturais a partir dos meios digitais é sempre um processo de construção de interfaces de acesso a uma base de dados. Em algumas situações, a própria interface se mostra como um banco de dados – é o caso da interface de programas de gerenciamento de arquivos de fotografias, músicas, textos etc. Em outros casos, como nos jogos de videogame, as interfaces representam formas mais complexas, baseadas em experiências narrativas, estéticas ou de navegação que se distanciam em muito do simples acesso a uma lista de elementos. Portanto, seja o foco de nosso interesse as estruturas em rede, listas, menus ou quaisquer outras formas de arranjo que remetam ao caráter fragmentado e modular das bases de informação, ou, ainda, mesmo em se tratando de ambientes imersivos que simulam espaços tridimensionais gerados por computador, os processos de “estetização” de bancos de dados desembocam sempre na escolha de estratégias que melhor representem e organizem os elementos informacionais no espaço de uma interface. Essa concepção é importante para formularmos um conceito de narrativa para as mídias digitais como um tipo particular de experiência que se origina a partir da navegação realizada sobre os elementos de um banco de dados através de um ou mais tipos de interface. Assim, mesmo a narrativa linear seria, para Manovich, uma das possibilidades que as mídias digitais oferecem – mas que de forma alguma se resume a ela.

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No original, em espanhol: [...] resulta ser el medio perfecto para la forma de la base de datos.

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A tradicional história linear é uma entre outras muitas possíveis trajetórias; isto é: uma opção particular que se faz dentro de uma hipernarração. Assim como hoje podemos contemplar os objetos culturais tradicionais como um caso particular de objeto dos novos meios (aquele que teria somente uma interface), poderíamos compreender a história linear tradicional como um 99 caso particular de hipernarração. (2006, p. 293, tradução nossa).

Assim, o próprio cinema poderia ser pensado enquanto uma forma específica de “hipernarração”, na qual a interface de acesso a seu banco de dados possibilitaria apenas uma única trajetória de navegação entre os elementos de seu banco de dados. Se considerarmos que todo o material acumulado durante o processo de produção de um filme (trechos de captação em live action, animações, caracteres, áudios) constitui um banco de dados, então o trabalho de montagem, que nada mais é do que a seleção e organização desses elementos em sequência linear (o filme montado), poderia ser comparado ao design de um tipo específico de interface, cuja principal característica é oferecer ao usuário do sistema (neste caso, o espectador) uma única possibilidade de acesso a tais elementos, dentre todas as outras que se poderiam ter realizado a partir de um mesmo banco de dados. O desenvolvimento de produtos culturais narrativos em mídias digitais passa, fundamentalmente, pela produção dos conteúdos que compõem os bancos de dados e pelo design de interfaces responsáveis por gerar meios de visualizar e interagir com tais conteúdos. Para Crawford (2005), o “roteiro” de produtos digitais narrativos pode ser resumido a um conjunto de eventos dramáticos dispostos em uma base de dados, os quais devem ser recuperados e exibidos no nível de uma interface. Contudo, para que o efeito narrativo possa efetivamente acontecer, o sistema deve limitar as ações do usuário a um número restrito de possibilidades de ação, a fim de que o fluxo de eventos transcorra de modo que relações de causa e efeito possam ser estabelecidas. Nesse sentido, os conjuntos de regras e de comportamentos possíveis de se realizarem em um dado sistema interativo, isto é, seus algoritmos, são fundamentais para determinar o tipo de experiência oferecida ao usuário, seja ela uma experiência narrativa ou de “livre” navegação (deriva). Ao analisarmos a simulação de espaços tridimensionais interativos, como aqueles encontrados em jogos de videogame e em mundos virtuais, observamos que as atividades de navegação espacial que os usuários realizam sobre eles se polarizam em duas tendências: 99

No original, em espanhol: La tradicional historia lineal es una entre otras muchas posibles trayectorias; es decir: una opción en particular que se toma dentro de una hipernarración. Igual que hoy podemos contemplar los objetos culturales tradicionales como un caso particular de objeto de los nuevos medios (aquel que tendría sólo una interfaz), la tradicional historia lineal podemos verla como un caso particular de la hipernarración.

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uma mais voltada à ação narrativa e outra mais voltada à exploração espacial. (MANOVICH, 2006). A ação narrativa faz referência, sobretudo, a algumas categorias de jogos digitais em que a narrativa avança à medida que o jogador se desloca pelo mundo do jogo, passando de um cenário a outro. Dessa maneira, diferente do cinema, que, geralmente, agiliza o andamento da narrativa subtraindo segmentos espaço-temporais (as chamadas elipses), em certas categorias de jogos a passagem do tempo narrativo se equivale à própria duração do deslocamento do jogador no interior do espaço imersivo. À medida que avança pelos cenários do jogo, o jogador (ou o personagem controlado por ele, tanto faz) ganha experiência, descobre segredos, derrota inimigos, adquire itens e novos poderes, se aproxima cada vez mais de seus objetivos, enfim, vive uma história que está intimamente relacionada com a transformação do espaço a partir das suas ações ao longo do jogo. Se assumimos como referência o conceito de que uma narrativa avança à medida que uma série de acontecimentos conectados por nexos causais se sucedem ao longo do tempo, uma genealogia das formas narrativas que emergem do deslocamento do corpo pelo espaço remete aos romances antigos, em especial às narrativas de aventura de exploradores do século XIX, em que o avançar da história coincidia com a própria jornada do herói por territórios desconhecidos. Também na tradição das peregrinações encontramos um forte componente narrativo, em que frequentemente o itinerário dos peregrinos são criados segundo lendas e histórias de caráter sagrado, conforme já havíamos mencionado na seção anterior. Para Katherine Hayles (1999), Willian Gibson foi um autor precursor ao apresentar em Neuromancer a ideia de que um espaço informacional pode servir de base para que uma narrativa se desenvolva à medida que o ponto de vista subjetivo de um personagem se movimenta pelo ambiente. Como sabemos, em Neuromancer o personagem principal tem seus impulsos neurais conectados a um computador, o que implica que sua presença como sujeito habitante de um mundo virtual – o ciberespaço – se dá exclusivamente através de seu ponto de vista que vaga “sem corpo” pelo ambiente. Para Hayles, a narrativa no ciberespaço se torna possível quando à espacialidade do mundo virtual é adicionada uma dimensão temporal provocada pelo movimento do ponto de vista do personagem em seu interior.

Reduzido a um ponto, o ponto de vista [pov] é abstraído em uma entidade puramente temporal sem dimensão espacial; metaforizada em um espaço interativo, a paisagem de dados é narrativizada pelo movimento do ponto de vista em seu interior. Os dados informacionais são, portanto, humanizados, e a subjetividade é computadorizada, permitindo a ambas se juntarem em uma

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união simbiótica cujo resultado é a narrativa.100 (HAYLES, 1999, p. 39, tradução nossa).

Por outro lado, há que se considerar também os momentos em que a narração se detém sobre um elemento da história para descrevê-lo melhor (as características de um cenário ou de um personagem, por exemplo). Em tais ocasiões a narrativa parece avançar em ritmo mais cadenciado, visto que o fluxo de acontecimentos cessa para dar lugar ao ato descritivo. Em comparação com as práticas que se efetuam em ambientes computacionais, as passagens descritivas (seja em literatura, cinema, jogos) poderiam ser associadas a uma forma de navegação espacial que valoriza menos o avanço da narrativa e mais a atividade de exploração. Por exemplo, à medida que o jogador coleta e analisa fragmentos de informação encontrados no espaço do jogo, ou mesmo quando se põe a vagar pelo mundo imersivo com o simples propósito de contemplá-lo, a narrativa em si pode, aparentemente, não estar avançando, uma vez que suas ações não desencadeiam eventos capazes de provocar transformações no curso geral da história. Colocadas as diferenças entre essas duas funções presentes nas atividades de navegação em espaços imersivos, convém destacarmos que tal separação não se realiza em absoluto. Em outros termos, ainda que possamos percebê-las como duas funções aparentemente opostas, em realidade esses dois termos integram um continuum inseparável na experiência com espaços representados computacionalmente, o que significa que, na prática, ação narrativa e exploração estão vinculadas de maneira estreita, se misturando uma à outra à medida que o jogador se desloca pelo mundo do jogo: por exemplo, ações como abrir portas, encontrar e recolher itens, falar com personagens, remetem tanto a formas de exploração do espaço como também apresentam o potencial para que a narrativa avance. A questão, no entanto, é saber como conjugar esses dois polos da experiência de navegação espacial tendo em vista produzir diferentes tipos de experiências narrativas. Junto com os ambientes imersivos gerados exclusivamente por computador, poderíamos citar também as instalações multimídia como um gênero de arte contemporânea particularmente importante para pensarmos o design de espaços navegáveis, seja para fins de constituição de experiências narrativas ou de exploração espacial (deriva). No contexto dos novos meios, as instalações multimídia podem ser compreendidas como espaços densamente 100

No original, em inglês: Reduced to a point, the pov is abstracted into a purely temporal entity with no spatial extension; metaphorized into an interactive space, the datascape is narrativized by the pov's movement through it. Data are thus humanized, and subjectivity is computerized, allowing them to join in a symbiotic union whose result is narrative.

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povoados de informação que combinam estruturas físicas a imagens, vídeos, textos, sons e elementos gráficos tridimensionais. O artista russo Ilya Kabakov, que trabalhava com o conceito de instalação total, construía estruturas modulares que envolviam totalmente o participante. Suas instalações eram construídas de modo a produzirem um caminho único pelo qual o visitante deveria passar, atravessando vários módulos (Figura 32).

