REVISTA ELETRÔNICA DE HISTÓRIA DO BRASIL

March 2, 2016 | Author: Elias Teves Pacheco | Category: N/A
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1 REVISTA ELETRÔNICA DE HISTÓRIA DO BRASIL ISSN Publicação Semestral Universidade Federal de...

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REVISTA ELETRÔNICA DE HISTÓRIA DO BRASIL http://www.rehb.ufjf.br ISSN 1519 - 5759 [email protected]

Publicação Semestral Universidade Federal de Juiz de Fora Departamento de História Arquivo Histórico da UFJF Clio Edições Eletrônicas Juiz de Fora - MG - Brasil

Revista Eletrônica de História do Brasil Volume 9 - Número 2 - Jul.-Dez. 2007 1. História do Brasil 2.Periódicos Eletrônicos: História

UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA Reitor: Henrique Duque de Miranda Chaves Filho Vice-Reitor: José Luiz Rezende Pereira Pró-Reitora de Pesquisa: Profa. Dra. Marta Tavares D'Agosto Revista Eletrônica de História do Brasil Editoras: Carla Maria Carvalho de Almeida Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) Instituto de Ciências Humanas (ICH) Departamento de História Campus Universitário 36036-330 Juiz de Fora - MG Fone: (32) 3229-3109

Os direitos dos artigos publicados nesta edição são propriedade dos autores. Esta obra pode ser obtida gratuitamente no endereço web da revista, pode ser reproduzida eletronicamente ou impressa, desde que mantida sua integridade.

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Conselho Editorial Profa. Drª. Carla Maria Carvalho de Almeida (UFJF) ([email protected]) – Organizadora deste número

Profa. Dra. Cláudia Maria das Graças Chaves (UFOP) ([email protected]) – Organizadora deste número Profa. Dra. Cláudia Ribeiro Viscardi (UFJF) Prof. Galba R. Di Mambro (UFJF) Profa. Dra. Patrícia Falco Genovez Prof. Dr. Renato Pinto Venâncio (UFOP)

Conselho Consultivo Adriano S. L. da Gama Cerqueira (UFOP) Américo Guichard Freire (CPDOC / UFRJ) Ângelo Carrara (UFJF) Beatriz Helena Domingues (UFJF) Carlos Fico (UFRJ) Douglas Cole Libby (UFMG) Jairo Queiróz Pacheco (UEL) Marcelo Carlos Gantos (UENF) Manolo Florentino (UFRJ) Marco Antônio Cabral Maria de Fátima Silva Gouveia (UFF) Maria Leônia Chaves de Rezende (UFSJ) Helen Osório (UFRS) Renato Leite Marcondes (USP-FEA, Ribeirão Preto) Rodrigo P. Sá Motta (UFMG) Valéria Marques Lobo (UFJF) Vera Lúcia Puga de Souza (UFU) William Summerhill (UCLA)

Revista Eletrônica de História do Brasil. Juiz de Fora: Departamento de História e Arquivo Histórico da UFJF, 2007, volume 9, número 2, jul-dez, 2007, 128 p., http:// www.rehb.ufjf.br.

ISSN 1519-5759

1. História do Brasil 2. Periódicos Eletrônicos: História

Logo da REHB Márcio de Paiva Delgado Bolsista Bianca Portes 2

SUMÁRIO Vol. 9 - N° 1 - jan. - jul. 2007. Dossiê: Brasil República

DOSSIÊ: PODER E RELIGIÃO DOM FREI DOMINGOS DA ENCARNAÇÃO PONTÉVEL: UM EXEMPLO DE MECENATO DIOCESANO Angela Brandão ................................................................................................................... 04 OS INFORTÚNIOS E HERESIAS DO CRISTÃO-NOVO DIOGO NUNES, SENHOR DE ENGENHO DA PARAÍBA QUINHENTISTA NAS MALHAS DA INQUISIÇÃO Angelo Adriano Faria de Assis ........................................................................................... 16 MATEUS DE CASTRO: UM BISPO “BRÂMANE” EM BUSCA DA PROMOÇÃO SOCIAL NO IMPÉRIO ASIÁTICO PORTUGUÊS (SÉCULO XVII) Patricia Souza de Faria ....................................................................................................... 30 “E O MAIS TUDO VÁ NUMA NUVEM DE POEIRA”: NOTAS SOBRE UM MOVIMENTO SEPARATISTA NA AMÉRICA PORTUGUESA Jorge Victor de Araújo Souza ............................................................................................ 44 O EREMITA DO NOVO MUNDO: A TRAJETÓRIA DE UM ITALIANO PELOS SERTÕES BRASILEIROS NO SÉCULO XIX Alexandre de Oliveira Karsburg........................................................................................ 61 VISITAÇÕES ECLESIÁSTICAS EM MARIANA – SÉCULO XVIII Isis Menezes de Rodrigues .................................................................................................. 77

JOVENS PESQUISADORES NAS MALHAS DO DISCURSO: A REFORMA CATÓLICA EM MARIANA E O DISCURSO ULTRAMONTANO DE DOM VIÇOSO (MINAS GERAIS 1844-1875) Tatiana Costa Coelho .......................................................................................................... 97 PADRE VIEIRA E IDEAL PROFÉTICO NA CORTE PORTUGUESA: UMA TENTATIVA DE REALIZAÇÃO DE SUA CRENÇA NO QUINTO IMPÉRIO Leonardo Soares Barbosa................................................................................................... 108 O DITO PELO NÃO DITO – AS APROPRIAÇÕES FEITAS DA BULA UNIGENITUS João Henrique dos Santos................................................................................................... 122

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DOM FREI DOMINGOS DA ENCARNAÇÃO PONTÉVEL: UM EXEMPLO DE MECENATO DIOCESANO Angela Brandão* Resumo: Foi suficientemente compreendido o papel do mecenato por parte das irmandades leigas e ordens terceiras no âmbito das criações artísticas de Minas Gerais do século XVIII. No entanto, parece aplicável a expressão “mecenato diocesano” como uma das formas de tratamento desse conjunto de manifestações artísticas. De fato, não se tem deixado de relevar a importância, ainda que em menor medida, do mecenato proporcionado pelas dioceses. Como exemplo de atuação “mecenática”, Dom Frei Domingos da Encarnação Pontével reformou a Sé de Mariana e estabeleceu uma série de contratos com o arquiteto José Pereira Arouca. Assim, sob sua comitência, foi reedificada a capela e criado o parque do Seminário da Nossa Senhora da Boa Morte, sempre por trabalhos de José Pereira Arouca. Foi ainda o quarto bispo responsável por obras de ampliação do Palácio Episcopal de Mariana, dotandolhe de um enigmático Pavilhão Artístico. Frei Domingos da Encarnação Pontével, enfim, encarregou que se fizesse um conjunto de cadeiras e um Trono Episcopal, atribuídos a Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho. Desta forma, o encargo junto a um célebre mestre entalhador de uma mobília solene confirma a importância mecenática diocesana no contexto artístico de Minas Gerais do século XVIII. Palavras-chave: Mecenato Diocesano, Frei Domingos da Encarnação Pontével, Contexto Artístico de Minas Gerais do Século XVIII. Abstract: It was sufficiently comprehended commission by the lay fraternities and third orders in the XVIIIth century, in Minas Gerais' artistic creations. However, it seems applicable the expression “diocesan patronage” like one of the forms to study these artistic manifestations. In fact, it hasn't been completely understood the commissions provided by the diocese. The bishop Dom Frei Domingos da Encarnação Pontével, as a patron, reformed the Cathedral of Mariana and established contracts with the architect José Pereira Arouca. Thus, under his patronage, was going rebuilt the chapel and made the park of the “Seminário de Nossa Senhora da Boa Morte”, always for jobs of José Pereira Arouca. The bishop was still the responsible for enlargement works of “Palácio Episcopal de Mariana”, endowing-it of an enigmatic Artistic Pavilion. Domingos da Encarnação Pontével, finally, had done a chairs set and an Episcopal Throne, attributed Antônio Francisco Lisbon, the Aleijadinho. The responsibility close to a famous master carver of solemn furniture confirms the importance of the diocesan patronage in Minas Gerais' century XVIII artistic context. Keywords: Diocesan Patronage, Frei Domingos da Encarnação Pontével, Minas Gerais Century XVIII Artistic Context.

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Universidade Tecnológica Federal do Paraná – UTFPR. E-mail: [email protected] Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, Jul.-Dez., 2007

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Com o título Mecenato leigo e diocesano: obras artísticas, armações efêmeras, cortejo santoral e cristológico nas Minas Setecentistas, a professora Adalgisa Arantes Campos apresentava uma conferência durante o VI Colóquio Luso-Brasileiro de História da Arte, em 2003. Infelizmente, o tema sofreu ajustes e foi reduzido na publicação dos anais do Colóquio. Em 2007 o título foi retomado, pela mesma autora, como Mecenato Leigo e Diocesano nas Minas Setencentistas, na coleção História de Minas Gerais, para apresentar “o culto à Paixão de Cristo do ponto de vista do mecenato”1. Ficava, assim,

definitivamente sugerida a

expressão “mecenato diocesano” como uma das formas de tratamento das manifestações artísticas de Minas Gerais no período colonial. José Fernandes Pereira, em seu Dicionário da Arte Barroca em Portugal, no pequeno verbete “mecenato”, indicou a falta de estudos sistemáticos a respeito de um mecenato barroco em Portugal. Para o autor, o termo não encontrou ainda definição conceitual e metodológica adequada à produção artística do Seiscentos e do Setecentos português. Mesmo assim, entende que foi o clero, através da atuação de certos prelados e Cabidos, a ter atuação mais importante e renovadora, em lugar da corte. Do mesmo modo, “mostraram-se particularmente empreendedoras as Ordens Terceiras e as Irmandades de Leigos (...)”2. Foi suficientemente compreendido o papel do mecenato por parte das irmandades leigas e ordens terceiras no âmbito das criações artísticas de Minas Gerais do século XVIII. Os autores que se debruçaram sobre o assunto concordam que o “imenso número de novas construções religiosas nesse período (século XVIII), devidas na maior parte à iniciativa das associações laicas conhecidas pelos nomes de confrarias, irmandades e ordens terceiras3”. Ou, em outras palavras: “nas Minas Gerais, o grande mecenato artístico foi obra de ordens terceiras e de irmandades leigas4”. No entanto, não se deixou de relevar a importância, ainda que em menor medida, do mecenato proporcionado pelas Ordens Religiosas, e nem tampouco, pela atuação artística das dioceses. A primeira diocese a ser criada no Brasil foi a de Salvador, em 1554. Em 1676 foram criadas as de São Sebastião do Rio de Janeiro e de Olinda e, em 1677, a diocese do Maranhão. As dioceses do Pará, em 1719, tendo sido estas duas subordinadas diretamente ao 1

CAMPOS, Adalgisa Arantes. Piedade Barroca, obras artísticas e armações efêmeras: as Irmandades do Senhor dos Passos em Minas Gerais. In PEREIRA, Sonia Gomes. Org. Anais do VI Colóquio Luso-Brasileiro de História da Arte. Vol 1. Rio de Janeiro: CBHA/PUC-RIO/UERJ/UFRJ, 2004. P. 17 e CAMPOS, Adalgisa Arantes. Mecenato Leigo e Diocesano nas Minas Setecentistas. In RESENDE, M.E. e VILLALTA, L.C. História de Minas Gerais: As Minas Setencistas 2. Belo Horizonte: Auténtica; Companhia do Tempo, 2007. pp. 77-107 2 PEREIRA, José Fernandes. Dicionário da Arte Barroca em Portugal. Lisboa: Presença, 1989. 3 OLIVEIRA, Myriam Andrade Ribeiro de. O Papel das Irmandades Leigas na Promoção das Novas Construções in O Rococó Religioso no Brasil e seus antecedentes europeus. São Paulo: Cosac & Naif, 2003. Pp. 167-173. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, Jul.-Dez., 2007

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arcebispado de Lisboa. A atuação dos bispos no Brasil colonial sucumbiu a todo tipo de dificuldade, responsáveis por administrar grandes porções territoriais, as quais muitas vezes não chegavam nem mesmo a conhecer. A primeira legislação específica para as dioceses brasileiras foi apenas formulada pelo sínodo diocesano de 1707: Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Tal conjunto de leis, publicado em Lisboa em 1719 e em Coimbra em 1720, distribuído em cinco volumes, compreendia, além de um vasto repertório de assuntos, orientações a respeito das construções de igrejas e reformas, assim como guarda de ornamentos e alfaias5. Ao mesmo tempo residência dos bispos e lugares de reuniões, os paços ou palácios episcopais consistiram em importantes exemplos de arquitetura no Brasil colonial e expressões de encargos proporcionados pelas dioceses. Para John Bury: “As obras mais ambiciosas da arquitetura civil colonial foram as casas de câmara, as residências dos governadores e bispos, as casas rurais ou solares das famílias patrícias e as casas-grandes de engenhos e fazendas. (...) Entretanto, como obras individuais, as mais admiráveis residências oficiais no Brasil colônia foram o palácio dos vice-reis no Rio de Janeiro e o palácio do arcebispo da Bahia (construído em

1707-1715) uma estrutura cúbica com imponente

solenidade6.” Em palavras como essas, transparece o sentido da contribuição do bispado para a arquitetura colonial brasileira, de saída, ao encomendar obras de importantes Paços Episcopais. O primeiro bispo de Minas Gerais, quando se instalou a diocese em Mariana a partir de 1745, Dom Frei Manoel da Cruz, foi responsável por encomendar parte das obras da matriz que se tornaria Catedral da cidade. Numa carta, dirigida ao Rei, de 27 de fevereiro de 1748, informava que a matriz tinha as dimensões necessárias para uma catedral, mas que se achava ainda por terminar: faltava-lhe o teto do corpo e a pintura interior. O bispo considerava haver um bom o retábulo, encomendado pela Irmandade do Santíssimo Sacramento que se concluiria em 1751. A existência de um documento manifestando, tão logo tomava posse, as preocupações do bispo com relação à dimensão e aos aspectos artísticos da igreja dirigido a Dom João V, embora delegasse parte da administração das obras do retábulo a uma das Irmandades, confirma a tarefa de “comitência” por parte do bispado naquele momento. Não se pode saber a dimensão artística de sua interferência junto a tais contratos, mas foi também 4

CAMPOS, Adalgisa Arantes. Introdução ao Barroco Mineiro. Belo Horizonte: Crisálida, 2006. P. 16. OLIVEIRA, M. A.R. de. op.cit. p.166. LACOMBE, Américo Jacobina. A Igreja no Brasil Colonial. in HOLANDA, S.B. História Geral da Civilização Brasileira. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1968. Tomo I. vol II, pp.121-144. HOORNAERT, E. História da Igreja no Brasil. Petrópolis: Primeira época, 1977. 6 BURY, John. Arquitetura e Arte no Brasil Colonial. Brasília: IPHAN, Monumenta, 2006. P. 192-193. 5

Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, Jul.-Dez., 2007

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durante a administração do primeiro bispo, que se fizeram os trabalhos de reboco da catedral, atestando a conclusão do grosso da obra. Ainda em 1751, o órgão executado a expensas de Dom João V foi objeto de um contrato firmado por Manuel Francisco Lisboa, para a realização de sua decoração em talha. No mesmo ano, há registros de trabalhos de talha executados por José Coelho de Noronha. Em 1758, desta vez o Cabido enviou pedidos ao rei solicitando um relógio, os sinos e as torres. Ainda no período de Dom Frei Manoel da Cruz, em 1760, foi novamente contratado Manuel Francisco Lisboa, como mestre-de-obras, para inspecionar trabalhos de carpintaria e alvenaria e para dar parecer sobre os trabalhos de pintura. Quando Mariana tornara-se sede episcopal, a Catedral encontrava-se inacabada. Teria sido, portanto, por meio da atuação do primeiro bispo, o assentamento das janelas, as obras que rebocaram e caiaram o edifício, como se viu, e é atribuída a seu “mecenato” grande parte das obras de pintura da Catedral, realizada pelo artista Manuel Rabelo de Sousa – pintura das duas cúpulas, do teto da nave central, pintura de todo o interior e douramento dos altares laterais, todos contratos firmados em 17607. A atuação mecenática, se fosse possível empregar justamente o termo, do primeiro bispo de Mariana não se limitou às obras da catedral. Atribuem-se, ainda, encargos por parte do mesmo Bispo Dom Frei Manoel da Cruz referentes à implantação urbanística de Mariana, à ordenação de suas ruas e edifícios, obras executadas pelos arquitetos José Fernandes Pinto de Alpoim e, após a morte do bispo, por José Pereira Arouca. Estaria também atribuída ao primeiro bispo a responsabilidade pela encomenda das obras do Seminário da Nossa Senhora da Boa Morte, do Palácio Episcopal de Mariana8 e a intervenção no início da construção de muitos templos, como os de São Pedro dos Clérigos, São Francisco, Carmo e Rosário, todos em Mariana, assim como em Igrejas de São João del-Rei, Sabará, Diamantina, Tirandentes e Ouro Preto, como também no Santuário de Congonhas9. A importância dada aos objetos artístico-religiosos por parte do primeiro bispo de Mariana voltou-se para alfaias, móveis e outros objetos, e não apenas para a dimensão urbanística e arquitetônica. Adalgisa Arantes Campos considerou, justamente, que “O Inventário da fábrica da Catedral de Mariana surpreende pela quantidade de objetos inicialmente arrolados com detalhes, sob guarda do sacristão mor ou tesoureiro-mor, bem 7

SANTIAGO, Pe. Marcelo Moreira et allii. Igreja de Mariana 100 anos como arquidiocese. Mariana: Dom viçoso, 2006. BAZIN, Germain. A Arquitetura Religiosa Barroca no Brasil. Rio de Janeiro: Record, 1945.p.6870 8 MARTINS, Judith. Dicionário de Artistas e Artífices dos Séculos XVIII e XIX. Rio de Janeiro: Departamento de Assuntos Culturais, MEC, 1974. p. 389. Documentação relativa aos trabalhos de Manuel Francisco Lisboa no Palácio do Bispo em Mariana. 9 SANTIAGO, P.M.M. et alli. Op.cit. pp. 49-52 Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, Jul.-Dez., 2007

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como pela diversidade e luxo de algumas peças procedentes da época em que Mariana era apenas paróquia. Parte expressiva do acervo foi adquirida em Lisboa, sobretudo sob os esforços de d. frei Manoel da Cruz (1748, morto em 1764), quando d. João V ainda era vivo. (...)”; e, mais adiante: “Ainda dentro dessa concepção cultural elevada, destaca-se a aquisição de um vasto acervo de livros sagrados, feita principalmente por d. frei Manoel da Cruz, bispo zeloso em alto grau. (...) notamos na atuação do bispo o esforço para incrementar ritos ‘segundo a melhor norma do Cânon’, conformados à visão tridentina. Afeito ao decoro, à pompa, no sentido de luxo e hierarquia, prescrevia que os ritos em geral, mesmo aqueles feitos pelas irmandades, deveriam acatar o cerimonial da Sé, que assumia doravante o papel de modelo10.” O mecenato artístico de Dom Frei Manoel da Cruz foi, portanto, devidamente reconhecido. Entre 1764 e 1772, durante oito anos, Mariana não teve nomeado novo bispo, pela desconfiança de Roma em relação à expulsão dos jesuítas em 1750. Dom Joaquim Borges de Figueiroa e Dom Bartolomeu Manoel Mendes dos Reis administraram o bispado à distância. O primeiro tomou posse por procurador em 1772 e governou somente através de delegados. Por sua recomendação o Pe. Luís Vieira da Silva foi nomeado professor do Seminário de Mariana, considerado, mais tarde, como um dos mentores intelectuais da Inconfidência Mineira. Seu governo sobre Mariana foi encerrado ao ser nomeado Arcebispo da Bahia em 1773. Nesta data assumiu o terceiro bispo, Bartolomeu Manoel Mendes dos Reis, quando era bispo em Macao, China. Governou a partir de Lisboa, por seis anos, por meio de procuradores e renunciou ao bispado em 177911. Dom Frei Domingos da Encarnação Pontével, que assumiria pessoalmente o bispado de Mariana, nascera em Santarém e fora batizado na Paróquia de São Nicolau, do Patriarcado de Lisboa. Por quinze anos, havia ensinado filosofia e teologia na Ordem dos Pregadores a que pertencia e exercera também o cargo de diretor da Ordem de São Domingos. A julgar pela relação de livros constante em seu inventário de morte, foi um erudito, cujas leituras passavam da filosofia à teologia, de tratados de moral e retórica, da história à geografia, assim como muitos dicionários e até livros sobre música e um livro de culinária. Nas palavras de Luiz Carlos Villalta: “Nenhuma dessas bibliotecas [dos inconfidentes], em termos de

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CAMPOS, Adalgisa Arantes. Mecenato Leigo e Diocesano nas Minas Setecentistas. In RESENDE, M.E. e VILLALTA, L.C. História de Minas Gerais: As Minas Setencistas 2. Op.cit.pp. 81-83. 11 Ibid. pp.57-58 Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, Jul.-Dez., 2007

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tamanho, comparava-se à do bispo de Mariana, Dom frei Domingos da Encarnação Pontével, constituída por 412 títulos e 1066 volumes, quiçá uma das maiores do período colonial12”. Foi, finalmente, eleito bispo de Mariana e confirmado pelo Papa Pio VI em 1779, quinze anos depois da morte de Manoel da Cruz, período em que a diocese foi governada, como vimos, por procuradores. Quando Pontével assumiu a diocese, fazendo a entrada solene na Catedral em 25 de fevereiro de 1780, encontrou o Cabido dividido por facções rivais e por toda espécie de indisciplina. Estes conflitos o teriam levado a estabelecer-se em Ouro Preto, onde “residia habitualmente”, nas palavras de Cônego Raymundo Trindade. Seu episcopado foi marcado pela Inconfidência Mineira, episódio sobre o qual teria mantido silêncio. Faleceu em Vila Rica em 1793 e foi sepultado junto ao coro da Sé de Mariana, ao lado do Evangelho13. Como atuação “mecenática”, Dom Frei Domingos da Encarnação Pontével reformou a Catedral, abalada em suas fundações por formigueiros. No período de sua administração são mencionados trabalhos na Sé, sem especificação, por uma série de contratos com o arquiteto José Pereira Arouca, estabelecidos entre 1780 e 1789. Segundo Trindade, os exames dos problemas estruturais ocasionados pelos formigueiros foram realizados, justamente, pelos peritos Arouca, Custódio Soares e Manoel de Jesus. Entre 1776 e 1781, Fernando Cosme Guimarães recebeu pagamento por obras de restauração na Sé14. Foi também indicada a atuação de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, entre 1779 e 1783, em execução do balcão da mesma Sé, a Igreja de Nossa Senhora da Assunção de Mariana15. O “catálogo racional” realizado por Germain Bazin indicava, como obra feita por Aleijadinho ou a partir de seu desenho, o pára-vento da Sé de Mariana, realizado entre 1779 e 178316. Tratava-se de trabalho de marcenaria rococó, semelhante à grande porta, com rocalhas, rosetas e três pequenas esculturas, duas faces de Cristo em baixo relevo e a cabeça de um querubim17. Adalgisa Arantes Campos considerou, no entanto, que a obra do tapa-vento, feita em 1797,

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“(...) nela se notava a proeminência das ciências sacras sobre as ciências profanas: logramos identificar 251 obras na primeira seção e 76 na última, respectivamente 60% e 18%, ficando o restante (85 obras, 21%) sem classificação em virtude da falta de dados completos sobre as mesmas. Dentre as ciências sacras, além disso, constatamos igualmente a maior presença de livros de teologia e liturgia (...).” VILLALTA, Luiz Carlos. O Diabo na Livraria dos Inconfidentes. In NOVAES, Adauto. Tempo e História. São Paulo: Secretaria Municiapal de Cultura, Companhia das Letras,1992. P. 372-375. 13 SANTIAGO, MM. Et allii. Op. cit. pp. 61-62. TRINDADE, Cônego Raymundo. Arquidiocese de Mariana: subsídios para sua história. São Paulo: Escola de Profissionais do Coração de Jesus, vol.I, 1928. pp.132, 206209. 14 BAZIN, G. Arquitetura... p.68. TRINDADE, Cônego Raymundo. Op. cit. pp. 206-209. 15 Aleijadinho e seu tempo: fé, engenho e arte. Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil, 2006. p.228 16 BAZIN, G. O Aleijadinho e a escultura barroca no Brasil. Rio de Janeiro: Record, 1963. p.335. 17 JARDIM, Márcio. Aleijadinho: Catálogo Geral das Obras. Belo Horizonte, RTKF, 2006. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, Jul.-Dez., 2007

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fosse de Francisco Vieira Servas (1720-1811), assim como a tampa da pia batismal da Sé, de 1795 18, contrariando a hipótese que Bazin formulara nos anos 1960. Na administração do bispo Dom Domingos, foi reedificada a capela e criado o parque do Seminário da Nossa Senhora da Boa Morte, por trabalhos de José Pereira Arouca19. De fato, há uma série de documentos, datados entre 1780 e 1791, referentes a pagamentos por trabalhos de Arouca realizados no Seminário20. Há uma obra indicada por Germain Bazin, em seu “Catálogo Racional”, que poderia estabelecer uma relação entre os trabalhos de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, e o contexto dos encargos solicitados por parte do quarto bispo de Mariana, entre os anos de sua administração, quais sejam 1780 e 1793: o relevo em pedra sabão “A fonte da Samaritana”. Nas palavras do historiador francês: “Possuímos uma menção documentária dessa fonte que nos permite situá-la nos limites cronológicos, infelizmente meio imprecisos, entre 1792 a 1801. Na margem de um balanço das contas do Seminário e do Palácio de Mariana, encontrase a seguinte menção, relativa à administração que se estende de 1792 a 1801 e relativa ao arranjo do parque: Sua excelência em vidros, pinturas, lagos, fonte da Samaritana, pomar de espinhos e ruas de café e jaboticabas – o que for e Sabe Frei Basílio que rompeu as contas”. E mais adiante acrescentou Bazin: “Acima do jato da fonte correndo numa bacia, há um baixo relevo enquadrado numa moldura concheada que é inteiramente o estilo do Aleijadinho. (...) Pena que esse baixo relevo esteja também mal conservado pois deve ter sido uma das melhores obras do Aleijadinho, de grande delicadeza de execução”21. Mesmo se for deixado de lado o problema da atribuição da fonte da Samaritana, a concepção, junto ao Seminário de um “parque”, que incluísse um programa paisagístico, para o qual se pensava em pomares, ruas ajardinadas com especificação de plantas, fonte com esculturas, revela um caso curioso de transposição de modelos de jardins artísticos europeus próprios do século XVIII22. As obras de reforma, melhoramentos e ampliação do Seminário de Nossa Senhora da Boa Morte e no Palácio Episcopal de Mariana, entre os anos de 1780 e 1793 estão diretamente relacionadas ao mecenato do bispo Dom Domingos da Encarnação Pontével e fartamente documentadas em recibos assinados por José Pereira Arouca. A fonte da Samaritana foi obra, em seu conjunto, atribuída a Arouca – que não era escultor, mas pedreiro 18

CAMPOS, Adalgisa Arantes. Introdução ao Barroco Mineiro. Belo Horizonte: Crisálida, 2006. p. 52 BAZIN, G. Arquitetura, p. 70. 20 MARTINS, Judith. Op.cit. pp. 66-67. 21 BAZIN, G. O Aleijadinho e a escultura barroca no Brasil. op. cit. p. 355. 19

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e carpinteiro – mas a concepção e execução do relevo que orna a fonte poderiam, portanto, caber como obras sub-empreitadas por Aleijadinho23. Foi, do mesmo modo, o quarto bispo responsável por obras de ampliação do Palácio Episcopal de Mariana, dotando-lhe de um enigmático Pavilhão Artístico: “Aumentou o palácio episcopal com um pavilhão artístico construído pelo alferes Arouca, que é parte da casa em que há coisa que se veja24[sem grifo no original]”. Observando o edifício de frente, a solene construção do Paço Episcopal de Mariana, onde hoje funciona o Museu da Música, tem-se realmente a impressão de um “acréscimo”: o corpo que corresponde à parte esquerda da fachada principal e que, vista dos fundos, compreende uma impressionante arcada, em forma de galeria (fig.1). Parece importante a menção quanto a obras de ampliação de um Paço Episcopal, onde o bispo nem sequer residiria e, mais ainda, da criação ali de um pavilhão artístico. Tratar-se-ia de um espaço destinado a abrigar sua biblioteca ou uma coleção de obras de arte? Para abrigar simplesmente uma coleção de objetos artísticos ou combinados com outras formas de colecionismo científico, sob os moldes de gabinetes de curiosidades? Em que consistiria, afinal, um pavilhão artístico concebido por um bispo para o Paço Episcopal de Mariana? A prática do colecionismo, por parte de representantes do clero, a partir do que se entende como “colecionismo barroco” era bastante usual e mantinha o sentido ético, como fonte de conhecimento e sabedoria, mas tocava um sentido moderno, desde o século XVII, como fonte de prestígio, de desfrute e conhecimento estético25. Seria preciso averiguar o importante conjunto de livros que constam no inventário de Pontével, marcado por diversos interesses, da música à culinária, a existência de livros relacionados com o universo das artes

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Ver, por exemplo, um apanhado sobre o jardim barroco em CHECA, F. e MORÁN, J.M. El escenario del poder: el jardin. In El Barroco. Madrid: Istmo, 1994. Pp. 188-194. 23 Em Márcio Jardim lemos: “Esta escultura em baixo relevo, encomendada pelo bispado no período de 1792 a 1801 (conforme anotou o Cônego Raymundo Trindade in “A Casa Capitular...”p.17 e “Instituições...”p.203 foi feita para um chafariz localizado no Seminário de Nossa Senhora da Boa Morte, onde esteve até 1962, quando foi removida para o Museu [Arquidiocesano de Arte Sacra de Mariana]. – o serviço foi contratado por José Pereira Arouca e, pelo que se vê, certamente subempreitado ao Aleijadinho.” JARDIM, M. op. cit. p.89 24 TRINDADE, C.R. op.cit. pp. 206-209. Há uma série de recibos assinados por José Pereira Arouca por trabalhos especificados de obras e acréscimos realizados para o Palácio de Mariana, entre 1782 e 1792. MARTINS, Judith. Dicionário de Artistas e Artífices dos Séculos XVIII e XIX em Minas Gerais. Rio de Janeiro: Departamento de Assuntos Culturais, Ministério da Educação e da Cultura, 1974. pp. 67-68. 25 CHECA, F. e MORÁN, J.M. El fin del Celeccionismo Ecléctico y el Nuevo Papel de Mecenas. In El Barroco. Madrid: Istmo, 1994. Pp.59-64. Nesse sentido, os autores mencionam a importante coleção do Cardeal del Monte que adotou o colecionismo da obra de Caravaggio como expressão de sua preocupação em promover a ciência moderna, como método de investigação visual. O texto opõe o colecionismo orientado pelas idéias de Baltasar Gracián realizado por Lastanosa e as novas formas de coleções artísticas relacionadas apenas com o deleite estético. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, Jul.-Dez., 2007

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ou, ao menos, livros ilustrados com gravuras de reprodução26. Aí, provavelmente, nesse Paço Episcopal, situava-se um “fiel retrato” de Dom Frei Domingos, com o seguinte dístico: Quid Preosul noster? Nil est nisi pulvis in urna:/Cordibus ast nostris vivis et ipse manes27”. O quarto bispo de Mariana, Frei Domingos da Encarnação Pontével, foi enfim quem encarregou que se fizesse e a quem pertenceu um conjunto de cadeiras e um Trono Episcopal, entalhados em jacarandá, atribuídos a Antônio Francisco Lisboa (fig.2), cuja datação apresentada pelo Museu Arquidiocesano de Arte Sacra de Mariana é entre 1778 e 1783, o que coincide aproximadamente com o período de sua administração. De acordo com o mesmo Museu de Arte Sacra, a procedência das peças é da Sala de Visitas do Paço Episcopal, provavelmente de Mariana, edifício ampliado pelo quarto bispo, como se viu28. Como uma das cadeiras, que fazia parte de um conjunto talvez maior de peças, encontra-se no acervo do Museu da Inconfidência de Ouro Preto e, considerando-se que Frei Domingos mudou-se para Ouro Preto, a catalogação aqui entende que a cadeira é proveniente da Sala de Visitas de um Paço Episcopal de Ouro Preto e não de Mariana. A cadeira do Museu da Inconfidência (e portanto todas as outras, assim como o Trono?) teria sido feita para o Palácio de Dom Domingos da Encarnação Pontével em Ouro Preto. Este edifício teria sido posteriormente ocupado como Santa Casa e como Quartel. Sobre suas ruínas, adquiridas por Domitila Amaral, edificou-se outra casa no centro do terreno29. Como há divergência de informação entre a catalogação de ambos os museus, o destino do conjunto de mobiliário, o Trono Episcopal e as cinco cadeiras localizadas poderiam, portanto, tanto compor a decoração do Palácio Episcopal de Mariana, objeto de reforma e de ampliação por parte do mesmo bispo ou a decoração de um Paço Episcopal em Ouro Preto, por ocasião da mudança de sua residência. Aqui se trataria de transpor e legitimar a residência do bispado, dotar um edifício para uma nova finalidade, imprimir-lhe valores simbólicos. Ambas as hipóteses poderiam fazer sentido. Mas o conjunto de móveis criados para o quarto bispo de Mariana não foi pensado, ao menos não foi executado assim, como suporte de seus emblemas pessoais, não carrega qualquer elemento de suas armas30. Foram pensadas como peças para o bispado e para todos 26

VILLALTA, C. O diabo na livraria dos inconfidentes. A partir do Inventário de Dom frei Domingos da Encarnação Pontével , 1793, armário I, 4ª gaveta, livro. Arquivo Episcopal da Arquidiocese de Mariana. Op. cit. 27 TRINDADE, C.R. op.cit.pp.209. 28 Ficha museográfica relativa ao Trono Episcopal. Museu Arquidiocesano de Arte Sacra de Mariana. 29 FERNANDES, Orlandino Seitas. Ficha de Catalogação Avulsa do Arrolamento de 4 de outubro de 1979. In Museu da Inconfidência, Ouro Preto. SCAM – Sistema de Controle do Acervo Museológico. 30 “Escudo de forma portuguesa magnificamente ornado, tendo por timbres a coroa condal e o chapéu de borlas episcopais. Esquartelado. Quartéis do chefe: o da direita de goles escudos da monarquia lusitana; o da esquerda de saibro de cruz trevolada. Quartéis da ponta de prata: o da esquerda emblema de São Domingos de Gusmão, Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, Jul.-Dez., 2007

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os futuros bispos ali entronizados. A mitra, dourada, entalhada no alto do espaldar de cada uma das cadeiras, pairava sobre cada um dos visitantes do bispo a sentarem-se a seu redor. As menores dimensões do conjunto de cadeiras dariam ainda maior ênfase à monumentalidade do trono. Seria, assim, uma maneira de distribuir, por meio da disposição da mobília, a hierarquia entre os convidados e o anfitrião, um modo de demarcar os papéis no espaço de uma sala de visitas, um espaço ao mesmo tempo civil e religioso. Poderia haver ainda outras hipóteses. As peças, associadas do ponto de vista museológico, poderiam pertencer a contextos diversos. As cadeiras, como se tem entendido, fariam parte de um conjunto para a sala de visitas de um dos paços episcopais acima mencionados; e o trono, um objeto isolado, com funções litúrgicas. As cadeiras poderiam, de outro modo, perfazer um conjunto de doze peças, o mesmo número dos cônegos que compunham o Cabido e, portanto, seriam apropriadas para as reuniões do mesmo quando estas ocorressem no Palácio Episcopal, tendo em vista os atrasos na edificação da Casa Capitular. Seja como for, o conjunto do Trono Episcopal do Museu de Arte Sacra da Arquidiocese de Mariana e suas cinco cadeiras complementares conhecidas, até então, resultam diretamente de encargos realizados por parte da diocese, seja diretamente ou não pela atuação do quarto bispo. Tal prática mecenática, no caso do primeiro bispo de Mariana, Dom Frei Manoel da Cruz dirigiu-se muitas vezes à aquisições e encomendas realizadas em Lisboa, sob solicitações dirigidas a Dom João V, mas se voltou desde cedo para artistas locais, como José Pereira Arouca e Manoel Francisco Lisboa. Desta forma, o encargo junto a um mestre entalhador ou marceneiro bastante especializado – um ebanista poderíamos dizer sem receio – de um conjunto de mobília solene confirma a importância mecenática diocesana, ao lado da atuação das irmandades e ordens terceiras, no contexto artístico de Minas Gerais do século XVIII.

homônimo do bispo e fundador da ordem religiosa a que pertencia; o da direita monte cujos flancos tentam galgar dois leões rompantes, encaixilhados de castelos. Lê-se no escudo o amor do Sr. Bispo pela sua Fé, pela sua Ordem e pela Pátria.” TRINDADE, C.R. op.cit. pp. 206-209. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, Jul.-Dez., 2007

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Fig.1 – Paço Episcopal de Mariana (fachada posterior). José Pereira Arouca, 1748-1764 c. foto da autora.