Figura 32 – Projeto da instalação Life and Creativity of Charles Rosenthal

Fonte: Art Tower Mito. Disponível em: . Acesso em: 11 de novembro de 2013.

As proporções dos materiais, as cores, as formas, a iluminação, eram cuidadosamente escolhidas para se encaixarem cenicamente ao espaço da galeria ou do museu em que a obra era montada, de modo que situações dramatúrgicas eram obtidas através da combinação de elementos tanto das artes plásticas – para os quais o espectador geralmente deve assumir o ponto de vista imóvel – como também fazendo uso de recursos das artes que se desenvolvem no tempo, em especial o cinema e o teatro. Outra estratégia adotada por Kabakov era colocar fragmentos narrativos – trechos de vídeo, bilhetes, cartazes etc. – em certos pontos do percurso. Tal estratégia, além de organizar a experiência de fruição da obra, visava principalmente provocar uma alteração no ritmo de experimentação. Ao se deslocar entre os módulos, a atenção do participante se voltava ao conjunto da instalação; já quando se deparava com um desses conteúdos narrativos, uma projeção de vídeo, por exemplo, era o detalhe que lhe mobilizava os sentidos, conduzindo sua atenção para a captura do pequeno, do parcial e do inesperado.

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Tal como mencionávamos há pouco, os espaços tridimensionais imersivos de vários jogos digitais também são projetados seguindo estratégias de navegação e de exploração semelhantes às adotadas por Kabakov: o jogador começa em um algum ponto de um espaço desconhecido; dependendo do tipo de jogo, seu deslocamento é limitado a algumas áreas e bloqueado em relação a outras; ao longo do jogo, ele explora o território, delimitando sua geografia e desvendando seus segredos – no caso de muitos dos jogos que se estruturam por fases, o jogador deve ainda investigar de maneira sistemática todos os espaços de um nível antes de poder avançar para o nível seguinte. Nessa breve incursão pelas características de navegação nos espaços virtuais imersivos e nas instalações artísticas, é fundamental insistirmos ainda numa outra questão, que é a importância das estruturas modulares, visto que constituem um ponto central para relacionarmos certos padrões encontrados tanto em um quanto em outro dos dois contextos comentados. Manovich (2006) descreve a modularidade como um dos princípios presentes em todos os produtos culturais derivados de meios computacionais. De modo análogo às estruturas fractais encontradas na natureza, os objetos informacionais – quer sejam imagens, sons, softwares – são representados no interior de meios computacionais como conjuntos de unidades discretas (píxeis, polígonos, vetores, scripts etc.), que podem se agrupar com outros objetos, criando conjuntos modulares em escalas cada vez maiores. Tais acoplamentos modulares ocorrem em várias direções: píxeis são agrupados para formar imagens, imagens são agrupadas para formar composições, linhas de código de programação geram softwares, softwares se combinam e geram mídias híbridas (MANOVICH, 2006) e assim sucessivamente. Contudo, tais combinações se efetuam sem que, necessariamente, as características identitárias de cada um dos elementos sejam afetadas – tal como acontece nas interfaces de programas com os quais lidamos frequentemente (pensemos nos editores de texto como o Microsoft Word), o princípio de modularidade permite que cada uma das unidades de conteúdo seja concebida autonomamente, mas de modo a se ajustar ao conjunto, desempenhando certas funções. Também as páginas web podem ser consideradas ótimos exemplos de estruturas modulares. Tecnicamente, uma página web é formada por um conjunto de elementos independentes – textos, imagens, vídeos, links para outras página etc. – de tal modo conectados que, ao mesmo tempo que formam uma unidade global, é sempre possível adicionar mais elementos à sua estrutura ou modificar aqueles que já existem. Assim, enquanto coleção de elementos diversos, as páginas web podem estar sempre sendo alteradas. No entanto, tal lógica de conjunto aberto, que sempre comporta a adição de novos elementos ou a edição de elementos já existentes, não se restringe ao domínio dos universos

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“puramente” computacionais e se irradia para outras áreas da cultura à medida que as práticas de estetização de bancos de dados se tornam cada vez mais comuns e diversificadas. O princípio de modularidade das mídias digitais autoriza a criação de estéticas de conectividades híbridas que marcam a produção artística com mídias locativas, contudo, distintamente de uma página web que comporta exclusivamente a combinação de elementos digitais, em tais projetos artísticos a combinação se dá sobretudo entre elementos digitais e analógicos (o mobiliário urbano, o corpo humano etc.). Tal relação entre elementos físicos e digitais se torna possível à medida que o princípio de modularidade das mídias digitais sofre um deslocamento conceitual, passando de uma perspectiva estritamente técnica para então se assumir como base de um paradigma no qual nossa sociedade começa a operar não somente em relação às tecnologias computacionais, mas também no que tange à própria compreensão e relação com os espaços e objetos concretos. Para a artista de novas mídias Kate Armstrong (2003), a transposição de experiências narrativas e de exploração espacial para a escala gigantesca das cidades, tais como observamos nos projetos de audiovisual locativo, empurra os formatos narrativos em direção a um limiar semelhante ao que, historicamente, as tecnologias de hipertexto fizeram com as formas literárias ficcionais ao possibilitarem o surgimento do gênero de literatura eletrônica que ficou conhecido como “hiperficção”. Para Armstrong, ambos apresentam modelos conceituais semelhantes em relação aos tipos de operações sobre bancos de dados que se efetuam no nível de suas interfaces. Em essência, as formas culturais que se delineiam tanto em hiperficções como em alguns formatos narrativos que se desdobram sobre o espaço físico compartilham a noção de navegação espacial a partir de uma rede composta por fragmentos informacionais modulares. Dessa maneira, e retomando uma das questões que pautaram o desenvolvimento deste capítulo, interessa analisar na próxima seção como a experiência de deslocamento do corpo no espaço produz experiências performativas que assumem o audiovisual como um “fundo” (ou, ainda, como reserva de imaginação) para práticas que se efetuam em diálogo com o território e a paisagem urbanos, seja para fins de exploração espacial (deriva) ou com propósitos narrativos.

4.4

ALGORITMOS PERFORMATIVOS Para Tuters e Varnelis (2006) a técnica de deriva situacionista apresenta proximidades

com vários projetos artísticos que empregam mídias locativas em seus processos formais, seja

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para fins de mapeamento dos deslocamentos de indivíduos (ou mesmo de objetos) por regiões territoriais, seja para provocar, através do ato de caminhar, experiências estéticas inusitadas.101 Um projeto que atualiza estratégias de exploração espacial semelhantes àquelas propostas pelos situacionistas é o aplicativo para dispositivos móveis102 Serendipitor, do artista Mark Shepard. No site do projeto103, encontramos a seguinte informação: “Serendipitor é um aplicativo de navegação alternativo para iPhone que ajuda você a encontrar algo ao procurar por outra coisa”104 (SERENDIPITOR, 2013, s/p, tradução nossa). O aplicativo combina a geração de trajetos em um mapa digital com instruções para ações e movimentos que devem ser executadas pelo usuário do aplicativo – por exemplo, tirar uma fotografia de algo inusitado ou performatizar por 15 segundos a coreografia de uma música conhecida. Em projetos como Serendipitor a vocação para praticar deslocamentos e ações sem finalidade determinada é evidente. No entanto, não se trata de um livre deslocar sem rumo. Noutro sentido, trata-se de um deslocamento e de um modo de agir orientado por um sistema ordenado (o software do aplicativo) cuja programação está voltada para a des-ordenação do comportamento daquele que seguir suas séries de instruções: “siga na direção noroeste e dobre a segunda rua à esquerda. Após, caminhe em direção ao som do tráfego de automóveis e fotografe-o”, é uma das sequências de instruções dadas pelo programa ao seu usuário. Tal como o algoritmo que comanda as funções de um software, em termos metafóricos o aplicativo Serendipitor transforma a cidade num “hardware” sobre o qual o “software humano” executa tarefas. Para Tuters e Varnelis (2006), o conceito de código (algoritmo) é central para a compreensão da estética das obras com mídias locativas: ou o código é usado para gerar uma série de instruções ao vivo, tal como propõem as orientações inusitadas de Serendipitor, ou é o próprio resultado da obra que se apresenta na forma codificada, através de mapas que registram diferentes tipos de rastros deixados pelos ocupantes das cidades.105 Conforme afirmávamos anteriormente, no que tange às práticas efetuadas no contexto 101

Tuters e Varnelis também relacionam a prática de détournement dos situacionistas com alguns projetos artísticos com mídias locativas. No terceiro capítulo deste relatório de pesquisa desenvolvemos alguns apontamentos nesse sentido. 102 Disponível apenas para aparelhos equipados com a plataforma iOS, da empresa Apple. 103 Disponível em: . Acesso em: 05 de julho de 2013. 104 No original, em inglês: Serendipitor is an alternative navigation app for the iPhone that helps you find something by looking for something else. 105 De certo modo também o conjunto da obra situacionista parece ser profundamente marcado por uma dimensão normativa que caracteriza as funções dos códigos de programação, ainda que tal “algoritmo situacionista”, por assim dizer, se constituía em um programa de des-ordenação que se voltava ao combate às lógicas e às formas de organização defendidas pelas instituições modernistas.

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dos espaços navegáveis informacionais, o código, ou mais precisamente o algoritmo, é também o elemento responsável por organizar a experiência de um usuário que navega nesses ambientes. Dependendo do modo como os elementos do banco de dados são organizados e acessados no nível da interface de um dado sistema, o usuário pode se deparar com uma estrutura que em nada lembra uma narrativa, tal como encontramos em Serendipitor. Nesse projeto, não há uma “história” a ser contada, mas, antes, uma experiência performativa do corpo com o algoritmo que resulta em ações pontuais no espaço com pouco ou nenhum nexo causal entre si, as quais são responsáveis por atualizar algumas das formas culturais antinarrativas mais célebres das vanguardas artística do século XX, como aquelas presentes nos happenings e nas vertentes teatrais que primavam pela participação do público – como nas peças de Brecht ou de Augusto Boal. Assim como Serendipitor, outros tantos projetos artísticos com mídias locativas estimulam performances urbanas baseadas nos princípios das psicogeografias situacionistas. Poderíamos dizer que, invariavelmente, todos eles seguem um mesmo padrão de algoritmo performativo, quase sempre voltado para formas de desorientação espacial nos espaços urbanos. Um projeto orientado por um algoritmo performativo de deriva é .walk. Realizado em 2004, na Holanda, por Wilfried Houjebek, .walk torna explícita a relação do código com a performance de deslocamento do corpo pelo espaço. Seu “funcionamento” é inteiramente baseado na execução de algoritmos computacionais para psicogeografias urbanas. O algoritmo de .walk contém as seguintes instruções: primeira à esquerda, segunda à direita, segunda à direita, repetir. Em linguagem computacional, o algoritmo é escrito assim:

// Classic.walk Repeat { 1 st street left 2 nd street right 2 nd street left } Contudo, trata-se de um projeto totalmente “analógico”, no sentido de que não faz uso de mídias computacionais nem em seu processo de produção e nem na forma como os participantes interagem com ele. Em vez de ser armazenado na memória de um hardware computacional, o algoritmo é registrado em folhas de papel (Figura 33). Para “executá-lo”, os

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participantes devem caminhar pelas ruas da cidade seguindo suas instruções. Figura 33 – Algoritmo .walk anotado em uma folha de papel

Fonte: A Psychogeographic Expedition. Disponível em: . Acesso em: 27 de novembro de 2013.

Numa cidade cujas quadras tenham todas o mesmo tamanho e estejam dispostas em perfeito alinhamento, o percurso tende a repetir-se (Figura 34). Figura 34 – Algoritmo performativo de deriva

Fonte: A Psychogeographic Expedition. Disponível em: . Acesso em: 27 de novembro de 2013.

Entretanto, como são raras as cidades que apresentam esse tipo de configuração, na prática, o participante dificilmente passa pelos mesmo lugares, conforme é possível observar na Figura 35.

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Figura 35 – Registro do algoritmo performativo de deriva

Fonte: A Psychogeographic Expedition. Disponível em: . Acesso em: 27 de novembro de 2013.

Ao propor a atualização da prática de psicogeografia situacionista através de uma técnica de deriva baseada em um algoritmo computacional, Wilfried Houjebek gera uma estreita relação entre o código e a performance do corpo, tornando explícito um tipo de comportamento que de certa maneira estamos acostumados a seguir diariamente, embora raramente paremos para observar criticamente como isso acontece. Toda vez que interagimos com o sistema de um caixa eletrônico bancário e seguimos as suas instruções (coloque o cartão, espere até o chip ser validado, retire o cartão, escolha uma opção, insira sua senha etc.), estamos obedecendo a um algoritmo. Toda vez que jogamos um jogo de videogame, nossa performance é inteiramente mediada por funções algorítmicas. Toda vez que, para chegar a um endereço, seguimos as instruções de navegação de uma aplicação de GPS, é também a um algoritmo que nossas ações estão condicionadas. Dessa maneira, a nosso ver, um projeto performático como .walk propõe um exercício de expansão e de reflexão crítica sobre os novos regimes sensoriais que se desenvolvem através de nossa interação com sistemas algorítmicos: se boa parte das nossas ações cotidianas é mediada por comandos algorítmicos, por que não gerar algoritmos que estimulem comportamentos lúdicos, performáticos e imprevisíveis nos espaços urbanos? Outro projeto que oferece uma experiência baseada em um algoritmo performativo de deriva é o álbum n do músico argentino Jorge Drexler. Trata-se, na verdade, de um aplicativo para dispositivos móveis (smartphones e tablets), desenvolvido em parceria com a Samsung, em 2012.106 n apresenta três canções, as quais podem ser rearranjadas conforme a vontade do

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Disponível para download em: . Acesso em: 16 de dezembro de 2013.

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usuário, seguindo certas dinâmicas de interação oferecidas em cada caso.107 Em uma delas, intitulada Madera de deriva, o usuário deve se deslocar pelo espaço geográfico a fim de desbloquear os instrumentos da canção: por exemplo, para agregar um novo grupo de instrumentos (de um total de 12 possibilidades), ele deve se deslocar 300 metros numa determinada direção. O único elemento sonoro que já vem desbloqueado é a voz de Drexler. Através dela, escutamos a letra da música, que fala sobre como a vida, assim como a deriva, molda quem nós somos através de caminhos incertos. Em n uma relação de ordem performática é estabelecida entre o algoritmo de deriva, a experiência estética (neste caso musical) e o deslocamento do corpo pela cidade. Uma instância afetando diretamente a outra: ao deslocar-se pela cidade, o usuário do aplicativo aciona um módulo musical, que, por sua vez, libera outras possibilidades. Pode ser que o trajeto planejado pelo usuário para aquele momento não corresponda àquele demandado pelo aplicativo para liberar este ou aquele instrumento e, neste caso, ele terá de escolher entre seguir as ordens do algoritmo ou interromper a experiência. De todo modo, seja qual for a escolha, para além da simples experiência de ouvir uma canção em um dispositivo móvel, o aplicativo oferece outra alternativa de arranjo entre o ato de escuta e o ato de deslocamento do corpo pela geografia das metrópoles. No limite, poderíamos sugerir que, assim como as capas dos álbuns e os videoclipes complementam a experiência musical no âmbito da imagem, um aplicativo como n pode complementar o significado de uma canção ao “expandi-la” para o âmbito da performance em espaços urbanos. Por outro lado, é também perfeitamente viável que o algoritmo performativo esteja a favor da produção de experiências narrativas. Conforme vimos no início deste capítulo, as práticas de deslocamento pelo espaço oscilam entre formas que tendem mais à narrativa, como as peregrinações e os walkabout dos povos primitivos australianos, e outras que pendem mais para o lado da deambulação livre, as quais incentivam que fluxos inconscientes sejam ativados através do ato de caminhada. No que tange às práticas narrativas com mídias locativas, muitos artistas direcionam suas obras para enfatizarem os aspectos históricos e simbólicos do espaço – fazendo uso ou não de mediações tecnológicas. Um exemplo de trabalho de intervenção urbana que explora o deslocamento do corpo pela cidade com fins narrativos e que não lança mão de recursos de tecnologia digital no processo de interação do público com a obra é o projeto Intervenção

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Muito apropriadamente, no menu do referido aplicativo, os produtores se referem a tais tipos de canções como aplicanções – ou aplicanciones, no original, em espanhol.

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Urbano Literária108, realizado pelo artista Alessandro Garcia, em 2009, na cidade de Porto Alegre. O projeto consiste em uma série de cartazes colados pelas ruas da cidade. Em cada cartaz, há um trecho de uma história de ficção, narrada em primeira pessoa, cujo próprio ambiente em que o cartaz encontra-se disposto é referido como cenário da trama. Na base de cada cartaz, logo abaixo do segmento da história narrada, encontram-se indicações de onde estão colados os outros cartazes. O leitor então caminha pelas ruas, buscando continuar a leitura da história. Vale destacar que o teor conteudístico da trama é adequado ao dispositivo de leitura criado pelo autor do projeto: os cartazes contam uma história que se passa ao longo de uma noite na vida de um andarilho solitário que vaga sem rumo pelas ruas da cidade. Durante a sua jornada, o personagem encontra mendigos, prostitutas e boêmios como ele, com os quais conversa e vive experiências que terminam ao amanhecer.109 Para Epstein (2009), à medida que se tornam mais comuns os dispositivos portáteis com funções multimídia e de localização (GPS), as “narrativas terrestres”, ou “terratives”110, (EPSTEIN, 2009, p. 1) começam a despontar como um gênero em si, trazendo à tona uma série de questões sobre como, na contemporaneidade, tais funções técnicas estão conduzindo à criação de experiências estéticas inusitadas. Tais modalidades narrativas encontram referência em formas culturais recentes, como os podcasts e os Alternate Reality Games111, como também remontam a formas mais antigas, dentre as quais poderíamos citar os áudioguias utilizados em museus e em passeios turísticos e o Teatrophone, que consistia em um sistema de transmissão à distância de performances teatrais e óperas que utilizava a rede de telefonia como meio de interação com o público. (EPSTEIN, 2009). Assim, interessa compreender como um efeito de narrativa audiovisual pode ser produzido a partir do deslocamento do usuário de mídias móveis. Conforme vimos anteriormente, o design de narrativas em mídias digitais se estabelece a partir do modo como os elementos de bancos de dados são arranjados em sistemas de interface e se mostram acessíveis ao acesso e à navegação dos usuários. Nos projetos de audiovisual locativo a união entre unidades de conteúdo informacional (os vídeos) e geográficas (os lugares em que o 108