Fig. 2 – Trono Episcopal e cadeiras. Antônio Francisco Lisboa (atr.) Jacarandá entalhado e estofado, c. 1778-1783. Museu Arquidiocesano de Arte Sacra de Mariana. Foto da autora.

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CAMPOS, Adalgisa Arantes. Introdução ao Barroco Mineiro. Belo Horizonte: Crisálida, 2006. CAMPOS, Adalgisa Arantes. Mecenato Leigo e Diocesano nas Minas Setecentistas. In RESENDE, M.E. e VILLALTA, L.C. História de Minas Gerais: As Minas Setencistas 2. Belo Horizonte: Auténtica; Companhia do Tempo, 2007. pp. 77-107 CAMPOS, Adalgisa Arantes. Piedade Barroca, obras artísticas e armações efêmeras: as Irmandades do Senhor dos Passos em Minas Gerais. In PEREIRA, Sonia Gomes. Org. Anais do VI Colóquio Luso-Brasileiro de História da Arte. Vol 1. Rio de Janeiro: CBHA/PUCRIO/UERJ/UFRJ, 2004. CHECA, F. e MORÁN, J.M. El Barroco. Madrid: Istmo, 1994. FERNANDES, Orlandino Seitas. Ficha de Catalogação Avulsa do Arrolamento de 4 de outubro de 1979. In Museu da Inconfidência, Ouro Preto. SCAM – Sistema de Controle do Acervo Museológico. Ficha museográfica relativa ao Trono Episcopal. Museu Arquidiocesano de Arte Sacra de Mariana. JARDIM, Márcio. Aleijadinho: Catálogo Geral das Obras. Belo Horizonte: RTKF, 2006 LACOMBE, Américo Jacobina. A Igreja no Brasil Colonial. in HOLANDA, S.B. História Geral da Civilização Brasileira. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1968. Tomo I. vol II, pp.121-144. HOORNAERT, E. História da Igreja no Brasil. Petrópolis: Primeira época, 1977. MARTINS, Judith. Dicionário de Artistas e Artífices dos Séculos XVIII e XIX. Rio de Janeiro: Departamento de Assuntos Culturais, MEC, 1974 OLIVEIRA, Myriam Andrade Ribeiro de. O Rococó Religioso no Brasil e seus antecedentes europeus. São Paulo: Cosac & Naif, 2003 PEREIRA, José Fernandes. Dicionário da Arte Barroca em Portugal. Lisboa: Presença, 1989. SANTIAGO, Pe. Marcelo Moreira et allii. Igreja de Mariana 100 anos como arquidiocese. Mariana: Dom viçoso, 2006 TRINDADE, Cônego Raymundo. Arquidiocese de Mariana: subsídios para sua história. São Paulo: Escola de Profissionais do Coração de Jesus, vol.I, 1928 VILLALTA, Luiz Carlos. O Diabo na Livraria dos Inconfidentes. In NOVAES, Adauto. Tempo e História. São Paulo: Secretaria Municiapal de Cultura, Companhia das Letras,1992. pp. 372-375.

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OS INFORTÚNIOS E HERESIAS DO CRISTÃO-NOVO DIOGO NUNES, SENHOR DE ENGENHO DA PARAÍBA QUINHENTISTA NAS MALHAS DA INQUISIÇÃO Angelo Adriano Faria de Assis * Resumo: Instaurada em 1536, a Inquisição portuguesa teria nos cristãos-novos, acusados de judaísmo oculto, suas principais vítimas. O aumento das perseguições aos cristãos-novos no reino levou muitos deles a se transferirem para o Brasil, que vivia os primórdios da colonização. Sem um tribunal estabelecido na colônia, os cristãos-novos ocupavam posições de destaque na sociedade - senhores de engenho, comerciantes, negociadores, religiosos, cargos administrativos e outros. Foi o caso de Diogo Nunes. Filho de uma família de mercadores espalhada por Portugal, Espanha, Holanda, América e África, dividia com os irmãos a produção, comercialização e distribuição do açúcar produzido nos engenhos localizados na Paraíba. Era irmão de João Nunes Correia, acusado de desrespeitar um crucifixo. Os irmãos Diogo e João seriam fortemente denunciados durante a visitação inquisitorial ao Brasil, que acabaria por desestruturar os negócios da família na colônia, revelando acordos, intrigas, conflitos e desentendimentos existentes nas relações sociais entre cristãos-novos e cristãos velhos. Diogo seria denunciado por afirmar não ser pecado dormir com mulher solteira ou negra. Apesar de irmãos, não mantinham relações amistosas e desentendiam-se nos negócios. Partindo da análise micro-histórica, este trabalho busca analisar as transformações nas relações sociais com a chegada da Inquisição ao Brasil a partir da documentação contra Diogo Nunes - denúncias, acusações e processo - produzida pela Inquisição. Palavras-chave: Inquisição no Brasil, cristãos-novos, redes de comércio. Abstract: Stablished in 1536, the Portuguese Inquisition had in the new-christians, accused of hidden judaism, its major victims. The increase of the prosecution to the new-christians in the kingdom made many of them move to Brazil, which started then its colonization. Without a court installed in the colony, new-christians occupied important positions in the society sugar plantation owners, traders, businessmen, clerk, administrative positions and others. It was the case of Diogo Nunes. Son of a merchant family spread in Portugal, Spain, The Netherlands, America and Africa, he divided with his brothers the production, trading and distribution of sugar produced in the farms in Paraíba. He was brother of João Nunes Correia, accused of disrespect towards a crucifix. The two brothers Diogo and João were heavily denounced in the visitation of the Holy Office to Brazil, what made the family businesses break down the businesses of the family in the colony, revealing deals, agreements, intrigues, conflicts and misunderstandings existing in the relationships between new-christians and oldchristians. Diogo was denounced for affirming that it was not a sin for a man to sleep with a non-married or black woman. Despite of being brothers, they did not keep good relationships and disagreed in the businesses. Starting from the micro-history analysis, this paper aims to analyse the changes in the social relationships after the arrival of the Inquisition in Brazil, starting from the documents against Diogo Nunes - denounces, accusation and the process produced by the Inquisition. *

Doutor em História - UFF; Professor Adjunto – UFV. E-mail: [email protected] Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, Jul.-Dez., 2007

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Keywords: Inquisition in Brazil, new-christians, commercial networks.

A questão dos cristãos-novos e o surgimento da Inquisição em Portugal

Em finais do século XV, Portugal assistiria ao fim do milenar convívio existente em seus domínios entre cristãos e judeus. Em 1496, os interesses que selaram os acordos entre a Coroa portuguesa e os Reis Católicos de Espanha e que envolviam o matrimônio do monarca lusitano com a infanta espanhola levariam D. Manuel I a tomar medida semelhante àquela que, em 1492, expulsou os judeus das terras espanholas, fazendo com que muitos destes judeus procurassem refúgio na face lusa da Ibéria, aproveitando a proximidade e a longa fronteira seca entre os dois reinos. A tranqüilidade dos judeus em Portugal, porém, não duraria muito tempo. O decreto de expulsão dos judeus de Portugal, no entanto, teria desdobramento diferente dos rumos que tomaram os judeus da Espanha, dando-lhes dez meses de prazo – até outubro de 1497 – para a partida. Apesar de expulsos de Portugal, os judeus seriam proibidos de deixar o reino, por conta dos interesses estratégicos que representavam às pretensões expansionistas lusitanas. Assim, apesar de expulsos, os judeus seriam obrigados a permanecer em Portugal, mas agora como cristãos, batizados à força, num processo que iniciava o monopólio católico no mundo luso. Embora cristãos, seriam estes antigos judeus e seus descendentes denominados de cristãos-novos, batizados em pé ou neoconversos, com o intuito de serem diferenciados dos cristãos de origem, considerados puros ou lindos, e denominados cristãos velhos. Juntamente com a proibição do judaísmo livre, seria tolida qualquer prática ou representação que fizesse referência à religião judaica, como livros, escolas, rabinos e sinagogas, festas e jejuns, circuncisões, uso de trajes característicos, consagração de feriados religiosos, posse de livros sagrados, enfim, todos e quaisquer elementos, materiais e demonstrações públicas ou provadas de manutenção da antiga fé. Apesar das proibições, presume-se que um considerável número de judeus convertidos continuaram, ocultamente e dentro dos limites que lhes eram impostos, a comungar a religião que lhes fora arrancada à força. Eram, por isto, denominados de criptojudeus – aqueles que judaizavam em segredo. E passavam a ser vistos como a principal ameaça ao catolicismo dominante e monopolista. Por isto, também serviriam como a principal justificativa para a implantação da Inquisição lusa. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, Jul.-Dez., 2007

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Quarenta anos depois do decreto de expulsão dos judeus de Portugal, tendo como principal justificativa a necessidade de controlar as ameaças representadas pelo criptojudaísmo, surgira em Portugal o Tribunal do Santo Ofício da Inquisição. Embora instaurada inicialmente em várias cidades do reino, a Inquisição portuguesa concentrar-se-ia em três grandes centros: Évora, Coimbra e Lisboa – esta última, responsável também pelos domínios de além-mar, aí incluídas as terras do Brasil, então vivendo os momentos iniciais de seu processo colonizatório. O Brasil, se por um lado não chegou a ter um tribunal inquisitorial estabelecido – e este é um dos principais motivos para a grande leva de cristãos-novos que escolheram migrar para a América portuguesa desde as primeiras décadas do Quinhentos –, receberia representantes da Inquisição, como os familiares e, esporadicamente, visitações oficiais de inquisidores, que procuravam saber a quantas andava a prática religiosa do outro lado do Atlântico. São três as visitações mais conhecidas, por conta da documentação que chegou até nossos dias: entre 1591-95 (Bahia, Pernambuco, Itamaracá e Paraíba), entre 1618-1621 (Salvador e Recôncavo baiano) e entre 1763-69 (Grão-Pará). A primeira visitação inquisitorial chegaria ao Brasil em 1591, comandada pelo visitador Heitor Furtado de Mendonça e pelo notário Manoel Francisco. A visitação percorria, entre os anos de 1591 e 1595, as capitanias do auge açucareiro à busca de comportamentos considerados suspeitos de heresia. A partir das confissões e denúncias feitas à mesa do visitador, o visitador, considerando a gravidade dos casos, decidiria sobre a necessidade de reunir a documentação recolhida (testemunhos, confissões, denúncias), além do próprio denunciado e enviar tudo para a sede do Tribunal, em Lisboa, onde os inquisidores reinóis tinham autonomia para, caso julgassem pertinente, abrir processo e julgar o caso. Neste trabalho, analisaremos uma destas vítimas da Inquisição portuguesa denunciado durante a primeira visitação inquisitorial ao Brasil. Trata-se do cristão-novo Diogo Nunes, senhor de engenho na Paraíba. A história de Diogo tem início na vila de Castro Daire, Portugal, em meados do século XVI, onde nasceria nosso personagem.

A família Nunes Correia: infortúnios, sucessos e relações sociais

Situada nas proximidades da Serra do Montemuro, meio caminho entre o litoral lusitano e as terras de Espanha, a vila de Castro Daire se tornara, desde o Medievo, importante Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, Jul.-Dez., 2007

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região de convergência, localizada “num ponto de cruzamento e passagem de vias multiseculares”, servindo de ligação entre Lamego, ao Norte, e Viseu, ao Sul, “as duas principais cidades e cabeças de diocese desde os primeiros séculos do cristianismo”. Daí, possivelmente, sua propensão muito cedo ao comércio. Parece ter abrigado no século XVI uma considerável comunidade de cristãos-novos, envolvidos estes com o comércio e negócios da vila. Prova da influência do núcleo dos neoconversos naquelas terras talvez seja as isenções de impostos e os favores concedidos pelo rei D. Manoel, o Venturoso, no início dos Quinhentos à comunidade de cristãos-novos1. A Castro Daire dos cristãos-novos vira nascer mais um dos seus, Diogo Nunes, por volta de 1549. Vinha de uma família ligada ao comércio e à agricultura. Filho do mercador e lavrador Manoel Nunes, de quem herdara uma das profissões ⎯ e, quem sabe, o tino para os negócios ⎯ e de sua mulher, Lucrécia Rodrigues, ambos “cristãos-novos, moradores na dita vila”. Dos avós, só havia conhecido a Manoel Correia, pai de sua mãe, também ele mercador. Conviveu, contudo, com alguns tios, que acreditava já estarem falecidos: irmãos de seu pai eram Jorge Dias e Henrique Nunes, ambos lavradores. Já por parte de sua mãe, eram seus tios Leonardo Rodrigues, Janeura Correia, Felipa Correia, Manoel Correia e Beatriz Correia, “casada em Trancoso com Alvaro Mendes, cristão-novo”, e Ana Rodrigues, “casada não sabe com quem”. De outros “tios e tias irmãos do seu pai, já defuntos”, que sabia existir, desconhecia o nome. A família dos Nunes Correia era numerosa. Diogo tinha três irmãos e duas irmãs. Henrique, o mais velho deles, era mercador e morava em Lisboa, sendo casado com uma mulher de Aveiro, cristã-nova. Cabeça dos negócios que envolviam os irmãos, controlando a sociedade e os investimentos em conjunto a partir do reino, com ele possuía “o principal trato de suas mercadorias”; João, que contava com aproximados quarenta e cinco anos, dois anos mais velho que Diogo, era morador na Rua Nova de Olinda, capitania de Pernambuco. Diogo vivia na capitania da Paraíba, era senhor de dois engenhos na região, e tinha sociedade com Henrique em um engenho que estavam construindo e em outro, “moente e corrente”; o “mais moço de todos”, Antonio - que mais tarde, em 1615, seria responsável pelo

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“Os cristãos-novos estavam sujeitos a determinadas obrigações e impostos que só a eles atingiam. No entanto, por vezes, o rei isentava-os dessas obrigações, privilegiando-os certamente por outros favores deles recebidos. É o que sucedeu com os cristãos-novos de Castro Daire a quem o rei concedeu em 26 de Maio de 1517 uma carta de privilégio. Nessa carta, o rei isenta-os da obrigação de acompanharem os presos e de os guardarem. Isenta-os ainda da obrigação de participarem na recolha de dinheiros, práticas frequentes nesses recuados tempos. Embora não participando directamente na recolha de fundos, no entanto, não serão isentos da sua contribuição monetária”. CORREIA, Alberto; ALVES, Alexandre & VAZ, João Inês. Castro Daire. Viseu: Câmara Municipal de Castro Daire, Eden Gráfico, S. A., 1995, pp. 50-53. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, Jul.-Dez., 2007

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recebimento de escravos para os Ximenes em Pernambuco - vivia ainda com os pais. Irmãs, eram duas: Branca, que, casada com o mercador Luís Mendes, sócio dos Nunes nos negócios, também ele cristão-novo, passara a viver na cidade do Porto, e Florença, também solteira, a exemplo do irmão Antonio, moradora em Castro Daire na casa de seus pais. João e Diogo não eram os únicos da família a tentarem a sorte no Brasil: “um primo com irmão”, assim como o irmão mais velho dos Nunes, chamado Henrique, também ele cristão-novo, escolhera a Bahia. Era lavrador e morava em Matoim, havendo se casado com a meia cristã-nova Isabel Antunes, “de idade de dezoito anos” (VAINFAS, 1997: 294-296). Jerônimo Rodrigues, “cristão-novo, que foi mercador (...) morador na vila de Itamaracá, cinco léguas de Pernambuco”, vivia problemas com o primo por razões de dinheiro. Tinham primos também no reino: “Guilherme Rodrigues e Cosmo Rodrigues eram mercadores em Viana do Lima e Viseu” (SIQUEIRA, 1971). Antonio Rodrigues, por sua vez, casado, atuava como mercador em Castro Daire. Não se sabe ao certo o ano em que Diogo Nunes chegou ao Brasil, ou as causas que o fizeram atravessar o Atlântico e aqui fixar residência, nem tampouco a capitania onde primeiro aportou, mas o depoimento de alguns entre aqueles que perante Heitor Furtado o denunciaram dá-nos a noção de que se encontrava em Pernambuco desde a década de 1580, quando teria então por volta de 30 e poucos anos. Possivelmente desempenhara antes alguma atividade no reino - o comércio, função que dominava em sua família, é boa opção -, chegando ao trópico já possuidor de certa fortuna ou, ao menos, de um capital inicial - talvez dinheiro da própria família - com que pudesse dar início aos negócios. O certo é que o grande responsável pelos negócios dos Nunes Correia no Brasil era João Nunes, que controlava o comércio do açúcar e a produção dos engenhos da família, além de ser homem de boas relações e respeitado – não raro pelo medo que impunha – por todos. João Nunes devia viajar ou mandar representantes com certa freqüência a outras capitanias do Brasil, possessões ultramarinas lusas, portos de comércio na Europa e na África, tomado por seus variados negócios e sociedades nas mais diversas partes, a darem conta de suas conexões mercantes. Investindo em várias frentes, mercador de primeira hora, comerciante de grosso trato, mantinha contatos com o reino, de onde seu irmão controlava os negócios familiares. Fixados em Lisboa e Antuérpia, a família dos Ximenes - “que tinham contratado o comércio de Angola desde 1582 até 1619” - fazia a ponte de João com o Norte da Europa. Apesar do aparente rigor utilizado pelas autoridades - pelo menos no que diz respeito às leis - visando proibir a atividade onzenária, esta se fazia constante, a ela recorrendo todos Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, Jul.-Dez., 2007

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que, por um ou outro motivo, se viam endividados, necessitados de certa quantia para se livrarem de alguma cobrança indesejada ou começarem negócio diverso. Na prática, a lei pouco incomodava. O ato de onzenar era normal e corriqueiro para nosso personagem. Muitos foram os que a ele recorreram sonhando conseguir saldar seus antigos prejuízos; muitos, dentre estes, enrolavam-se para cumprir o acordo tratado com João no empréstimo: adquiriam novas dívidas. Endividados agora com o poderoso onzeneiro, podiam perder seus bens, hipotecados como garantia de pagamento. Diziam dele não ter “por culpa ou pecado a onzena”, sendo “largo em seu negocear”, “inventor de ardis e sutilezas de onzenas”, “roubador das fazendas dos homens”. Não perdoava dívidas, processando-as a quem quer que fosse: era odiado por isso. Nem os parentes que haviam com ele feito empréstimos de dinheiro tinham melhor sorte: seu primo Jerônimo Rodrigues, cristão-novo “que foi mercador e ora está empobrecido”, acusava João por suas tragédias pessoais, estando com ódio e inimizade do primo rico, afirmando, diante de seu filho e de alguns conhecidos, “que ainda havia de fazer queimar ao dito João Nunes” (Denunciações da Bahia, 1922-1929: 555-560). Seu irmão Diogo também se queixava, em carta que chegou ao conhecimento do Santo Ofício, dos desentendimentos com João nos negócios, pedindo que fossem feitas suas contas para que pudesse planejar a forma de pagamento. A história que unia João Nunes a Belchior da Rosa e seu filho denunciava os abusos e crenças do comerciante onzeneiro: dizia Belchior ao visitador que, por volta de 1590, visitando a casa de João com o filho, este, ao lamentar com o onzeneiro contratador de escravos a difícil vida de tabelião do público e judicial que levava e desejava largar, graças às corruptelas e barganhas dos oficiais de justiça, que “fazem erros e falsidades em seus ofícios, tirando a justiça às partes em favor dos que mais podem”, ouvira de João que se desenganasse, pois assim faziam todos no mundo, do porteiro ao Papa: escandalizados pai e filho, concluíram que da mesma forma agia Nunes, instruído no “vício e mau costume da terra” (Denunciações e Confissões de Pernambuco, 1984: 28-30). De acordo com Ronaldo Raminelli, “Na verdade a denúncia se volta também contra a administração local, contra os oficiais e todos aqueles participantes do poder judiciário da Colônia” (RAMINELLI, 1990: 124). E sabia-se de Nunes ter contato com esta gente, aumentando contra ele os desagrados. O sucesso nos negócios fez de João Nunes exemplo de empresário com grande astúcia para discernir onde estavam os bons investimentos. Acumulando dinheiro com os contratos que possuía, multiplicando lucros através de suas onzenas, ganhando fôlego com os rendimentos do comércio, contando com o auxílio do capital vindo dos acordos de além-mar, Juntamente com os irmãos, optaria por investir, de forma mais direta, no beneficiamento do Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, Jul.-Dez., 2007

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açúcar: Henrique e Diogo tornavam-se senhores de engenho; João, administrador. Aliado à conjuntura pessoal de João - comerciante com ligações internacionais, tratando dos negócios dos engenhos dos irmãos -, o aumento da procura internacional pelo açúcar contava com o investimento da burguesia européia na criação de novos engenhos que garantissem o fornecimento do produto. A vitória na guerra contra a ameaça francesa na Paraíba na década de 1580 possibilitaria o investimento na área conquistada: Em pouco tempo, a região seria das principais na indústria do açúcar: “a Paraíba possuía excelentes terras para mais de quarenta engenhos” (RODRIGUES, 1979: 449). Derrotados os franceses e seus aliados potiguares, “começou logo a fazer um engenho não longe do de el-rei, com que corria um Diogo Nunes Correia” (FREI VICENTE DO SALVADOR, 1982: 258), em sociedade com o irmão morador em Lisboa. O instante era propício para a nova atividade, tanto no Brasil - onde aumentava a área abrangida pela produção açucareira e crescia o avanço dos neoconversos nas propriedades rurais, a viverem um momento de transição da predominância dos cristãos velhos para a dos cristãos-novos, estes cada vez mais presentes - como na Europa - ávida pelo suprimento de seus mercados -, possibilitando lucros em duas das mais lucrativas frentes da economia colonial: o pau de tinta e a cana-de-açúcar. O envolvimento de João e dos seus irmãos nesta economia desde a fase produtiva até a distribuição do açúcar tornavam-nos especiais: eram dos poucos que não dependiam de terceiros para o transporte da safra, o que certamente lhes gerava melhores preços, levando também à necessidade de organizar contatos e garantir mercados. Formava-se uma rede de distribuição, da qual João Nunes Correia, à frente, e seu irmão Diogo, eram mediadores no Brasil, produzindo e exportando açúcar, revitalizando o contato - indireto, via Lisboa - entre o Nordeste brasílico e os Países Baixos, dificultado naquele momento de União Ibérica, em razão das tensões hispano-flamengas. Distribuía açúcar para a Europa: as ligações com Henrique Nunes, na capital do reino, com o cunhado Luís Mendes, na cidade do Porto, e com os Ximenes, na Antuérpia, certamente eram fundamentais para os interesses de João nesta atividade. Assim era a máquina produtiva da família no Brasil, conforme Gonsalves de Mello: “Diogo Nunes Correia, estava em Pernambuco encarregado e ocupado na instalação e administração de dois engenhos na Paraíba, dos quais o próprio declarou em 1594 que detinha a metade dos capitais aplicados e a outra metade pertencia a seu irmão Henrique Nunes. Entretanto estava subordinado a João Nunes, administrador dos capitais de Henrique em Pernambuco” (GONSALVES DE MELLO, 1996: 65). Embora os engenhos ficassem sob a responsabilidade de Diogo, não raro, era João que Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, Jul.-Dez., 2007

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se comportava como se fosse ele o senhor dos engenhos. Alguns assim pensavam, a exemplo de Belchior Mendes de Azevedo que, denunciando-o, estranhava-lhe o mal vestir “sendo tão rico, que é senhor de dois engenhos na Paraíba”. Todavia, João Nunes Correia apresentar-seia perante o inquisidor apenas como mercador, sem admitir sociedade na propriedade dos engenhos paraibanos, o que - tudo indica - realmente não existia. Mas levava a fama. Apesar de responder à autoridade do irmão Henrique, tinha grande poder de influência, responsável pelo andamento dos negócios da família no Brasil. Diogo, embora se declarasse sócio de Henrique nos engenhos2, obedecia às ordens de João, organizador de tudo, a quem cabia a missão de tornar os investimentos produtivos e rendosos, buscando sempre aumentar seus lucros e os capitais familiares. Não tinha posse nos engenhos, mas era deles o verdadeiro senhor. Inexistem dúvidas de que Diogo devesse satisfação nos negócios ao irmão onzeneiro, e certamente não gostava disso. Situação esta que gerava rusgas no entendimento dos negócios e no relacionamento entre os irmãos, como se pode ver numa carta que Diogo mandou a João, onde reclamava: “por algumas vezes tenho pedido e rogado muito a vossa mercê deixe de me perseguir com sua teima, afrontando-me, desonrando-me, acanhando-me, fazendo a cada canto audiências de mim, assim com palavras como com cartas a quem quer”. Após severas críticas quanto ao comportamento de João, Diogo se despedia, de modo pouco fraterno: “seu irmão que nunca nascera”3. A carta de Diogo mostrava um grande rancor entre os dois irmãos, que se agrediam incentivados pelas dívidas nos tratos. Depois de reclamar das muitas desonras que o irmão poderoso lhe causava, parecia reclamar do diabrete que Nunes teria recebido como seu protetor pessoal, e alertava-o: “lembro-lhe como amigo que um homem que anda com os demônios e apartado de Deus e com as esperanças perdidas de tão cedo tornar para ele, não lhe faça o demônio fazer cousas com que o diabo ande com Vossa Mercê e com ele e, contudo, não tem necessidade de se doer de mim, nem há para quê, nem eu quero remédio se da sua mão me há de vir”. Indignado, o verdadeiro senhor dos engenhos na Paraíba parecia disposto a acabar de uma vez por todas com as perseguições e afrontas que sofria de João, e procurava livrar-se dele, pedindo condições para quitar suas dívidas com justiça: O que só quero é que Vossa 2

Perguntado quando preso em Pernambuco pelo inquisidor Heitor Furtado sobre sua genealogia e negócios, Diogo Nunes respondia que “ele réu é lavrador e senhor de um engenho na Paraíba moente e corrente e de outro que se está acabando, nos quais tem somente metade, e a outra metade é de seu irmão Henrique Nunes”. Processo de Diogo Nunes, cristão-novo, solteiro, preso nesta vila pelo Santo Ofício. Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Inquisição de Lisboa, processo 6344. 3 “Traslado de uma carta que mandou Diogo Nunes, irmão do réu João Nunes ao mesmo réu, a qual se achou entre os papéis de réu, quando se fez o inventário de sua fazenda depois de preso”. Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Inquisição de Lisboa, processo 885. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, Jul.-Dez., 2007

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Mercê, com muita diligência, faça suas contas e mas mande trasladadas de tudo o que deve em Portugal e eu devo no Brasil, e do que lhe entreguei e do que me deixou. E feito isso, se achar que há dinheiro para eu pagar o que devo no Brasil, me dê dívidas para as eu cobrar e com elas pagar a quem devo”. Apesar de João responder pela parte de Henrique, morador em Lisboa, na sociedade dos engenhos da Paraíba, o excessivo rancor de Diogo contra o mercador da Rua Nova pode também significar um possível envolvimento de Diogo nas onzenas praticadas pelo irmão, que o escorchava sem nenhum vestígio de sentimento fraternal. E novamente dava mostras da abalada relação que mantinha com o irmão mercenário, cobrando pressa no acerto de contas: “não quero de Vossa Mercê outra coisa, nunca a pretendi. Pesa-me fazer Vossa Mercê a tantos verdadeiros, assim em Portugal como no Brasil, mas como sempre me defendi com todos, com dizer que não lhe queria nada, nem na pretendia, me satisfaço isso: faça Vossa Mercê com muita brevidade, porque não havendo com que eu possa pagar o que devo, saberei o que hei de fazer”4. A influência dos Nunes Correia na sociedade pernambucana se fazia ecoar tão intensamente que Heitor Furtado de Mendonça não se limitaria a colher informações que pudessem ser somadas às diversas acusações que sofreriam Diogo e, principalmente, João: alguns indivíduos, ligados mais diretamente ao círculo de contatos dos irmãos, acabariam também sendo vítimas do braço inquisitorial. Diogo Nunes, o irmão “que nunca nascera”, seria julgado por declarações que corrompiam as leis divinas. João, dentre outras acusações, seria denunciado por manter um crucifixo em local impróprio e imundo, açoitando-o, urinando sobre o objeto sagrado, pendurando-lhe panos sujos e dizendo-lhe impropérios – tudo presenciado por um pedreiro que lhe retelhava a casa de dois andares na qual morava em Olinda. Os criados de João sofreriam igualmente processos por não haverem denunciado de livre vontade e na época devida o que sabiam sobre as práticas anti-cristãs do amancebado comerciante de grosso trato.

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“Traslado de uma carta que mandou Diogo Nunes, irmão do réu João Nunes, ao mesmo réu, a qual se achou entre os papéis do réu quando se fez o inventário de sua fazenda depois de preso”. Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Inquisição de Lisboa, processo 885. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, Jul.-Dez., 2007

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A Inquisição contra Diogo Nunes

Diogo Nunes, por sua vez, seria denunciado por cinco vezes perante o Tribunal número ínfimo, se comparado ao fervilhar de delações contra o irmão poderoso, mas já bastante revelador com relação às suas culpas. Os processos se desenrolariam na própria colônia, local onde se formariam os autos, seriam julgados, ouviriam as sentenças e cumpririam as penas impostas. Nestes três casos, o licenciado daria mostras de seu destempero para o exercício do cargo, visto que não tinha autoridade para abrir processos e julgar os casos, tendo, ao contrário, de enviar as provas reunidas para a Inquisição no reino, onde seriam tomadas as medidas consideradas necessárias. O caso de Diogo Nunes Correia seria distinto dos anteriores. O fardo do parentesco com o avaro mercador roubador das fazendas dos homens lhe trazia problemas. Era proprietário dos engenhos na Paraíba em sociedade com outro irmão morador em Lisboa, e tornara-se famoso pelos juramentos descabidos e idéias pouco cristãs a respeito das mulheres. A documentação existente a seu respeito aponta - guardadas as proporções com o irmão apontado como rabi dos judeus de Pernambuco - para um certo desdém com relação às leis dos homens e da Igreja. O responsável por boa parte do constrangimento de Diogo Nunes, repetindo o ocorrido no caso de João, seria um pedreiro, de nome Adrião de Góis, que teria ouvido de Diogo enquanto conversavam, que manter relações sexuais com mulheres solteiras, desde que recompensadas, não era pecado mortal. O primeiro a acusá-lo da história seria Lopo Soares, na oportunidade em que havia comparecido perante o Tribunal para contar o que também sabia a respeito de João. Dizia que tinha ouvido do próprio pedreiro, então preso na cadeia pública da vila, “que a fornicação de dormir carnalmente um homem com uma negra ou com sua mulher solteira não era pecado”. Acusava também Diogo - apesar de declarar-se um dos maiores amigos deste - de castigar até a morte um escravo, usando requintes de crueldade: mantivera “um negro amarrado, açoitando-o”, ao qual dissera: “Jesus Cristo lhe não havia de valer”5! O próprio pedreiro, cristão velho natural de Lisboa, confirmaria com detalhes em seu depoimento a narrativa de Lopo Soares. Trabalhara cerca de três anos antes nas casas das caldeiras do engenho de Diogo na Paraíba. Certo dia, estando ambos sós durante o almoço, vieram a praticar sobre o pecado da carne, quando o senhor de engenho lhe dissera que “bem 5

“Testemunho de Lopo Soares”, em 22/11/1593. “Processo de Diogo Nunes, cristão-novo, solteiro, preso nesta vila pelo Santo Ofício”. Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Inquisição de Lisboa, processo 6344. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, Jul.-Dez., 2007

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podia ele dormir carnalmente ali com qualquer negra da aldeia e que não pecava nisso com lhe dar uma camisa ou qualquer cousa. Então, ele denunciante lho contradisse, dizendo que sim, era aquilo pecado mortal, e o dito Diogo Nunes lhe respondeu que não era pecado mortal, e que dormir carnalmente com uma mulher solteira não era pecado mortal pagando-lhe seu trabalho”. Adrião insistiria na tentativa de fazer Diogo mudar de idéia, contando com a ajuda de alguns carpinteiros que se aproximaram, mas este “repetiu as ditas palavras mais de dez vezes”, tudo sustentando e afirmando, “fazendo escárnio e rindo-se dele denunciante, dizendo que não sabia ele denunciante o que dizia. E por mais que ele denunciante sempre lhe contradisse, contudo, ele ficou em seu dito, sem se desdizer”. Estranhando tal comportamento, o inquisidor indagara ao pedreiro se, por acaso, encontrava-se Diogo “bêbado ou fora de seu juízo, com alguma perturbação”, ao que o denunciante afirmava que este estava “em seu siso, e é homem que se tem em conta de discreto”. Adrião de Góis atestava também o descaso religioso que percebera em Diogo, nada insólito se comparado ao seu irmão herético: “nunca lhe viu contas de rezar nas mãos, nem rezar, e muitas vezes dando ais por ser enfermo, nunca lhe viu nomear a Jesus, as quais cousas ele notava e lhe pareciam mal”. De outra feita, continuava Góis, ouvira do carpinteiro Gerônimo Mateus sobre a crueldade aplicada pelo senhor de dois engenhos na Paraíba para com seus escravos, dando novos detalhes do fato anteriormente denunciado por Lopo Soares: “pendurado um negro, lhe dizia: não te há de valer Deus, e que teve assim dependurado o dito negro até que morreu”6. Chamados pelo inquisidor, os carpinteiros presentes à cena compareceriam para denunciar Diogo, sendo um pouco mais reticentes com o senhor que outrora os empregara. Mestre de fazer engenhos, Miguel Pires Landim, relataria o caso. Segundo conta, a discussão rodava em torno de uma declaração de Diogo afirmando “que não era pecado mortal dormir carnalmente com uma mulher solteira pagando-lhe (...) e que isto era pecado mas que não era pecado mortal, porquanto as ditas mulheres solteiras viviam daquilo”7. Irmão de Miguel, o mamaluco Pedro Álvares, filho de “homem branco e dos da governança desta terra e de uma sua escrava brasila”, descreveria o mal-estar gerado devido à insistência dos presentes em condenar as palavras do “discreto” profanador: “já que todos eles diziam contra ele em contrário do que ele dizia, que não queria porfiar com eles e que se

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“Traslado do testemunho de Adrião de Góis, cristão velho, pedreiro”, em 29/01/1594. O grifo é meu. Idem. “Traslado do testemunho de Miguel Pires Landim”, em 26/02/1592. Idem. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, Jul.-Dez., 2007

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queria calar”8. A história se espalhava, chegando a terceiros. Dessa forma, o Padre Antonio André compareceria à Mesa para dar conta do que ouvira de Gerônimo Fernandes, então carcereiro da cadeia pública da vila: Diogo Nunes fizera o infeliz comentário sobre ser pecado dormirem um homem e uma mulher solteiros, “em uma roda de homens”. O depoimento, porém, nada de novo acrescentava ao que já fora dito pelos que testemunharam o ocorrido. As culpas seriam reunidas a mando de Heitor Furtado. “Doente de boubas”, o senhor de dois engenhos era notificado, em quatorze de fevereiro, a não sair da vila sem sua autorização, “curando-se em sua casa e reconvalescendo”, visto que “estava de caminho para Paraíba”. Em quinze de julho, teriam início as sessões com o réu. Interrogado pelo inquisidor sobre suas faltas, Diogo afirmava haver feito muita diligência com sua memória, aconselhando-se com religiosos, mas “que não acha em si culpa nenhuma contra Nossa Santa Fé Católica, nem contra Cristo Nosso Redentor, no qual ele crê bem e verdadeiramente como bom e verdadeiro cristão que é e sempre foi e será até a morte”. O licenciado questionar-lhe-ia sobre ser ou não, na opinião dele, réu, pecado mortal dormir um homem solteiro com mulher solteira caso fosse paga pelo trabalho e Diogo, ratificando as acusações contra ele, dava sinais de pouco conhecimento das leis católicas, como de resto, boa parcela da sociedade colonial, divulgando - “simples e ignorantemente” idéia por muitos compartilhada: “ele réu ora não sabe nem entende se é pecado mortal ou não a dita fornicação pagando-se o trabalho, e que algumas vezes já lhe aconteceu ter ajuntamento carnal com algumas mulheres e negras solteiras, pagando-lhes seu trabalho”. Diogo Nunes voltaria à Mesa Inquisitorial cinco dias após. Dizia haver se confessado e aconselhado com seu padre espiritual, o jesuíta Pero Leitão, que confirmara ser pecado mortal e heresia o tal ajuntamento que erroneamente defendera, motivo pelo qual agora pedia misericórdia ao Santo Tribunal. Terminado o depoimento, o visitador concluiria os autos e julgaria o caso. Em 4 de agosto, Heitor Furtado de Mendonça daria a sentença: “o réu Diogo Nunes, em pena e penitência de tão grave culpa, vá ao auto público da fé em corpo com a cabeça descoberta, cingido com uma corda e com uma vela acesa na mão, e faça abjuração de levi suspeito na fé. E que trinta dias receba e ouça de um religioso que lhe será nomeado instrução e doutrina do que lhe releva para salvação de sua alma. E que nas quatro festas principais do ano seguinte, do Natal, Páscoa, Espírito Santo e Nossa Senhora de Agosto se confesse e comungue de conselho de seu confessor. E pague cem cruzados para as despesas

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“Traslado do testemunho de Pedro Álvares”, em 21/02/1594. Idem. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, Jul.-Dez., 2007

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do Santo Ofício e as custas”9. Novamente discordantes de Heitor Furtado, os representantes da Inquisição lisboeta escreveriam no processo movido contra Diogo o que pensavam do valor definido como castigo para o réu: “foi muita a pena pecuniária”. A Justiça e Misericórdia, emblemas do Santo Ofício, pareciam ecoar mais fortes no reino. O inquisidor não receberia aprovação do Conselho Geral pelo resultado de nenhum dos casos aqui citados, embora nem sempre o Conselho tivesse noção exata das adversidades por que passava Heitor Furtado no trópico. De todo modo, é inegável que, processando e punindo a Diogo Nunes e aos mais próximos do rabi-mordomo, o encarregado da visitação atingiu frontalmente o poder do clã dos Nunes Correia na colônia brasílica. Se, por um lado, Furtado de Mendonça cometeu abusos de poder e erros de interpretação, também é certo que o licenciado do Santo Ofício captou a lógica colonial ao tentar desmontar a “entourage” que mais estreitamente gravitava em torno de João Nunes e de sua família, o que nos permite relativizar o seu destempero nas lides de visitador. Compreendendo a azeitada rede de relações montada em torno do mordomo profanador e a necessidade de desmontá-la para tornar mais indefesa sua vítima, Mendonça procurava desbaratar a “quadrilha” que cercava os Nunes. Atuando sobre a “gendarmeria” do fazedor de onzenas, enfraquecia-o, limitando suas ações e deixando-o à mercê do Santo Ofício. Mas não bastava prendê-lo: era preciso minar toda a rede de poder que o sustentava. As penas impostas, mesmo que “misericordiosas”, enfraqueciam a pujança social da família - já irreversivelmente marcada pelo sangue impuro -, envolvida com a Inquisição e criticada socialmente por isso. O maior prejudicado com o rigor do licenciado seria, contudo, o próprio João Nunes, preso e transferido para a metrópole, afastado de seus variados negócios enquanto esperava a resolução de seu processo. Para sorte do suposto rabi, seu caso seria julgado na metrópole, onde estaria paradoxalmente a salvo das pressões populares por sua desgraça e da demonstração de força realizada pelo visitador Mendonça. Longe do trópico e de seus inimigos, a eloqüência dos fatos se empalideceria em Lisboa, e João escaparia da Inquisição sem maiores problemas, fixando-se na Espanha, onde tornar-se-ia grande mercador. O fato é que a documentação produzida pelo Santo Ofício para analisar os desvios de fé e o mau comportamento religioso dos irmãos Diogo e João Nunes Correia mostrava os conflitos que a família vivia internamente e no seu convívio social. Se, por um lado,

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desestruturou a rede de relações tanto econômicas quanto sociais que a família mantinha em Pernambuco e na Paraíba, assim como prejudicou – ao menos em parte – seus negócios do outro lado do Atlântico, por outro, permitiu aos historiadores, funcionando como uma lupa potente, uma análise minuciosa da sociedade da época, retratada nas fontes do Santo Ofício pelo olhar do visitador. Oportunidade rara, com tamanha grandeza e variedade de detalhes, de olhar o passado através de suas pequenas frestas, com as ferramentas da Micro-História.

Bibliografia CORREIA, Alberto; ALVES, Alexandre & VAZ, João Inês. Castro Daire. Viseu: Câmara Municipal de Castro Daire, Eden Gráfico, S. A., 1995. FREI VICENTE DO SALVADOR. História do Brasil (1500-1627). 7ª ed. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1982. GONSALVES DE MELLO, José Antônio. Gente da Nação: Cristãos-novos e judeus em Pernambuco, 1542-1654. 2ª ed. Recife: FUNDAJ, Editora Massangana, 1996. Primeira Visitação do Santo Officio ás partes do Brasil pelo licenciado Heitor Furtado de Mendonça capellão fidalgo del Rey nosso senhor e do seu desembargo, deputado do Santo Officio. Denunciações da Bahia 1591-593. São Paulo: Paulo Prado, 1922-1929, 3 vols. Primeira Visitação do Santo Ofício às Partes do Brasil - Denunciações e Confissões de Pernambuco 1593-1995. Recife: FUNDARPE. Diretoria de Assuntos Culturais, 1984, Coleção Pernambucana, 2ª fase, vol. XIV. RAMINELLI, Ronald. “Tempo de Visitações. Cultura e Sociedade em Pernambuco e Bahia: 1591-1620”. Dissertação de Mestrado apresentada ao Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciência Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo, 1990. RODRIGUES, José Honório. História da história do Brasil - 1ª parte: Historiografia Colonial. São Paulo: Ed. Nacional, 1979. Santo Ofício da Inquisição de Lisboa: Confissões da Bahia (organização Ronaldo VAINFAS). São Paulo: Companhia das Letras, 1997. Série Retratos do Brasil. SIQUEIRA, Sonia Aparecida. “O comerciante João Nunes”. In: SIMÕES DE PAULA, Eurípedes (org.). Portos, Rotas e Comércio - Anais do V Simpósio Nacional dos Professores de História - Campinas. São Paulo: USP, 1971.

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MATEUS DE CASTRO: UM BISPO “BRÂMANE” EM BUSCA DA PROMOÇÃO SOCIAL NO IMPÉRIO ASIÁTICO PORTUGUÊS (SÉCULO XVII) Patricia Souza de Faria* Resumo: Mateus de Castro nasceu de pais da casta brâmane na Índia, na última década do século XVI e suas ações reverberaram o desejo de superar a condição de subalternidade experimentada pelos nascidos na Índia Portuguesa que se converteram ao catolicismo. O filho de brâmanes e aspirante a sacerdote católico tentou suplantar as restrições sofridas pelos asiáticos, freqüentemente afastados dos cargos civis e eclesiásticos mais valorizados no Oriente Português, em favor dos nascidos em Portugal. A trajetória de Mateus de Castro insere-se no contexto das disputas entre os defensores da Coroa portuguesa (e do padroado régio) e os da Congregação da Propaganda Fide (que buscava o protagonismo de Roma nas missões do Oriente, em detrimento da Coroa), entre o clero nativo e o clero proveniente do Velho Mundo, adicionadas às contendas entre membros de castas rivais cristianizados. Acusado de conjurar contra a Coroa, Mateus de Castro inspirou suspeitas de ter explorado o fato da capital do Estado português da Índia (Goa) consistir em um território encravado entre reinos muçulmanos, além de atiçar os holandeses a invadir os domínios portugueses do Oriente. Mateus de Castro partiu do Oriente em direção à Roma em busca de uma inserção social menos subordinada e suas estratégias lhe renderam a ordenação sacerdotal em 1630, a condição de missionário da Propaganda Fide e conquista do título de bispo – in partibus infidelium – de Crisópolis em 1637. Palavras-chave: Mateus de Castro, Domínios Portugueses do Oriente, Estratégias Sociais. Abstract: Mateus de Castro, born in India in the last decade of the XVI century, was the son of Brahmans. His actions reverberated in the desire shared by those born in Portuguese India and converted to Catholicism to overcome the subaltern position they experienced. Aspiring to be ordained as a Catholic priest, he attempted to supplant the restrictions suffered by the Asians, frequently removed from the most valued civil and ecclesiastic posts in the Portuguese Orient, in favor of those born in Portugal. Mateus de Castro’s trajectory lies within the context of the disputes between the defenders of the Portuguese Patronage and the Propaganda Fide (that sought the protagonism of Rome in missions in the Orient, in detriment to the Crown), between the native clergy and that of the Old World, plus the contention taking place among members of the rival Christianized castes. Accused of conspiring against the Crown, Mateus de Castro aroused suspicions of having exploited the fact the capital of the Portuguese state in India (Goa) constituted an enclave territory hemmed in by Moslem sultanates, besides inciting the Dutch to invade the Portuguese domains in the Orient. Mateus de Castro set off from the Orient to Rome in search of less subordinate status, and, indeed, his strategies rendered him sacerdotal ordination in 1630, the condition of missionary of the Propaganda Fide, and was awarded the title of bishop – in partibus infidelium – of Crisópolis, in 1637. Keywords: Mateus de Castro, Portuguese Domains in the Orient, Social Strategies. *

Professora Adjunta da Universidade Federal de Viçosa – Doutora em História (UFF). E-mail: [email protected]. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, Jul.-Dez., 2007

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Analisamos a trajetória de Mateus de Castro, que nasceu de uma família da casta brâmane na última década do século XVI e buscou suplantar as restrições à formação de um clero nativo na Índia Portuguesa. Mateus de Castro lutou contra os entraves apresentados à sua ordenação sacerdotal, dificuldade partilhada pelos nascidos na Índia Portuguesa que se converteram ao catolicismo, mas que mesmo após o batismo experimentavam uma posição subalterna diante dos nascidos no reino por serem preteridos na ocupação de cargos eclesiásticos ou civis no Estado da Índia.1 Em busca da promoção social através da carreira de sacerdote, Mateus de Castro desafiou a hierarquia eclesiástica do Estado da Índia e soube explorar as vicissitudes que cercavam as disputas entre os defensores do Padroado régio e da Congregação da Propaganda Fide, ao empreender quatro viagens à Roma e se articular com aqueles que na Cidade Eterna ensaiavam medidas para rever a influência do padroado português sobre as missões católicas no Oriente. Porém, as estratégias de Mateus de Castro revelariam uma racionalidade seletiva (LEVI,2000:46) diante das decisões adotadas em situações de incerteza, de informações reduzidas e da necessidade de conciliar o comportamento que desejava e o que era admitido socialmente no âmbito do império asiático português. A atuação de Mateus de Castro não se limita a uma expressão parcial de acontecimentos de caráter geral que repercutiam sobre o mundo ibérico e seus espaços coloniais, tais como as disputas entre Padroado e Propaganda Fide. Pois as práticas e a retórica de Mateus de Castro revelam sentidos que são desvelados, sobretudo, quando atentamos para as lógicas locais de afirmação de identidades na Índia (especialmente do sistema de castas) e pela incorporação sui generis dos padrões identitários e hierárquicos que marcavam o mundo português do Antigo Regime, com alusão a critérios de nobreza, ao reforço da identidade católica, à lealdade ao monarca ibérico, mas procurando convencer que a história de sua casta imbricava-se com a do cristianismo e que a qualidade da sua casta conferia-lhe a nobreza de nascimento. Mateus de Castro não se desvencilhou de sua identidade como membro da casta brâmane, cuja precedência sobre as demais castas da Índia foi estimulada pelos portugueses, que forneciam um número maior de oportunidades profissionais aos brâmanes e à casta cristã chardó, concebidas como as mais nobres.2 1

O Estado da Índia pode ser definido por um conjunto de domínios portugueses que se estendiam da costa oriental africana até Macau, cuja capital era localizada em Goa, na Índia. 2 Casta é uma expressão cunhada pelos portugueses para designar as varnas da Índia, isto é, as divisões entre grupos sociais que estimulavam casamentos endogâmicos, restrições alimentares, definiam ocupações profissionais e tinham uma explicação mítica que postulava a origem da sociedade a partir de um rito realizado Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, Jul.-Dez., 2007

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Mateus de Castro nasceu provavelmente em 1594, visto que um documento indicava que no ano de 1666 acumulava a provecta idade de 72 anos. Sua terra natal era a aldeia de Navelim, na ilha de Divar, que pertencia às Velhas Conquistas portuguesas de Goa – que englobavam as províncias de Salsete, Ilha de Goa e Bardez, na Índia, separadas uma das outras por rios que desciam dos Gates Ocidentais (SORGE, 1986). Os seus pais, Pietro de Castro e Maria Ghedes de Castro, pertenciam a uma família que se apresentava oriunda da casta brâmane e que se dedicava ao plantio de arroz, nesta região quente, sufocante e aplacada pelas torrenciais chuvas das monções, que propiciavam a colheita do produto (SOUZA, 1994). É provável que Mateus de Castro tenha sido batizado na paróquia de Nossa Senhora da Piedade na ilha de Divar, ilha que foi submetida ao processo de conversão em massa de seus habitantes ao catolicismo, mediante a criação pelos portugueses de dispositivos de difusão da fé cristã (colégios, seminários, igrejas paroquiais) e da imposição de uma disciplina cristã (PALOMO, 1997) que atingiu os moradores das Velhas Conquistas; sobretudo a partir da década de 1540, em decorrência da destruição de templos dedicados aos cultos locais e a transferência das rendas das terras destes templos para financiar o culto católico. A existência de tais dispositivos para conversão reforçou a necessidade de contínuo recrutamento de candidatos ao sacerdócio. Nas primeiras décadas da presença portuguesa na Índia no século XVI, a quantidade de missionários que partiam do Velho Mundo em direção ao Oriente não era suficiente para converter e acompanhar as populações batizadas. Soldados portugueses também foram recrutados para o sacerdócio e, marcados pelo passado bélico, atuaram na obra da conversão das almas de maneira muito violenta, sem a devida adaptação ao contexto asiático (MENDONÇA, 2002: 337). As ordens religiosas não se mostraram receptivas à entrada de nativos da Índia, nem mesmo se fossem descendentes de portugueses, mas algumas admissões de não-europeus ocorreram nos primeiros tempos das missões católicas do período moderno, em virtude da carência de sacerdotes. Porém, o recrutamento de nascidos na Índia após estas ações iniciais – e no decurso do século XVII – foi bastante escasso (BOXER, 1989) e esta restrição dificultava a obtenção de confessores que conhecessem as línguas locais.3 in illo tempore, que teria produzido as quatro varnas: os brâmanes (que assumiriam a função de sacerdotes), os kshatryias (guerreiros), os vaishyas (camponeses ou comerciantes) e os sudras (servos). Os chardós são normalmente tratados como kshatryias convertidos ao catolicismo. 3 Em 1658, o Papa Alexandre VII proibiu a confissão através de intérpretes, conforme o breve Sacrossancti apostulatus. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, Jul.-Dez., 2007

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O estabelecimento dos limites do imenso bispado de Goa em 1534, a edificação de igrejas e conventos tornava patente a necessidade de recorrer aos nativos convertidos e completavam duas décadas que o Papa Leão X autorizara a admissão dos candidatos etíopes, africanos e indianos que residiam em Portugal às ordens sacras4. O Primeiro Concílio Provincial de Goa (1567) não tratou diretamente da formação do clero nativo. O 5o Concílio Provincial de Goa (1606) proibiu que fossem conferidas ordens sacras às pessoas de castas baixas e o decreto 40o (ação terceira) determinava que só ingressassem no ministério da Igreja, “os filhos brâmanes ou parabus ou outras castas reputadas por nobres”, pois os cristãos e os gentios possuíam maior respeito por elas (LOPES, 1999:101-103). 5 A despeito das dificuldades encontradas, os membros das castas mais valorizadas eram aqueles que tinham as maiores chances de transpor os obstáculos ao exercício da carreira sacerdotal pelos nascidos na Índia. As castas que conseguiram ser recrutadas como candidatos ao sacerdócio foram brâmanes e chardós, que pertenciam a comunidades marcadas pela contumaz necessidade de obter a ascensão social. André Vaz foi o primeiro canarim, isto é, goês, a ser ordenado padre secular em 1558. Apenas um indiano foi ordenado padre da Companhia de Jesus até a sua extinção no século XVIII, era um brâmane chamado Pero Luís, admitido em 1575 (ŽUPANOV, 2005). Um dos projetos para o recrutamento de religiosos foi a criação de um seminário para capacitar os nascidos na Índia para o sacerdócio. Sob inspiração do vigário-geral de Goa, Miguel Vaz, e de Diogo Borba, foi criada a Confraria de Santa Fé em 1541 para a propagação do catolicismo em Goa, com a fundação de um colégio para que jovens de diversas nações do Oriente fossem treinados para o sacerdócio. O Seminário da Santa Fé admitia nativos, que ocasionalmente eram ordenados padres seculares e apenas, raríssimas vezes, eram admitidos como membros do clero regular. O clero nativo atuava como catequista ou auxiliar do clero regular europeu. Os franciscanos fundaram um colégio em Verem, no distrito de Bardez em 1555, chamado Colégio ou Seminário dos Reis Magos, onde Mateus de Castro foi recebido após a morte de seus pais, onde descobriu a “vocação” sacerdotal, estudando durante cinco anos sob a inspiração do espírito reformista do movimento da Observância Franciscana. Freqüentou o ambiente dos carmelitas de Goa, mas foi entre os franciscanos que desenvolveu sua espiritualidade de forma mais intensa (SORGE, 1986: 6). 4

Bula Exponis nobis de 12 de junho de 1518 (Bullarium Patronatus, I, p, 121). Parabus são membros de castas que foram valorizadas, empregadas na escrita (amanuenses, contadores, escriturários), cuja origem etimológica do vocábulo denota origem estrangeira ou ilegítima, como pode significar “senhor”, “amo”, conforme a definição dada por Sebastião Rodolfo Dalgado no Glossário Luso-Asiático. 5

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Porém, Mateus de Castro não obteve a ordenação tão desejada em decorrência das resistências do arcebispo de Goa, Cristóvão de Sá. O brâmane aspirante a sacerdote adotou a estratégia de procurar um bispo católico disposto a ordená-lo. Carregava consigo uma carta de recomendação do Provincial dos carmelitas descalços de Goa, Leandro da Anunciação, que afirmava que Castro era brâmane nascido de legítimo matrimônio de genitores cristãos e tinha patrimônio suficiente para se sustentar. Castro esperava apresentar esta carta ao prior dos carmelitas de Isfahan. Mas na Pérsia, o arcebispo dominicano recusou-se a ordená-lo sob a alegação de que Castro não sabia ler, nem escrever em armênio. Mateus de Castro foi aconselhado a partir para Roma por Gregorio Orsini, que provinha do Convento de Minerva daquela cidade e estava bem informado sobre as diretrizes da Propaganda Fide, que pareciam a chave para garantir a carreira do brâmane indiano. Chegou à Roma em 1625, após uma peregrinação à Jerusalém. Na Cidade Eterna, recebeu a assistência dos padres do Oratório de São Filipe Neri, do cardeal Barberini (conhecido como cardeal de Santo Onofre e irmão de Urbano VIII) da Propaganda Fide. 6 A Propaganda Fide estimulava a constituição de um clero indígena e atacava a postura assumida nas missões sob jurisdição do Padroado, por considerá-las restritivas no que tange ao recrutamento do clero nativo. A Propaganda Fide surgiu como uma resposta ao Padroado português do Oriente, local que pertencia à jurisdição do Padroado, mas como o domínio lusitano restringia-se a determinados pontos estratégicos nas rotas comerciais do Índico e do Pacífico, este controle sobre as almas do Oriente seria muito mais fictício que real (TAVARES, 2004:204-205). Durante a vigência do Padroado, os portugueses admitiram a chegada à Ásia de religiosos de diferentes nacionalidades, desde que fossem conduzidos em embarcações portuguesas. Porém, a hegemonia portuguesa recebeu várias críticas e abalos como a instalação dos espanhóis nas Filipinas; a bula Apostolicae sedis (1608) autorizava membros das ordens mendicantes a partirem para o Oriente sem ser através de portos e navios portugueses, abalando o quase monopólio desfrutado pela coroa portuguesa desde 1514; em 1633, o Sumo Pontífice alargou a autorização a outras ordens religiosas, além das mendicantes. A perda de posições portuguesas em Roma processava-se tanto pela subalternização dos interesses específicos do reino de Portugal quando vigorava a união 6

A trajetória de Mateus de Castro foi narrada na “Relatione raccolta da discorsi com Monsignor Matteo di Castro Primo, et Único frà naturali dell’Indie Orientali missionário della Sa Congregazione de Propaganda Fide” (Biblioteca da Ajuda de Lisboa, 46-X-7, fl.103v-117v). Esta é uma das fontes utilizadas para obter informações sobre a trajetória de Mateus de Castro. Foi consultado o “Espelho de Brâmanes” escrito por Mateus de Castro e

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dinástica (1580-1640) e conseqüente predomínio das pretensões castelhanas, quanto pelo fato de Roma buscar certo protagonismo e centralização de decisões – a criação da Propaganda Fide era um indício desta pretensão (PAIVA, 2000:135-185). Em 1658, a Propaganda Fide e o Papado determinaram o envio dos primeiros vigários apostólicos da Societé des Missions Etrangéres de Paris. O estabelecimento da Propaganda Fide ocorreu em duas etapas. No primeiro momento, de 1572 a 1621, foi instituída uma comissão cardinalícia para tentar unir Roma aos cristãos orientais, isto é, eslavos, gregos, sírios, egípcios, armênios e abissínios. Tal propósito logrou êxito no Líbano e no Malabar. O segundo momento iniciou-se em 1622 com a fundação da Sagrada Congregação de Propaganda Fide, que compreendia que as atribuições e os direitos delegados aos portugueses por ocasião das concessões pontifícias que levaram à formação do Padroado deveriam ser entendidos como privilégios, de modo que se os portugueses não cumprissem seus deveres, estariam suscetíveis à revogação do Padroado. Todavia, a coroa portuguesa declarava o caráter irrevogável dos direitos régios do padroado português, como se estivessem perpetuamente vinculados à coroa de Portugal (BOXER, 2001: 232; TAVARES, 2004207). As justificativas do primeiro secretário da Propaganda Fide, Francesco Ingoli, pouco simpático aos portugueses e aos jesuítas, consistiam em alegar que o Padroado português não concedia os fundos necessários à manutenção de igrejas, negligenciava a vacância de bispados, atribuía igual valor aos decretos régios e às bulas papais, raramente ordenava padres asiáticos, mesmo aqueles dotados de todas as qualificações necessárias, caso dos brâmanes convertidos de Goa. Francesco Ingoli dedicou-se a compilar relatórios sobre as condições das missões sob o Padroado português e contou com um informante privilegiado: o descontente brâmane aspirante a sacerdote, Mateus de Castro. O brâmane completou seus estudos teológicos no Collegium Urbanum e, em 1627, fez uma petição ao Papa para receber as ordens menores. Porém, Mateus de Castro alegava que perdera as cartas e os testemunhos de fé concedidos pelos carmelitas e pelos franciscanos durante a viagem da Armênia até Jerusalém, devido a um inusitado ataque de piratas. Sem estas cartas, o brâmane não receberia as ordens menores, mas contou com a declaração por escrito do padre Próspero do Espírito Santo que afirmava ter visto os testemunhos do Arcebispo de Goa, que estavam com Mateus de Castro, onde era mencionado que era publicado na obra de Giuseppe Sorge (1986) e a coleção de “Documentos Remetidos da Índia ou Livro das Monções”, disponível nos Arquivos Nacionais da Torre do Tombo.

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brâmane nascido de legítimo matrimônio de pais cristãos, tinha patrimônio e teria recebido credenciais dos carmelitas e dos franciscanos (SORGE, 1986:10-12). Castro recebeu a ordenação sacerdotal em 1630 e, em seguida, tornou-se missionário da Propaganda Fide. Mateus de Castro retornou à Índia em 1633, procurou o vice-rei Miguel de Noronha – o conde de Linhares – e o Cabido da Sé 7, que não permitiram que Mateus de Castro exercesse as suas funções, pois alegavam que a autorização papal teria sido obtida de maneira fraudulenta. Mais uma vez, retornou à Roma em 1636, em um momento que se intensificava a crise das missões no Japão e a polêmica acerca do uso do método de accommodatio8. A Propaganda Fide concedeu-lhe o título de bispo de Crisópolis (bispo in partibus infidelium) em 1637 e, adiante, foi nomeado vigário apostólico de Bijapur, podendo substituir o arcebispo Frascella no Japão, em sua ausência. Regressou à Goa em 1639, no ano em que o Japão vetou o comércio com os portugueses. Mateus de Castro desejou transferir-se para seu vicariato nas terras de Bijapur, onde pretendeu formar uma congregação de padres seculares conforme a regra do Oratório de São Filipe Nery, tendo seus parentes como membros. Esta estratégia de promover parte de seu “clã” à condição de sacerdote esbarrou na recusa do arcebispo de Goa, maior prelado do Estado da Índia, que como ordinário do lugar não concedeu a licença necessária para que Mateus de Castro conferisse as ordens sacras a seus parentes (SORGE, 1986:47). Acredita-se que tenham recebido as ordens sacras conferidas por Castro: André Ferrão, brâmane da aldeia de Goltim (da ilha de Divar, onde nasceu Mateus de Castro), Mathias Vaz, Lázaro de Castro e Francisco de Sá (XAVIER, 2003:569). Mateus de Castro, bispo de Crisópolis, havia deixado em Bicholim alguns clérigos seus em casas concedidas por Adil Shah, líder político do sultanato de Bijapur. O vice-rei do Estado da Índia não teria ouvido queixas ou escândalos sobre os clérigos deste bispo, “homem muy prejudicial ao serviço de V. Mgde e por isso mui indigno do lugar que occupa”, mas considerava que seria prudente que tal bispo não retornasse à Goa e aconselhava que fosse enviado um embaixador à Roma para defesa dos interesses da Coroa.9 O arcebispo de Goa apresentou pungentes acusações contra Mateus de Castro, entre elas, de se comportar como um usurpador de posições hierárquicas, de ordenar sacerdotes de maneira irregular e de ajudar o sultão de Bijapur, ou seja, agir como traidor da Coroa. Mateus 7

O arcebispado de Goa estava nas mãos do Cabido, pois o prelado que assumiria o cargo morreu na viagem. Através do método de accommodatio, o missionário adaptava-se à cultura local a fim de converter os nativos, adotando a indumentária, a alimentação e os hábitos autóctones, o que estimulou uma ampla discussão em torno da autorização destas práticas, pois era indagado em que medida não se tratavam de hábitos pagãos.

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de Castro partiu para Bicholim, região que estava fora da jurisdição do Padroado português, esperando conferir mais ordenações. A Propaganda Fide tomou conhecimento das divergências e recomendou ao sacerdote brâmane que não se intrometesse em política. Pela terceira vez, Mateus de Castro retornaria à Roma, não satisfeito com as restrições a sua atuação apresentadas pelas autoridades civis e eclesiásticas do Estado da Índia. Esperava resolver tais problemas jurisdicionais e obteve mais uma nomeação, a de bispo da Etiópia. Contudo, o patriarca da Etiópia, o jesuíta Afonso Mendes tornou-se seu grande antagonista e não apresentava reservas em chamar Mateus de Castro de “esse preto de rabo ao léu” (BOXER, 1989: 26). A quarta e última viagem de Mateus de Castro à Roma ocorreu em 1658 (SORGE, 1986: 62). Mateus de Castro foi acusado de conspirar contra os portugueses por convencer os holandeses a ocupar Goa, em um momento de grande instabilidade política. Na década de 1570, Adil Shah, o mencionado sultão de Bijapur, tentou expulsar os portugueses que controlavam o comércio litorâneo, mas fracassou. Porém, a chegada de novas forças navais européias que poderiam ser exploradas pelos líderes locais apresentava-se como uma grande ameaça à presença portuguesa. Em 1623, os ingleses aliaram-se ao sultão de Bijapur para expulsar os lusitanos. Adil Shah ameaçava invadir as terras portuguesas adjacentes a Bijapur, caso das regiões de Salsete e de Bardez, devido a atritos ligados à apreensão de suas embarcações e ao assassinato de sua tripulação pelos portugueses em 1629. Os portugueses e o sultão de Bijapur travavam tréguas circunstanciais – podemos mencionar os acordos diante da ameaça comum do império mogol e de Ahmanadagar (SOUZA, 1994, p.34-35). A instabilidade nas Velhas Conquistas – região encravada entre reis muçulmanos – poderia ser facilmente explorada no século XVII. Teotônio de Souza (1994, p.35) menciona que em outubro de 1653, uma sublevação retirou do poder o vice-rei, D. Vasco de Mascarenhas e lhe substituiu por Brás de Castro. Os holandeses instigaram o sultão a atacar Goa por terra, enquanto agiriam pelo mar, contudo, o plano foi adiado devido à necessidade de estabelecer acordos com os portugueses. Em 1654, Adil Shah tentou capturar os territórios de Salsete e Bardez, sendo provável que a invasão tenha ocorrido a pedido de Mateus de Castro. O sultão de Bijapur explorou a confusão administrativa diante da deposição do vicerei Com a chegada do novo vice-rei – o Conde de Sarzedas, D. Rodrigo Lobo da Silveira – o usurpador D. Brás de Castro foi detido e o desejo era aprisionar Mateus de Castro, para 9

Arquivos Nacionais da Torre do Tombo, Documentos Remetidos da Índia ou Livro das Monções, livro 48, fl. 259v. Escrita em Goa (24 de dezembro de 1644). Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, Jul.-Dez., 2007

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que fosse enviado a Portugal, mas o brâmane rejeitava os convites para entrar em Goa, astutamente. Quais eram as expectativas destes homens acusados de uma conjura contra a Coroa, o que esperava Mateus de Castro, André Ferrão e os demais que receberam ordens sacras do bispo brâmane? Não consistia em uma luta contra a hegemonia cristã nos domínios portugueses do Oriente, mas um desejo de redistribuição dos poderes, de melhor alocação dos brâmanes na ordem imperial (XAVIER,2003:569). Mateus de Castro proclamava que sua batalha era pela emancipação de seus compatriotas da condição de subalternidade que experimentavam e pelo reconhecimento do direito dos nascidos na Índia terem acesso aos benefícios eclesiásticos e a outros cargos no Estado da Índia. Em 1653, Mateus de Castro descobriu que o relacionamento entre o sultão de Bijapur e os jesuítas havia se tornado amistoso e os inacianos receberam autorização para edificar igrejas no sultanato, ou seja, em domínios sob jurisdição do brâmane enquanto vigário apostólico. Irritado com esta circunstância, Mateus de Castro escreveu uma longa carta, o “Espelho de Brâmanes”, em que atacava os portugueses, os jesuítas e o servilismo dos brâmanes. O seu texto, copiado por André Ferrão e Nicolau Dias para circular por Salsete e Bardez, foi dirigido aos brâmanes: “Não uos espanteis o Bramanes se os Paulistas10 disem que eu sou aleuantado”, pois Mateus de Castro afirmava estar “prompto pera dar mil uidas pera defensão da patria e bem commu”. Defendia-se das acusações, alegando que jamais pretendeu “entregar aos Mouros o que o Rey de Portugal possue na India” (Apud SORGE,1986:73) nem criar condições para expulsar os franciscanos de Bardez e os jesuítas de Salsete. O bispo brâmane apresentava-se como arauto de uma luta para que os “naturaes fossem tratados como vassalos e nam escravos”. Através da análise semiológica do discurso, é possível identificar como Mateus de Castro construiu a imagem sobre os destinatários do seu texto, que foram tratados como indianos totalmente submissos à dominação exercida pelos jesuítas e franciscanos, que lhes usurpavam o direito do exercício do sacerdócio. Porém, a construção de um discurso é baseada em uma relação dialógica, uma vez que a forma como Mateus de Castro se apresentou tem como referência a existência dos interlocutores, dos destinatários do seu texto: se os brâmanes são oprimidos na Índia, Mateus de Castro apresentava-se como uma espécie de emancipador, que recusou a possibilidade de viver como um rico e se dedicou ininterruptamente a acabar com a “escravidão” dos brâmanes, através das exaustivas viagens à Roma e sob o custo de se tornar uma inocente vítima da acusação de conjurar contra a Coroa (ARAÚJO, 2000:126). 10

Jesuítas, chamados de Paulistas devido ao Colégio de São Paulo estabelecido na Índia.