Disponível em: . Acesso em: 29 de novembro de 2013. Outro projeto que parte de um princípio semelhante é Holly Crap. Disponível em: . Acesso em: 29 de novembro de 2013. 110 O termo, resultante da junção das palavras territory (território) e narrative (narrativa), faz referência a modalidades narrativas que se estabelecem a partir da fusão entre territórios físicos geográficos e dados informacionais, e que demandam o uso de mídias móveis para acessá-las. (EPSTEIN, 2009). 111 Os Alternate Reality Games (ARGs), ou jogos de realidade alternada, são experiências narrativas que se realizam com o aporte simultâneo de múltiplas mídias, tendo em vista transcender a especificidade de cada uma delas para melhor envolver o jogador em um ambiente imersivo, que, no limite, toma o “mundo real” como sua plataforma de ação. 109

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usuário deve estar posicionado para acessá-los) faz com que o princípio de modularidade das mídias digitais avance do nível técnico em direção ao cultural. Em outras palavras, em tais projetos as narrativas audiovisuais se “espacializam” à medida que fragmentos modulares da(s) história(s) narrada(s) são virtualmente projetados sobre a arquitetura e mobiliário urbanos. Nesse caso, a concepção dos bancos de dados utilizados na realização de tais projetos sugere a conexão entre elementos de naturezas materiais muito diferentes entre si: aqueles que correspondem à imaterialidade dos bits digitais e os outros que correspondem à concretude dos objetos que integram o espaço e o mobiliário urbanos. O projeto de narrativa móvel (CORNELIO, 2010) Hundekopf, desenvolvido pelo grupo de artistas alemães Knife and Fork, em 2005, na Alemanha, utilizava um sistema de envio automático de mensagens de telefone celular para criar uma história de perseguição e espionagem ambientada num conjunto de linhas do metrô de Berlim que cerca a região central da cidade.112 Assumindo o formato de uma peça performática, para participarem, os passageiros das estações de metrô deveriam se cadastrar através do envio de uma mensagem de texto para um número de telefone determinado.113 Ao enviar a mensagem, o participante recebia então uma mensagem-resposta solicitando que entrasse em um trem específico naquela estação. A partir desse momento, de tempos em tempos outras mensagens começavam a chegar, cada uma fazendo algum tipo de referência aos elementos da paisagem visíveis através da janela do trem. Por exemplo, uma mensagem mencionaria um prédio abandonado, de cor verde, como sendo o lugar em que um suposto espião estaria escondido. O efeito narrativo seria decorrente do momento em que a mensagem deveria chegar ao telefone do participante, exatamente quando o trem estivesse passando próximo ao referido prédio. A narrativa se desenrolaria a cada estação, com sugestões de que inimigos e aliados estariam por toda a parte, misturados aos passageiros do trem. Dessa maneira, de mensagem em mensagem, o participante se sentiria envolvido em uma trama de conspiração ao estilo das histórias de espionagem produzidas no período Guerra Fria. De certo modo, Hundekopf visava acessar, através de estímulos bastante pontuais (frases curtas de mensagens de texto), a memória congelada no corpo de uma cidade castigada pela guerra. Outros projetos também buscam evocar, através do emprego de tecnologias móveis, as lembranças adormecidas dos territórios urbanos. No entanto, visto que de 2005 112

Quando visto do alto, tal conjunto de linhas do metrô formam um desenho semelhante à imagem perfilada da cabeça de um cachorro. Daí o nome do projeto: hundekopf, que significa, justamente, “cabeça de cachorro” em alemão. 113 Os artistas distribuíam flyers nas imediações das estações de trem com informações sobre a peça e com instruções de como efetuar o cadastro do número de telefone.

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para cá os dispositivos móveis, bem como as redes de telecomunicação que dão suporte ao seu funcionamento, avançaram muito em termos tecnológicos, aumentaram também os recursos estéticos para a criação de experiências narrativas que tomam como base o deslocamento do corpo pelo território urbano. Conforme já mencionamos em outras partes deste texto, a aplicação para dispositivos móveis Walking Cinema: Murder on Beacon Hill propõe um passeio-guiado por uma região da cidade de Boston a partir da qual o usuário visita prédios e monumentos históricos, enquanto vai tomando conhecimento de uma história policial que se passou naquela região no século XIX, quando um homem foi assassinado por um famoso professor do departamento de química da Universidade de Harvard. Neste caso, trata-se de uma narrativa linear convencional, em que uma série de fatos envolvendo os dois personagens da história vão sendo narrados em ordem cronológica até o desfecho, com a morte e desaparecimento do cadáver de um deles. Nesse sentido, ainda que seja possível acessar qualquer conteúdo multimídia que integra a base de dados do aplicativo – pois o sistema não propõe restrições técnicas quanto a isso – há sugestões explícitas para que o usuário se disponha a visitar fisicamente o lugar em que tudo aconteceu, conforme já havíamos sinalizado no capítulo anterior, quando comentávamos sobre este mesmo aplicativo. A interface também incentiva que o usuário percorra um caminho linear, conforme a indicação de trajeto mostrado sobre o mapa (Figura 36), que inicia no ponto geográfico assinalado com o número 1 e avança até o de número 8. Figura 36 – Mapa do aplicativo Walking Cinema: Murder on Beacon Hill

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Fonte: Capturado pelo autor a partir do aplicativo Walking Cinema: Murder on Beacon Hill, que encontra-se disponível para download em: . Acesso em: 27 de novembro de 2013.

Em Walking Cinema: Murder on Beacon Hill o trajeto sugerido na interface do aplicativo pode ser comparado com as estratégias adotadas nas instalações de artistas como Ilya Kabakov, descritas antes neste capítulo, em que os visitantes tinham que passar por vários módulos, segundo uma única ordem de trajetória. Retomando a descrição da obra de Kabakov, a disposição espacial dos módulos, constituídos por paredes de madeira e com obstáculos que bloqueavam parcialmente a passagem, funcionavam como elementos que conflagravam o corpo a uma certa porção do espaço, ao mesmo tempo em que orientavam o seu deslocamento. Ainda, conforme mencionamos anteriormente, as instalações de Kabakov apresentavam vários conteúdos (trechos de textos, imagens, vídeos etc.) dispostos em certas partes da estrutura de instalação e que tinham como propósito forçar uma parada no fluxo de “navegação” do visitante, incentivando-o a depositar sua atenção em um fragmento de informação. De modo análogo, a linha desenhada no mapa que conecta cada uma das localidades representadas pelos números de 1 a 8 cumpre função semelhante à estrutura física das instalações de Kabakov, ou seja, ela estabelece o caminho que conecta cada um dos módulos do aplicativo em uma ordem pré-determinada e linear. Já os conteúdos associados a cada um dos pontos correspondem aos conteúdos dispostos por Kabakov no espaço físico da instalação. Essa mesma estrutura modular em modelo linear de narrativa pode ser encontrada em um projeto como A Machine to See With, do grupo Blast Theory, em que os participantes experimentam uma narrativa no espaço urbano através de interações com ligações telefônicas via celular. Assumindo o formato de uma espécie de peça teatral participativa que utiliza o ambiente da cidade como cenário, a trama de A Machine to See With se desenrola sobre um suposto assalto a banco. Todas as pessoas que desejam participar da peça devem cadastrar seu número de telefone celular previamente junto aos membros da equipe do Blast Theory. A partir de então a “peça” acontece inteiramente via ligações de telefone para o número dos espectadores-participantes. Em síntese, a trama gira em torno de um convite a um assalto a banco. No caso de aceitar o convite, o participante passa a receber várias ligações telefônicas, através das quais são passadas orientações sobre tarefas que deve realizar e lugares a que deve ir, sempre com o objetivo de providenciar os preparativos para o assalto. Tal como se estivesse participando de um filme policial, suas ações são envolvidas em uma atmosfera de suspense e subversão:

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enquanto se locomove pelas ruas da cidade, a preocupação é não parecer suspeito; ele visita lugares abandonados; oculta seus pertences para o caso de ser capturado pela polícia; planeja os detalhes do assalto; visita o local do roubo. À medida que as tarefas vão sendo realizadas, a tensão aumenta até que o pico é atingido no momento que antecede o assalto propriamente dito. Sem incorrermos em detalhes de como se dá o desfecho da narrativa, convém observarmos que, de modo semelhante ao aplicativo de cinema de caminhada Walking Cinema: Murder on Beacon Hill, acerca do qual comentávamos anteriormente, encontramos em A Machine to See With uma estrutura modular que encadeia linearmente os elementos narrativos, através da qual o participante vai avançando de tarefa em tarefa, ou de módulo em módulo, enquanto recebe os feedbacks telefônicos, que, além de informarem sobre seu desempenho na realização das tarefas, fornecem também elementos descritivos que ajudam a aumentar o grau de envolvimento com a história. Além disso, a peça atualiza a estrutura narrativa de vários filmes policiais de assalto a banco: no caso, o espectador-participante primeiro deve receber (e aceitar) o convite, depois planejar o assalto, para só então ir em direção ao banco em questão, momento em que o nível de tensão atinge o seu ápice, correspondendo ao clímax narrativo. Portanto, para que a experiência ocorra plenamente, essa ordem não pode ser alterada. Trata-se de uma obra que explora todo um repertório cinematográfico com o qual estamos mais do que acostumados: basta que alguns estímulos (sonoros) sejam emitidos, e todo um filme se desenrola diante de um “espectador” que caminha apressadamente pelas ruas da cidade. Encontramos em A Machine to See With afinidades com os trabalhos de audiowalk da artista canadense Janet Cardiff, realizados entre os anos 1990 e início dos anos 2000. As audiowalks de Cardiff consistiam em peças nas quais os participantes eram convidados a caminhar por um trajeto estabelecido pela artista, que incluía o próprio ambiente urbano como cenário, enquanto escutavam através de fones de ouvido conectados a um player de música114 uma trilha de áudio que intercalava uma série de instruções que deveriam ser seguidas (“desça as escadas”, “caminhe até o final do corredor à direita”, “olhe para a janela”) com fragmentos narrativos, efeitos sonoros e outros elementos. Ainda, conforme o relato de John Weber (1997, s/p, tradução nossa):

As palavras faladas e sussurradas por ela são entrecortadas com fragmentos 114

Segundo Manovich (2006b), a artista usava um dispositivo de discman, como eram conhecidos naquela época os players de CD portáteis.