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Ser tratado como “escravo” era uma circunstância inadmissível, tolerada apenas nas Velhas Conquistas portuguesas porque franciscanos e jesuítas estavam encarregados de controlar os brâmanes. Mateus de Castro citou vários episódios coetâneos da história da Europa para demonstrar que injustiças similares às sofridas pelos brâmanes de Goa não seriam toleradas se fossem cometidas contra os naturais de outras regiões, caso da Sicília, de Nápoles, da Holanda (que se emancipou da Espanha), da Fronda na França, da experiência de decapitação do rei inglês, Carlos I. Mencionava que no interior dos vários reinos controlados pela Espanha não eram feitos agravos aos naturais, porque tais agressores seriam “logo mortos como moscas”. No “Espelho de Brâmanes”, menciona a carta que escreveu ao rei para denunciar como os naturais da Índia eram “tratados como escravos e nam como vassalos”, afastados dos ofícios, das dignidades e dos benefícios eclesiásticos, porque os franciscanos em Bardez e os jesuítas em Salsete tratavam os cristãos nativos de uma forma mais aviltante que os turcos e os persas tratavam os cristãos. Segundo Mateus de Castro, os jesuítas tentaram dissuadir o rei, para que não se importasse com as suas reclamações. O rei não teria respondido a Mateus de Castro, apesar do alerta do brâmane ressentido: “o arco muito tirado algum dia se há de quebrar” (Apud SORGE, 1986: 75) . O bispo brâmane acusou os jesuítas pela perda da cristandade de Japão (e suas conseqüências econômicas para o Estado da Índia), da Etiópia e estavam a caminho de destruir a de São Tomé, de Salsete e da Costa da Pescaria. Explicava o fracasso jesuítico pelo “ambiçam de quererem dominar”. A hegemonia jesuítica só era mantida em tamanha proporção no Oriente, afirmava, ao recordar a revolta dos Mínimos de Roma que mataram quatro jesuítas com canivetes e tesourinhas. O problema era a postura submissa dos naturais da Índia, pois os jesuítas encontravam nos brâmanes uma “terra mole” onde cavavam com cutelo, fazendo-lhes consentirem como “cabras dos Paulistas”; mas quando os jesuítas encontravam entre a terra mole dos brâmenes “hua pedrinha dura, que lhes faz doer o cutelo, que he o Bispo Dom Matheus”, infligiam inúmeras acusações. Mateus de Castro incitava os seus compatriotas a não temerem a morte, em favor da verdade e da pátria, como se explicita em suas provocações: Ô Bramanes; e sabeis que honra, e nobreza está e sempre esteve nas armas e letras vos o Bramanes sem armas, nem letras e como podeis diser que sois nobre antes os filhos das regateiras de Goa, Malavares, Bengalas, e capres se tem por mais honrados, que vos [...] quantas injurias, e aggravos fazem os Frades em Bardez e Paulistas em Salsete até chegar amarrar num banco hum mais nobre de vos e afrontar publicamente [...] e as afrontas que padeceis dos franciscanos me envergonho nomear, e agora vos fazem o que fez Farao aos filhos de Israel Egypto, vendo que multiplicavam, temendo nam se levantem com o Reino Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, Jul.-Dez., 2007

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ordenou as parteiras q nenhu, macho escapasse; Agora temendo o Farao dos Paulistas que se ouvesse muitos clerigos lhes tirarão as Igrejas assi asenterão que nam se ordenasse natural algum (Apud SORGE, 1986: 78)

Após destacar a “nobreza” intrínseca aos membros da casta brâmane, uma nobreza associada a “armas e letras”, Mateus de Castro repreendeu os brâmanes, que por sua submissão foram responsabilizados pela condição de subalternidade, visto que todas as nações valorizam em primeiro lugar a sua, ao passo que os membros de sua casta, ao contrário, estimariam os estrangeiros. A escrita de Mateus de Castro era de caráter incendiário e esperava despertar a cumplicidade de todos os brâmanes, a partir do argumento de uma origem comum e das mesmas dificuldades enfrentadas. Mateus de Castro argumentava que os brâmanes deveriam ajudá-lo, abandonando a alegação de estarem com as mãos atadas pelos religiosos. Lembrava que os brâmanes compreendiam um número de 70 mil homens de armas em Salsete, 40 mil em Bardez e 20 mil em Tiswadi, ao passo que havia apenas 40 superiores jesuítas “tiranos” em Salsete e trinta franciscanos “velhacos” em Bardez. Mateus de Castro afirmava que desejava ordenar os estudantes nascidos na Índia, especialmente os brâmanes, mas por serem submissos aos franciscanos e aos jesuítas, apenas lhes amaldiçoava. Para valorizar os nascidos na Índia, Mateus de Castro utilizou a história bíblica da visita dos Reis Magos ao recém-nascido Menino Jesus. Como os Magos do Oriente foram os primeiros a reconhecer o Menino Deus, os nativos do Oriente deveriam ter precedência em relação aos outros. Utilizou a tradição sobre a evangelização da Índia por São Tomé (que tocou as feridas de Jesus com as próprias mãos) e recorreu ao jesuíta São Francisco Xavier (que tratou como o “Segundo Apóstolo do Oriente”), como argumentos para valorização dos nativos, que seria o equivalente à semente que dava bons frutos espirituais, em referência à parábola bíblica do bom semeador. Um outro uso de passagens bíblicas ao gosto do bispo brâmane foi afirmar que Adão foi criado com a terra dos quatro pontos cardeais e que a primeira e mais nobre era a originária do Oriente, de modo que os orientais seriam nobres por nascimento e depois de convertidos tornavam-se iguais a todos os portugueses, segundo as próprias palavras do bispo brâmane. (Apud SORGE, 1986: 87). Mateus de Castro utilizou como enunciadores, isto é, como vozes arregimentadas para legitimar suas afirmações, passagens bíblicas do Antigo e do Novo Testamento e tradições hagiográficas para reforçar a qualidade, a nobreza dos brâmanes. Deste modo, não deveriam ser rejeitados na ocupação de ofícios civis e eclesiásticos, pois deveriam desfrutar da prioridade, já que a história dos orientais era caracterizada por situações de honra nos mais importantes momentos da história de toda a humanidade: na criação (a terra que deu origem a Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, Jul.-Dez., 2007

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Adão) e no reconhecimento da divindade do Menino Jesus (a adoração dos Magos do Oriente). Inseriu exemplos da história européia e asiática do seu período para provar que em nenhuma outra parte do mundo os direitos dos naturais da terra eram tão negligenciados quanto nas Velhas Conquistas, onde os nascidos na Índia não eram tratados como “vassalos” do rei de Portugal, mas como escravos. Deste modo, Mateus de Castro apropriou-se de maneira peculiar das tradições cristãs que travou contato através da leitura ou por ouvi-las, concedendo-lhes um novo sentido. A forma como os textos foram apreendidos por Mateus de Castro estimulava uma nova maneira de compreender a si (como resignificar o prestígio, a nobreza de sua casta em um contexto de dominação européia e cristã), o próprio mundo e suas noções identitárias (de casta, nação, pátria). Mateus de Castro envergonhava-se da submissão dos orientais diante dos franciscanos e dos jesuítas e impeliu os indianos a superar a condição de “escravos”. Não idealizou uma ruptura radical com a ordem imperial portuguesa, mas a superação da condição de subalternidade desfrutada pelos nascidos na Índia, sobretudo dos brâmanes como ele, pois possuíam a nobreza de nascimento e se tornavam iguais aos portugueses após a adoção do batismo. Castro afirmava o desejo de desfrutar da condição de “vassalo”, isto é, admitia o reconhecimento da soberania política dos portugueses, desde que os brâmanes não fossem tratados como “escravos”. Mateus de Castro não foi o único a denunciar a discriminação sofrida pelo clero nativo e soube explorar o apoio da Propaganda Fide para conseguir sua ordenação e a obtenção de cargos de alto nível na hierarquia da Igreja, como o de bispo. Membros das elites locais que pertenciam ao clero nativo denunciaram a posição subalterna que experimentavam em tratados escritos no século XVII e início do século XVIII. Enquanto membros das elites locais, os clérigos nativos seriam definidos mais adequadamente como “elites subalternas”, para utilizar a expressão de Cristiana Bastos (2007, p.129-141), porque as práticas imperiais criam mecanismos de diferenciação, de opressão e no que tange especificamente à ocupação de altos cargos, são reservados àqueles que nasciam em Portugal. Esses clérigos nativos que experimentaram a condição de subalternidade elaboraram escritos que evidenciaram como a memória associado à história de sua casta incorporou os novos conteúdos do discurso do “colonizador” português, ao destacar a identidade católica e a noção de lealdade ao monarca ibérico. Os brâmanes foram os primeiros a realizar escritos genealógicos para provar a nobreza de casta e defender melhores posições no Estado da Índia, como fizera Mateus de Castro no seu “Espelho de Brâmanes”. Escritos semelhantes foram Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, Jul.-Dez., 2007

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redigidos pelos brâmanes Lucas de Lima (Biographia Goana) e por Antônio João de Frias que escreveu Auréola dos índios & nobiliarchia bracmana, publicada em 1702, em Lisboa. As castas rivais também tiveram representantes que exaltaram a sua própria origem e denegriram o papel dos brâmanes, como o membro da casta chardó, João da Cunha Jacques, que escreveu Espada de David contra o Golias do Bramanismo, onde refutou a idéia de nobreza dos brâmanes e exaltou a de sua casta chardó. As contendas entre o Padroado e a Propaganda Fide em busca do protagonismo nas missões do Oriente, os embates entre o clero nativo e o clero proveniente do Velho Mundo, adicionadas às contendas entre membros cristianizados de castas rivais (especialmente entre brâmanes e chardós) ofereceu o cenário para a trajetória de Mateus de Castro. Este sacerdote católico de origem brâmane, inspirou suspeitas de ter explorado o fato da capital do Estado português da Índia (Goa) consistir em um território encravado entre reinos muçulmanos e atiçar os holandeses a invadir os domínios portugueses do Oriente. Mateus de Castro partiu do Oriente em direção à Roma em busca de uma inserção social menos subordinada e suas estratégias lhe renderam a ordenação sacerdotal em 1630, a condição de missionário da Propaganda Fide e conquista do título de bispo – in partibus infidelium – de Crisópolis em 1637.

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“E O MAIS TUDO VÁ NUMA NUVEM DE POEIRA”: NOTAS SOBRE UM MOVIMENTO SEPARATISTA NA AMÉRICA PORTUGUESA Jorge Victor de Araújo Souza* Resumo: Na segunda metade do século XVII, um movimento separatista sacudiu os alicerces da Congregação beneditina portuguesa. O direito de elegerem abades e demais cargos eclesiásticos eram as principais exigências dos monges envolvidos. Para além da esfera institucional, essa comunicação demonstrará como os principais personagens estavam posicionados e como teceram estratégias para alcançar seu intuito. Em nossa pesquisa procuramos recuperar as sociabilidades dos monges, suas ligações institucionais e, principalmente, suas parentelas. Palavras-chave: Congregação Beneditina Portuguesa, Movimento Separatista, Século XVII. Abstract: In the second half of XVIIth Century, a separatist movement shook the foundations of the Portuguese benedictine congregation. The involved ones demanded the right to choose abbots and others ecclesiastical positions. Analyzing beyond the institutional sphere, this communication will demonstrate as the main personages were located and as they had weaved strategies to reach their intention. In our research we look for to recoup the sociability of the monks, its institutional linkings and, mainly, their kindreds. Keywords: Portuguese Benedictine Congregation, Separatist Movement, XVIIth Century.

Em um manuscrito anônimo, datado entre os anos de 1765-1775, sob o título A justiça com que os monges de São Bento do Brasil solicitam a permissão de fazerem na mesma província o seu capítulo provincial, fica bastante perceptível as expectativas em torno das reivindicações dos religiosos, principalmente quanto a ocupação de cargos. Segundo os argumentos presentes no documento, a separação se funda em “razões de direito”, sendo a principal: “porque o Capítulo e eleição dos prelados regulares pertencem respectivamente às famílias que os hão de receber por superiores”. Em vários pontos o autor fez claro uso de São Tomás de Aquino, para quem “os eleitores são obrigados a eleger os mais dignos”1. Tecendo reclamações, o autor do manuscrito faz uso de lógicas argumentativas banhadas por questões pertinentes que recorrem, inclusive, a distância entre as partes interessadas: Se eles nunca viram a Província do Brasil, as suas diligências, incômodos e perigos das visitas nas navegações do mar, passagens de rios, jornadas por caminhos sem pousadas: se não tem conhecimento dos mosteiros, de suas posses, patrimônios e dependências, para que *

Doutorando em História - Universidade Federal Fluminense. E-mail: [email protected] No pensamento neotomista, que dominava o discurso político do período, eram bem conhecidas as argumentações de Tomás de Aquino quanto ao direito de resistência a um governante. 1

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não falte o preciso ao Culto Divino e o alimento aos monges, se cada um destes ignora o gentio, o alento préstimo e a capacidade, como juram de eleger para os lugares dos ofícios da Província os mais idôneos respectiva e proporcionadamente?2

Observa-se que toca em ponto fulcral, refinando uma qualidade indispensável a quem se candidatasse a um cargo governativo – o conhecimento abalizado na experiência3 – e demonstra que os superiores em Portugal erravam ao eleger abades que ignoravam as agruras da Província do Brasil. Além de apontar o desconhecimento fundamentado na distância entre Portugal e América portuguesa, o documento procura evidenciar que as distâncias entre os locais de práticas de determinados ofícios, dentro da própria província, também era calamitoso. Sobre isso exemplifica: “há poucos anos se viu elegendo-se para Mestre dos Noviços de Pernambuco a um monge que há mais de vinte anos vivia no sertão tratando de um curral de gado e tanta e grande distância do Mosteiro que se passaram muitos meses sem lhe chegar a noticia incrível que da criação de gados do sertão fosse chamado para educação dos noviços do Mosteiro”4. Não é difícil perceber o tom irônico no trecho. O autor segue com exemplos de “eleições infelizes”, dentre elas a de um abade do Rio de Janeiro. Por desconhecimento dos superiores, segundo o anônimo, se elegeu a um sujeito indignissimo e que por seus defeitos públicos e incorrigíveis repetidas vezes foi suspenso de confessar e de celebrar e foi necessário nessa ocasião que o elegeram mandar o Senhor Rei Dom João V de gloriosa memória impedir-lhe a posse por suplica que lhe fez um monge filho da Província que se achava então residente no Mosteiro de Lisboa. Passados dois triênios elegeram o mesmo Monge para D. Abade do mesmo mosteiro do Rio de Janeiro, estando o tal monge estuporado desde que ele mesmo conhecendo sua incapacidade renunciou o lugar5.

Nota-se que o autor possuía tato, não cita os nomes dos envolvidos, demonstrando discrição mesmo tratando-se de uma reivindicação. Possíveis questões podem ser esclarecidas se observarmos de perto um movimento mais antigo dentro da Ordem beneditina. Um movimento separatista6.

2

Apud. ENDRES, José Lohr (OSB). A Ordem de São Bento no Brasil quando Província, 1582-1827. Salvador: Editora Beneditina, 1980. p. 201. 3 Ronald Raminelli demonstra que, avançando o século XVIII, esse conhecimento adquirido nas vivências paulatinamente será valorizado como moeda de negociação entre quem estava na metrópole e quem estava na periferia. Cf. RAMINELLI, Ronald. Viagens ultramarinas. Monarcas, vassalos e governo a distância. São Paulo: Alameda, 2008. 4 Apud. ENDRES, José Lohr (OSB). Catalogo dos Bispos, Gerais, Provinciais, Abades e demais cargos da Ordem de São Bento do Brasil, 1582-1975. Salvador: Editora Beneditina, 1976. p. 201. 5 Ibidem. p. 202. 6 Fazemos uso do termo que aparece constantemente na documentação. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, Jul.-Dez., 2007

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Primeiras movimentações

Quase cem anos antes da indignada carta, precisamente em 6 de fevereiro de 1675, o Conselho Ultramarino viu-se diante de uma consulta em que Sua Majestade ordenou cuidado com particular atenção. Tratava-se de contenda entre monges beneditinos. De um lado, o Dom Abade Geral da Religião de São Bento no Reino de Portugal e Província do Brasil alegava que, em determinado Capítulo Geral, foram eleitos prelados para o Brasil de acordo com as leis de sua religião. Em disputas pelos cargos, ele “receava que alguns religiosos revoltosos levados de paixão sem atenderem a obediência queiram impugnar a tal posse de que pode resultar inquietação e perverter-se a obediência monástica”. Apontando a possibilidade de uma intervenção do poder secular, o Abade “pede a Vossa Alteza seja servido para que não haja revoluções mandar escrever aos governadores da Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro que não querendo aceitar os ditos prelados concorram com ajuda de seu braço para que com paz e quietação tomem posse de seus conventos”. No outro lado da disputa, sendo Provincial do Brasil, estava frei João da Ressurreição, alegando que por ser pouca a sem razão que se usara com ele legitimo prelado nomeado por sua santidade sendo expulso com violência de armas o que obrigava a vir a esta corte, com treze monges no ano de 1673 barcar (...) e que querendo os da Religião, e que os contrários elegeram abade da casa da Bahia o frei Rodrigo que era abade perpetuo de Albânia e sendo Albanence não podia fazer eleição de estranhos, além de que conforme os breves apostólicos havendo na Província sujeitos capazes, não se podia fazer eleição de estranhos, e que os mais nomeados pelos suplicados eram inimigos dirigidos a descompor e inquietar o que não se devia permitir7.

O Conselho votava pela neutralidade na altercação entre os religiosos, pois não queria comprometer-se com nenhuma das parcialidades e julgava que seculares não deveriam intervir em negócios de clérigos. Não era a mesma opinião de Salvador Correa de Sá, para quem a “cabeça desta Religião assim em Portugal como no Brasil” era o Abade Geral que se encontrava em Portugal e que o rei deveria escrever aos governadores para “quietação de seus súditos”8. O caso que embaraçava o Conselho tinha raízes mais complexas e antigas. No cerne das altercações estava em jogo a possibilidade de separação da Congregação e o controle da ocupação de cargos, dentre eles o de abade.

7 8

Lisboa, 06 de fevereiro de 1675. AHU - CU Cód. 47, fl. 393v-394. Ibidem. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, Jul.-Dez., 2007

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Em 1662, Frei Diogo da Paixão Rangel alcançou o cargo de Provincial, nomeando como Visitador frei Ignácio da Purificação, o que concedia a este liberdade para transitar pelas províncias. Em seguida, frei Ignácio foi enviado para o Rio de Janeiro, onde deveria encontrar-se com seu parente e abade daquele mosteiro, frei Leão de São Bento, para juntos planejarem um modo de separar a Congregação beneditina. Por interposição do Conde de Óbidos, frei Leão conseguiu entrar em contato com Pedro de Melo, Governador da Capitania do Rio de Janeiro para que este garantisse a viagem de frei Inácio para Portugal. Provavelmente o abade do Rio de Janeiro não informou às autoridades sobre a real intenção de frei Inácio, usando a justificativa de que o mesmo iria à metrópole a fim de ser tranferido para Ordem de Camáldoli. A estratégia traçada por frei Ignácio e frei Leão contava com a obtenção de uma bula papal. Ao chegar a Portugal, frei Ignácio teve uma contenda com o Abade Geral da Congregação e dissimulando subordinação passou a sua cidade natal, Porto, onde embarcou escondido numa nau francesa com destino a Roma9. Chega-se ao ponto que se faz necessário uma análise mais verticalizada, no intuito de conhecer melhor os personagens envolvidos nesta trama. Observando suas parentelas e espaços de sociabilidade, talvez seja possível iluminar algumas questões. O abade provincial que apoiou frei Ignácio em sua empreitada, frei Diogo da Paixão Rangel, era natural do Rio de Janeiro e quando leigo chamava-se Diogo de Mariz. Tinha pais “nobres dos mais principais da terra”. Era filho de Diogo de Mariz, Provedor da Fazenda Real, e Paula Rangel. Seus avós, paternos e maternos, eram como João Fragoso considera, “conquistadores” do Rio de Janeiro. O pai de frei Diogo, era também Oficial da Câmara do Rio de Janeiro. João Fragoso aponta que este cargo só era ocupado por elementos do mais alto estrato social – de uma determinada elite. Ainda de acordo com este historiador, a família extensa de Antônio Mariz seria um bom exemplo das estratégias empreendidas pelas primeiras famílias senhoriais do Rio de Janeiro, que recorriam a casamentos entre seus membros no intuito do fortalecimento das alianças10.

9

Rascunho duma exposição à Sé Apostólica das causas, circunstâncias e fatos que levaram alguns monges da Ordem de São Bento da Província do Brasil, à tentativa de se fazerem independentes da Congregação-mãe portuguesa. Memória para Roma. Arquivo Distrital de Braga. 10 Cf. FRAGOSO, João Luís Ribeiro. Fidalgos e parentes de pretos: notas sobre a nobreza principal da terra no Rio de Janeiro (1600-1750). In: FRAGOSO, João Luís Ribeiro; ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de, SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. Conquistadores e negociantes: Histórias de elites no Antigo Regime nos Trópicos. América lusa, séculos XVI a XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. p. 33-120. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, Jul.-Dez., 2007

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Por parte de pai, frei Diogo descendia de Antônio de Mariz, oriundo de Barcelos, e de Isabel Velha, nascida em Ponte de Lima11. Antônio de Mariz era, assim como seu filho Diogo, Provedor da Fazenda Real, além disto detinha o importante título de Cavaleiro Fidalgo. Entre suas façanhas, garantia ter participado da tomada da fortaleza de Villegaignon e comandado o destacamento de infantaria que tomou Cabo-Frio, dando combate aos Tamoios, em 1575. Antônio de Mariz estava entre aqueles que, no intuito de angariarem mercês, alegavam que “a custa de suas fazendas e de seu sangue” conquistaram territórios. O avô de frei Diogo obteve títulos, postos e terras, mas o preço foi alto, deu literalmente seu sangue em setembro de 1584, ao morrer flechado numa emboscada às margens de uma lagoa no Rio de Janeiro12. Do lado materno, frei Diogo, era descendente de Julião Rangel de Macedo, Fidalgo da Casa do Rei Felipe II e de Brites Sardinha, irmã de D. Pero Fernandes Sardinha, primeiro Bispo da América portuguesa. Julião Rangel, por serviços prestados a coroa, entre eles o combate aos franceses ao lado de Mem de Sá, recebeu terras no Rio de Janeiro, além de grande prestígio, sendo instituído por Salvador Correia de Sá ao cargo de Ouvidor da capitania13. Frei Diogo, que tomou hábito no mosteiro do Rio de Janeiro em 1623, era oriundo da elite da capitania. Talvez por ser filho de um senhor de engenhos e ter contato com os negócios da terra, administrou o importante engenho de Iguassu. Sua carreira eclesiástica foi pautada por destacadas ocupações, como a de Conventual em Salvador, em 1632, e Prior no mesmo mosteiro, em 1638. Antes de morrer no mosteiro do Rio de Janeiro, em 18 de fevereiro de 1680, foi abade em Olinda em 1650, ainda no período da “insurreição pernambucana”, portanto, estava no centro das batalhas contra os holandeses, situação que o colocou ao lado de “frei Poeira”, um importante personagem do movimento separatista. Em 1662, quando foi eleito para o cargo de Provincial, “sendo o primeiro filho do Brasil que ocupou essa dignidade” 14, frei Diogo era presidente do mosteiro baiano, nesse ano colocou frei Inácio da Purificação em uma posição estratégica. Quando frei Inácio ocupou o cargo de Visitador, não tinha passado por nenhum outro com tanta importância. Natural do Porto, tomou hábito em Salvador e teve colégio no Rio de Janeiro, chegando a ser lente de teologia. Foi seqüestrado por mouros, quando se encaminhou 11

RHEINGANTZ, Carlos G. Primeiras famílias do Rio de Janeiro (séculos XVI e XVIII). Rio de Janeiro: Livraria Brasiliana Editora, 1965. Tomo II. p. 519-520 12 BELCHIOR, Elysio de Oliveira. Conquistadores e povoadores do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Livraria Brasiliana Editora, 1965. p. 312-315. 13 Ibidem. p. 385-387. 14 DIETÁRIO dos monges de São Bento, In: Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro – O seu histórico desde a fundação até ao ano de 1927. Rio de Janeiro. [s.n.]. 1927.p. 137. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, Jul.-Dez., 2007

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para Portugal na intenção de tratar das questões separatistas. A respeito deste evento encontramos poucos dados. O mais relevante está em um códice do Arquivo de Mosteiro do Rio de Janeiro, em um pequeno trecho nas anotações do abade frei Leão de São Bento, seu amigo de causa: “Em 30 de novembro de 1668 embarquei para o Reino de Angola a entregar o padre Manoel Rodrigues para ajudar ao resgate do padre frei Ignácio as coisas seguintes: um baú preto, três toalhas de mesa, três côvados de panos vermelhos de Londres”15. O pagamento de resgate funcionou. A trama estava apenas começando a ser tecida. O terceiro envolvido, frei Leão de São Bento, natural do Porto, alcançou o abaciado do mosteiro do Rio em 1662, mesmo ano em que frei Diogo da Paixão Rangel tornou-se Provincial. Sua tomada de hábito foi em Salvador, em data indeterminada, e estudou filosofia no Rio de Janeiro. Antes de tornar-se abade foi companheiro de dois Visitadores, frei Mâncio dos Mártires e frei Bento dos Reis. Seu abaciado, pelo menos financeiramente, parece ter transcorrido sem maiores percalços, neste período conseguiu diversas doações, uma delas oriunda de sua aliança com Dona Vitória de Sá, que foi importante doadora para o mosteiro. No citado códice de sua administração, temos a informação de que frei Leão de São Bento “fazia contas com dona Vitória de Sá”. Que contabilidade seria esta? Ao que parece Dona Vitória de Sá possuía negócios com o mosteiro, mais precisamente com a venda de açúcar. Abaixo da indicação de que iniciou as contas com D. Vitória de Sá, frei Leão anotou que vendeu “quatro caixas de branco com 126 arrobas a Francisco da Costa Moura a preço de 100$000”. Não foi possível precisar se este valor era partilhado com Dona Vitória, mas é um indicador de que as relações desta descendente da importante família Sá com o mosteiro iam além do simples encontro nas missas dominicais. Em 1673, frei Leão de São Bento, por conta de sua tentativa separatista, foi preso com outros doze religiosos e enviado para Portugal. Chegando a Lisboa lançou mão de suas ligações familiares e através de um irmão que tinha na Ordem Trinitária, e “de grande respeito na Corte”, conseguiu ser transferido para um mosteiro da Ordem Cisterciense com todo o grupo de separatistas. No Dietário do Mosteiro da Bahia, consta que, recolhido no mosteiro dos bernardos, partiu para Roma e de lá retornou para Salvador onde “foi recebido com aplauso devido ao seu zelo e ao seu trabalho”16. No grupo preso com frei Bernardo estava frei Inácio da Purificação e, o mais temível separatista que, em 1675, seria Provincial, frei João da Ressurreição – “o Poeira”. 15 16

Arquivo do Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro. Códice 1336, fl. 4. Dietário do Mosteiro de São Bento da Bahia. Biblioteca Nacional. Seção de Manuscritos. Loc. 10, 2, 002. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, Jul.-Dez., 2007

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Levantando poeira

Segundo Evaldo Cabral de Mello, “quem melhor encarnou no imaginário nativista o clérico belicoso, de armas em punho a bater-se contra os invasores hereges, foi o beneditino pernambucano, frei João da Ressurreição”17. Na realidade, sobre sua naturalidade pairam dúvidas. Algumas indicações apontam que era nascido em Salvador, mas certamente era “filho de pais nobres”18. Um dado o liga a um dos cabeças do movimento – frei Diogo da Paixão Rangel – ambos tomaram hábito, no mesmo ano, no mosteiro do Rio de Janeiro. Os dois entraram na Ordem e professaram no mesmo dia. Foram, portanto, companheiros de noviciado. O quanto esse primeiro contato pesou nas tramas do movimento separatista não é possível estabelecer, mas é preciso ressaltar a importância dos vínculos constituídos em espaços de sociabilidade, como os noviciados e o fato dos dois se reencontrarem, anos depois em Pernambuco, em plena época das lutas pela restauração. Frei João ocupou diversos cargos. Foi Procurador do Mosteiro de São Paulo, em 1631, Prior do mosteiro do Rio, em 1639, Presidente do mesmo, em 1640, Procurador da Província em Lisboa, no ano de 1642, e Companheiro e secretário do Provincial João da Vitória, em 1644.

Esse último cargo o situou ao lado de um homem descrito como “um dos que

presumem ostentar onipotentes e absolutos, assombrando com tirania aos religiosos para, a poder de afrontas, injustiças e exorbitâncias, removerem os impedimentos e lograrem os efeitos de seus empenhos”19. Sobre frei João, o famoso cronista da insurreição pernambucana, o beneditino frei Raphael de Jesus teceu linhas bastante elogiosas em seu Castrioto Lusitano. Através de informações desta coletânea de panegíricos fica-se a par de que frei João foi escolhido pelo provincial para acompanhar o abade de Olinda, frei Anselmo da Trindade, que ocupava o engenho Massurepe. Frei Raphael afirma que os dois religiosos não tiveram muitas complicações, até o início da chamada insurreição, quando foram expulsos de suas terras. Quem os abrigou com “agrado e respeito” foi ninguém menos que um dos lideres da Restauração Pernambucana, João Fernandes Vieira. A ele, frei João juraria lealdade em combate, intenção que, em geral, transborda na retórica dos relatos sobre a guerra. Considerando o relato de frei Raphael de Jesus, o beneditino comportou-se exemplarmente em campo de batalha, fazendo cumprir seu juramento e dando exemplos de conduta, como na 17

MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro Veio. O imaginário da restauração pernambucana. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997. p. 234. 18 Dietário do Mosteiro de São Bento da Bahia. Op. cit. 19 Apud. ENDRES, José Lohr (OSB). Op. cit. p. 271. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, Jul.-Dez., 2007

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ocasião em que foi ferido na perna e no pé por duas munições: “não se retirou do campo de batalha, antes com mais ardor e zelo animou o exercício do seu ministério religioso e patriótico, até que a vitória foi proclamada pelos nossos”20. Nessa situação era o primeiro que “acodia a confessar como sacerdote, a ferir como soldado e animar como capitão”21. Seu grito de guerra originou o estranho apelido de “Poeira”. Durante os embates animava a tropa gritando: “tende a Deus no coração e a tudo mais vá numa nuvem de poeira”. Ainda de acordo com a narrativa do Castrioto, frei João teve importante papel no desfecho da guerra aos holandeses, indo pessoalmente a Lisboa dar a notícia da vitória a Sua Majestade, em 1654. Um acidente com a nau em que ia André Vidal de Negreiros fez com que frei João da Ressurreição adiantasse em um dia a tão esperada notícia. Segundo frei Raphael, foi João Fernandes Vieira quem enviou o beneditino para Portugal junto com André Vidal, “interessado que sua Majestade premiasse os grandes serviços de tal religioso, muitas vezes referido no discurso desta história”22. Vê-se que o beneditino não escapou à lógica que regia as trocas e relações no Antigo Regime, ou seja, a “economia de mercês”, pois havia prestado um dos serviços mais aquilatados em períodos de “guerra viva” – o serviço militar – e queria colher as benesses de seu esforço23. Que mercê poderia esperar um religioso de São Bento? Domingos Loreto Couto, que no seu Desagravos do Brasil dedicou algumas linhas a seu irmão de hábito, afirma desconhecer se os serviços de frei João foram remunerados com alguma mercê24. Após a guerra holandesa, os principais cargos disputados estavam na África portuguesa, mais precisamente, as ocupações civis e religiosas em Angola25. Pois é “levantando poeira” em território africano que encontraremos frei João da Ressurreição, devidamente agraciado com o posto de Capelão-mor das tropas de João Fernandes Vieira, que governou Angola entre 1658 e 166126. A quem frei João da Ressurreição devia obediência, a algum abade da Congregação ou a João Fernandes Vieira? A estabilidade prometida a um mosteiro da Ordem beneditina ficava comprometida mediante um pacto que garantia ao monarca súditos leais em terras distantes e

20

JESUS, Raphael de (OSB). Castrioto Lusitano ou História da Guerra entre o Brasil e a Hollanda. Paris: S/Ed. 1894. p. 306. 21 COUTO, Domingos Loreto. Desagravos do Brasil e Glórias de Pernambuco. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1981. p. 296. 22 Ibidem. p. 601. 23 MONTEIRO, Nuno Gonçalves. O “ethos” nobiliárquico no final do Antigo Regime: poder simbólico, império e imaginário social. Almanack Brasiliense, nº 2, Novembro, 2005, p. 10. 24 COUTO, Domingos Loreto. Op.cit, p. 296. 25 ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo, 2000. p. 303. 26 MELLO, José Antônio Gonçalves de. José Fernandes Vieira, mestre de campo do terço de infantaria de Pernambuco. Recife, 1956. Vol. 2. p. 170. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, Jul.-Dez., 2007

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que abrangia o território ultramarino? São algumas questões suscitadas pela condição sui generis de frei João, mas que não nos ocuparão no momento. Em 1672, dez anos após o inicio da trama articulada por frei Diogo da Paixão Rangel, frei Inácio da Purificação e frei Leão de São Bento, a Congregação tinha novo motivo para temer a separação de sua Província do Brasil. Desta vez o principal articulador era frei João da Ressurreição. Na tentativa de conter o movimento, o Provincial frei Balthazar Pinto, nascido em Portugal e “filho de pais nobres”, doutor em teologia, qualificador do Santo Ofício e Examinador de três ordens militares, pediu ao Governador Geral Affonso Furtado de Castro que “não convinha que partisse religioso algum dela [Bahia] para as capitanias de Pernambuco, Rio de Janeiro e Espírito Santo”27. O auxilio do braço secular fez-se presente na ordem expedida por Affonso Furtado para que os mestres de embarcações não permitissem o trafego de monges de São Bento sem a devida autorização de frei Balthazar28. Ao que parece o auxílio do braço secular não foi suficiente. O Governador Geral recebeu do próprio rei ordens sobre como proceder no caso. Em 30 de dezembro de 1672, escreveu: Dom Abade geral da Congregação de São Bento representando-me que o Provincial do Brasil, com intento de se isentar da mesma Congregação tinha chegado com suas demasias a termos de prender o Provincial pelo Capítulo próximo que se celebrou no Reino, impedindolhe com isso a posse aos abades do Rio de Janeiro e Pernambuco, retendo na prisão alguns monges por se mostrarem filhos da sua religião, sendo filhos do Brasil, e finalmente estavam tão obstinados que para sustentarem na Cúria Romana dois procuradores que lá tem venderam para esse feito os bens dos mosteiros. Pedindo-me o Dom Abade Geral quisesse mandar-lhe dar cumprimento pelos meus Ministros às suas ordens e porque enquanto o Sumo Pontífice não difere a separação não convém que eles se isentem da obediência do Geral, vos encomendo muito e mando façais logo dar execução (sem réplica) às ordens do Geral metendo de posse o Provincial e abades sem que achem em meus ministros as dificuldades que houve nas do Geral como a experiência mostrou29.

Nota-se novamente a esfera secular interferindo nos assuntos dos religiosos, neste caso com pedido e assentimento dos mesmos. Frei João da Ressurreição foi o “provincial do Brasil” que prendeu o “provincial eleito no Reino”. Percebe-se que frei João impedia a posse de abades do Rio de Janeiro e de Pernambuco, expondo uma das principais intenções do movimento separatista – o controle dos cargos, principalmente o de abade. Deve-se reconhecer que o domínio destes postos levava ao controle de fazendas, engenhos, cabeças de gado, imensa escravaria e outros bens de natureza diversa. Este controle de cargos é onde

27

Documentos Históricos. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional. Vol. 4, p. 216. Idem. 29 Documentos Históricos. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional. Vol. 67, 131-132. 28

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repousa o poder temporal da Igreja e se vincula a uma lógica também econômica30. O monopólio do conjunto de cargos faz com que a Igreja comporte-se como uma redistribuidora de bens intangíveis e materiais e é esse foco de poder que assegura a perpetuação da própria produção de católicos31. De acordo com esta lógica eram traçadas estratégias para ocupação dos cargos clericais. Um recurso parece ter sido acionado com freqüência e é claramente perceptível em uma reclamação da Junta de Tibães, em 20 de julho de 1798, tempo distante dos eventos evocados neste trabalho, mas exemplo mais acabado do que observa-se em várias queixas: He lei confirmada que para obviar o estranho desacordo e escândalo intolerável com que alguns monges da província procuram o patrocínio de pessoas seculares e poderosas para conseguirem as Prelazias e dignidades nas Juntas Gerais ou os ofícios e empregos particulares em os mosteiros querendo com o alheio valimento a falha de merecimentos e de virtudes sem decoro ao respeito público, as leis, e a própria honra e crédito32.