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sonoros do ambiente; pequenos excertos de áudio aparentemente gravados da TV, filmes de gênero, ou melodramas radiofônicos; e observações e questionamentos sussurrados por um homem não identificado. O resultado é uma colagem de áudio que toma de empréstimo elementos de fontes como os filmes noir, o cinema de vanguarda, a ficção modernista e as peças de rádio, mas que no limite não se encaixa em nenhuma categoria de prática artística.115

Segundo Cornelio (2010), apesar de não haver uso de GPS nas audiowalks, as orientações sonoras correspondem ao deslocamento espacial do participante da experiência, provocando uma experiência de imersão intensa. Na opinião de Manovich (2006b), as audiowalks de Cardiff representam a melhor realização do paradigma de ampliação espacial, mesmo sem o uso de sofisticadas tecnologias de produção de imagens. O potencial dessas peças reside, por um lado, nas interações entre os sentidos da visão e da audição, isto é, dos fluxos de contaminações sinestésicas resultantes da oscilação entre aquilo que o usuário está enxergando e os conteúdos sonoros comunicados através dos fones de ouvido; por outro lado, as peças de Cardiff provocam ainda o contraponto entre presente e o passado, ou seja, entre o tempo da caminhada do usuário em contraposição ao tempo da narração, o qual, como qualquer outro tipo gravação, pertence a algum lugar indefinido do passado. Dessa maneira, Cardiff transporta a visão para além dos limites do olhar, confundindo a percepção do que é passado e do que é presente, do que se mostra como sons atuais e sons fabricados e gravados na memória do dispositivo. Tanto nos trabalhos de audiowalk de Janet Cardiff quanto em uma peça performática como A Machine to See With, os estímulos sonoros atuam como um algoritmo performativo narrativo que mistura o visível e o invisível, o passado e o presente, conduzindo e ao mesmo tempo deslocando o olhar daquele que escuta suas instruções sonoras, rememorações e fragmentos de áudio extraídos de filmes, programas de TV e de rádio. Em ambos os casos – e poderíamos incluir aqui também o caso de Hundekopf – apesar de não haver a utilização de recursos de imagem, trata-se de peças performáticas que atribuem uma certa qualidade audiovisual ao espaço percorrido. Como afirma Cardiff sobre o seu próprio trabalho, trata-se de “deflagrar o efeito de um filme com apenas algumas palavras”116 (CARDIFF apud WEBER, 1997, s/p, tradução nossa). A estrutura em modelo linear se mostra como a forma mais básica de arranjo de 115

No original, em inglês: Her spoken and whispered words are intercut with bits of ambient sound; snippets of audio apparently sampled from TV, genre films, or radio melodramas; and observations or questions whispered by an unidentified man. The result is an audio collage that borrows from sources such as film noir, avant-garde cinema, modernist fiction, and radio plays but which ultimately fits into no accepted category of art making. 116 No original, em inglês: triggering the effect of an entire movie with just a few words.

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elementos de um banco de dados com vistas à criação de experiências narrativas, estando presente em vários tipos de produtos de mídias digitais, como na maioria dos games em que o jogador deve avançar por cada uma das fases até chegar ao término do jogo. Contudo, as estruturas modulares permitem também outros tipos de arranjos narrativos. Tal como observa Jeffrey Shaw (2005), uma característica apresentada pelos sistemas modulares é a possibilidade de promover trocas entre os elementos que o compõem. Assim, descreve o autor, no âmbito da produção de formatos narrativos em mídias digitais é particularmente comum os sistemas que apresentam “estruturas modulares de conteúdo narrativo que permitam um número indeterminado, mas significativo, de permutas” (SHAW, 2005, p. 362). Nesse sentido, as escolhas dos usuários dentro do sistema geram possibilidades narrativas variadas, que são tanto maiores quanto mais numerosas forem também as possibilidades de combinação entre seus elementos. O filme de GPS Nine Lives117 apresenta uma estrutura narrativa modular que favorece a realização de combinações variadas, de acordo com a sequência em que o usuário do sistema acessa os fragmentos de vídeo. Vejamos como isso acontece. Conforme já mencionamos em outras partes do trabalho, antes de ser propriamente um “filme”, Nine Lives é um aplicativo para dispositivos móveis em que segmentos de vídeo são liberados à medida que o sistema identifica a posição geográfica do usuário. Trata-se de uma comédia de perseguição que narra a história de uma troca de malas que coloca o personagem principal, um funcionário de um escritório, em meio a uma disputa de interesse entre policiais e um grupo de criminosos. Sua estrutura narrativa é dividida em nove segmentos, correspondendo a cada um dos bairros em que as cenas do filme foram gravadas. Ao acessar o aplicativo, o usuário pode assistir, a qualquer momento, a cena de abertura do filme. Na verdade, tal cena corresponde, cronologicamente, ao final do filme, momento em que nos é apresentado o ponto alto da história – na cena vemos o personagem principal correndo desorientado pela cidade, tentando escapar de perseguidores que estão prestes a alcançá-lo. Ao assisti-la, o espectador é incentivado a descobrir quais acontecimentos prévios conduziram àquela situação. Dessa maneira, com exceção deste episódio e de mais um outro (que corresponde ao desfecho da história) todos os trechos de vídeo são apresentados na forma de flashbacks e seguem uma estrutura não-linear de organização, podendo ser assistidos em diferentes ordens, dependendo do lugar da cidade em que o indivíduo se encontra no momento em que acessar o aplicativo do filme.

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Uma descrição do filme de GPS Nine Lives pode ser encontrada na introdução deste relatório de pesquisa.

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A ordem, portanto, em que ele assistirá a cada um dos episódios não interfere no entendimento global da trama do filme. Isso se torna possível à medida que a narrativa obedece a uma estrutura em que cada acontecimento fílmico apresentado é mostrado sob diferentes perspectivas, seguindo o conceito de uma narrativa cubista (REICHENBACH; ZUANON, 2011). Assim, mesmo que o usuário não veja todas as perspectivas sobre um mesmo acontecimento, a visualização parcial do conjunto já é suficiente para que ele compreenda o sentido geral do fato – lembremo-nos de filmes como Cidadão Kane (Orson Welles, 1941) e Rashomon (Akira Kurosawa, 1950), que também apresentam estruturas compostas por múltiplos pontos de vista sobre um mesmo elemento narrativo. Em um projeto como 34N118W (e poderíamos incluir também o aplicativo Tactical Sound Garden), que propõe a criação de paisagens sonoras que emergem a partir da vinculação de conteúdos de áudio a localizações geográficas de ambientes urbanos, o caráter modular se mostra ainda mais acentuado. Em 34N118W, a proposta dos artistas Jeff Knowlton, Naomi Spellman e Jeremy Hight foi mapear sonoramente o espaço de um antigo distrito industrial de Los Angeles. Para tanto, os artistas produziram e geolocalizaram diversos conteúdos em áudio, os quais podiam ser acessados por usuários equipados com dispositivos móveis (no caso, laptops, fones de ouvido e navegador GPS). As narrativas contavam histórias da região ocorridas em diferentes épocas, e misturavam contos, relatos, poemas e outros gêneros. Nesse sentido, aquele que participa da experiência de exploração do referido distrito de Los Angeles se depara com uma rede de narrativas que atuam como módulos de uma estrutura maior, ou seja, à medida que os usuários acessam os conteúdos sonoros, um quadro geral da história do lugar vai se formando, podendo variar conforme o percurso realizado por cada visitante. A proposta dos artistas era criar uma experiência baseada no conceito de “arqueologia narrativa” (narrative archaeology) (HIGHT, 2006, p. 2), que se refere a um processo de “escavação” em busca de narrativas escondidas nas “camadas” cronológicas que constituem os lugares. 34N118W (como também Tactical Sound Garden) incentiva a exploração espacial por parte do usuário, mais do que propriamente oferecer uma experiência de narrativa que se desenrola linearmente. O usuário é convocado a “escavar” o território em busca de fragmentos narrativos que lhe ajudem a montar um quadro geral do lugar em que a experiência toma forma. De certa maneira, o princípio de evocação do passado através de fragmentos narrativos incorporados ao espaço está presente também nos casos de cinema de caminhada, como em Nine Lives e em Walking Cinema: Murder on Beacon Hill. Tratam-se de experiências que,

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apesar de se estruturarem como narrativas mais ou menos lineares, partem também de uma ideia de reconstituição do passado – em Nine Lives, o usuário vai atrás do que aconteceu “antes” na narrativa, isto é, enquanto se desloca pelo território da cidade, ele assiste a flashbacks da história; já em Walking Cinema: Murder on Beacon Hill, a ideia é reconstituir, através de cenas audiovisuais, um acontecimento ocorrido naquela região. Já em A Machine to See With (bem como nas peças de audioguia de Cardiff), o conteúdo narrativo não é propriamente mostrado ou exibido, mas é produzido performaticamente pelo próprio participante. Ainda que se trate de um sistema fechado, que segue uma linha narrativa predeterminada, há muito espaço para que imprevistos aconteçam: por exemplo, quando, em A Machine to See With, o participante é incentivado a entrar em um banheiro público e esconder o seu dinheiro nos sapatos, o que pode acontecer se, ao chegar lá, o lugar estiver interditado ou se todas as cabines estiverem ocupadas? Nesse sentido, a nosso ver, A Machine to See With emprega um modelo de experiência que consegue conjugar com equilíbrio ações performáticas e o desenvolvimento narrativo. Nosso percurso ao longo deste capítulo tomou como ponto de partida as propriedades estéticas relacionados às formas de experimentação e de conhecimento do território através de práticas de deslocamento espacial do corpo – os walkabouts australianos, as visitas a lugares banais dadaístas, as deambulações surrealistas, as derivas situacionistas, dentre outras. Em comum, tais práticas de caminhada sugerem a transformação do espaço em paisagem, assumindo que estradas, ruas, o passeio público e quaisquer tipos de caminhos, não se reduzem a meios de passagem entre um lugar e outro, mas são, acima de tudo, lugares em si, isto é, espaços aos quais são atribuídos valores estéticos e simbólicos. Ao tratarmos das psicogeografias situacionistas, destacamos o caráter programático das técnicas de deriva. Longe de acontecerem totalmente ao azar, percebemos nas ações situacionistas um esforço deliberado de constituir estratégias de desorientação programada, as quais encontramos também nas peças para performances minimalistas do movimento Fluxus (que consistiam, basicamente, em conjuntos de instruções para produção de comportamentos imprevisíveis nos espaços urbanos) e também em uma ação performática como Following Piece, de Vito Acconci. O uso de instruções e regras nas propostas de exploração espacial constitui uma forma de balizar, através de funções algorítmicas, o comportamento do artista em relação ao ambiente. É nesse sentido que formulamos, ao longo do capítulo, a ideia de algoritmo performativo para nos referirmos ao conjunto de regras e disposições utilizados por artistas em suas performances de exploração territorial. Tais performances, de modo geral, são orientadas para promoverem experiências de sensibilização do corpo no e com o espaço,

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dentre as quais a técnica de deriva nos pareceu a mais consciente dentre todas as observadas. Contudo, conforme vimos também, algumas práticas de caminhada, como os walkabouts australianos, tinham como propósito articular o deslocamento pelo território a histórias mitológicas. Assim, a relação entre o deslocamento do corpo pelo espaço com finalidade narrativa constitui também uma outra tendência que aparece, por exemplo, na literatura de viagem e nas peregrinações. Em obras de Land Art como as de Richard Long, observamos o emprego do mapa como algoritmo performativo: o artista criava um desenho sobre o mapa (um círculo, por exemplo) e a partir da imagem partia em direção ao território para explorá-lo. Já em uma obra como A Line Made by Walking, também de Long, o corpo atua como um pincel que marca delicadamente a superfície terrestre, remetendo a uma forma de cartografia a partir da qual o mapa é produzido sobre o próprio território. O mundo enunciado assim, pelos passos do artista, é pensado como um meio a partir do qual o artista pode, como seu corpo, conhecê-lo e inscrever nele suas marcas. Ainda, as práticas de deslocamento do corpo em espaços urbanos expressam relações que a todo momento remetem a imagens e movimentos próprios de uma cultura visual forjada pelas técnicas, estéticas e imaginários cinematográficos. Para Eisenstein, o caminhante urbano, ao se deslocar em meio a construções arquitetônicas de uma cidade, passando por diversas fachadas, alamedas, monumentos, seria uma espécie de protótipo ancestral do espectador fílmico. Uma aproximação entre cinema e arquitetura remeteria, ainda, a determinadas figuras de subjetividade que mesclariam propriedades psíquicas e performáticas tanto do espectador fílmico quanto do caminhante urbano, em especial o turista (mas também o pintor ambulante), que em sua jornada de exploração do espaço urbano busca alcançar diferentes ângulos de visão, ora assumindo pontos de vista elevados, ora se embrenhando em meio à multidão. Assim como nas estratégias de deslocamento do corpo no espaço urbano, duas são as principais tendências de enunciação do espaço percorrido em ambientes computacionais navegáveis. A primeira tende mais à noção de navegação como forma de livre transitar entre lugares, seguindo uma lógica próxima à ideia de deriva (extensamente evocada na figura do usuário da web, que deixa-se “perder” ao navegar entre os hiperlinks da rede); por outro lado, a navegação pode ser orientada de modo que o espaço percorrido produza um efeito de narrativa (tal como acontece em muitos jogos digitais). No fim das contas, concluímos que o elemento fundamental que determina o tipo de experiência oferecida para o usuário de um sistema de banco de dados é o algoritmo. Seja para determinar uma experiência narrativa ou

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de “livre” navegação (deriva), o algoritmo orienta a performance do corpo que navega entre os conteúdos de um banco de dados. À medida que se tornam mais comuns os sistemas de bancos de dados, o princípio de modularidade que pauta o funcionamento das mídias digitais extrapola domínio dos universos “puramente” computacionais e se irradia para outras áreas da cultura, autorizando o surgimento de estéticas de conectividades híbridas que combinam elementos digitais e analógicos tal como observamos nos projetos artísticos com mídias locativas. Seguindo nessa direção, na etapa final do capítulo propusemos a análise de alguns casos de audiovisuais locativos, os quais foram discutidos desde a perspectiva das formas de enunciação que tais contextos comunicacionais produzem quando atravessados pelo corpo em movimento de usuários de dispositivos móveis. Conforme vínhamos observando, também no âmbito dos usos criativos com mídias locativas os projetos que estimulam o deslocamento do corpo no espaço parecem conjugar tanto propostas de exploração espacial quanto também de experiências narrativas. De todo modo, o que está em jogo é o tipo de algoritmo performativo que orienta a performance do corpo em sintonia com o aparato tecnológico. Em alguns casos, como em Serendipitor ou em n, os algoritmos estimulam performances baseadas em princípios de exploração espacial. São algoritmos que reposicionam a finalidade do ato de deslocamento do corpo pela metrópole, oferecendo alternativas criativas ao desenvolvimento de algoritmos de navegação espacial que apontem para a superação do tom monótono das aplicações de GPS que utilizamos para ir de um ponto a outro da cidade. Em n, por exemplo, o algoritmo performativo da “aplicanção” Madera de deriva refuncionaliza, inclusive, o uso dos dispositivos móveis como player de música ao “traduzir” para a escala da cidade a escuta musical. Em outros casos, como em Hundekopf, A Machine to See With, Nine Lives, 34N118W, os algoritmos performativos propõem experiências narrativas que tomam como base o deslocamento do corpo pelo território urbano. Em todos eles, observamos que o efeito de narrativa surge da sincronização (mixagem espacial) entre estímulos audiovisuais (imagéticos, sonoros, textuais ) e o posicionamento espacial dos participantes. Em cada caso o princípio de modularidade pode dar origem a diferentes tipos de configuração da estrutura narrativa: em Walking Cinema: Murder on Beacon Hill, assim como em A Machine to See With, a estrutura narrativa apresenta-se linearmente, de modo que o participante deva seguir módulo por módulo (ou cena por cena) até o final da história; já em Nine Lives, a estrutura modular narrativa comporta algumas possibilidades de caminho (9 no total); já em projetos

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como 34N118W ou em Tactical Sound Garden, o caráter modular se mostra mais acentuado, de modo que não há um ordem prévia a ser seguida em relação ao acesso aos conteúdos vinculados ao espaço territorial. Em projetos como 34N118W e em Tactical Sound Garden, a dinâmica de interação com os conteúdos geolocalizados estimula o usuário a “escavar” o território em busca de fragmentos narrativos. Tal “escavação” é sempre atrás de rastros, lembranças e rememorações de acontecimentos – relatos pessoais, mensagens, cenas ficcionais, imagens, não importa, é sempre como um comentário sobre o passado que tais conteúdos chegam à superfície das telas dos dispositivos móveis usados para recuperá-los. Já em A Machine to See With (bem como em Hundekopf e nas peças de audioguia de Janet Cardiff), o algoritmo estimula a ação sempre em tempo presente, incitando o participante a se engajar performativamente nos acontecimentos “narrados”, tornando-o o próprio centro ao redor do qual a trama se desenvolve. Em conclusão, consideramos que, ironicamente, projetos baseados fundamentalmente na audição parecem alcançar maior êxito no que se refere aos processos de atualização de virtualidades audiovisuais em experiências de deslocamento do corpo pelo território urbano. Tanto A Machine to See With como as peças de Cardiff são experiências de deslocamento do corpo no espaço que se mostram capazes de evocar, através de rastros, fragmentos e vestígios, todo um imaginário audiovisual que se hibridiza às ações do corpo em deslocamento pela cidade – algo que nos remete diretamente aos depoimentos dos voluntários que participaram do estudo sobre o hábito de escutar músicas em aparelhos do tipo Walkman, que comentamos no primeiro capítulo deste relatório de tese. Em contrapartida, projetos como Nine Lives e Walking Cinema: Murder on Beacon Hill, que se baseiam numa disposição sobretudo voyeurística por parte do espectador, parecem precários tanto em relação ao tipo de vínculo que conseguem estabelecer com o entorno urbano quanto à intensidade da experiência audiovisual que proporcionam. Poderíamos especular que trata-se ainda das primeiras tentativas de um formato que está longe de se consolidar e, nesse sentido, é apropriado trazermos aqui o comentário de Henry Jenkins (2004) sobre alguns jogos que utilizam demasiadamente o recurso de cut scenes118. Para Jenkins, o uso abusivo das cut scenes denotaria uma certa inexperiência na capacidade de explorar o potencial narrativo dos jogos digitais, algo semelhante ao que acontecia no cinema dos primeiros tempos em que os cineastas utilizavam cartões de texto

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Cenas audiovisuais inseridas no fluxo do jogo que geralmente têm como função narrar partes da história.