No trecho aparece um ponto presente também na queixa da Câmara baiana em 1736, quando foi “necessário aos pretendentes recorrer ao Geral por via de favores de parentes e amigos para conseguirem as licenças” para alocar seus filhos na Ordem de São Bento33. O acionamento da rede de parentesco e de amizade era um recurso usual, dentro de lógicas típicas de uma sociedade de Antigo Regime, atingindo instituições que primavam à meritocracia em seu discurso, como a Igreja. Meritocracia esta, que ao menos em tese, deveria apoiar-se em um conjunto de qualidades, como vê-se no documento citado: “decoro ao respeito público”, “as leis”, “a própria honra” e “créditos”. Esperava-se que os pretendentes aos cargos possuíssem estas “virtudes”. Nem sempre era o caso. Para o Mosteiro do Rio de Janeiro, no século XVIII, de um total de oitenta e três monges, conseguimos identificar a naturalidade de setenta e cinco, e deste universo, 66% nasceu na América portuguesa. Estes dados colocam em cheque as constantes reclamações feitas pela Câmara do Rio de Janeiro, que acusava o mosteiro de dar preferência aos “nascidos em Portugal”. No século XVII, pelo menos para o Mosteiro do Rio de Janeiro, exatamente a metade dos quarenta e oito noviços eram nascidos na América portuguesa34.

30

BOURDIEU, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1996. p.195. Ibidem. p. 196. 32 20 de julho de 1798, Junta do Mosteiro de Tibães. AMSBBA - Cód 242 fl. 27-47. 33 Aviso do Secretário do Estado da Marinha e Ultramar, Antônio Guedes Pereira ao Conselheiro do Conselho Ultramarino, José Carvalho de Abreu a ordenar que consulte o que parecer da representação dos oficiais da Câmara da Bahia, a pedirem que os religiosos, especialmente os de São Bento não aceitem noviços filhos deste Reino. Lisboa, 24 de novembro de 1736. AHU – CU – Baía, cx. 58, doc. 32. (grifo nosso) 34 Cf. SOUZA, Jorge Victor de A. Monges Negros: trajetórias, cotidiano e sociabilidade dos beneditinos no Rio de Janeiro, séc. XVIII. Dissertação de Mestrado. Departamento de História – Universidade Federal do Rio de Janeiro. 2007. p. 182-186. 31

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Se a situação de entrada para a Ordem não excluía naturais da América portuguesa, ao menos a ocupação do cargo de abade estava fechada a este grupo. Em nosso levantamento prosopográfico constatamos que no século XVII, dos sessenta e sete abades em que se pode verificar o local de nascimento, cerca de 80% constitui-se de nascidos em Portugal. A situação fica ainda mais estreita na primeira metade deste século, quando nota-se que apenas dois abades eram nascidos na América portuguesa, um em Olinda, Bernardo da Madre de Deus e outro no Rio de Janeiro, o citado frei Diogo da Paixão Rangel. Dados que corroboram as argumentações dos ditos separatistas. Todavia, existem fatores complicadores. Nos dados apontados acima, levantamos o local de tomada de hábito de cinqüenta e quatro abades que ocuparam seus respectivos cargos no século XVII. Deste quadro, foi possível perceber que apenas sete monges tomaram hábito em Portugal, apontando a tendência de que a maioria tomou hábito em mosteiros da América portuguesa, onde faziam sua formação inicial. Muitos dentre estes noviços, acompanhavam os pais que vinham se fixar nas novas terras em busca de oportunidades, outros simplesmente vinham porque, em determinado período, a entrada nos mosteiros em Portugal estava estreitada. Voltando ao movimento separatista, em outra carta de Affonso Furtado de Castro, desta vez dirigida ao Governador do Rio de Janeiro, em 11 de julho de 1673 percebem-se os efeitos provocados por frei João e sua parcialidade35. Chegando de Pernambuco à Salvador, acompanhado de monges de sua confiança, o documento não especifica quantos, frei João disse ter um breve de Sua Santidade e se recolheu no Colégio da Companhia de Jesus. Quem os acolheu na casa dos inacianos? Era prática comum os conventos e mosteiros acolherem refugiados, mas não podemos deixar de apontar que os dois inacianos que receberam os beneditinos foram os padres João da Costa e Jacinto de Carvalhais. Os dois estiveram envolvidos, anos antes, na expulsão do visitador Jacinto de Magistris, em episódio conhecido como “jacintada”. Portanto, eram, no mínimo, homens acostumados a contendas envolvendo “parcialidades” e ao que parece estavam a favor dos intentos de frei João da Ressurreição36. Seus companheiros haviam regressado de Roma, frei Inácio e frei Leão de São Bento, trazendo um breve papal e reforçando a separação. O próprio governador teve que ir em pessoa ao mosteiro tentar aplacar os ânimos e garantir a posse do abade provincial, frei Pedro do Espírito Santo, natural 35

Documentos Históricos. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional. Vol. 6 p. 254 Cf. LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Tomo VII. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1949. p. 46-47. CAMENIETZKI, Carlos Ziller. O Paraíso proibido. A censura à Chronica de Simão de Vasconcelos em 1663. In: FIGUEROA, Luis Millones; LEDEZMA, Domingo (Eds.). El saber de los jesuítas, historias naturales y el Nuevo Mundo. Frankfurt; Madrid: Vervuert; Iberoamericana, 2005, p. 109-133.

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de Lisboa. Em 11 de outubro de 1673, o rei ordenava o envio para a metrópole de frei João da Ressurreição, frei Inácio da Purificação e do ex-abade do mosteiro do Rio de Janeiro, frei Leão de São Bento, para que respondessem as acusações fora da província do Brasil37. Conforme nota-se na documentação de 1675, a repreensão do monarca não funcionou. Até 1681, frei João Poeira brigava como Abade Provincial, conseguindo, no inicio da década, eleger diversos abades em reuniões capitulares realizadas em Salvador ao invés de Tibães, onde, de acordo com os estatutos da Congregação, deveriam ocorrer. Na década de oitenta do século XVII, alguns envolvidos no episódio separatista ocuparam cargos de abades, como frei Inácio da Purificação e frei Leão de São Bento que se tornaram abades provinciais, explicitando uma das razões de suas disputas com a Congregação portuguesa. Em 1689, ainda havia vestígios das contendas entre os eleitos no Capítulo de Salvador e os que estavam em Portugal: Matias da Cunha, amigo. Eu El-Rei vos envio muito saudar. Por repetidas ordens minhas vos tenho mandado fazer aviso e aos governadores desse Estado vossos antecessores, fizessem dar execução ao Breve de Sua Santidade e Decreto da Congregação de regulares sobre a união da Congregação de São Bento dessa Província do Brasil e deste Reino cujas ordens se me fez presente encontram nesse Estado os padres Frei Roberto e Frei Bento da Vitória e outros desobedecendo ao Geral38.

Percebe-se, como em documentos anteriores, que as “bulhas” produzidas por alguns monges que queriam eleger seus abades não eram interpretadas como algo pequeno e de menor importância. A constância da interferência real demonstra isto claramente. Frei Roberto, citado na carta de El Rei, era frei Ruperto de Jesus, que naquele momento era abade de Salvador e o citado frei Bento da Vitória era ex-abade do mosteiro do Rio de Janeiro. Outros trinta e dois abades ocuparam seus cargos conforme decisão do Capítulo de Salvador, dentre eles, frei Cristóvão de Cristo, abade do mosteiro do Rio entre 1685 e 1688, filho do Capitão Cristovão Lopes Leitão e de Mariana de Soberal, “ambos nobres ricos e virtuosos”.

37 38

Documentos Históricos. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional. Vol 67. p. 78. Documentos Históricos. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional. Vol. 68. p. 200. Carta de 12 de março de 1689. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, Jul.-Dez., 2007

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Considerações finais:

Em 1827, quando da separação definitiva da Congregação beneditina brasileira da Congregação portuguesa, frei Antônio do Carmo, Provincial da Ordem de São Bento, fez uso da Bula Causas inter dilectus expedida em setembro de 1673 pelo Papa Clemente X, que regulava as eleições para os cargos beneditinos, reconhecendo a autoridade das decisões tomadas em Tibães, cabeça da Congregação. Nesse momento, frei Antônio contestava a decisão papal, alegando que não mais fazia sentido, posto a separação dos reinos. A movimentação política dos monges beneditinos na segunda metade do século XVII, insere-se em uma configuração mais ampla, onde vários atos considerados de “rebeldia” pulularam no Império Ultramarino após a restauração portuguesa39. Neste período, a Ordem de São Bento não foi a única a tentar a separação de instituições que estavam em Portugal. O que se observa no movimento separatista aqui exposto é uma quebra na hierarquia da Congregação, demonstrando a existência de interesses divergentes entre seus membros. Interpretações anteriores atribuíram ao movimento dos beneditinos um caráter nativista onde prevaleceria uma identidade brasílica subjacente aos atos dos envolvidos40. Ao ajustarmos o foco, observando as atuações dos envolvidos, suas trajetórias, seus vínculos e as estratégias que traçaram, podemos constatar que a interpretação de um suposto nativismo não se sustenta. Os envolvidos eram oriundos de diversos locais, tanto da América portuguesa como da metrópole. Mas alguns dados parecem ligá-los. Todos tomaram hábito em mosteiros da América portuguesa, mesmo os oriundos de Portugal. Um grupo significativo de envolvidos tomou hábito no mesmo período nos mosteiros de Salvador e do Rio de Janeiro. Como perfil social, todos os envolvidos são classificados na documentação como de “geração nobre, filhos de pais distintos e ricos”. Sobre este dado é importante informar que o perfil social dos monges beneditinos na América portuguesa, até onde se pôde apurar, era bem diversificado, nem todos eram filhos dos denominados “principais da terra”41.

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Cf. FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida. O Império em Apuros: notas para o estudo das alterações ultramarinas e das práticas políticas no Império colonial português, séculos XVII e XVIII. In: FURTADO, Júnia Ferreira (Org.) Diálogos oceânicos: Minas Gerais e as novas abordagens para uma história do Império ultramarino português. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001. p.197-254. 40 Cf. MELO, Mário. Rebelião de frades no século XVII. Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano. Vol XLII, Pernambuco. S/Ed.1952. p. 36-40; CALMON, Pedro. História do Brasil. A formação, 1600-1700. São Paulo; Rio de Janeiro; Recife; Porto Alegre: Editora Companhia Nacional, 1941. p. 470-471. Sobre os vários usos do termo “nativismo” pela historiografia que se dedicou a América portuguesa, ver: SILVA, Rogério Forastieri. Colônia e nativismo: a história como “biografia da nação”. São Paulo: Hucitec, 1997. p. 63 – 87. 41 SOUZA, Jorge Victor de Araújo. Op. cit. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, Jul.-Dez., 2007

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Uma chave interpretativa do movimento separatista pode ser dada pelas próprias lógicas que regiam as hierarquizações no Antigo Regime. Primeiro é necessário considerar as reciprocidades que moviam e criavam vínculos entre os membros de diversos grupos sociais, inclusive religiosos. Seguindo esta lógica, deve-se considerar a existência de bens intangíveis que eram trocados entre os indivíduos e que criavam determinadas expectativas e demandas sociais. Entre estas expectativas pode-se destacar a perspectiva da ocupação de uma posição de liderança, denotando a possibilidade de uma ascensão dentro de determinado grupo. As expectativas eram criadas a partir da junção de experiências pessoais e de “heranças imateriais”42. Um bom exemplo é dado pela trajetória de frei João da Ressurreição. Sua experiência na “Insurreição pernambucana”, quando experimentou as benesses de uma economia das mercês, deve ser levada em consideração para melhor entendimento de sua afã no movimento separatista beneditino. Frei João experenciou uma vivência que exigia tomadas decisórias extremamente importantes, assim como a capacidade de tecer estratégias. Enfim, em momentos de crise, frei João ocupou duas posições de uma sociedade trinitária, sendo ao mesmo tempo oratore e belatore. Em sua trajetória conviveu com homens de determinados status, como João Fernandes Vieira e até mesmo esteve na corte, diante do próprio Rei. Podese conjunturar que era um homem que acreditava que devia ser devidamente recompensado por seu “passado de glórias”. Acreditava que merecia privilégios. Voltar à América portuguesa e ocupar um posto de simples mordomo em sua ordem religiosa após ser Capelãomor em Angola não estava em sua expectativa. Mas a situação de “guerra viva” que se envolveu anteriormente já não existia mais. Não encontramos nenhuma referência a frei João entre o período que esteve ao lado de João Fernandes Vieira em Angola e o início de suas contestações junto a Congregação, apontando um possível ostracismo. Ele necessitou cavar oportunidades para ocupar o local que julgava merecedor e encontrou o ensejo em um movimento articulado anos antes. Os demais envolvidos na questão separatista, como dito, eram oriundos de uma determinada elite, como frei Diogo da Paixão Rangel. No caso deste articulador, e também de frei Cristóvão de Cristo, deve-se levar em consideração que eram descendentes dos ditos “principais da terra”, herdando determinado habitus, criado por disputas locais que garantiriam uma posição de destaque na sociedade.

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Sobre o que entendemos como “herança imaterial”, salientando que o autor pesquisou, entre outros grupos sociais, a trajetória de um religioso do século XVII, ver: LEVI, Giovanni. A herança imaterial: trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, Jul.-Dez., 2007

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Quanto ao problema das distribuições das chances de poder, percebe-se uma configuração de comunidades constituídas por uma relação entre estabelecidos e outsiders43. No caso em questão, pode-se considerar os “nascidos em Portugal” como “estabelecidos” e os “nascidos na América portuguesa” como “outsiders”. Aparentemente esta afirmação pode soar contraditória, pois os “nascidos na América portuguesa” e suas famílias estavam a mais tempo na região onde se encontravam os mosteiros, como Rio de Janeiro, Salvador e Olinda. Todavia, quando consideramos os estabelecidos como “os nascidos em Portugal” queremos com isso apontar que suas famílias ainda estavam demasiadamente fixadas em regiões próximas de onde eram comumente eleitos os abades, ou seja, Tibães. Neste caso, apesar de tomarem hábito na América portuguesa, os “nascidos em Portugal” ainda mantinham sólidos vínculos nas regiões entorno da Abadia mãe, isto se comprova pelo alto número de retorno para metrópole após a ocupação de algum cargo na América. Sobre os outsiders poderia pairar a dúvida de estarem “infectados por sangue impuro”, mais do que os nascidos na metrópole. Possuíam além da suspeita de “sangue judeu”, o agravante de terem parentesco com gentio da terra ou com africanos, algo que vedava a entrada nas “Religiões”. De certa forma, contando inclusive com ajuda de familiares, os “nascidos em Portugal” podiam valer-se de relações e até mesmo laços de parentesco com os abades de Tibães, cerrando fileiras e impedindo aos “nascidos na América”, “filhos de gente nobre, distinta e rica”, alcançarem o cargo de abade. Sobre estes processos ainda estamos “retirando as poeiras”.

Bibliografia DIETÁRIO dos monges de São Bento, In: Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro – O seu histórico desde a fundação até ao ano de 1927. Rio de Janeiro. [s.n.]. 1927. ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo, 2000. BELCHIOR, Elysio de Oliveira. Conquistadores e povoadores do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Livraria Brasiliana Editora, 1965. BOURDIEU, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1996.

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Sobre relações do tipo estabelecidos-outsiders, ver: ELIAS, Norbert; SCOTSON, John L. Os estabelecidos e os outsiders. Sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, Jul.-Dez., 2007

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CALMON, Pedro. História do Brasil. A formação, 1600-1700. São Paulo; Rio de Janeiro; Recife; Porto Alegre: Editora Companhia Nacional, 1941. CAMENIETZKI, Carlos Ziller. O Paraíso proibido. A censura à Chronica de Simão de Vasconcelos em 1663. In: FIGUEROA, Luis Millones; LEDEZMA, Domingo (Eds.). El saber de los jesuítas, historias naturales y el Nuevo Mundo. Frankfurt; Madrid: Vervuert; Iberoamericana, 2005, p. 109-133. COUTO, Domingos Loreto. Desagravos do Brasil e Glórias de Pernambuco. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1981. ELIAS, Norbert; SCOTSON, John L. Os estabelecidos e os outsiders. Sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. ENDRES, José Lohr (OSB). A Ordem de São Bento no Brasil quando Província, 1582-1827. Salvador: Editora Beneditina, 1980. _____. Catalogo dos Bispos, Gerais, Provinciais, Abades e demais cargos da Ordem de São Bento do Brasil, 1582-1975. Salvador: Editora Beneditina, 1976. FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida. O Império em Apuros: notas para o estudo das alterações ultramarinas e das práticas políticas no Império colonial português, séculos XVII e XVIII. In: FURTADO, Júnia Ferreira (Org.) Diálogos oceânicos: Minas Gerais e as novas abordagens para uma história do Império ultramarino português. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001. p.197-254. LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Tomo VII. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1949. FRAGOSO, João Luís Ribeiro. Fidalgos e parentes de pretos: notas sobre a nobreza principal da terra no Rio de Janeiro (1600-1750). In: FRAGOSO, João Luís Ribeiro; ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de, SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. Conquistadores e negociantes: Histórias de elites no Antigo Regime nos Trópicos. América lusa, séculos XVI a XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. p. 33-120. JESUS, Raphael de (OSB). Castrioto Lusitano ou História da Guerra entre o Brasil e a Hollanda. Paris: S/Ed. 1894. LEVI, Giovanni. A herança imaterial: trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro Veio: O imaginário da restauração pernambucana. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997. MELLO, José Antônio Gonçalves de. José Fernandes Vieira, mestre de campo do terço de infantaria de Pernambuco. Recife, 1956. 2 Vol. MELO, Mário. Rebelião de frades no século XVII. Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano. Vol XLII, Pernambuco. S/Ed.1952. p. 36-40. MONTEIRO, Nuno Gonçalves. O “ethos” nobiliárquico no final do Antigo Regime: poder simbólico, império e imaginário social. Almanack Brasiliense, nº 2, Novembro, 2005. p. 4-20. RAMINELLI, Ronald. Viagens ultramarinas. Monarcas, vassalos e governo a distância. São Paulo: Alameda, 2008. RHEINGANTZ, Carlos G. Primeiras famílias do Rio de Janeiro (séculos XVI e XVIII). Rio de Janeiro: Livraria Brasiliana Editora, 1965. 2 Tomos.

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SILVA, Rogério Forastieri. Colônia e nativismo: a história como “biografia da nação”. São Paulo: Hucitec, 1997. SOUZA, Jorge Victor de A. Monges Negros: trajetórias, cotidiano e sociabilidade dos beneditinos no Rio de Janeiro, séc. XVIII. Dissertação de Mestrado. Departamento de História – Universidade Federal do Rio de Janeiro. 2007. 187p.

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O EREMITA DO NOVO MUNDO: A TRAJETÓRIA DE UM ITALIANO PELOS SERTÕES BRASILEIROS NO SÉCULO XIX Alexandre de Oliveira Karsburg* Resumo: Este texto tem por objetivo mostrar como determinados procedimentos metodológicos da micro-história estão servindo para encontrar vestígios de um personagem que, até então, sabia-se muito pouco: o italiano Giovanni Maria de Agostini (1801-1869) que, em território brasileiro entre 1844 e 1860, iniciou uma tradição religiosa bastante conhecida: a dos monges santos no sul do país. Palavras-chave: Monges Santos, Tradição Religiosa, Guerra do Contestado. Abstract: This text has to objective to show how some methodological proceedings of microhistory are serving to find vestiges of the Italian peregrine Giovanni Maria de Agostini (18011869) that, in Brazilian territory between 1844 and 1860, started a religious tradition very important: the saint hermits in south of the country. Keywords: Saint Hermits, Religious Tradition, War of Contestado.

Sinais, indícios e a montagem do “quebra-cabeça”

O italiano Giovanni Maria de Agostini, conhecido pelos pesquisadores da Guerra do Contestado (em Santa Catarina, entre 1912-1916) como João Maria de Agostinho, o primeiro da série de monges eremitas que palmilharam os sertões meridionais do Brasil entre meados do século XIX e início do XX, foi estudado mais como uma lenda, um santo, do que um indivíduo de carne e osso. E isso pode ter explicação. Os vestígios de sua passagem pelo Brasil, de 1844 a 1860, não permitiram que se chegasse a maiores detalhes de sua vida. Os poucos documentos encontrados eram quase nada esclarecedores sobre sua origem, sua formação, os motivos que tinha para peregrinar e seu destino após 1860. Ao perderem o seu rastro, os estudiosos preencheram as lacunas sobre este personagem com hipóteses variadas baseadas mais em teorias do que em indícios com comprovação empírica. E na falta de certezas, os pesquisadores foram tomando as afirmações de seus antecessores, acrescentando sempre um pouco, criando em torno daquele italiano uma “aura de santidade” difícil de penetrar devido à falta de novas informações. Se entre os populares dos séculos XIX e XX o

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Doutorando em História Social – UFRJ. E-mail: [email protected] Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, Jul.-Dez., 2007

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monge João Maria foi considerado um santo, entre os pesquisadores ele foi e é um “santo dos excluídos”.1 Santo popular e santo dos excluídos, ou um líder religioso que alimentava a superstição deixando seus seguidores “fanatizados”, o fato é que João Maria de Agostinho serviu e vem servindo para muitos propósitos. E ainda que se tenha descoberto novas evidências de sua passagem pelo Brasil do século XIX, ainda sim os estudos sobre aquele italiano parecem não avançar. Na verdade, este personagem jamais foi tomado em sua individualidade, isto é, não mereceu, até agora, uma investigação exclusiva, ou algo do gênero. Se não parece haver dúvidas de que ele foi o iniciador de uma tradição religiosa de longo prazo no interior de três estados do Brasil – Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná –, a tarefa de investigar sua vida ainda está por ser feita. Embora a qualificação lhe fosse um tanto ilegítima, ficou conhecido como “monge”, e assim entrou para a história. Após sua passagem pelo sul do Brasil entre 1848 e 1849, deixou saudosa memória, inspirando pessoas que procuraram imitar seu modo de vida. Se já havia freis ou frades evangelizando os habitantes do interior brasileiro no século XIX,2 passou a haver também eremitas vagando por entre os sertões meridionais fazendo todo tipo de prodígio: curas, bênçãos, “milagres”, pregações, profecias. Eram indivíduos em sua maioria anônimos que por possuírem atributos similares aos do italiano João Maria de Agostinho passaram a ser identificados com ele: João Maria de Jesus e José Maria de Santo Agostinho foram seus “seguidores” mais famosos, ganhando repercussão nacional por causa da Guerra do Contestado no estado de Santa Catarina, entre 1912 e 1916. Porém, tais “seguidores”, famosos ou anônimos, basearam suas ações na leitura “distorcida” que fizeram da cultura religiosa daquele italiano. E essa “distorção”, diga-se de passagem, fruto da cultura religiosa brasileira formada em mais de três séculos de relacionamento entre portugueses, africanos e

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Exemplo disso é a obra de José Fraga Fachel (1996): “João Maria: recusa dos excluídos”. Este apresentou novos documentos para se chegar a um maior esclarecimento sobre o italiano João Maria de Agostinho. Contudo, tais documentos foram usados para comprovar um modelo construído a priori, ou seja, a idéia de que aquele eremita veio preencher um espaço vazio deixado pela Igreja Católica e pelo Estado que não prestavam auxílio aos habitantes do interior do Brasil, estando esses “carentes” de todo tipo de assistência, seja religiosa, médica ou educacional. Em estudo recente, César Hamilton Brito Góes (2007) investigou como se deu o processo de santidade em torno dos monges, trabalhando com um recorte temporal extenso, de 1844 até 2003. Demais autores que abordaram, mesmo que indiretamente, o personagem João Maria de Agostinho estão mencionados na bibliografia, ao final deste artigo. 2 Sobre a presença de freis itinerantes trabalhando na evangelização dos povos no interior do Brasil, estou consultando: Torres (1968); Azzi (1975a); Oliveira (2008). Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, Jul.-Dez., 2007

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indígenas,3 resultou em estereótipos de João Maria de Agostinho, surgindo personagens mais sagrados que humanos. Atendo-se à documentação que se refere ao eremita italiano, não há dúvidas sobre qual era o seu público preferido: pobres e doentes. Contudo, jamais se esquivou a receber e a dialogar com pessoas melhor estabelecidas socialmente, e por vários dos lugares que passou fez amizade com chefes de famílias importantes, trocando gentilezas, contando sua história ou deixando presentes como lembrança. As relações que manteve, apesar de temporárias, ficaram na memória de membros da elite social, fossem proprietários de terras, comerciantes ou políticos. Tampouco queria provocar reação na hierarquia da Igreja ou nas autoridades leigas, civis ou militares. Porém, essas afirmações são resultado de análises sobre sinais e indícios que, até então, eram marginais, ou tomados como tal por outros pesquisadores que mencionaram o “monge” João Maria de Agostinho em seus trabalhos.4 No princípio de minha pesquisa para o doutorado (2007), não tinha certeza de querer este eremita italiano como objeto de análise. As informações conhecidas, como mencionado, eram poucas, esparsas, e já amplamente discutidas por estudiosos. Mesmo não concordando com a idéia de “santo dos excluídos”, ainda sim não o via além do que já se sabia: ele era o iniciador de uma longa tradição religiosa que sobrevive até os dias atuais entre os habitantes do interior do sul do Brasil. Porém, à medida que aprimorava minhas leituras de autores da micro-história,5 percebi que poderia adotar procedimentos investigativos centrados em análise detalhada dos documentos, atento a informações consideradas como secundárias que foram negligenciadas pelos demais pesquisadores. Procurei os documentos conhecidos, já citados por outros, buscando vestígios que me indicassem caminhos alternativos, ou que pudessem me levar a diferentes arquivos. Para fins práticos, vejamos um exemplo. Um dos documentos mais citados sobre a presença do italiano João Maria de Agostinho no Brasil foi feito na freguesia de Sorocaba, interior paulista, no dia 24 de

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Assunto dos mais debatidos, a complexidade da religiosidade brasileira ganhou destaque com: Souza (1986; 1993); Vainfas (1995), dentre outros citados na bibliografia. 4 Volto a afirmar que esse italiano jamais foi tomado individualmente como objeto de pesquisa. Os pesquisadores que menciono (referidos na Bibliografia) tinham como foco chegar aos monges que estiveram mais próximos aos conflitos da Guerra do Contestado, entre 1912 e 1916 no estado de Santa Catarina. As informações que se sabia do italiano só foram usadas para identificá-lo como iniciador de uma tradição (dos monges santos), situando-o mais como lenda do que como indivíduo dotado de motivações e racionalidade e capaz de criar estratégias de ação dependendo da situação em que se envolvia. 5 Primeiramente Carlo Ginzburg e seu livro sobre o moleiro Menocchio (1987), depois Giovanni Levi (Herança Imaterial, 2000) e Edoardo Grendi (Il Cervo e la República, 1993). No entanto, conforme se verá na seqüência deste artigo, optei em seguir a linha de Carlo Ginzburg por considerar seus estudos mais próximos de meu objeto e temática, embora o procedimento da microanálise seja compartilhada pelas duas linhas que Henrique Espada Lima Filho (2005, p. 329-480) chamou de “A dupla alma da micro-história”. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, Jul.-Dez., 2007

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dezembro de 1844. No Livro de Registros de Estrangeiros,6 o escrivão Procópio Luiz Freire escreveu ser este indivíduo natural do Piemonte, Itália, de idade 43 anos, estando no Brasil a serviço de seu ministério. Registrou ainda que “frei João Maria” tinha vindo da província do Pará, tendo desembarcado no Rio de Janeiro pelo Vapor Imperatriz no dia 19 de agosto de 1844. Além desses dados, o escrivão fez uma descrição física do italiano: “estatura baixa, cor clara, cabelos grisalhos, olhos pardos, nariz regular, boca dita, barba cerrada, rosto comprido”, finalizando com o seguinte detalhe: “Aleijado dos três dedos da mão esquerda”. Adiante comentarei sobre essa “deficiência” física do “frei João Maria”. Com as informações registradas no Livro de Sorocaba, já se poderia iniciar uma investigação por caminhos até então inexplorados. Uma vez nos arquivos do Rio de Janeiro, procurando nos jornais de 1848 algo sobre a presença de João Maria de Agostinho no Rio Grande do Sul, percebi que na última página de cada edição constava sempre o movimento de vapores que chegavam ou saíam do porto da capital do Império brasileiro, além da identificação de muitos de seus passageiros. Não foi difícil chegar ao nome do “italiano Giovanni Ma de Agostini”, desembarcado no Vapor Imperatriz no dia 18 de agosto de 1844.7 Entretanto, a surpresa maior não foi o fato de ter se confirmado verdadeiro o itinerário do Pará ao Rio de Janeiro antes de chegar à freguesia de Sorocaba, mas o seu nome italiano. Pode parecer pouco, até mesmo irrisória tal constatação, ou algo do tipo: “como não pensei nisto antes?” Mas volto a afirmar que faltava um estudo individualizado para este indivíduo, alguém que o tomasse como personagem principal, ou próximo a isso, que perseguisse pequenos detalhes em documentos já conhecidos. Uma vez descobrindo se chamar Giovanni Ma de Agostini, investi em tentar chegar às suas origens. Contudo, as informações sobre seu passado anterior ao Brasil não me foram reveladas por seu nome em italiano, antes por seu nome em espanhol. Mas não adiantemos a história. A passagem do monge João Maria de Agostinho pelo Rio Grande do Sul e litoral de Santa Catarina, em 1848 e 1849, repercutiu de modo estrondoso nestas duas províncias. Acontece que o monge passou a atrair inúmeras pessoas a sua volta por se espalhar a notícia de que ele estaria realizando “milagres” em uma fonte de água, “dando vista a cegos, tornando bons os paralíticos e não se sabe o que mais”.8 Jornalistas, médicos, padres, 6

Vários autores trazem uma cópia deste documento: Oswaldo Cabral (1960); Maria Isaura de Queiroz (1955); Maurício Vinhas de Queiroz (1966); Duglas Monteiro (1974) e outros. O documento está na cidade de Sorocaba, nos arquivos do Gabinete de Leitura (Góes, 2007, p. 89). 7 Jornal Diário do Rio de Janeiro, 19 de agosto de 1844, p. 8, Biblioteca Nacional, Setor de Periódicos, edições micro-filmadas, Rio de Janeiro. 8 Reportagem transcrita no jornal Diário do Rio de Janeiro, 6 de julho de 1848, p. 1. Biblioteca Nacional, Setor de Periódicos. Edições Micro-filmadas. Rio de Janeiro. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, Jul.-Dez., 2007

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autoridades policiais e milhares de doentes e curiosos acorreram ao local das tais “águas santas”, no interior do Rio Grande do Sul, na localidade de Santa Maria. Segundo Hemetério José Veloso da Silveira (1979), político e pesquisador que viveu no século XIX, os tais prodígios do monge nas águas santas ganharam destaque não só no sul do país, mas também no Rio de Janeiro através da imprensa. Como tal historiador citou apenas um jornal em que as notícias foram veiculadas,9 questionei quais eram os outros periódicos que circulavam na capital brasileira de meados do século XIX. Foi fácil chegar aos jornais Diário do Rio de Janeiro, Jornal do Comércio e Correio Mercantil dos anos de 1844 a 1849, localizados na Biblioteca Nacional. Foi a partir da leitura que fiz em várias edições dos jornais citados que descobri o nome italiano Giovanni Ma de Agostini e também artigos de jornalistas sul-rio-grandenses que estiveram em Santa Maria procurando esclarecimentos sobre o que ocorria no lugar. Informações relevantes sem sombra de dúvidas, pois os correspondentes relataram o que presenciaram, com algum espanto é verdade, desconfiados que a “verdadeira religião” ali não era seguida.10 Porém, em um dos jornais apareceu uma lista de quarenta pessoas que aceitaram dar seu testemunho atestando o poder de cura daquelas águas santas.11 Uma simples leitura da lista já torna possível afirmar que não eram somente os pobres e doentes desenganados ou “abandonados” pelos médicos que se dirigiam para Santa Maria a fim de buscar curar suas moléstias. Ou ainda, que as ditas águas atraíam somente pessoas do meio rural e não indivíduos das cidades. Os nomes presentes na lista mostram uma heterogeneidade social que faz desmoronar a idéia de religiosidade dos “excluídos”. A crença nos poderes curativos das águas era um elemento comum a todas as categorias culturais e sociais, muito embora houvesse diferenças entre a concepção popular e a da medicina oficial. Para a primeira, a cura era por milagre e por interseção do monge; para a segunda, eram os princípios químicos que levavam à cura de certas doenças. Nestes mesmos jornais do Rio de Janeiro constatei uma informação que sempre foi tida como incerta por outros pesquisadores que se interessaram pelo eremita italiano: ele foi 9

Jornal Gazeta dos Tribunaes, de Antônio Manoel Cordeiro, n. 162 de 1848 (Cf. Silveira, 1979, p. 477). Infelizmente não consegui encontrar este jornal no Rio de Janeiro. 10 O jornalista Felicíssimo de Azevedo foi o que mais escreveu sobre o que presenciou no Cerro do Campestre, nas proximidades de então vila de Santa Maria, local das águas santas. Quase cinqüenta anos depois, em 1895, o jornalista voltou a escrever sobre os acontecimentos, relembrando um encontro entre o monge João Maria de Agostinho e o general presidente do Rio Grande do Sul, Francisco José de Souza Soares de Andréa. Felicíssimo também narrou sobre as manifestações de fé dos crentes que lá estavam. Cf. Jornal A Federação, de 15 e 18 de março de 1895. Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa, Porto Alegre, RS. No ano de 1848, Felicíssimo de Azevedo trabalhava no periódico O Porto Alegrense, editado em Porto Alegre. 11 Jornal do Comércio, 21 de novembro de 1848, p. 1; jornal Correio Mercantil, 23 de novembro de 1848, p. 3, Biblioteca Nacional, Setor de Periódicos, edições micro-filmadas, Rio de Janeiro. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, Jul.-Dez., 2007

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mandado para o Rio de Janeiro após ser duplamente deportado, primeiro do Rio Grande do Sul, em dezembro de 1848; depois de Santa Catarina, em maio de 1849, já que os populares não paravam de segui-lo. Uma vez na capital imperial, foi interrogado pelo médico oficial da Corte, o então deputado José Martins da Cruz Jobim, natural da vila de Rio Pardo, no Rio Grande do Sul. Também foi proibido de continuar suas pregações, por ordem do chefe de polícia do Rio de Janeiro. Colocado provisoriamente no Asilo São Cornélio - na Rua do Catete -, permaneceu ali por alguns meses, até ser liberado tomando caminho incerto.12 Em meio a novidades, uma carta13 revelou um dado que poderia ser insignificante, mas na busca por maiores detalhes deste eremita italiano, nada mais poderia ser considerado como tal. Antes de conhecer a fama no Rio Grande do Sul, João Maria de Agostinho esteve na Argentina, na cidade de Buenos Aires.14 Ao tomar conhecimento disso, julguei que seu nome no idioma castelhano poderia ser Juan Maria de Agostini. Uma pessoa, vários nomes e designações religiosas distintas: na Itália, Giovanni Maria de Agostini; no Brasil, frei e monge João Maria de Agostinho (com variações no sobrenome); na Argentina, Juan Maria de Agostini, missionário. E ainda havia a assinatura em dois documentos feitos no Brasil: uma no Livro de Registros de Sorocaba, e outra em uma carta-testamento deixada no Rio Grande do Sul para seus devotos. E em ambos os documentos constava seu nome acrescido por “solitário eremita”. As pesquisas continuaram no Rio Grande do Sul, no Arquivo Histórico em Porto Alegre. Muitos documentos já tinham sido publicados por Fachel (1996), porém, todos eles serviram para comprovar que João Maria de Agostinho foi um personagem perseguido pelas “elites dominantes” da província e do Brasil. Com auxílio de historiadores,15 cheguei a novos registros, cartas e ofícios policiais e militares a respeito daquele estrangeiro. Cruzando com reportagens de jornais do Rio de Janeiro, foi possível demarcar com maior precisão seu itinerário pelo Rio Grande do Sul e Santa Catarina, entre janeiro de 1848 e maio de 1849, e 12

Essas informações foram dadas pelo médico e senador José Martins da Cruz Jobim, em um discurso no Senado em junho de 1874. Cf. Anais do Senado, fala do conselheiro senador José Martins da Cruz Jobim, 15 de junho de 1874, p. 261, Biblioteca Nacional, Setor de Periódicos, Rio de Janeiro. 13 Carta escrita na cidade de Pelotas, Rio Grande do Sul, pelo jornalista Telêmaco Bouliech, e enviada para o Rio de Janeiro. Uma cópia deste documento está no Arquivo Público de Santa Catarina, em Florianópolis, e foi publicada em anexo na tese de doutorado em Sociologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul por César Hamilton Góes (2007). 14 Frei João Maria de Agostinho foi visto em Buenos Aires no palácio do presidente Juan Manoel Rosas, sendo requisitado por esse para trabalhar como catequizador de índios Charruas. Saiu em missão, mas, meses depois, voltou a Buenos Aires declarando não ter tido sucesso entre os indígenas. Acabou detido a mando do próprio presidente, permanecendo aprisionado por alguns meses e, ao ser solto, afirmou ter ido à Corrientes e dali entrado no Brasil. Cf. Carta do jornalista Telêmaco Bouliech (In: Góes, 2007). 15 Agradeço a José Iran Ribeiro, doutorando pela UFRJ, e Luiz Augusto Farinatti, doutor pela mesma Universidade. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, Jul.-Dez., 2007

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perceber que o monge era um indivíduo dotado de racionalidade, ativo quanto às suas escolhas, mobilizando certos recursos culturais para superar as dificuldades que se apresentavam. Como exemplo disso, posso citar o momento de sua prisão, no dia 17 de outubro de 1848,16 aos pés do Cerro Botucaraí, nas proximidades da vila de Rio Pardo, no interior do Rio Grande do Sul. Os detalhes deste episódio foram narrados, quase 30 anos depois, por um membro da elite política imperial, o médico e senador sul-rio-grandense José Martins da Cruz Jobim. Em discurso proferido no Senado Imperial em junho de 1874, em meio a Questão Religiosa,17 falava a respeito da necessidade de instruir o povo brasileiro dentro das normas da “verdadeira religião” e, como exemplo de “fanatismo”, relembrou um caso ocorrido em 1848 na sua vila natal, a freguesia de Rio Pardo, narrando o momento da prisão de um “estrangeiro” conhecido como “monge João Maria de Agostinho” no Cerro Botucaraí: (...) quando a guarda lá chegou era de noite, e obrigou o monge a descer, e pela manhã, [ainda] de madrugada, o povo, como era de costume, afluiu ao lugar. Reuniram-se em roda do tal monge mais de 3.000 pessoas, e a mim me disse ele [o monge] mesmo que, se tivesse querido que o povo resistisse a sua prisão, não teria ficado um só cabelo na cabeça dos soldados, que o tinham ido prender, mas que ele mesmo aconselhou ao povo que o deixasse partir para aquele martírio, a fim de voltar depois para eles mais santo e mais milagroso. Partiu para Porto Alegre preso (...).18 (grifos meus).