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entre as cenas como forma de assegurar a compreensão da narrativa. Com o tempo, à medida que as técnicas de montagem foram sendo aprimoradas, os cartões de texto passaram a ser usados com menor frequência, até que deixaram de ser fundamentais. Para Jenkins, um dos desafios da indústria de jogos é justamente aprender como aproveitar o potencial de interatividade do meio para conseguir narrar (boas) histórias. Nas palavras de Jenkins (2004, p. 126, tradução nossa):

Tal como em qualquer tradição estética, os projetistas de jogos podem aperfeiçoar seu ofício através de um processo de experimentação e refinamento dos dispositivos narrativos básicos, melhorando em termos de modelar experiências narrativas sem limitar demais o espaço para improvisação nos jogos.119

Trazendo a comparação de Jenkins para o território dos audiovisuais locativos, acreditamos que projetos como Nine Lives e Walking Cinema: Murder on Beacon Hill denotam ainda um estágio primitivo das práticas de narração de histórias associadas a contextos de exploração de espaços geográficos, justamente por oferecerem experiências de entretenimento que exploram de modo tímido o potencial de interação oferecido pelos dispositivos móveis: assim como Jenkins percebe uma pobreza no uso abusivo das cut scenes nos jogos, nosso sentimento diante de tais formatos de audiovisuais locativos é de que eles ainda estão presos à remediação (BOLTER; GRUSIN,

2000) de certos padrões

cinematográficos, especialmente o centramento da experiência em torno de uma imagem “íntegra” que pouco dialoga com o espectador e com o ambiente em que encontra-se situado. De todo modo, acreditamos que mesmo nessas experiências encontra-se o traço de formatos narrativos que poderão amadurecer nos próximos anos, sobretudo à medida que dispositivos computacionais vestíveis, como o Google Glass, começarem a se tornar mais populares.

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No original, em inglês: [...] as with any other aesthetic tradition, game designers are apt to develop craft through a process of experimentation and refinement of basic narrative devices, becoming better at shaping narrative experiences without unduly constraining the space for improvisation within the game.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo deste trabalho procuramos estabelecer algumas linhas de pensamento que nos auxiliassem a figurar um quadro geral sobre a visualidade emergente em novos formatos audiovisuais que surgem no contexto das práticas experimentais e criativas com mídias locativas. Para tanto, procuramos apontar relações entre a imagem, o espaço e o corpo dos usuários de dispositivos móveis. Iniciamos nossas reflexões tentando aproximar o objeto de estudo a um olhar comunicacional a partir de três eixos de abordagem, os quais, em conjunto, nos ajudaram a compor um mapa da tecnocultura das mídias locativas em nossa época. Primeiramente, enfocamos nossas observações sobre os processos de reversão (MCLUHAN; POWERS, 1995) que tomam forma hoje no âmbito das imagens e dos meios tecnológicos computacionais. Nossa conclusão é de que os meios técnicos audiovisuais e

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computacionais atingiram níveis de saturação tão elevados em nossa cultura que muitas de suas propriedades e lógicas de funcionamento passam a operar em diferentes áreas da cultura sem que muitas vezes tais meios tecnológicos estejam sequer presentes. Tal cenário possibilita que experiências audiovisuais possam ser fruídas num contexto em que a “imagem” – tal como estamos acostumados a nos referir ao conteúdo exibido em telas de todos os tipos – se faz cada vez menos necessária para garantir que tais experiências aconteçam. Apontamos, nesse sentido, um caráter de esvaecimento da materialidade das imagens que se daria a ver sobretudo na flexibilidade e na variabilidade de formatos dos novos suportes para veiculação imagética, cada vez menos parecidos com “telas” tradicionais. Conforme apontamos ao longo desta pesquisa, atualmente a imagem encontra grande facilidade para habitar praticamente quaisquer tipos de superfícies, desde as fachadas de prédios ao próprio corpo humano. Ao se mostrarem assim, tão versáteis, tão acopladas a todas as coisas, as imagens tendem a se mimetizar ao ambiente e a se tornarem cada vez mais imperceptíveis à visão, ainda que perfeitamente atuantes e operantes em nossas vidas. A mudança que tentamos apontar ao longo do caminho é antes uma mudança que toma forma na visualidade de nossa época. Passamos gradualmente de um entendimento da imagem enquanto conteúdo veiculado em uma “tela”, que assumiria a função de “janela” para outros mundos, para assumirmos nossa relação com as imagens através de sua condição de presença. Aparentemente, nos encontrávamos diante de uma contradição: como poderíamos afirmar que a “imagem” estaria sucumbindo, tornando-se invisível, e, ao mesmo tempo, apontar para uma potencialização de sua capacidade de agir sobre nossos corpos? Conforme tentamos mostrar ao longo da pesquisa, não haveria contradição nenhuma nesse pensamento e a conclusão a que chegamos é que as imagens se tornam cada vez mais potentes à medida que deixam de lado sua função de meios de representação para atuarem como meios de ação e de confrontamento com o corpo. Ao longo desta pesquisa buscamos justamente mapear, através da análise de uma forma emergente assumida pelo audiovisual na contemporaneidade, as condições, as operações e os efeitos que tornam possível à imagem amplificar a sua condição de presença quando combinada a práticas que se efetuam nos espaços urbanos. Conforme tentamos evidenciar a partir de nossas análises sobre as audiovisualidades locativas, as imagens se apresentam diminutas (Nine Live), semitransparentes (Street Museum of London) e em alguns casos até mesmo invisíveis (A Machine to See With). Contudo, não há como negar que a força expressiva de tais obras resida, justamente, em seu poder de evocação de certas qualidades da experiência sensorial em espaços urbanos aos quais atribuímos uma qualidade de “imagem”.

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No contexto das estéticas das audiovisualidades de mídias locativas, o corpo assume papel central. A operação de base do dispositivo imagético reside no estímulo à intensificação do corpo como centro de indeterminação através do qual amplia-se o tempo de resposta entre o contato com as materialidades espaciais e a ação desencadeada pelos mecanismos sensóriomotores. Com isso, os estímulos produzidos pelo aparato técnico (as imagens exibidas na tela do aparelho, as instruções algorítmicas para o corpo, os estímulos sonoros etc.) interferem no processo habitual de relação do corpo com o espaço urbano. Se geralmente percorremos os espaços urbanos distraidamente, sem nos atermos aos detalhes da arquitetura ou ao comportamento das pessoas que passam por nós, é porque agimos em função de nossas necessidades momentâneas – não raro, estamos projetando nossos pensamentos em direção a um presente que ainda não chegou e, com isso, não atentamos para o momento vivido. Contudo, nos casos de audiovisualidades de mídias locativas pesquisados observamos uma vocação à mudança de postura em relação à percepção espacial que se apresenta sob a regência de diferentes tipos de estratégias neles empregadas. Uma das estratégias recorrentes encontradas nos casos analisados é tornar o corpo consciente da qualidade temporal do espaço. Com esse intuito, pode-se operar através de um corte móvel no presente, conectandoo ao passado, tal como acontece em Street Museum of London e também nos casos que incluímos na categoria cinema de caminhada e em projetos como Tactial Sound Garden e 34N118W. Ao agirem dessa maneira, evocando o passado, tais projetos enunciam o espaço como um palácio de memórias (JENKINS, 2004), ou, ainda, como um solo arqueológico (HIGHT, 2006) em que os usuários de dispositivos móveis realizam “escavações”, recuperam imagens de tempos “passados” e os misturam com o trânsito e o ritmo contemporâneos através de entrelaçamentos de sensações hápticas. Outra estratégia para intensificar o papel do corpo como centro de indeterminação e, com isso, ampliar a percepção espacial é operar através de uma expansão do presente por meio de sequências de eventos que correm em paralelo ao fluxo da vida cotidiana. Uma estratégia como essa nós encontramos nos casos de performatizações algorítmicas como em A Machine to See With e nas peças de audiowalk de Janet Cardiff. Os estímulos sonoros atuam como um algoritmo performativo narrativo que mistura o visível e o invisível, o passado e o presente, conduzindo e ao mesmo tempo deslocando o olhar daquele que escuta suas instruções sonoras enquanto se desloca pelo espaço. Trata-se de peças performáticas que atribuem uma certa qualidade audiovisual ao espaço percorrido, algo que Eisenstein (1989) já havia percebido no modo como a Acrópole de Atenas havia sido construída e que artistas como Peter Greenway e Ilya Kabokov souberam como explorar em suas obras. Portanto, uma