Se tal fato foi lembrado por um membro da elite intelectual e política do Império, é de se acreditar que o episódio também tenha marcado as pessoas de outras categorias sociais, e que lá estavam no dia da prisão do monge. Pelo trecho acima, temos indícios para afirmar que o eremita, já visto como monge santo pelo povo que o seguia, foi encaminhado à categoria de mártir, uma vez que sua prisão representava um sofrimento pelo qual teria que passar para aumentar sua força.19 Deixou-se prender. Estratégia simples, tirada de seu sistema de valores que tinha por base uma cultura religiosa inspirada na vida dos grandes mártires da Igreja, como o próprio Cristo, e que sensibilizou os que presenciaram tal cena. Seus seguidores,

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A data de sua prisão está no Jornal do Comércio, 21 de novembro de 1848, p. 1, Biblioteca Nacional, Setor de Periódicos, edições micro-filmadas, Rio de Janeiro. 17 Questão Religiosa que envolveu políticos, maçons, o Imperador Dom Pedro II e os bispos dom Macedo Costa e dom Vital de Oliveira, entre 1872 e 1875. 18 Anais do Senado, fala do conselheiro senador José Martins da Cruz Jobim, 15 de junho de 1874, p. 261, Biblioteca Nacional, Setor de Periódicos, Rio de Janeiro. 19 O martírio, pelo fato de ser infligido pelas autoridades públicas, que eram, naquele contexto de repressão aos Quilombos, a própria encarnação do mal, apareceu como uma “fórmula” adequada para o monge João Maria de Agostinho: portando-se como vítima, consentiu e abandonou aos “carrascos” o seu corpo para ser “destruído”, e tudo acompanhado por uma multidão de fiéis! Segundo Jacques Gélis (2008, p. 53-54), os cristãos, principalmente os pertencentes às ordens religiosas, procuravam situações onde pudessem sofrer martírio público a fim de serem colocados entre os “eleitos”, reconhecidos como pessoas que partilhavam dos sofrimentos de Cristo. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, Jul.-Dez., 2007

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provavelmente, eram um misto de indignação e esperança, prevalecendo esse último sentimento após algum tempo: realmente passaram a esperar pela volta de seu monge santo. Ao profetizar seu retorno em meio ao martírio, o eremita fez movimentar uma crença existente entre todos cristãos católicos que habitavam o sul do Brasil. Ele não pregava em terreno infértil, antes o contrário. Seu modo de vida, suas palavras e ações, se não entendidas do modo que esperava, germinaram e frutificaram no solo da vasta e complexa cultura religiosa brasileira, de secular formação.20 As histórias do monge foram transmitidas pela tradição oral através dos intermediários de sempre: viajantes, tropeiros, carroceiros e, principalmente, famílias de migrantes em diáspora constante atrás de condições mínimas de sobrevivência. Esses grupos, seguidos por seus descendentes, difundiram os prodígios e a profecia do monge por regiões não percorridas por ele, como o interior de Santa Catarina.21 Poderia me estender mais sobre os resultados da pesquisa empírica, enumerando documentos de arquivos variados que estão auxiliando a investigação,22 mas acredito que está mais do que comprovado de que o trabalho de campo (field-work), com bem fazem os antropólogos, tem mostrado o seu valor. Quero chamar a atenção, agora, para o uso de um recurso importante para a pesquisa: a internet. Ao digitar o nome “João Maria de Agostinho” em qualquer site de busca, surgem centenas de páginas. Seu nome, como dito, vem servindo a inúmeros propósitos, de “Centro Espírita” a homenagens de políticos que estão explorando o potencial turístico que o monge do Contestado carrega, em Santa Catarina e Paraná. Porém, nenhuma novidade encontrei. Ao saber que o italiano peregrino esteve em Buenos Aires, possivelmente entre 1845 e 1847, portanto, depois de ter passado por Sorocaba e antes de conhecer a fama no Rio Grande do Sul e Santa Catarina, digitei em um site de busca o nome Juan Maria de Agostini, supondo ter sido este seu nome castelhano. Quando esperava encontrar alguma informação de sua estada no país vizinho, eis que surgiram sites em inglês, todos mencionando que Juan Maria de Agostini (ou Agostiniani), conhecido por “El Eremita” ou “The Hermit” (dependendo do site),

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São vários os estudiosos da formação do catolicismo brasileiro, porém, não foram muitos que conseguiram perceber a complexidade e diversidade de tal religiosidade. Como exemplo, cito: Bastide (1971); Queiroz (1973); Souza (1986; 1993); Vainfas (1995); Priore (1994); Abreu (1999); Oliveira (2008); Azzi (1993); Hoornaert (1974). 21 Esta afirmação ainda carece de bases empíricas. Contudo, a partir de autores que estudaram o processo de ocupação dos sertões meridionais do Brasil, desde o século XVII até o XIX, concluo que é totalmente procedente acreditar que a crença no monge santo foi sendo transmitida juntamente a todo sistema de valores que acompanhavam essas famílias de migrantes. Sobre a formação social do sul do Brasil me baseio, fundamentalmente, em: Bandeira (1995), Farinatti (1999; 2007), Barroso (2006) e Osório (2006; 2008). 22 Paralelamente às pesquisas nos jornais, dediquei tempo aos documentos presentes no Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro. Também tive acesso a diversos artigos da Revista do IHGB (Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro) referentes a temas relacionados ao meu objeto. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, Jul.-Dez., 2007

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nascido em 1801,23 de família nobre da província de Novara, no Piemonte, Itália, havia habitado cerros e grutas entre 1860 e 1869, na fronteira entre o México e Estados Unidos.24 Nesse lugar, o eremita ergueu cruzeiros que logo viravam centro de devoção, realizou curas variadas, deu bênçãos, andou por várias milhas, alimentou-se de raízes, frutos e o que mais lhe ofertassem (menos carne). Muito se falou e se escreveu sobre o paradeiro do monge após ter saído do Rio de Janeiro, em 1849 ou 1850. O mais provável é que tenha voltado à Sorocaba, mas não permaneceu ali por muito tempo, já que há notícias da presença de um monge nas vilas da Lapa, Castro e Mafra, entre o norte de Santa Catarina e sul do Paraná, dos anos de 1850 a 1860.25 Diz-se ter falecido em 1870 no próprio Morro do Ipanema, em Sorocaba. Contudo, seu corpo jamais foi encontrado. Outros pesquisadores afirmaram que João Maria teria morrido em 1906, na cidade de Araraquara, com 106 anos. Todas são hipóteses sem fundamentação empírica. Depois de ter estado em Sorocaba (2ª vez) e na Lapa, na década de 1850, o eremita deixou o Brasil continuando suas peregrinações pelo continente Americano. Segundo pesquisadores norte-americanos,26 o eremita Juan Maria de Agostini peregrinou e curou diversas pessoas nos estados do Novo México e no Texas, na década de 1860. Morador do “Cerro Tecolote” (mais tarde tal Cerro passou a se chamar “Hermit’s Peak), atraiu centenas que buscavam bênçãos, conselhos e curas, realizando inúmeros prodígios com uma fonte de água localizada em uma gruta (La Cueva) em que também residiu. Somando-se às águas, passou a curar com ervas encontradas na região. Naquele Cerro foi encontrado morto por um grupo de moradores locais, a maior parte ilustres proprietário de terras que eram seus devotos. Seu corpo foi enterrado em um antigo cemitério da cidade de Mesilla, no estado do Novo México, Estados Unidos, e sua lápide continha a seguinte inscrição: “John Mary Agostiniani 23

Alguns colocam a data de nascimento 1799, outros 1800, ou ainda 1801. Acredita-se que o mais correto seja mesmo 1801. 24 Sites que trazem informações sobre o eremita, com detalhes sobre a vida anterior à sua chegada ao Brasil: http://www.washburn.edu/cas/art/cyoho/archive/KStravel/CouncilGrove/index.html, acessado em 30 de agosto de 2008; http://pagesperso-orange.fr/rancho.pancho/Hermit.htm, acessado em 30 de agosto de 2008. 25 Cf. Almeida (1942), Cabral (1960) e Sebastião Paraná (1889). 26 Região de origem deste italiano era a província de Novara, no Piemonte. Consta ter começado seus estudos em colégio franciscano com objetivo de ser padre. Perto de completar 20 anos de idade (provavelmente no ano de 1820) disse ter tido uma visão de Nossa Senhora o aconselhando a sair pelo mundo para pregar as palavras de Deus, e que deveria viver como um eremita. Abandonou a carreira eclesiástica, iniciando a vida de eremita peregrino na própria Europa, nos Pirineus espanhóis. Rumou, em 1837, para a América, vivendo na Venezuela, Peru, Brasil, Argentina, Brasil novamente, Cuba, México e, finalmente, Estados Unidos, nos estados do Texas e Novo México, aonde veio a falecer em 17 de abril de 1869. Por todos os lugares habitou alto de Cerros ou grutas. Cf. Phill T. Archuletta, Sharyl S. Holden (2003); Arthur L. Campa (1994); Elba C. De Baca (198-). Os pesquisadores brasileiros não sabem que o eremita foi aos Estados Unidos após sair do Brasil na década de 1850; por outro lado, os pesquisadores norte-americanos não conhecem os detalhes da estada deste italiano na América do Sul. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, Jul.-Dez., 2007

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– Justiniani, Hermit of the Old and New World. He died the 17th of April, 1869, at 69 years and 49 years a hermit” (Cf. Archuletta, Holden, 2003, p. 285). Após comparar esses e outros dados com o que foi escrito a seu respeito no Brasil, é possível afirmar se tratar do mesmo indivíduo. Seria muita coincidência ter existido dois italianos, nascidos no mesmo ano e região, vivendo de modo similar e usando nomes iguais. E ainda, caso reste alguma dúvida disso, há uma prova que pode ser considerada definitiva: uma fotografia do eremita tirada nos Estados Unidos. Na descrição física do frei João Maria de Agostinho feita pelo escrivão em Sorocaba, em dezembro de 1844, está registrado: “sinais particulares: Aleijado de três dedos na mão esquerda”. O escrivão Procópio Luis Freire escreveu “aleijado”, e isso não quer dizer que lhe faltassem três dedos da mão esquerda como se poderia pensar.

Fonte: http://pagesperso-orange.fr/rancho.pancho/Hermit.htm.

O italiano, com se vê na foto, tinha seus dedos atrofiados, o que deixava sua mão esquerda com pouca mobilidade. Detalhe insignificante? Com certeza não, pois, além de critério de identificação, algo que era sua “marca exclusiva” (tal como as impressões digitais de hoje), sua “deficiência” física pode ter sido um motivo a mais para que o povo se Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, Jul.-Dez., 2007

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identificasse com o monge penitente. Com esses e outros dados, que estão dando novas direções à pesquisa, não deveriam restar dúvidas: o eremita italiano que passou pelo Brasil, convulsionando as províncias meridionais entre 1848 e 1849, continuou sua vida de peregrino e penitente por outros sertões da América.

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VISITAÇÕES ECLESIÁSTICAS EM MARIANA – SÉCULO XVIII Isis Menezes de Rodrigues* Resumo: O ponto central deste trabalho diz respeito a uma questão ainda pouco estudada pelos historiadores do Brasil Colonial. Acreditamos que a Igreja Católica tomou para si o papel de executora de uma política de controle das questões de âmbito familiar. Além do desejo de firmar-se institucionalmente numa terra ainda pouco explorada, ela precisava educar socialmente a população nascente. Desde modo, tal estudo pretende o entendimento deste papel disciplinador proposto pela Igreja. A localidade de Mariana durante parte do século XVIII será abordada neste trabalho como lugar mais visado pelas visitações episcopais. Tais visitas funcionaram como um dos meios de controle encontrados para se disseminar a fé católica. Quando analisamos as devassas, o que mais encontramos são processos que atacam as relações ilícitas entre homens e mulheres, como por exemplo, o concubinato.Percebemos em nossas fontes que as mulheres negras alforriadas são as mais processadas durante as visitações. Este estudo pretende portanto, entender tal projeto religioso a partir de uma pesquisa baseada na micro história, uma vez que reduzindo nossa escala de análise, (quando estudamos a localidade de Mariana), buscamos captar questões mais gerais. Palavras-chave: Visitações Episcopais, Devassas, Concubinatos. Abstract: The central point of this work is a subject that is still little studied by historians of the colonial Brazil. We believe that the Catholic Church took for itself the executor role of one politics of control on familiar field questions. Beyond the desire to firm itself institutionally in a land little explored, it needed to educate socially the rising population.This article aimed the agreement of the discipliner role that the Catholic Church was proposed. In this work, the Episcopal profligates have been chosen as basic source, because we believe that the visitations realized in the state of Minas Gerais ( especially in the city of Mariana ) have worked as one of the main ways of control found to spread the Catholic faith. When we analyzed the profligates, we mainly found processes that attack the illicit relations between men and women, such as the concubinage. A probable explanation is that the Church tried to spread the sacraments, considered prerequisite for a good Christian behavior. The marriage was constantly defended as a basic condition for the formation of a pattern religious family and nurture spot for the creation of descent children. In this work, we intended to show how the procedure was realized when visiting a locality. Such information was obtained through the reading of the First Constitutions of the Archbishopric of Bahia. Saying that the profligates haven’t had the waited success is acceptable up to certain point, even though we can’t affirm that they have been kind in its actions. Keywords: Episcopal Visitations, Profligates, Concubinage.

O ponto central deste trabalho diz respeito a uma questão ainda pouco estudada pelos historiadores do Brasil colonial. Acreditamos que a Igreja Católica tomou para si o papel de *

Mestranda em História- ICH na Universidade Federal de Juiz de Fora. E-mail: [email protected] Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, Jul.-Dez., 2007

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executora de uma política de controle das questões de âmbito familiar. Além do desejo de firmar-se institucionalmente numa terra ainda pouco explorada, ela precisava educar socialmente a população nascente. Deste modo, este artigo conduz tal estudo para o entendimento deste papel disciplinar que a Igreja Católica se propôs. No nosso caso, as devassas episcopais foram escolhidas como fonte básica deste trabalho, por acreditarmos que as visitações realizadas em Minas (e mais especificamente em Mariana) funcionaram como um dos principais meios de controle encontrados para se disseminar a fé católica. As Visitações Inquisitórias também foram outro modo, embora tenham se processado mais freqüentemente em outros lugares do que em Minas Gerais1 Quando analisamos as devassas, o que mais encontramos são processos que atacam as relações ilícitas entre homens e mulheres, como por exemplo o concubinato. Uma provável explicação aponta para o fato de a Igreja tentar disseminar os sacramentos, considerados forma primeira para o seguimento de uma boa conduta cristã. O casamento foi constantemente defendido como condição básica para a formação de uma família seguidora dos preceitos religiosos e seio para a criação de filhos descentes. Por oportuno, pretendemos mostrar como era o procedimento realizado ao se visitar uma localidade. Tais informações foram possíveis de se obter através da leitura das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia.2 Dizer que as devassas não obtiveram o êxito esperado é até certo ponto aceitável, embora não se possa afirmar que elas foram brandas em suas ações. As freqüentes condenações e as pesadas penas imputadas corroboram para a satisfação dessa idéia. Parecenos claro que se comparadas às Inquisições, as devassas podem ser questionadas como uma espécie de “pequena Inquisição”3, devendo ser levado em consideração a sua especificidade muito mais aparente.

1

As Visitações Inquisitoriais são alvo de vários estudos. Elas se processaram de forma veemente na Bahia e Grão- Pará, desde o século XVI. A maior parte dos historiadores de história das religiões ou mesmo de assuntos que norteiam este tema não conseguiram encontrar documentação suficiente para estudar uma relação mais direta entre as visitações inquisitoriais e as visitações eclesiásticas ( estas ficavam sob a alçada do Bispo). No entanto, Luciano Figueiredo propõe que as visitações diocesanas em Minas Gerais cooperaram para a ação do Tribunal da Inquisição, mesmo sendo preservadas da ação direta deste Tribunal. Mais detalhes sobre uma possível relação serão tecidos por nós no decorrer deste trabalho. FIGUEIREDO, Luciano. Barrocas Famílias.Dissertação de mestrado. São Paulo, 1989 2 Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Feitas e Ordenadas pelo D. Sebastião Monteiro da Vide. São Paulo. 1853 3 Segundo FIGUEIREDO, Luciano. Barrocas Famílias.Dissertação de mestrado. Op cit. .as visitações ordinárias podem ser chamadas de ‘pequenas inquisições”, quando analisados os seus aspectos estruturais. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, Jul.-Dez., 2007

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Minas Gerais foi palco de várias visitações eclesiásticas ao longo de todo o século XVIII. Abaixo, montamos tabelas especificando o número de visitas para cada comarca e suas localidades,4 para o período que estamos estudando- 1722 à 1743.

TABELA 1- COMARCA DE VILA RICA Localidade visitada Alto Maranhão Antônio Dias Antônio Pereira Cachoeira Camargos Casa Branca Catas Altas Congonhas do Campo Guarapiranga Inficionado Itabira do Campo Itaiaia Mariana Monte Furquim Ouro Branco Piranga São Bartolomeu São Caetano São José da Barra Longa São Sebastião Sumidouro Vila Rica

Número de visitas entre 1722 e 1743 0 3 5 6 5 2 6 5 6 4 3 6 9 5 6 0 4 5 1 3 6 7

TABELA 2- COMARCA DO RIO DAS MORTES Localidade Visitada Ajuruoca Baependi Borda do Campo Bonfim Brumado Companhia do Rio Verde Carandaí Carancas Carijós Itaverava Lavras Paraopeba Piedade Pouso Alto Prados Redondo Rio Grande Rio das Mortes São João Del Rei São José Del Rei

Número de visitas entre 1722 e 1743 2 2 6 0 0 1 0 2 6 5 0 0 0 1 5 0 1 0 4 6

4

Esses dados foram coletados a partir da pesquisa efetuada em FIGUEIREDO, Luciano. Segredos de Mariana: pesquisando a Inquisição mineiras. Acervo Rio de Janeiro. V.2, n.2. julho- dezembro. 1987. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, Jul.-Dez., 2007

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Localidade Visitada S. Pedro e S. Paulo da Paraíba Serranos Suasuí

Número de visitas entre 1722 e 1743 2 0 0

TABELA 3- COMARCA DO RIO DAS VELHAS Localidades Visitadas Andrequicê Caeté Cocais Congonhas do Sabará Curral Del Rei Mateus Leme Morro Grande Omça Pitangui Raposos Rio Acima Rio Alonso Rio das Pedras Rio das Velhas Roça Grande Sabará Santa Bárbara Santa Luzia S. Antônio do Bom Retiro S. Antônio do Mato Dentro S. Ant. da Mouraria do Arraial do Velho São José do Alonso Grande São Miguel do Mato Dentro São Miguel da Piracicaba

Número de visitas entre 1722 e 1743 1 4 0 2 1 0 5 0 2 3 1 0 3 1 2 2 5 0 0 1 2 0 3 7

TABELA 4- COMARCA DO SERRO FRIO Localidade Visitada Conceição do Mato Dentro Corgos Gouveia Igreja Matriz Itambé Rio Preto S. Antônio do Rio Abaixo S. Gonçalo do Rio Abaixo Tapanhuacanga Tapera Tejuco Vila do Príncipe COMARCA Rio das Mortes Vila Rica Serro Frio Rio das Velhas TOTAL DE VISITAS

Número de Visitas entre 1722 e 1743 3 0 0 0 0 0 0 0 0 0 1 1 NÚMERO DE VISTITAS 43 97 5 45 190

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PORCENTAGEM 22,6% 51% 2,6% 23,6% 100%

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Vale destacar que a Comarca de Vila Rica foi a que mais recebeu visitas ao longo do período destacado para esta pesquisa. Foram cerca de 97 visitas para todas as localidades mencionadas no quadro acima. Destas, 38 foram visitas de Testemunha e 59 de Culpa. A vila de Ribeirão do Carmo recebeu dentre todas as localidades desta Comarca o maior número de visitas: 9, destas, 4 foram de testemunha e 5 de culpa. Enquanto as Comarcas do Rio das Mortes e Rio das Velhas receberam respectivamente 43 e 45 visitas entre os anos de 1722 a 1743. Interessante observar que a Comarca de Serro frio recebeu um total de apenas 5 visitas para este mesmo período. De todas as localidades pertencentes ás quatro Comarcas de Minas Gerais, a Vila Ribeirão do Carmo, depois cidade de Mariana foi a que mais recebeu visitações. Podemos relacionar tal questão aos pressupostos portugueses, Ronaldo Vainfas aponta que a colonização do Brasil: Inscreve-se muito mais nesse processo de expansão marítima e comercial européia do que nas transformações que levariam, no Velho Mundo, ao individualismo e ao familiarismo de tipo burguês. Motivava-a, enriquecimento da metrópole, não obstante a cruzada espiritual levada a cabo pelos agentes eclesiásticos da colonização à frente dos quais os jesuítas5

Assim, o período de Padroado significou a vigência de uma difusão política que tem a ver com um significado fundamental do cidadão- o de crer e descrer6. E a vila de Ribeirão do Carmo, por toda a sua potencialidade, inscreve-se nesse projeto. Num lugar em que se verificou um povoamento tão acelerado e desorganizado- como fruto pela busca da riquezaera preciso, mais que tudo, um meio capaz de criar raízes sólidas para o fortalecimento tanto do Estado quanto da Igreja em terras recém povoadas. Portanto, as constantes visitações eclesiásticas foram, para nós, o meio imediato encontrado para esse fim.

A educação

espiritual dos colonos foi uma das maneiras mais utilizadas pela Igreja católica nesta empreitada. Assim, para este estudo, destacamos as visitações diocesanas em Mariana como um instrumento de controle muito utilizado nos setecentos. Era através das visitações diocesanas que a Igreja seria capaz de desterrar os “vícios , erros, escândalos e abusos”, podendo assim, se fazer “muitos serviços a Deus em grande bem espiritual dos súditos”.7 A partir de uma primeira visita e da constatação de que a população de uma dada localidade vivia erroneamente, procedia-se a uma devassa, a fim de conter a heresia: As devassas, a que o direito chamou de inquirições, são uma informação do delito, feita por autoridade de Juiz ex- ofício. Foram ordenadas para que não havendo acusador, não ficasse 5

VAINFAS, Ronaldo. Moralidades Brasílicas. Deleites sexuais e linguagem erótica na sociedade escravista. In: Souza, Laura de Mello e. História da Vida Privada no Brasil. São Paulo. Companhia das Letras. ( p.) 6 DINES, Alberto. Os 500 anos e os 242 do Inquisição. In: A Inquisição em Minas Gerais no século XVIII. P. 9 7 Regimento do Auditório. In: Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Op cit. p. 87 Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, Jul.-Dez., 2007

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os delitos impunidos: e estas, ou são gerais, ou são especiais. As gerais, ou o são totalmente, como aquelas, em que se inquire geralmente dos crimes, excessos e pecados, para se emendarem, e castigarem, quais são as que os prelados fizeram quando visitam as suas dioceses, ou gerais quanto às pessoas, e especiais, quanto aos crimes, e delitos, como sucede, quando consta ser cometido algum sacrilégio, e não se sabe quem o cometeu. As inquirições, ou devassas especiais são quando se inquire especialmente assim quanto ao delito, especificando pessoas certas, e certo crime. As gerais se podem fazer ainda que não haja infâmia, ou indício contra pessoa alguma, por quanto se fazem para se saber se há culpas ou pecados, que se devam emendar ou castigar, ou coisas, que devam reformar.8

Para este estudo, selecionou-se (nos termos das Constituições) as devassas especiais, ou seja, nesses processos podemos observar a atitude da Igreja, a fim de conter os excessos de pessoas particulares. Nomes, cor, estado civil e profissão muitas vezes são citados nos processos. Estas não são gerais porque visam conter uma ação em particular Ressaltamos porém, que não é demais afirmar que as Constituições Primeiras expressam as formalidades impostas para o bom funcionamento da Igreja. Acreditamos que o real desenrolar das visitações não seguiram a risca as regulamentações, ou seja, nem todas as disposições propostas foram cumpridas. A partir da leitura das devassas poderemos entender como funcionou esta face da Igreja, que insistimos, a nosso ver, buscou moralizar a população. Além desse objetivo, destacamos a grande necessidade de ordenação do cristianismo e busca por espaço, para garantir a institucionalização do poder sagrado no Brasil. Como por exemplo, as questões relacionadas às culpas atribuídas no ato das devassas, servem de explicação à afirmação que fizemos acima. Como já observado antes, ao crime de concubinato era cobrado, de acordo com as Constituições uma quantia mínima de 5 mil reis. Porém, ao observarmos as devassas, para o 1º lapso não era pago mais que 3 mil reis ou 2,5 oitavas de ouro para o meirinho da visita. A preta solteira Joana Francisca foi notificada em 26 de janeiro de 1730 para a satisfação da culpa que lhe resultou da devassa a qual o dito Senhor admoestou em primeiro lapso na forma do Sagrado Concílio Tridentino para que se aparte da estrita comunicação que tem com Antônio Rebello, não converse mais com elle em público nem entre mais na casa delle, nem o consinta na sua, nam lhe mande dádivas, presentes, recados e faça de todo cessar o escândalo (sic) com pena de sofrer perigo a sua salvação. Foi condenada a 2 oitavas e meia de ouro, que pagou9.

Ou seja, mesmo os visitadores tiveram que desenvolver estratégias diante do encontro com uma população heterogênea como era o caso da de mariana, pessoas de todas as cores e condição social. Como poderemos observar que muitos dos processados deixaram de pagar a

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Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia.Op cit. p. 362. Devassas de Culpa, 1730. p.3 Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, Jul.-Dez., 2007

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pena mínima por serem “mui pobres e miseráveis”, enquanto outros pagaram mais que o prescrito. Enfim, com as devassas poderemos entender qual a distancia presente entre a idealização e a concretização do projeto religioso. Assim, o princípio básico da devassa estava ancorado na coleta dos depoimentos, por parte do inquiridor, de pessoas consideradas respeitosas e seguidoras dos bons costumes. Inicialmente, o visitador chegava à vila, instalava-se em local respeitável, que apresentasse conforto e segurança. Depois, era feita a notificação das testemunhas, que eram obrigadas a comparecerem à mesa para a delação dos culpados. Na devassa de testemunho do ano de 1723, o visitador Henrique Maria, chama para as inquirições os tais moradores: Aos nove do mês de janeiro de mil setecentos e vinte e três anos nesta freguesia de N.Srª da Conceição da Vila do Ribeirão do Carmo (sic) visita o Reverendo visitador o cônego (sic) Henrique Marª de (sic) (sic) destas os cerimoniais procissão de defuntos visitando o Sacrário e altares santos, pia Batismal, acompanhado com todos os reverendos, sacerdotes, clérigos da freguesia e confrarias das Irmandades da dita Matriz e mandou logo o reverendo visitador notificar testemunhas, que pelo reverendo visitador vigário foram nomeadas para virem jurar nos interrogatórios (sic) da visita de que mando publicar eu edital na forma das constituições de que tudo foi este termo eu (sic) Miguel Gomes Secretário da visita que o escrevi10.

O edital acima mencionado era publicado antes de cada visita. Luciano Figueiredo destaca que não parecia haver surpresa na chegada dos visitadores nas localidades, pelo menos assim rezava a documentação. Herança das tradicionais visitas episcopais européias, a chegada do tribunal era antecipada por um edital, em que o bispo anunciava as normas, intenção e a necessidade de colaboração com os visitadores.11

Ou seja, cada visita era prenunciada por um rigoroso ritual. Uma espécie de preparação para a comunidade. Isso marcava o caráter severo e rigoroso da visita, deixando antes mesmo da chegada dos visitadores o medo. Este funcionava como um instrumento capaz de fazer com que os delatores chamados à mesa falassem tudo o que sabiam. Podemos supor que muitos mentiram na hora de seus depoimentos, tanto quanto aos crimes, quanto ao numero de “errados”. Quanto mais pessoas eles delatassem, mais credibilidade poderiam ter junto à mesa. E desta forma os visitadores “avançavam do mundo exterior, do tipo de uma ordem hierárquica, para o cotidiano de uma comunidade”12. Através deste rito se vai descobrir e punir os criminosos.

10

Devassas de Testemunha. 1723. p. 42 FIGUEIREDO, Luciano. Barrocas Famílias. Op cit. p. 50 12 FIGUEIREDO, Luciano. Barrocas Famílias. Ibdem .p. 51 11

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A convocação das testemunhas acontecia de duas formas, uma através de apresentação voluntária, descrita no edital, para a resposta dos interrogatórios. A segunda forma- e a que realmente acontecia- era a chamada nominal de alguns moradores, considerados idôneos perante a Igreja. Assim, na vila do Ribeirão do Carmo, em 9 de janeiro de 1723, o reverendo visitador escreveu: As ditas testemunhas que foram notificados para virem jurar na devassa da visita cujos nomes e cognomes pátrias e todas as vidas e costumes e o seguinte de que fez este termo eu , Miguel Gomes de Araújo secretário da visita que o escrevi.13

Era obrigatório, segundo as regulamentações das visitações que cada depoente falasse a verdade, e não a temesse: Encomendamos muito, e aos mais Ministros que quando fizerem inquirições, as examinem com cuidado, excluindo aquelas que notoriamente forem inábeis para testemunharem, exceto nos casos privilegiados em direito, admoestando sempre que sem afeição, ódio, respeito ou temor digam tudo o que souberem na verdade, e nos testemunhos que tirarem perguntarão sempre a razão que tem de saberem o que testemunham, se é de vista, certa sabedoria, ou fama, ou por indícios, e as circunstancias do tempo, lugar, e qualidade dos indícios e mais causas necessárias para se saber a verdade.14

Enfim, a primeira visita episcopal buscava colher depoimentos e averiguar se as denúncias recebidas realmente procediam. Nesse caso, na teoria, a devassa serviria para coletar várias denúncias contra uma só pessoa, ou seja, atestar que o referido delito era verídico. Contudo, o que observamos é que de fato, várias pessoas, em especial mulheres, ao serem delatadas uma só vez e por uma só pessoa, foram alvo de punição. Desta forma, a segunda visita à mesma localidade possuía a finalidade de exterminar os erros cometidos a partir de punições, que em sua grande maioria significava o pagamento de uma taxa em moeda ou ouro à Igreja. Assim, toda vez que nos referirmos à primeira visita, usaremos o termo devassa de testemunha e à segunda visita, devassa de culpa. Sobre as ditas testemunhas citadas acima, reza as Constituições que “toda a pessoa poderá ser geralmente testemunha”15 Além disso, toda testemunha chamada a depor era obrigada a fazê-lo: Quando algumas pessoas nomeadas por testemunha não quiserem testemunhar, o vigário geral, ou Juiz da casa as compelirá a que testemunham com censuras, e mais penas, que sua desobediência merecer, ainda que seja prendendo-as sendo pessoas que caibam prisão.

13

Devassas de testemunho. 1723. p.42 Constituições do Arcebispado da Bahia. Op cit. p. 363. 15 Constituições do Arcebispado da Bahia. Ibidem. P. 49. 14

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Como já destacamos, as devassas mantêm uma característica intrínseca, que baseada no medo da população em geral, procura atingir o objetivo de conter a heresia em terras recém povoadas. Contudo, com a afirmativa presente na Constituição de que “toda pessoa poderá ser testemunha” não podemos concordar. Observamos que em 100% dos casos, somente os homens eram chamados à mesa para contarem o que sabiam. Talvez porque, numa sociedade extremamente misógena, eles representavam a sabedoria e discrição. As mulheres, ao contrário, eram seres que precisariam ser guiados. Podemos observar quando analisamos as devassas, que muitas vezes elas eram punidas simplesmente por falarem demais da vida alheia. Não podemos deixar de registrar o fato de que em 100% dos casos de devassas de testemunha analisados, os homens eram os mais apontados pelos delatores como a maioria dos criminosos. Curioso observar que a relação se inverte quando lemos as devassas de culpa. Ou seja, a maioria masculina apontada não era a maioria a ser punida. Podemos observar isso no quadro abaixo, em que alguns casos foram selecionados:

DEPOENTE João Machado Leonardo Manoel Gomes Batalha Manoel Francisco Pereira Domingos Peixoto de Azevedo Padre Antônio Salomé da Costa Capitão Antônio Pereira Machado Donato Teixeira Morais Gonçalo Padre Francisco Xavier

TOTAL DE HOMENS DELATADOS 2

TOTAL MULHERES DELATADAS 1

TOTAL PESSOAS DELATADAS 3

28 57

0 5

28 62

7

0

7

71

2

73

2

0

2

32

0

32

2 62

0 3

2 4

O Padre Antônio Salomé da Costa16 no total de 73 pessoas indicadas por ele, somente 2 eram mulheres. Outro padre, Francisco Xavier17 de 29 anos, do qual falaremos adiante, delatou 65 pessoas, destas, somente 3 seriam mulheres. Ainda cabe a observação de que também padres foram alvo de denúncias, tanto por outros padres, quanto por pessoas comuns. Cerca de 10% dos crimes de concubinato encontrados foram cometidos por padres. Enfim, nos intriga muito o porquê a maioria dos delatados eram homens e ao contrário, a maioria dos 16 17

Ibdem, p. 46 Ibdem, p. 53 Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, Jul.-Dez., 2007

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punidos eram mulheres? A única explicação possível até agora para nós aceita o fato de que as mulheres foram justamente o maior alvo do projeto de normatização social implementado pela Igreja. Uma vez controlados os seus desvios, estaria a sociedade mais capaz de seguir o curso pretendido pela Igreja. Com uma população educada e crente em Deus e nos princípios católicos, seria mais fácil a transplantação e enraizamento da Igreja em solo brasileiro. A conquista de adeptos não poderia ser feita pela simples aceitação da existência de uma Igreja, mas sim pela fé, pela aceitação plena da doutrina cristã. A única forma capaz de atingir todos esses objetivos era educar a mente e os corpos daquela população tão heterogênea como era o caso da população de Mariana. Quando analisamos o perfil das “testemunhas juradas”, podemos observar que a grande maioria eram pessoas que pertenciam a setores intermediários da sociedade, soldados, pintores, mineiros. Luciano Figueiredo destaca situação parecida quando estuda o funcionamento da visitação em minas gerais no século XVIII. Para ele, há intenção da mesa ao chamar pessoas mais simples para depor: São pessoas que participam do murmurinho das ruas, um grupo situado numa posição social que ainda não tenha se afastado de uma integração com a maioria da comunidade, mas que também com ela guarde grande diferença (...) os denunciantes são escolhidos entre aqueles que têm algo a dizer, aqueles cuja vida cotidiana os torne capazes de conviver com a maioria e dela receber as informações que circulam tão férteis no dia a dia dos meios urbanos. 18

Assim, dos depoentes analisados, foram encontrados profissionais como pintor, furriel, alfaiate, cabo de esquadra, aferidor, carapina, ferreiro, sapateiro. Como Figueiredo já destacou em sua pesquisa, também pudemos perceber que a maioria pertencia a setores intermediários, profissões que permitiam um contato maior com as pessoas mais empobrecidas. Porém, também encontramos capitão, sargento mor, tenente general, no entanto, em número expressivamente menor. Com relação à idade das pessoas chamadas à mesa para depor, observamos uma grande variação. Foram encontrados desde jovens entre 20 a 30 anos, até pessoas mais idosas, entre 80 a 90 anos. João Machado Leonardo é depoente, morador de Nossa Senhora da Conceição do Carmo, “disse ser de vinte e quatro para vinte e cinco anos testemunha jurada”19. O capitão Antônio Pereira Machado apontou somente duas pessoas (homens) em seu depoimento. “Natural da Vila do Arcebispado de Braga de idade que deve ser de oitenta e quatro anos, pouco mais ou menos”

20

. Não encontramos relação alguma entre a faixa de

18

FIGUEIREDO, Luciano. Barrocas Famílias. Op cit. P. 53-54 Devassa de Testemunha p. 42 20 Ibdem, p. 49 19

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idade dos depoentes e o número de pessoas indicadas na hora do depoimento, ou seja, pessoas mais novas, relativamente com menos experiência e conhecimento, apontava muitos desviantes, enquanto as mais velhas podiam também apontar poucas pessoas, como foi o caso do capitão acima citado. Por exemplo, o jovem padre Francisco Xavier, “sacerdote do cabido de São Pedro, natural da cidade de Pernambuco e requerente nesta vila, de idade que diz ser de vinte e nove anos”21, testemunhou contra 65 pessoas. Neste caso, porém, podemos entender

que por ser Francisco um padre, teria ele que dar o exemplo à comunidade,

apontando todos os desvios de que ele tinha conhecimento. Muitos destes padres seguiriam as predisposições das Constituições do arcebispado e delataram crimes mesmo sobre segredo de confissão. O estado civil dos depoentes também foi pesquisado, procurou-se sempre entender quais fatores determinavam a escolha daqueles que iriam ser chamados à mesa para dizerem o que sabiam sobre os desvios espirituais ou carnais da população de Mariana. Tanto os homens solteiros quanto os casados foram chamados. Não observamos porém, nenhum caso de homem separado. Enfim, o que realmente determinava a chamada dos depoentes era a reputação deles. Apesar de muitas vezes serem eles mesmos citados por outros em seus depoimentos. Enfim, como abordamos anteriormente, a fidedignidade dos depoimentos e a boa conduta dos homens chamados à mesa, sempre foram objetivos buscados pelos visitadores no transcorrer de toda visita em solo mineiro. Porém, o que podemos destacar é que em 27% dos casos analisados, os depoentes também são alvo de denuncias por parte de outros. Cabe indagar o porquê da Igreja manter o depoimento de homens que foram chamados por ela à mesa, mas também foram delatados como pessoas que cometeram crimes? Será que esses homens eram realmente dignos de julgarem outros? A partir dessas questões, várias outras podem ser correlacionadas. A autenticidade dos depoimentos, por exemplo, deveria ser levada em conta pelos visitadores. Uma vez que pessoas acusavam-se entre si, podemos entender que questões pessoais, antipatias, problemas do dia a dia poderiam ter representatividade na hora do depoimento, ou seja, poderiam servir como uma espécie de “acerto de contas”entre aqueles homens. Caso representativo desta questão é o de Manoel Gomes Batalha e o do Padre Francisco Xavier. O primeiro é “morador nestas minas, freguesia de Conceição da vila do Carmo, homem solteiro que diz ter trinta e nove anos para quarenta,”22 testemunha jurada aos 21 22

Idem Devassas de testemunho. 1723. P, 42 Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, Jul.-Dez., 2007

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santos evangelhos, “pôs a sua mão direita em um livro que prometeu dizer a verdade de tudo o que lhe fosse perguntado”. E perguntado pelos visitadores a partir da leitura dos itens do interrogatório da visita,23 disse que 28 pessoas cometiam naquela vila do Ribeirão do Carmo atos pecaminosos. Observamos que todos os 28 casos eram de homens acusados por ele, sendo um o Padre Miguel Gomes de Araújo, vigário da Igreja do Carmo, “andava amancebado com uma escrava preta da qual tem filhos e sabe ele testemunha, por ser público e notório”24. Foi justamente Manoel Gomes Batalha acusado por mais seis depoentes. O padre Antônio Salomé da Costa, chamado a prestar seu depoimento no dia 9 de janeiro do ano de 1723, na vila do Ribeirão do Carmo- Mariana, disse que o dito Manoel Gomes Batalha é casado com Asença Pereira Dutra e ao mesmo tempo concubinado com “uma sua cativa”. Fato este também observado no depoimento do Padre Francisco Xavier, Manoel da Veiga, Manoel Francisco Pereira. Para além do crime de concubinato, Manoel Gomes batalha também é citado de ser homem “público e escandaloso em matéria de beber vinho”25 O segundo homem, o padre Francisco Xavier é sacerdote do cabido de São Pedro, natural da cidade de Pernambuco e requerente nesta Vila do Rribeirão do Carmo, de 29 anos. Ele acusou no seu depoimento 65 pessoas, destas, somente 3 eram mulheres e 4 eram padres. É curioso observar que o número de padres processados era ainda maior que o de mulheres. O padre Francisco Xavier, teoricamente impossível de ser suspeito de má conduta, foi chamado à mesa para depor, e como vimos, delatou o Manoel Gomes Batalha pelo crime de concubinato. No entanto, o tal padre também foi delatado pelo mesmo homem que ele citou

23

Antes de toda visita eclesiástica, era publicado um “edital de visita”. Este convocava todos aqueles que “souberem de certa sabedoria, ou fama pública de alguns pecados públicos e escandalosos, e nos casos especiais que abaixo se declaram”. Estes casos especiais representariam os itens do interrogatório da visita. Na hora de cada depoimento, era lido 40 itens que continham crimes considerados heréticos pela Igreja. Entre eles, os que mais encontramos nas denuncias: “Item 4 do interrogatório: se sabem que alguma pessoa seja feiticeira faça feitiços, ou use deles para querer bem ou mal, ou para legar, ou deslegar, para saber coisas secretas, ou adivinhar, ou para outro qualquer efeito, ou invoque os demônios, ou com eles tenha pacto expresso, ou tácito, ainda que não seja infamada. Item 5 do interrogatório: se alguma pessoa adivinha, ou benze, ou cura por palavras, ou bênçãos sem nossa licença... Item 12 do interrogatório: se alguma pessoa dá alcouce em sua casa, consentindo, ou induzindo que nela se dêem mulheres a homens, e disso for infamada. Item 14 do interrogatório: se alguma pessoa usa de alcovitar mulheres para homens, e disso seja infamada. Item 16 do interrogatório: se alguma pessoa cometeu o crime de incesto, tendo ajuntamento com alguma parenta por consangüinidade, ou afinidade, comadre com compadre, afilhado com afilhada... Item 17 do interrogatório. Se há alguma pessoa eclesiástica, casada, ou solteira, que estejam amancebados com escândalo, e disso haja fama na Freguesia, lugar ou maior parte da vizinhança”Regimento do Auditório. In: Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia . Op cit. P. 89. 24 Devassas de testemunho. Ibdem. p, 43 25 Ibdem. P, 44 Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, Jul.-Dez., 2007

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na hora de seu depoimento. Ou seja, segundo Manoel Gomes, era público e notório que o padre “andava de portas adentro com uma escrava sua”26 apesar disso, os depoimentos de ambos os homens, Manoel e Francisco foram mantidos nos autos dos processos contra todos aqueles citados por eles. No quadro abaixo, selecionamos, dentre estes dois, casos parecidos, ou seja, delatores que também foram delatados

DEPOENTE Manoel Francisco Pereira Padre Francisco Xavier

Manoel Gomes Batalha

DELATADO POR Padre Antonio Salomé da Costa Manoel Gomes Batalha; Padre Antônio Salomé da Costa;Donato TeixeiraMorais; Alberto; Manoel da Veiga Manoel Francisco Pereira; Padre Antônio Salomé da Costa; Padre Francisco Xavier; Manoel da Veiga

CRIME COMETIDO Concubinato Concubinato

Concubinato

A partir de agora propomos analisar como o sacramento do casamento foi difundido pela Igreja como forma de conter os excessos carnais da população, bem como para educar especialmente as mulheres para serem as bases de uma família cristã.

O casamento como meio para conter os excessos carnais

Faz-se agora importante e necessária uma análise mais detida sobre a significação dos sacramentos religiosos. No nosso caso, estudaremos o sacramento do casamento, para podermos entender porque as relações ilícitas se configuraram um dos maiores crimes com persistente reincidência no seio da sociedade marianense do século XVIII. Como veremos, as visitações eclesiásticas condenaram cerca de 80%

a 90% da população pelo crime de

concubinato, contando homens e mulheres. As penas atribuídas, no entanto, se analisadas com bastante cuidado, apresentam algumas diferenças. De acordo com o Livro I das Constituições: Os sacramentos da Santa Madre Igreja, bem como a Fé Católica nos ensina, são sete, convém a saber: Batismo, Confirmação., Eucaristia, Penitencia, Extemaunção, Ordem e Matrimonio. Todos sem duvida causam graça nos que o recebem dignamente, e não põem impedimento a ela, a qual a graça por excelência se chama pousa sagrada, e dom sagrado pois nos santifica com Deus.27 26 27

Ibdem. P, 42 Ibdem, p. 10-11 Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, Jul.-Dez., 2007

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O casamento tornou-se uma boa forma encontra capaz de controlar os excessos do povo mineiro, não só pela Igreja, mas também pelo Estado. O casal que se mantinha obediente e seguia os preceitos deste sacramento deveria servir de exemplo àqueles que contraditoriamente insistiam em viver na desordem, alimentando as pecaminosas relações ilícitas, como o concubinato. Aos olhos do Estado, o casamento era um freio aos abusos sexuais, bem como uma forma de impulsionar o trabalho do pai, que quisesse garantir um próspero futuro à sua família. Neste sentido, os homens casados renderiam muito mais lucros ao Estado que os solteiros. O seguinte fragmento da carta de 19 de abril de 1722 que Dom Lourenço de Almeida enviou à Vossa Majestade expressa muito bem tal interesse: Senhor, Foi Vossa Majestade servido pela provisão de 22 de março do ano passado expedida pelo seu Conselho do Ultramar mandar-me que procurasse com toda a diligencia com parte destes povos fossem casando porque assim se estabelecia melhor esta conquista havendo pessoas casadas, que fossem tomando amor à terra por terem nela mulher e filhos (...)28

É fácil perceber como o casamento era visto como um mecanismo capaz de ajudar tanto o Estado quanto a Igreja na institucionalização de seus poderes. A disciplina espiritual tornou-se justificativa para esta empreitada. Como as Constituições Primeiras destacam, o matrimônio era um contrato com vínculo perpétuo e indissolúvel, no qual homem e mulher se entregariam um ao outro, representando a união que há entre o Senhor e a Igreja. O matrimônio contém uma matéria e uma forma. A primeira relaciona-se ao “domínio dos corpos que mutuamente fazem aos casado, quando se recebem” 29. A segunda refere-se às “palavras, ou sinais do consentimento, enquanto significavam a mútua aceitação”30. O matrimônio foi ordenado, de acordo com os preceitos divinos, como alude as Constituições para três fins, que neles mesmos se encerram: O primeiro é o da propagação humana, ordenado para o culto e a honra de Deos. O segundo é a fé, e a lealdade, que os casados devem guardar mutuamente. O terceiro é o da inseparabilidade dos mesmos casados, significativa da união de Cristo Senhor nosso com a Igreja Católica. Além destes fins é também remédio da consciência.31

28

RAPM. Ano XXXI, 1980. p. 111 Ibdem p. 107 30 Idem 31 Idem 29

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Além disso, os contraentes, ao receberem o sacramento devem estar em estado de graça, “porque se o receberem em pecado, pecam mortalmente”32. Aos visitadores era recomendado que tivessem particular atenção ao inquirir pessoas que desrespeitassem o sagrado matrimônio. Deveriam estar atentos se casais que não contraíram ainda o dito sacramento, coabitavam em mesma casa (concubinato de “portas adentro”) ou conversavam a sós em uma casa, e ainda se existiam crimes como incesto, por exemplo: Exortamos, e mandamos aos esposos de futuro, que, antes de serem recebidos em face da Igreja, não coabitem com suas esposas vivendo, ou conversando a sós em uma casa, nem tenham cópula entre si: e fazendo o contrário pagará cada um sendo nobre pela primeira vez dez mil reis, e sendo de menos qualidade cinco mil reis para o Meirinho, e acusador: e sendo parentes haverão as mais penas de incesto, segundo a prova, e escândalo, que houver. E encarregamos a seus pais, e mais não os consintam estar de portas adentro sob pena de um marco de prata. E os nossos Visitadores terão cuidado particular de inquirirem, se os cohabitantes tem delinqüido contra o que aqui ordenamos: e o mesmo farão os mais ministros nossos para se proceder contra os culpados33

Como podemos perceber ao analisar as devassas episcopais, o sagrado sacramento do casamento foi um dos maiores propósitos defendidos pela Igreja Católica do século XVIII. O insistente combate ao concubinato é prova disso. As Constituições estão fortemente marcadas por um discurso misógino. Podemos observá-lo em várias passagens dos livros. Ainda abordando questões relativas ao matrimônio, o título LXIV do livro primeiro trata da idade e da capacidade que se requer nos que houverem de contrair matrimônio: O varão para poder contrair Matrimônio, deve ter quatorze anos completos, e a fêmea doze anos também completos, salvo quando antes da dita idade constar que tem descrição e disposição bastante, que supra a falta daquela34

Neste caso, o único quesito que deveria ser cumprido pelos Párocos era a exigência de uma licença por escrito do Arcebispo ou de um Provisor, para que o varão pudesse desposar a “fêmea” com idade inferior a 12 anos. Ou seja, com essa licença qualquer criança poderia contrair matrimônio. A Igreja procurou utilizar-se de métodos como as “denunciações” para manter o controle sobre a população. Aqueles que pretendiam se casar, antes, deveriam avisar ao seu Pároco; este leria durante três domingos ou três dias santos seguidos as “denunciações”. Elas deveriam seguir tal modelo: 32

Idem Ibdem, p. 109 34 ibdem, p 110 33

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Quer casar N. filho de N, e de N. naturais de tal terra, moradores de parte, Freguesia de N. com N. filha de N. e N. naturais de tal terra, moradores de tal parte, Freguesia de N, se alguém souber que há impedimento, pelo qual não possa haver efeito o Matrimonio, lhe mandamos em virtude de obediência, e sob pena de excomunhão maior o diga, e descubra durante o tempo da denunciação, ou quanto os contraentes se não recebem, e sob a mesma pena não porão impedimento algum ao dito matrimonio maliciosamente

O objetivo era descobrir, através de denúncia de outrem se existia algum impedimento ao casamento. Por exemplo, muitos bígamos foram descobertos através destas “denunciações”. Também pessoas que possuíam concubinos, “de portas adentro” ou de “portas afora”35 foram desmascaradas pela população durante esse período e impedidos de se casarem. Essas pessoas já estariam debaixo dos olhos religiosos e do povo e com certeza endossaram o rol de culpados durante a época das visitações diocesanas. Nos setecentos aquele que não se pronunciasse sobre os impedimentos de uma união estava sujeito à excomunhão e conseqüentemente ao desprezo da população, além de também ser investigado pelos visitadores, pois era visto como alguém que estava contrariando os preceitos morais da Igreja. Enfim, ao nosso ver, as “denunciações” serviram como um método que baseado no medo, buscou descobrir os desvios e condutas dignos de punição” Era proibida a celebração de um matrimônio no dia em que se fizesse a última “denunciação”. Tanto párocos, quanto testemunhas que se achassem presentes estariam sujeitos a penas: E as testemunhas que sabendo-o, e maliciosamente se acharem presentes, e as terceiras pessoas, que constrangerem ao Pároco, ou maliciosamente o chamarem para esse efeito, serão condenadas em dois anos de degredo, e na pena pecuniária, que parecer conforme a qualidade das pessoas. E o Pároco que sabendo-o se achar presente ao tal matrimonio, será preso, e do aljube pagará cinqüenta cruzados e além disso será suspenso pelo tempo que nos parecer 36

Aqueles de “maior qualidade” (ricos) seriam castigados ao pagamento de 100 cruzados e os de ‘menor qualidade” ( pobres) a 50 cruzados. Enfim, era expressamente obrigatório a toda pessoa que soubesse ou “por qualquer via tiver notícia de algum impedimento”, denunciá-lo ao Vigário Geral, mesmo que a prova não seja de “fama publica”, ou o saibam “debaixo de segredo natural” (confissão) Para o bem da informação dos súditos as Constituições Primeiras do Arcebispado destacam 14 itens relativos aos impedimentos de um matrimônio: 35

Estas expressões são freqüentemente encontradas nas devassas episcopais. Elas referem-se ao fato de se o casal vivia sob relação publica dentro ou fora da mesma casa. O que vale a pena destacar é que as penas tanto a um quanto a outro tipo de concubinato era a mesma, ou seja: 2,5 oitavas de ouro ou 3 mil reis para o primeiro lapso, 5 oitavas ou 6 mil reis para o segundo lapso. 36 Constituições Primeiras do arcebispado da Bahia. Op cit. p. 115. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, Jul.-Dez., 2007

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1- Erro da pessoa: se um contraente quer receber a outro, pensando que é uma pessoa e é outra diferente. 2- Condição: se algum contraente é cativo e o outro não sabe. 3- Voto: se for solene, feito na profissão, que se faz em religião aprovada 4- Coguação: se os contraentes são parentes por consangüinidade dentro no quarto grau. 5- Crime: se um contraente maquinou a morte da mulher , ou marido com quem era casado afim de se casar com outra pessoa. 6- Disparidade de religião: nenhum fiem pode contrair matrimônio com pessoa não fiel e contraindo-o é nulo ou de nenhum efeito. 7- Força a medo: quando os contraentes ou algum deles for constrangido a casar por medo. 8- Ordem: entende-se sagrada ainda que seja somente de subdiácono. 9- Ligame: se algum dos contraentes é casado por palavras de presente com outra mulher ou marido, ainda que o matrimônio não seja consumado, vivendo o tal marido ou mulher, não pode contrair matrimônio com outrem, e se de fato contrair, é nulo. 10- Pública honestidade 11- Afinidade: O homem e a mulher, contrai também afinidade com todos os consangüíneos dele ou dela até o quarto grau não podem casar com nenhum deles após a morte de seu companheiro (a) 12- Impotência: Há este impedimento quando algum dos contraentes , já antes de contrair o matrimônio, não era capaz de geração, com tanto que seja perpétuo. 13- Rapto: quando alguém furta uma mulher contra a sua vontade, ou ainda que ela consinta, contradizendo os seus pais. 14- Ausência do Pároco e de testemunhas.

Vale apenas ressaltar como o item 12 reforça o ideal religioso de matrimônio servindo como uma forma legal de procriação humana. Aqueles que desrespeitassem qualquer um dos itens acima, seriam sentenciados à excomunhão maior, presos e condenados à 50 cruzados. Os Párocos que contraíssem matrimônio e os bígamos seriam remetidos ao Tribunal do Santo Ofício. È claro que muitos preferiram se calar, contudo apenas o medo da pena já contribuía para que muitos delatassem os ditos “abusos” cometidos. Como poderemos ver através das devassas de testemunhas, os delatores, geralmente acusam cerca de 60 a 70 pessoas de uma só vez. Isso pode ser explicado, pela nossa análise, pelo medo que esses delatores tinham de serem eles os Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, Jul.-Dez., 2007

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condenados, caso não falassem aos visitadores tudo o que sabiam. Era muito mais cômoda a posição de delator que a de delatado. Além disso, o medo da excomunhão freava muitos abusos da população, além de ser um fator que contribuiu para os constantes delates. Aos excomungados era terminantemente vetada a entrada em uma Igreja e a sua presença na hora da realização de uma missa: É proibido por direito aos excomungados, e nomeadamente interditos estarem presentes nas Igrejas, em quanto se diz missa, e fazem os ofícios Divinos, e devem os Párocos, e outros sacerdotes faze-los sair da Igreja. (...) mas em todo o caso que os excomungados ou interditos não quiserem sair, ou não forem tirados pela justiça secular, farão os Párocos ou sacerdotes de tudo antes com testemunhas, que remeterão ao nosso Vigário Geral, o qual procederá contra os culpados com as penas de direito

O pedido de casamento feito por um “vagabundo” deveria primeiramente passar por licença religiosa sob pena de 20 cruzados para o meirinho e suspensão de seu ofício. Com relação aos escravos, teoricamente o matrimônio era de direito à todos. As pessoas cativas poderiam se casar com outros no mesmo estado ou livres e os senhores não poderiam impedir o casamento. Contudo, era dever dos escravos aprenderem antes de contrair o sacramento, a Doutrina Cristã, “ao menos o Padre Nosso, Ave Maria, creio em Deus Padre, mandamentos da lei de Deus e da Santa Madre Igreja”, e se estendam a obrigação ao Santo Matrimônio. Diante da observância dos direitos reservados aos escravos na hora de fazer valer um importante sacramento, uma pergunta nos intriga quando analisamos as fontes deixadas pelos visitadores episcopais. Porque boa parte do rol de punidos pelas devassas é composto por escravos, (e essencialmente mulheres)? Talvez porque como aponta Leila Mezan Algranti37, em importante estudo da condição feminina nos conventos do sudeste, as taxas pagas em moedas como condição básica à garantia do direito de matrimônio, eram muito abusivas. Os escravos não possuíam portanto, a mínima condição de efetuar tais pagamentos. Eles estariam muito mais preocupados em juntar um montante capaz de lhes permitir a compra de sua própria liberdade. Para nós, esse fator contribui para uma possível explicação para a existência de tantos crimes por concubinato denunciados nas devassas. A questão racial é outra possível explicação. As mulheres brancas sempre foram preferidas às negras na hora de se contrair um casamento38.

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ALGRANTI, Leila Mazan. Honradas e Devotas. Mulheres da colônia: condição feminina nos conventos e recolhimentos do sudeste do Brasil, 1751-1822. Rio de Janeiro: José Olympio, Brasília: Edumb, 1993. 38 Essa questão já vem sendo estudada desde há muito tempo. Gilberto Freire apontou-a em estudo clássico. FREIRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. 25ª ed. Rio de Janeiro: J Olympio, 1987 Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, Jul.-Dez., 2007

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Bibliografia ALGRANTI, Leila Mazan. Honradas e Devotas. Mulheres da colônia: condição feminina nos conventos e recolhimentos do sudeste do Brasil, 1751-1822. Rio de Janeiro: José Olympio, Brasília: Edumb, 1993. BETENCOURT, Francisco. História das Inquisições: Portugal, Espanha e Itália-século XV-XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. DINES, Alberto. Os 500 anos e os 242 do Inquisição. In: A Inquisição em Minas Gerais no século XVIII. FIGUEIREDO, Luciano. O avesso da memória: cotidiano e trabalho da mulher em Minas Gerais no século XIX. Rio de Janeiro: J Olympio. Brasília: Edumb, 1993. _____, Luciano. Segredos de Mariana. _____, Luciano. Barrocas Famílias. Dissertação de mestrado FREIRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. 25ª ed. Rio de Janeiro: J Olympio, 1987 FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade, 3: o cuidado de si. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985 FURTADO, Junia Ferreia. Pérolas negras: mulheres livres de cor no Distrito Diamantino. In: FURTADO, Júnia Ferreira (org). Diálogos Oceânicos: Minas Gerais e as abordagens para uma história do Império Ultramarino Português. Belo Horizonte. Ed. UFMG, 2001. _____, Júnia Ferreira. Chica da Silva e o contratador dos diamantes: o outro lado do mito. São Paulo: Companhia das Letras, 2003 LACOMBE, Américo Jacobina. “A Igreja no Brasil Colonial”. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de (org). História Geral da Civilização Brasileira Tomo I. Rio de Janeiro, 1977 PAIVA, Eduardo França. Escravos e Libertos em Minas Gerais no século XVIII: estratégias de resistência através dos testamentos. São Paulo: Annablume, 1995 PISCITELLI, Adriana. “Reflexões em torno de Gênero e Feminismo”. p.43-66. In: COSTA, C de L; e SHMIDT, S P (orgs.) Poéticas e Políticas Femisnistas. Santa Catarina: Ed. Mulheres, 2004 PRADO JR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo, 13ª edição. São Paulo, 1969. _____, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Brasiliense.1983 ; SIMONSEN, Roberto C. História econômica do Brasil (1500-1820). São Paulo: Ed. Nacional; Brasília: INL, 1977. PRIORE, Mary Del. História das mulheres no Brasil. 5ª ed. São Paulo: Contexto,2001. _____, Mary Del. Ao sul do Corpo: condição feminina, maternidades e mentalidades no Brasil colônia. Rio de Janeiro: J. Olympio, Brasília: EDUNB, 1993. SANTOS, Patrícia Ferreira dos Santos. Igreja, Estado e o Direito do Padroado nas Minas Setecentistas através das Cartas Pastorais. Cadernos de História. Publicação do corpo discente do Departamento de história da UFOP. Ano I, nº 2, 2006. SCANO, Julita. Cotidiano e Solidariedade: vida diária da gente de cor nas Minas Gerias. Século XVIII. Editora Brasiliense, 1994. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, Jul.-Dez., 2007

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Jovem Pesquisador:

NAS MALHAS DO DISCURSO: A REFORMA CATÓLICA EM MARIANA E O DISCURSO ULTRAMONTANO DE DOM VIÇOSO (MINAS GERAIS 1844-1875) Tatiana Costa Coelho* Resumo: A micro história barthiana, como foi denominada por muitos historiadores, traz à “cena” novos atores históricos e novas tramas sociais antes encobertos pelo “véu” da história das grandes estruturas. Dessa forma, o presente trabalho tem por objetivo analisar o discurso ultramontano de Dom Antônio Ferreira Viçoso, o sétimo bispo da Arquidiocese de Mariana. Para isso, tenho por ponto de partida 1844, ano em que esse religioso assume o Bispado de Mariana, e termina em 1875, ano da sua morte e fim da Questão Religiosa, enfrentamento que estremeceu os alicerces da religião e império e que esteve presente desde a época da colonização com a institucionalização do Regime de Padroado, dentre outros mecanismos de controle da religião pelo Estado. Através da leitura dos jornais ultramontanos O Bom Ladrão, Selectha Catholico,publicações destinadas à população da região de Mariana, e também as cartas escritas por esse religioso, pretendo enfatizar que nessa região, durante o século XIX, Dom Viçoso atuou ativamente com o intuito, modificar a moral e os costumes do clero e também da população,aplicando os conceitos tridentinos, tentando situar a Igreja Católica como uma instituição forte e independente. Além disso, Dom Viçoso não ficou preso em seu púlpito apenas inferindo críticas à Maçonaria ou Império, esse atuou ativamente interferindo em questões polêmicas da sociedade, como é o caso da escravidão, propondo um projeto de sociedade para o século XIX. Palavras chave: Ultramontanismo; Reforma Católica; Dom Viçoso. Abstract: The micro history barthiana, as it was denominated by many historians,it brings before to the " scene " new historical actors and new social plots hidden by the " veil " of the history of the great structures. In that way, the present article has for objective to analyze the speech ultramontano of Dom Antônio Ferreira Viçoso, the seventh bishop of Mariana's Archdiocese. For that, I have for starting point 1844, year in that that religious person assumes Mariana's Bishopric, and it finishes in 1875, year of your death and end of the call Religious Subject, enfrentament that it shook the foundations of the religion and empire and that it was present from the time of the colonization with the institucionalização of the Regime of Padroado, among other mechanisms of control of the religion for the State. Through the reading of the newspapers ultramontanos O Bom Ladrão, Dom Viçoso,, publications those destined to the population of Mariana's area, and the letters also written by that religious person, I intend to emphasize that in that area, during the century XIX, Dom Viçoso acted actively with the intention, to modify the morals and the habits of the clergy and also of the population, applying the concepts tridentinos, returning to the Catholic Church your status quo. Besides, Lush Talent was not just arrested in your pulpit inferring critics to the Freemasonry or Empire, that acted interfering in controversial subjects of the society actively, as it is the case of the slavery, proposing a society project for the century XIX. Key-words: Ultramontanism; Catholic Reform; Dom Viçoso. *

Mestranda em história na UFJF. E-mail: [email protected] Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, Jul.-Dez., 2007

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Segundo Ronaldo Vainfas, a Micro História emerge no cenário historiográfico preocupando-se com as massas anônimas, seus modos de viver sentir e pensar. Seria para esse autor uma história detetora de estruturas em movimento, muito preocupada com as condições de vida material, embora sem

qualquer determinância do econômica, e muito menos

preocupada com a história de grandes homens, sendo possível os fatos em séria serem passíveis de compreensão e explicação1. Dessa forma, os historiadores da micro história poderiam enxergar acontecimentos, fatos que a historiografia tradicional não enxerga. E trazer à tona fatos dados que estavam adormecidos e nunca visíveis por uma análise estrutural. Partindo dessa teoria, o artigo em questão visa analisar o discurso de Dom Antônio Ferreira Viçoso e mostrar que esse indivíduo até então escondido nas massas anônimas foi responsável pela divulgação de um discurso religioso que foi responsável por empreender uma das maiores reformas religiosas no Brasil, chamada de romanizadora ou ultramontana.