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consideração importante a ser feita é que em todos esses casos observamos uma atualização do que chamamos ao longo deste trabalho de estéticas de conectividades híbridas, as quais não são, portanto, subordinadas ao contexto tecnológico específico das mídias locativas, mas se enunciam como uma tendência que marca tanto manifestações expressivas do passado quanto do presente. Por outro lado, a qualidade de presença das estéticas tecnológicas das mídias locativas se relaciona ao caráter de impenetrabilidade da imagem, o qual conduz o olhar espectador de volta sobre si mesmo. Tal qualidade já havíamos apontando nos panoramas auráticos de The Wilderness Downtown, nas instalações de Jeffrey Shaw e Peter Greenway, nas obras de videoinstalação de Vito Acconci e nos circuitos fechados de vídeo de Bruce Nauman. Em todas elas, quando o olhar tenta penetrar a imagem, é surpreendido por um movimento de loop, voltando-se sobre si mesmo. No contexto das audiovisualidades de mídias locativas, tal qualidade de presença da imagem ocorre através de diferentes operações. Em alguns casos, a imagem produz, pela diferença, uma instabilidade no olhar que inquieta a superfície do presente – isto é o que acontece nos casos de cinema de caminhada analisados, em que a imagem exibida na tela do telefone celular se apresenta ao corpo do usuário como uma diferença a ser notada em relação ao ambiente: o usuário olha alternadamente entre a imagem na tela e as imagens ao redor, comparando-as, misturando-as em sua memória e produzindo, com isso, percepções alteradas do contexto ambiental ao qual encontra-se inserido. Em outras situações o espectador vê o território desde um ponto de vista aéreo, através de uma imagem gerada via satélite que representa a sua movimentação pelo território, gerando uma espécie de imagem especular que transforma a percepção do corpo em deslocamento pelo espaço. Em outros casos, a imagem enquadra o olhar, obrigando-o a acompanhá-la. Este é o caso de Street Museum of London, que, em virtude de operar através de técnicas de realidade aumentada, mantém o usuário preso ao enquadramento da câmera, obrigando-o a escanear o espaço até que a imagem da fotografia histórica se encaixe com a imagem da paisagem, formando uma combinação que deixa entrever o passado misturado ao presente, produzindo uma diferença por sobreposição que não permite ao usuário fixar-se nem em uma nem na outra das duas imagens. Em outros, ainda, ela (a imagem) simplesmente opera diretamente sobre a percepção do espectador. Este é o caso de A Machine to See With, em que os estímulos sonoros atuam como o código de um programa que determina desde o interior do corpo as condições com que o olhar é efetuado, instaurando fluxos espaço-temporais paralelos, que provocam uma sensação de estar e não estar, uma dupla distância que é a característica própria de obras baseadas em

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instruções sonoras. O caráter reflexivo, no caso específico de A Machine to See With, está justamente na sobreposição de ações que tomam forma num limiar entre a arte e a vida cotidiana, entre a ficção dos filmes policiais e as manchetes dos telejornais. Concluímos também que os efeitos de presença das imagens dos audiovisuais locativos se realizam em função da desaceleração do ritmo da montagem audiovisual. Aqui parece haver outro processo de reversão. Se a história da montagem parece conduzir a um processo de aceleração radical do ritmo do audiovisual, nos audiovisuais locativos este processo parece ter se revertido. Monta-se em ritmo lento. As transições são morosas, os tempos mortos ocupam a maior parte da experiência. A transição de uma cena para outra nunca acontece através de um “corte seco”, mas fica subordinada ao ritmo de uma história que se desenrola tão lentamente quanto os passos de alguém que caminha atento à paisagem, deixando-se dissolver nela. A desaceleração como marca distintiva das audiovisualidades de mídias locativas traz de volta a intensidade dos primeiros filmes tomados em plano sequência, algo que o cinema soube explorar muito bem e que videoartistas como Vito Acconci, em Theme Song, souberam elevar a um nível de intensidade radical. A desaceleração é antes o resultado da espacialização da duração audiovisual tendo em vista equalizá-la ao ritmo do tempo vivido, que hoje em dia não é lento, pelo contrário, é intenso como a montagem dos videoclipes televisivos, e por outro lado a desaceleração é a temporalização (ou virtualização) do espaço, que ao se equalizar ao ritmo da montagem audiovisual expande-se em possibilidades novas de atualização, tornando o presente mais rico e mais denso. Com isso, se insistimos em afirmar o potencial das imagens técnicas como agentes que possibilitam um adensamento da experiência perceptiva de espaços e lugares, é porque acreditamos que a força de tais imagens reside mais em sua capacidade de atuar como programa de codificação de gestos e de faculdades cognitivas do corpo do que como emulação de uma “janela” para outros mundos. Nesses termos, acaba se tornando mais produtivo pensar o estatuto da imagem em certas experiências com mídias móveis na condição de uma imagem-dispositivo, nos termos de Dubois (2004), que se projeta como efeito de presença (GUMBRECHT, 2010) na medida em que gera interfaceamentos com os lugares em que a experiência toma forma. A título de encaminharmos o fechamento do trabalho, cabe ainda destacar, uma vez mais, que ao longo do percurso de pesquisa procuramos mostrar que o audiovisual se estabelece, hoje, mais do que nunca, como um fundo sobre o qual a visualidade contemporânea toma forma. A consequência radical desse processo é que, passados mais de cem anos da invenção do cinema, nossa cultura encontra-se em um estágio tão avançado de

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assimilação dos códigos audiovisuais, que, hoje em dia, as imagens não precisam mais sequer se apresentar como “imagens” para serem percebidas como tais. Como diria Janet Cardiff (apud WEBER, 1997), para deflagrar um efeito cinematográfico bastam apenas algumas palavras. Aqui também retomamos o comentário de um dos participantes dos estudos sobre as práticas de escuta musical em aparelhos portáteis (do tipo Walkman) que comentávamos no primeiro capítulo. Conforme dizia, ao andar pela cidade escutando música através dos fones de ouvido, o mundo se transformava em um filme e os acontecimentos da vida cotidiana pareciam ser controlados pelo ritmo da canção. Mais do que nunca a questão colocada por Dubois (2004, p. 12) faz sentido: “Quem, ao percorrer de carro um longo trajeto numa vasta paisagem aberta, não pensou, com a ajuda da música no rádio, numa figura de travelling mergulhando na tela panorâmica de seu para-brisa?”. Não é à toa que o primeiro vídeo de divulgação do Google Glass,120 lançado antes da sua chegada ao mercado, mostrava na cena de fechamento uma situação que, para nós, representa a essência da visualidade das audiovisualidades de mídias locativas. Ao longo do referido vídeo assistimos alguém, que aparenta ser um jovem usuário do Google Glass, realizando várias atividades cotidianas: ele acorda, vê a previsão do tempo, troca mensagens de áudio com um amigo, tira fotos da cidade e compartilha em suas redes sociais online etc., sempre com o auxílio do óculos inteligente. Assistimos a tudo desde o ponto de vista subjetivo do personagem, ou seja, sempre através das lentes-interface do Google Glass. Na cena final, já ao entardecer do dia, acompanhamos o seu deslocamento até o terraço de um edifício. O personagem inclina sua cabeça para baixo e vemos as suas mãos segurando um pequeno instrumento de cordas (trata-se de um ukulele). Nesse momento ele recebe uma videochamada: é Jessica, supostamente sua namorada. A imagem em vídeo da jovem surge na parte inferior da tela (ou seja, da lente do Google Glass). Cumprimentam-se e ele pergunta se ela gostaria de ver algo interessante. Ele então começa a tocar o ukulele para ela. Enquanto isso, seu campo de visão começa a subir lentamente, como num movimento de tilt up da câmera, até a altura em que é possível ver uma deslumbrante vista da cidade enquanto o sol se põe. Ao fundo, ouvimos o som do ukulele. Jessica e nós assistimos a tudo como se fosse um videoclipe ou a cena final de um filme. Nesse momento toda a memória acumulada em mais de um século de experiência audiovisual irrompe no presente como um filtro do olhar, misturando-se à percepção da paisagem urbana e transformando nossos olhos em uma máquina de ver.

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Disponível em: . Acesso em: 19 de dezembro de 2013.

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Por fim, resta dizer apenas que concordamos com Manovich (2006) quando ele chama a atenção para a necessidade de pesquisarmos os fenômenos em simultaneidade ao momento em que estão acontecendo. Em larga medida a redação deste texto foi motivada pelo desejo de registro de nossas impressões e prognósticos no “calor do momento” em que surgem os primeiros sintomas de uma mudança em curso na cultura visual de nossa época. Com isso procuramos deixar através deste documento um registro daquilo que está acontecendo no aqui e agora de nosso tempo. Esperamos que futuros pesquisadores possam se servir das informações aqui relatadas não somente como forma de encontrar um inventário de práticas socioculturais que se realizam em articulação ao momento em que despontam as mídias móveis, mas também para que possam lançar sobre este texto um olhar crítico, que só o passar do tempo é capaz de oferecer. Se acaso tal encontro venha a ocorrer, esperamos ainda que esta pesquisa seja tratada como um solo geológico a partir do qual possam ser extraídos de suas camadas mais profundas os rastros de algumas das imagens que moldam uma certa região do imaginário de nossa época.

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