O Discurso Religioso de Dom Antônio Ferreira Viçoso

No ano de 1844 foi empossado na Arquidiocese de Mariana um dos bispos mais polêmicos da História do Império, Dom Antônio Ferreira Viçoso. Ele vinha atuando em grupos religiosos desde 1820, quando foi acolhido no Brasil, ficando no Colégio do Caraça, local em que empreendeu grandes reformas. Sua biografia nos revela uma tentativa de reforma na religiosidade marianense do século XIX, intento que foi desenvolvido mais tarde por outros religiosos como Dom Macedo Costa e Dom Vital em suas respectivas localidades. Estes últimos ficaram conhecidos na imprensa nacional e nos documentos oficiais como Bispos ultramontanos . O termo Ultramontano surgiu na França e classificava pensamentos cuja tendência era defender a centralização do poder papal e sua infalibilidade. Esses grupos eram tributários dos jesuítas europeus que acreditavam no poder absoluto do Sumo Pontífice e na autoridade da Igreja perante os governos. Muitas correntes eram opositoras dos chamados ultramontanos, embora os estudiosos sempre destaquem a jansenista e a galicista 2 . Dom Antônio Ferreira Viçoso nasceu em Portugal, na Vila Peniche, distrito de Leiria

1

VAINFAS, Ronaldo. Os protagonistas anônimos da História. São Paulo, SP: Campus, 2002 p. 17 . VIEIRA, David Gueiros. O protestantismo, a maçonaria e a Questão Religiosa no Brasil. Brasília, Editora de Universidade de Brasília, 2ª edição. 2

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no ano de 1787. Recebeu formação sacerdotal pelos lazaristas, uma congregação religiosa fundada em Paris no século XVII. Aos 27 anos de idade terminou o noviciado e ingressa no Curso Filosófico. Com o passar do tempo, adquiriu formação em Teologia, Moral e Dogmática, Direito Canônico, História Sagrada e Liturgia. Ensinou filosofia no Seminário de Évora, Portugal. Foi enviado ao Brasil como missionário juntamente com o Pe. Leandro Rebelo e Castro com quem fundou a primeira ordem lazarista brasileira. No período de 1820 a 1843 esse religioso foi educador no Colégio do Caraça, Jacuecanga e Campo Belo, além de ter criado também o Colégio de Providência para educação feminina e da construção de orfanatos e instituições de educação para moças pobres e órfãs, mostrando assim, grande preocupação com a educação. Em 12 de janeiro de 1844 foi sucessor de Dom Carlos Pereira Freira de Moura e ingressou em Mariana, nomeado por D. Pedro II, para se tornar o sétimo bispo da Arquidiocese de Mariana. Por três décadas Dom Viçoso percorreu Minas, com o intuito de levar o evangelho aos fiéis e divulgar o que ele considerava a verdadeira fé e os bons costumes da Igreja. Além disso, pretendia reformar o clero, considerado por esse como “deturpado e indisciplinado”. Assim, acredito que os ideais de Viçoso são peças importantes no afrouxamento dos laços entre os poderes espiritual e temporal e que antecederam eventos consagrados pela historiografia, como é o caso da Questão Religiosa que ocorreu entre 1872 e 1875. D. Viçoso, conhecido como conde de Conceição (título concedido por Dom Pedro II), foi responsável por iniciar uma das maiores reformas Católica em Minas Gerais. Dessa forma consideramos importante pesquisar o movimento ultramontano na região de Mariana, deslocando o debate do litoral para o interior do Brasil. A trajetória de Dom Viçoso fora marcada por uma tentativa de implantar uma reforma na Arquidiocese de Mariana. Contudo, ele não estava sozinho, contava também com o apoio de mais onze bispos espalhados pelas outras doze dioceses do Brasil, que também almejavam uma reforma na Igreja brasileira. Esses doze bispos tinham por objetivo comum construir uma Igreja Católica forte institucionalmente, baseada nos preceitos tridentinos, livre de influências do Estado. O Estado, através do Regime de Padroado, tentou controlar a Igreja, proibindo o cumprimento de bulas editadas pelo Vaticano, além de limitar o poder do clero no Brasil. Surgiu nesse cenário, à ala do clero denominada ultramontana ou romanizadora que criticava a existência do beneplácito régio

sobre bulas, encíclicas e breves que eventualmente

poderiam circular no país, o que causou grande desconforto por parte desses religiosos. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, agosto-dezembro, 2007

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O Beneplácito foi instituído na Constituição de 1824. De acordo com essa constituição a Igreja deveria sofrer interferência do Poder Temporal, ou seja, qualquer bula, concílio ou qualquer outro tipo de determinação vinda do Papa teria que passar por aprovação do Imperador para ser seguida no Brasil. De acordo com Roberto Romano, a tutela do Estado trouxe para o catolicismo sérios problemas: desaparecimento de mobilização popular como as ordens religiosas, e a impossibilidade de qualquer mudança que atingisse os fundamentos de suas relações com o Império3. Na segunda metade do século XVIII, ocorreu o conflito considerado como uma das maiores crises entre Igreja e Estado no Brasil. A Expulsão dos Jesuítas foi um fator de extrema importância para o desgaste entre o poder temporal e espiritual. A fim de suprir a ausência dos Jesuítas, foi necessário a entrada dos leigos nos quadros da Igreja, uma vez que era de responsabilidade dos Jesuítas a educação religiosa, marcando dessa forma a mentalidade regalista do clero. Segundo Roque Spencer de Barros: O clero nacional, dos tempos pombalinos até as vésperas da questão religiosa, não se distinguia, com raras exceções, por qualquer demonstração de ortodoxia. Mas freqüentadores das letras francesas do que das latinas, mais versados na literatura profana do que nas obras pias, muitos de nossos clérigos estavam saturados dos ideais iluministas, das reivindicações democráticas e liberais da Revolução Francesa4

Dessa forma, o Estado negligencia a autoridade da Igreja somando-se a presença de um clero impregnado pelas idéias iluministas5, enciclopedistas6, distanciando-se cada vez mais dos ideais instituídos pela Santa Sé. Não muito raro, vários padres exerciam o seu sacerdócio “participando de movimento de rebeldia e agitação popular entregando-se à devassidão e também ao desejo carnal.” 7 Em Minas Gerais esse clero era ainda mais despreparado e indisciplinado. Em 1745 foi criado o bispado de Mariana e a vinda de Frei Manuel da Cruz em 1748 caracterizou-se como uma atitude de moralização da Igreja Mineira que se caracterizava pela inexistência de

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7

ROMANO, Roberto. Brasil: Igreja Contra Estado. São Paulo, Kairós, 1ª Ed., 1979, p. 143 BARROS, Roque Spencer de. “A vida espiritual”. In: HOLANDA. Sérgio Buarque de (dir.) História Geral da Civilização Brasileira. São Paulo, 3ª Ed. Bertrand, Tomo II vol. 4. O iluminismo foi uma corrente de pensamento que surgiu primeiramente na Inglaterra e posteriormente na Holanda e na França, nos séculos XVII e XVIII. Nesta época, o desenvolvimento intelectual que vinha ocorrendo desde o renascimento deu origem a idéias de liberdade política e econômica, defendidas pela burguesia, filósofos e economistas que difundiam essas, julgavam-se propagadores da luz e do conhecimento, sendo, por isso, chamados iluministas. Enciclopedistas é o nome dado aos filósofos e outros pertencentes ao chamado Enciclopedismo que confeccionaram e apoiaram a Encyclopédie, publicada na França entre 1751 e 1780, com 35 volumes, uma das grandes realizações literárias do século XVIII. Era uma revisão completa das artes e ciências da época. Explicando os novos conceitos físicos e cosmológicos, e proclamando a nova filosofia do humanismo. SODRÉ, Nelson Werneck. Panorama Geral do Segundo Império. 2ª Ed. Rio de Janeiro, 1998, p. 115. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, agosto-dezembro, 2007

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uma política religiosa nitidamente configurada8. Segundo Célia Maia Borges, a Coroa fez com que as ordens religiosas se afastassem da Capitania de Minas Gerais, proibindo sua instalação nessa Capitania para evitar o extravio na extração do ouro e diamantes e também que os clérigos não se envolvessem nos conflitos políticos, uma vez que no século XVIII haviam muitos registros de envolvimento de religiosos em rebeliões, atuando como desestabilizadores da ordem perpetuada pela Coroa Portuguesa 9. Por causa dessa ausência do clero, o trabalho desse corpo eclesiástico foi se constituindo de forma heterogênea, afastandose da função principal que era a administração dos sacramentos bem como da Igreja. De acordo com Mabel Salgado Pereira, o clero mineiro caracterizava-se por uma mentalidade voltada para o secularismo, ou seja, esses se consideravam apenas como funcionários do governo e não propagadores da fé cristã, deixando os assuntos religiosos para segundo plano10. A figura do religioso no contexto da romanização seria figura importante no processo, surgindo como o responsável pela ortodoxia e a Igreja, fazendo com que a população se imbuísse do “espírito católico” substituindo pouco a pouco o tradicional catolicismo lusobrasileiro marcado pelo culto dos santos, pelo catolicismo romanizado com ênfase em doutrina e sacramentos. Esse clérigo deveria ser mais bem instruído de acordo com os preceitos tridentinos11, assumindo seu papel de propagador da religião católica, mostrando-se seguidor das doutrinas emanadas por essa instituição. O padre, formado dentro de uma concepção mais ortodoxa e espiritual de sacerdócio, deveria assumir o papel de pastor que, obediente e em comunhão com seu bispo e com o papa, 8

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10

11

PIRES, Maria do Carmo. Juízes e Infratores: o Tribunal Eclesiástico do Bispado de Mariana (1748-1800) – São Paulo: Annablume; Belo Horizonte: PPGH/UFMG; Fapemig, 2008, p. 22. BORGES, Célia Maia. Escravos e libertos nas Irmandades do Rosário: devoção e solidariedade em Minas Gerais: séculos XVIII e XIX. Juiz de Fora: Editora da UFJF, 2005, p. 57. PEREIRA, Mabel Salgado. Romanização e Reforma Católica Ultramontana da Igreja de Juiz de Fora: projetos e limites (1890-1924). Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2002 p. 46 O Concílio de Trento é considerado nos meios acadêmicos como um divisor de águas da Igreja Católica. Muitos estudiosos a ele se referem como reação, resposta e defesa da Igreja Católica. As críticas sofridas por essa instituição entre os séculos XV e XVI fizeram com que a Igreja se reformulasse internamente. Assim, surgiu a idéia de formar um concílio que procurasse reformar a Igreja. O Concílio Tridentino procurou revalorizar a Igreja na figura dos padres, formando sacerdotes mais coesos dentro da hierarquia e mais obedientes à Roma. Passa a ser exigida uma rigorosa ordem sacra, reforçando a idéia de obediência. O Bispo passa a ser figura de extrema importância, sendo somente ele o responsável por decisões na administração da vida diocesana. Outro ponto enfocado no concílio tridentino foi a necessidade de revisão dos cultos e também reformular a padrão de conduta da população, impondo a essa o batismo, dentre outros rituais. Nesse ambiente foram valorizados os Seminários, afirmando um processo seletivo rigoroso para a entrada de sacerdotes (Sessão XXIII em 1563 do Concílio Tridentino). Esses candidatos deveriam possuir aulas de Teologia, Filosofia e principalmente a Oratória, para uma formação ampla. Esse Concílio só vai surtir efeito nas colônias portuguesas com a chegada dos religiosos europeus que foram educados à luz dessas obrigações como os Jesuítas, Lazaristas. As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia elaborada no século XVII foi influência direta do Concílio Tridentino. Cf. AZEVEDO, Thales. Igreja e Estado em tensão e Crise: a conquista espiritual e o padroado na Bahia. São Paulo: Ática, 1978. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, agosto-dezembro, 2007

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conduziria seu rebanho pelo caminho da verdadeira fé; não apenas através da palavra, dos ensinamentos, mas também pela conduta e exemplo, que deveriam refletir sua condição de representante de Deus entre os homens. Neste sentido, a santificação pessoal constituía-se em principal meta deste novo modelo de padre. A conversão e a santificação de seu rebanho não dependeriam apenas de sua atuação no púlpito, mas também e fundamentalmente de deus comportamento moral e da prática piedosa de suas funções sacerdotais, como a administração dos sacramentos. Assim, identificado em sua dimensão divina, como depositário das “chaves do Reino”, o padre poderia assumir a posição que lhe caberia como autoridade e guia religioso do povo.12

De acordo com Mabel Salgado Pereira, o clero mineiro caracterizava-se por uma mentalidade voltada para o secularismo, ou seja, esses se consideravam apenas como funcionários do governo e não propagadores da fé cristã, deixando os assuntos religiosos para segundo plano13. Os párocos não faltam ao dever da residência. Há os que são negligentes em mandar escriturar os assentos dos Batizados, Matrimônio, etc. segundo o praxe do Ritual Romano. É pequeno o número de sacerdotes: a maioria dos párocos precisa de coadjutores. Mas tenho esperança de usar remédio eficaz para sanar esta deficiência com a nova organização do Seminário14

Nesse relatório escrito por Dom Viçoso em 1853 direcionado à Santa Sé, percebemos a preocupação em deficiência de números como em formação católica, sendo de extrema importância a reorganização do seminário para tentar sanar os erros cometidos pelos antigos religiosos. Segundo Caio César Boschi, para o estudo da História da Igreja na Capitania de Minas Gerais deve se levar em consideração a instituição do Padroado que limitava o poder das Ordens Religiosas e incubia à Coroa o direito de recolher os dízimos eclesiásticos e sustentar o culto católico nas colônias, garantindo o provimento do clero15. De acordo com Alexandre Mansur Barata, o padroado “transformou a Igreja Católica num órgão burocrático, em que os bispos e sacerdotes encarregados pela diocese e paróquias eram nomeados e mantidos pelo Estado Imperial”16 Com isso, podemos perceber que os autores acima concordam que o regime de padroado não era somente um instrumento regulador das relações entre os poderes espiritual e temporal, mas principalmente, o elemento desencadeador de uma série de conflitos, pela constante intromissão do Estado no poder Eclesiástico. Isso fez com 12

GALLIAN, Dante Marcello C. Me. Maria José de Jesus: No caminho da perfeição. São Paulo, 1997, p. 63 PEREIRA, Mabel Salgado. Ibdem. p. 46 14 RODRIGUES, Flávio Carneiro. Cadernos Históricos do Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana – (AEAM)p. 28 15 BOSCHI, Caio César. Os leigos e o poder: Irmandades leigas e Política Colonizadora em Minas Gerais. São Paulo, Ed. Ática, 1986. 16 BARATA, Alexandre Mansur. Luzes e sombras: a ação da maçonaria brasileira (1870-1910). Campinas, 1999. 13

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que se criasse um desconforto por parte da Igreja em relação à situação de subserviência enfrentada pelo Poder Espiritual no Brasil. De acordo com Riolando Azzi, o isolamento geográfico proporcionado pela Coroa Portuguesa em Minas, proporcionou um catolicismo administrado pelos leigos, afastando-se cada vez mais dos preceitos da Igreja Católica regida pelas normas tridentinas17 Um dos objetivos que esse clero reformador almejava também seria uma reforma do sagrado, que visava controlar as religiosidades populares e de certa forma dificultar a proliferação de religiões como o protestantismo e o culto maçônico. Para isso, o corte cronológico desse projeto vai de 1844, ano em que Dom Viçoso assume o posto de Bispo de Mariana e termina em 1875, ano da sua morte e fim da Questão Religiosa. Dessa forma tratarei a Questão Religiosa não como apenas um conflito entre maçons e católicos que abalou a década de 70 do século XIX e sim um movimento mais amplo, uma vez que esse esteve presente desde a primeira parte do século em questão. Num país de experiências religiosas múltiplas com destaque para os cultos africanos no caso do centro sul brasileiro, surgia a proposta por parte dos Bispos e demais religiosos de combater a superstição e o misticismo que se imiscuía na prática católica. As cartas escritas por D. Viçoso e os jornais publicados por ele como O Bom Ladrão e D. Viçoso deixam entrever as políticas de extirpação nos cultos católicos do chamado “sincretismo religioso”. Esses jornais tinham como objetivos principais o fomento à reforma católica e uma propaganda para a fundação de um Partido Católico. No periódico em questão encontramos duras ingerências ao Império e à Maçonaria, esta última, segundo Dom Viçoso, seria responsável pela situação humilhante que a Igreja passava. Uma das principais preocupações que nortearam a educação nos seminário era a educação espiritual. De acordo com Hugo Fragoso “(...) através dos lazaristas, dos capuchinhos franceses ou dos diretores espirituais do nosso clero diocesano, procurou-se dar aos candidatos ao sacerdócio sólida formação espiritual”18. Para isso, segundo Riolando Azzi, os Seminários

voltaram-se para a educação dos clérigos e para essa se efetivar sem a

interferência do mundo externo ou seja, os seminaristas deveriam se manter reclusos para que a educação adquirida pudesse vigorar entre esses sacerdotes. A reforma do corpo eclesiástico previa uma reformulação nos currículos. Através da impressão e a tradução feita pro Dom Viçoso de obras sobre confissão, eucaristia , podemos

17 18

AZZI, Riolando. Os salesianos em Minas Gerais. Editora Salesiana Dom Bosco, São Paulo, 1986 pp. 15-16. FRAGOSO, Hugo. “A Igreja na formação do Estado Liberal” In: Hauck, João Fagundes et al. História da Igreja no Brasil. 3ª edição. Petrópolis: Vozes, 1992. Tomo II vol. 2 p. 197. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, agosto-dezembro, 2007

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perceber a tentativa de mudança de mentalidade da formação intelectual desse clero. Títulos como Guia dos Confessores da Gente do Campo de Santo Afonso Ligório, Missão Abreviada de Frei Luiz Granada, Das Leis Civis Relativas ao Matrimônio do Pe. Marchtallense dentre outras obras consideradas sagradas para a ala tradicional da Igreja Católica. Portanto, a pregação em Minas se alimentava de fontes atualizadas a partir da tradição cristã. Levando em consideração essa afirmação para o Seminário de Mariana podemos concluir que esse foi um das maiores preocupações de Dom Viçoso, fazendo com que essa reclusão virasse uma lei nessa instituição. Além disso, Dom Viçoso demonstrou através dos seus escritos que almejava o fim da escravidão, a ponto de criar um mal estar entre esse bispo e o Pe. Leandro, o primeiro por se mostrar um profundo defensor da causa dos escravocratas e o segundo por defender a causa dos senhores de escravo. Dom Viçoso publicou algumas obras que tinham como principal objetivo criticar o sistema escravocrata e considerá-lo como uma mácula na sociedade. Condenação da Escravatura, no qual esse trava um embate com o escritor do livro Defesa da Escravidão, provavelmente sendo de autoria do Pe. Leandro Rebello Peixoto e Castro. Dom Viçoso faz uma reflexão filosófica e jurídica e teológica sobre a escravidão chegando até a comentar a Bula do Papa Gregório XVI que condena o tráfico de escravos a fim de legitimar seu discurso A partir da perspectiva ultramontana, meu objetivo é fazer uma análise acerca desta idéia de sociedade, considerada conservadora, e sua proposta de mudança. Com a análise do discurso veiculado pelo jornal enfatizado acima, órgão que objetivava fundar um partido católico nas Gerais, analisarei as críticas que esses bispos romanizadores fazem ao Império. Tem-se que ressaltar também as duras críticas inferidas à Maçonaria por este jornal, por considerarem essa sociedade secreta como um perigo para as reformas pretendidas. Em resumo, pretendo mostrar que, apesar de almejar um plano social considerado conservador, os bispos como o caso de Dom Antônio Ferreira Viçoso, objetivavam um projeto de modernidade para a sociedade que compreende o Segundo Reinado. Com isso, podemos concluir que, os bispos ultramontanos, além de se ancorar em uma proposta ultramontana, não ficaram apenas detidos em seus púlpitos, criticando a maçonaria e o Império. Através desses púlpitos, proporam uma sociedade que oferecesse maiores condições ao povo. Não que esses bispos almejassem e igualdade social, mas amenizar de certa forma, a pobreza. Requeiro principalmente para a Igreja a Liberdade que lhe deu seu divino Instituidor, reconhecida pelo Govêrno e de que ela goza, até nos governos protestantes. Dirão que não tenho razão de me queixar, porquê o Govêrno é muito respeitador das Leis da Igreja, e que deixa gozar de perfeita liberdade. Mas eu sem falar no Beneplácito Régio, e no Recuro , como Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, agosto-dezembro, 2007

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de abuso, de que muito falou o falecido Bispo de Rio (mas em vão) na sua obra dosElementos do Direito Eclesiástico - Respondo: Será liberdade não poder o Pároco ler os proclamas para um casamento, sem pagar 200 réis? (...) Será liberdade não poder o opositor a uma freguesia ser colado sem que pague a 4ª ou a 3ª parte de sua côngrua anual? Será liberdade, quando há necessidade de dispensar os interstícios, para tomar ordens(...) Será liberdade não poder o Bispo usar dos compêdios que melhores lhe parecem sem aprovação do governo e Poder êste demitir os Mestres quando lhe parecer?Mariana, aos 10 de março de 186519

Nesta carta escrita por Dom Viçoso a José Liberato Barroso, um dos Ministros do Império, o autor critica a política do Beneplácito Régio. Essa correspondência foi escrita a José Liberato pelo fato da Câmara Municipal de Carnaúbas tentar ingerir nos negócios de recolhimento de Macaúbas. Dessa forma, esse bispo em questão tenta afastar o poder exercido pelo Império que também vê a cobrança de taxas para os procedimentos religiosos e também para a escolha do material utilizado e corpo docente utilizado nos seminários. Isso mostra o desgaste da relação entre Igreja e Império nessa época. Nesse trecho também percebemos uma crítica ao conceito de liberdade, tão difundido nas teorias liberais. A partir daí Dom Viçoso tenta de certa forma, construir um discurso ultramontano e divulgá-lo para a população. Podemos ver isso através das reformas que esse almejava fazer com a população, catequizando-a, tomando como base os conceitos tridentinos de moral. Para analisar o discurso tenho como suporte metodológico o filósofo Michel Foucault. Esse autor, por exemplo, ajudou os historiadores a pensarem as instituições, as formas de poder e as representações sociais20. Esse filósofo analisou os discursos difundidos por instituições propagadoras da razão no século XIX, como hospícios, escolas e prisões e trouxe ao campo de interpretação novos conceitos perfeitamente aplicáveis ao conhecimento histórico. A idéia de discurso no autor, por exemplo, como rede tradicional de representações, cujos enunciados se afirmam, neutralizando ao mesmo tempo outras redes discursivas nos ajudou a entender as representações católicas e seus enunciados afirmativos. Dessa forma, podemos perceber a existência de um discurso religioso ultramontano circulando com o intuito de moldar a “realidade social”. Com isso, para se fazer o estudo em questão faz-se necessário o uso de jornais publicados pela ala denominada acima de ultramontana, no caso O Bom Ladrão. De acordo com o sociólogo Pierre Bourdieu, os jornais exercem papel de reivindicador de classes, demonstrando dessa forma, as condições políticas e sociais dessas, promovendo a integração social, “enquanto instrumentos de conhecimento e de comunicação (...), eles 19 20

TRINDADE, Raymundo. Arquidiocese de Mariana. 2ª ed., Belo Horizonte, Imprensa Nacional, VI, 195 FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Tradução de Roberto Machado. São Paulo: Graal, p. 100. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, agosto-dezembro, 2007

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tornam possível o consenso acerca do sentido do mundo social que contribui fundamentalmente para a reprodução da ordem social: a integração “lógica” é a condição da “integração moral”21. No século XIX, a imprensa desempenhou importante papel no Brasil, tendo destaque para a função dos jornais. Segundo Lilia Moritz Schwartz, o jornal cria consensos, fabrica verdades inquestionáveis agindo com o poder de uma religião22. O jornal serviu também, como campo de batalha entre ideais liberais e conservadores, cada um possuía seu próprio veículo de informação. Dessa forma, a Igreja Católica também publicava seus periódicos que, segundo Martha Abreu, exerceu importante papel para a propagação de suas idéias no país, principalmente na época da Questão Religiosa. Esta autora, através da análise do periódico O Apóstolo, mostra que, esses jornais católicos apontam para a existência de uma nacionalidade brasileira que teria que estar atrelada à religião. Segundo a leitura desses jornais, pode-se observar um discurso de uma parte da Igreja Católica que almejava a autonomia dessa instituição, formando assim uma rede de sociabilidade do grupo Com isso, não encaro a Igreja como uma instituição monolítica que objetivava o obscurantismo religioso e sim como possuidora de especificidades a serem analisadas e revisadas.

Bibliografia VIEIRA, David Gueiros. O protestantismo, a maçonaria e a Questão Religiosa no Brasil. Brasília, Editora de Universidade de Brasília, 2ª edição. ROMANO, Roberto. Brasil: Igreja Contra Estado. São Paulo, Kairós, 1ª Ed., 1979 BARROS, Roque Spencer de. “A vida espiritual”. In: HOLANDA. Sérgio Buarque de (dir.) História Geral da Civilização Brasileira. São Paulo, 3ª Ed. Bertrand, Tomo II vol. 4. SODRÉ, Nelson Werneck. Panorama Geral do Segundo Império. 2ª Ed. Rio de Janeiro, 1998 PIRES, Maria do Carmo. Juízes e Infratores: o Tribunal Eclesiástico do Bispado de Mariana (1748-1800) – São Paulo: Annablume; Belo Horizonte: PPGH/UFMG; Fapemig, 2008 BORGES, Célia Maia. Escravos e libertos nas Irmandades do Rosário: devoção e solidariedade em Minas Gerais: séculos XVIII e XIX. Juiz de Fora: Editora da UFJF, 2005 21 22

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil,1989 p. 10 SCHWARCZ, Lilia Moritz. Retrato em Branco e Negro: jornais, escravos no final do século XIX. São Paulo, Cia das Letras, 1997, p. 248 Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, agosto-dezembro, 2007

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FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Tradução de Roberto Machado. São Paulo:Graal. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil,1989 TRINDADE, Raymundo. Arquidiocese de Mariana. 2ª ed., Belo Horizonte, Imprensa Nacional, VI SCHWARCZ, Lilia Moritz. Retrato em Branco e Negro: jornais, escravos no final do século XIX. São Paulo, Cia das Letras, 1997 João Fagundes et al. História da Igreja no Brasil. 3ª edição. Petrópolis: Vozes, 1992. Tomo II vol. 2 BOSCHI, Caio César. Os leigos e o poder: Irmandades leigas e Política Colonizadora em Minas Gerais. São Paulo, Ed. Ática, 1986. BARATA, Alexandre Mansur. Luzes e sombras: a ação da maçonaria brasileira (1870-1910). Campinas, 1999. AZZI, Riolando. Os salesianos em Minas Gerais. Editora Salesiana Dom Bosco, São Paulo, 1986 RODRIGUES, Flávio Carneiro. Cadernos Históricos do Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana – (AEAM) GALLIAN, Dante Marcello C. Me. Maria José de Jesus: No caminho da perfeição. São Paulo, 1997 AZEVEDO, Thales. Igreja e Estado em tensão e Crise: a conquista espiritual e o padroado na Bahia. São Paulo: Ática, 1978. VAINFAS, Ronaldo. Os protagonistas anônimos da História. São Paulo, SP: Campus, 2002

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PADRE VIEIRA E IDEAL PROFÉTICO NA CORTE PORTUGUESA: UMA TENTATIVA DE REALIZAÇÃO DE SUA CRENÇA NO QUINTO IMPÉRIO Leonardo Soares Barbosa*

Resumo: Este estudo visa entender melhor a forma de pensar do padre Antônio Vieira, de modo a enxergar o seu ideal profético juntamente com suas perspectivas e ações políticas, na tentativa de entender um pouco melhor o pensamento jesuítico do europeu do século XVII (macro) a partir da analise de alguns escritos deste jesuíta (micro). É nítido nos jesuítas desta época, além da atuação missionária, também a ação política. Neste contexto, a principal obra abordada neste estudo, será a História do Futuro de Vieira, sendo redigida a partir de 1649, período inicial da restauração portuguesa. Ela trata do papel central que Portugal teria sobre o futuro Quinto Império do mundo, que seria o de Cristo na terra, que se estabeleceria no ano apocalíptico de 1666. Neste período Vieira entra em contato com D.João IV, se torna seu amigo e faz viagens diplomáticas para países europeus, trazendo visões inovadoras à corte portuguesa, entre elas, o seu anseio de construir duas companhias de comércio nos moldes holandeses. Portanto, o que dava sentido a Vieira para suas ações mais concretas junto ao reino português, pensadas de forma lúcida pelo jesuíta, era a sua crença no glorioso Quinto Império que estava por vir, crença que vinha de uma tradição em Portugal e já bem consolidada também entre alguns jesuítas desta época. Palavras-chave: Padre Antônio Vieira, Jesuítas, Quinto Império. Abstract: This study aims to understand better the thought of Father Antônio Vieira, in order to know his prophetic ideal, joined with his perspectives and political actions, and trying to understand a little more the Jesuit thought of the European people in XVII century (macro) from the analysis of some writings of this Jesuit (micro). It is clear in the Jesuits of this time, besides the missionary actuation, also the political action. In this context, the main work approached in this study will be the “Historia do Futuro Vieira” (“History of Future Vieira”), which was written from 1649 onwards, initial period of the Portuguese restoration. It says about the central role that Portugal would have on the future Fifth Empire in the world, which would be the one of Christ in Earth, and it would be established in the apocalyptic year of 1666. In this period Vieira met D. João VI, became his friend and traveled for diplomatic issues to European countries, bringing innovative views to the Portuguese court, among them, his desire to create two trade companies under Dutch models. Thus, what made Vieira act in a more concrete way towards the Portuguese kingdom, thought in a lucid way by the Jesuit, was his belief in the glorious Fifth Empire that was coming, belief that came from a tradition in Portugal very consolidated among some Jesuits of that time. Keywords: Father Antônio Vieira, Jesuits, Fifth Empire.

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Mestrando na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). E-mail: [email protected]. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, Jul.-Dez., 2007

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Este trabalho busca entender melhor a crença do padre Antônio Vieira no futuro Quinto Império português, de modo a compreender as reais motivações de grande parte de suas ações políticas. Para realizar esta empreitada, utilizarei como fonte principal, a História do Futuro1 de Vieira, destinada a convencer a maior parte de seu público que a sua profecia de um futuro glorioso para Portugal estava prestes a se cumprir, especialmente a corte portuguesa, da qual cabiam as principais decisões para que tal fato ocorresse. Além desta fonte, ressalta-se o “Papel Forte”, um escrito político do jesuíta, que ajudará a perceber a influência política que Vieira tinha e como queria que Portugal agisse para atingir um fim específico: o de se tornar o Quinto império do mundo. Entre outras influências sofridas por Vieira, vale ressaltar algumas crenças messiânicas e milenaristas que vão ser uma constante em seus escritos. Entre elas, destaca-se o Sebastianismo expresso nas “profecias de Bandarra” e também o “milagre de Ourique”. As primeiras estão relacionadas a um homem do século XVI chamado Bandarra que nasceu em Trancoso pequena cidade comercial da região das Beiras, e lá se destacou como intérprete das sagradas escrituras, em especial sobre as profecias nelas presentes para os cristãos novos que haviam na região. Há um certo “clamor” profético e messiânico característico de suas trovas ou profecias, que se relaciona com a volta do Rei encoberto, aquele que levaria de Portugal a todos os povos o cristianismo. Elas ganham força justamente quando D. Sebastião desaparece em uma de suas expedições pela África no intuito de retomar a expansão ultramarina e recuperar as possessões em terras africanas.2 Vieira interpretará este referido rei como sendo D. João IV. Adere a esta tese e por isso compra uma briga acirrada com a inquisição, mas mesmo assim parece não abandoná-la totalmente.3 Já o milagre de Ourique narra um evento ocorrido em 1139 em que cristãos conquistam uma esplêndida vitória numa batalha onde o seu oponente era simplesmente o mais numeroso exército mouro que já existiu. Este episódio, já a partir do século XV ganha contornos milagrosos, sendo, portanto, característica marcante para o início da nacionalidade, onde um país tão pequeno consegue obter vitórias grandiosas. Utilizando este evento, Vieira poderia explicar, então, o papel a ser desempenhado por Portugal na história mundial que

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A edição aqui utilizada desta obra é a de José Van Den Besselaar. 2 vols. Munster: Aschendorffsche Verlaguesbushandlung, 1976. 2 Par este tema, ver a obra No reino Desejado de Jacqueline Hermann. 3 VIEIRA, Antônio, op cit, “Introdução”, p. 8. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, Jul.-Dez., 2007

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ocorreria por “vontade divina”.

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Assim se estabeleceria o que Vieira chamou de o Quinto

Império do mundo. A História do Futuro de Vieira não chegou a ser terminada, mas somente esboçada por este jesuíta, o que se tem redigido hoje é o chamado Livro Anteprimeiro, que foi sendo trabalhado desde sua publicação em 1718 e atualmente é objeto de estudo de alguns intelectuais que se interessam pelo tema, principalmente pelo tom visionário apresentado na obra pelo jesuíta. Esta obra teve sua redação iniciada pelo padre Antônio Vieira em 1649, buscando anunciar especialmente ao povo português a Sua História do Futuro. Resumidamente ela trata do papel central que Portugal teria sobre o futuro “reino terrestre”, ou o Quinto Império5 do mundo, que seria o de Cristo na terra que se estabeleceria no ano apocalíptico de 1666. Seria um reino de aproximadamente mil anos tanto no âmbito espiritual quanto no temporal anunciando a chegada do anticristo cuja atuação precederia ao Juízo Final. O governo não seria exercido diretamente por Cristo, porém, pelo papa de Roma e pelo rei de Portugal (seus dois vigários).

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Deste modo, tal livro surge como prolegômeno ou

apresentação inacabada de um tratado apenas esboçado, fruto de um imenso trabalho feito ao longo de muito tempo (de 1649 até os últimos anos de sua vida). Daí entender que, com o passar dos anos, Vieira já o intitulava como sendo a “grande” e esperada História do Futuro. Pode-se afirmar que este livro é caracterizado por uma singular ousadia do referido jesuíta, na medida em que se insere como um escrito de propaganda ideológica e de intervenção política na literatura panfletária da Restauração e da guerra de independência ocorrida entre Portugal e Espanha. Em Vieira é clara a intenção de elevar Portugal a categoria de povo eleito, escolhido para realizar a obra, ou a missão de dominar os demais povos a fim de se tornar o Quinto Império do mundo, fato já profetizado pelos profetas antigos e pelos modernos, com os quais o jesuíta se identificava e se colocava como o anunciador da vinda deste império, assim como João Batista com relação a Cristo, uma vez que o padre Vieira, em sua visão, estaria sendo favorecido por estar vivendo no período em que “os grandes acontecimentos” iriam ocorrer. Este jesuíta, portanto, afirmava ver mais que os escritores antigos e nas suas próprias palavras: “Hum pigmeu sobre hum gigante póde ver mais que elle”.7 O papel da Espanha neste contexto então, era de desistir da guerra e tentar promover a

4 É lícito observar que o primeiro texto escrito sobre o milagre de Ourique foi o de Duarte Galvão, publicado em 1505 com o título de Crônica d'EL-Rei D. Afonso Henriques. 5 Os quatro impérios anteriores a este seriam o Assírio, o Babilônio, o Grego e o Romano. 6 VIEIRA, Antônio, op cit, p.83-86. 7 Idem, p.165. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, Jul.-Dez., 2007

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paz, enquanto ao povo português caberia crer em sua vitória e na promessa sagrada de sua hegemonia frente ao mundo.8 Até 1641, o Padre Antônio Vieira não tinha importância nenhuma na corte portuguesa e, conseqüentemente, não tinha feito suas viagens diplomáticas, mas simplesmente algumas pregações no nordeste brasileiro, local em que começara seus estudos. Neste período, volta pela primeira vez para Portugal, onde nasceu, em uma embaixada de fidelidade para o novo rei (período em que se tem início a restauração portuguesa). A partir do contato com D. João IV, Vieira busca servi-lo e trata de temas referentes à legitimação deste rei, enfatizando-o como sendo o “Encoberto”, aquele esperado para liderar o Quinto império do mundo. Para Vieira, em todos os momentos em que a situação de Portugal se tornava bastante crítica, a intervenção divina se manifestava em favor dos portugueses e de maneira decisiva. As palavras de Cristo ditas a Afonso Rodrigues na véspera da batalha no campo de Ourique contra o rei mouro Ismael, por exemplo, tem estreita relação, de acordo com esta exegese do jesuíta, com uma aliança entre Deus e a nação portuguesa, selada na promessa da sucessão dinástica. Cristo neste contexto se encontra extremamente comprometido com a descendência dos reis portugueses e com o destino histórico da monarquia fundada a partir do primeiro Afonso, já que Ele afirmava ser Portugal a Sua nação. Tal eleição e conseqüente providencialização do que Pécora vai chamar de corpo místico da nação, entre todas as outras existentes, legitima a garantia divina de sucessão hereditária de seu príncipe.9 No momento em que faz estas argumentações é que surge em Vieira surge a grande questão referente à busca por um rei esperado, na época da Restauração, período ideal para acreditar na existência de um rei Encoberto, mito sobre o qual este jesuíta vai tornar-se o maior dos intérpretes. Este processo de ocultamento, inevitável quando Deus se figura no mundo, seria feito a partir de um favorito da Providência, destinado a ter um papel fundamental no fim da história humana. Esta pessoa, na visão de Pécora, é a cabeça do corpo místico do Estado e de forma alguma um ser individual cuja posição não pudesse responder pela totalidade hierárquica da nação. Esta pessoa humana, na visão de Vieira, vai responder “tanto a esperança humana na participação no Ser, quanto aos desígnios intocáveis do Ser para com suas criaturas”.

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A identidade do Encoberto varia na visão de Vieira11, pois para

ele de fato esta não será de forma alguma imutável, já que vivia disposto a alterar o Ungido e 8

Ibidem, p.80-81. Idem, p.240-241. 10 Idem, p.250. 11 O jesuíta tendia a colocar o próximo rei desta dinastia portuguesa (desta linha sucessória) como sendo o Encoberto. Na medida em que os reis se sucediam, contudo, fez esta atribuição a D. João IV, a partir de 1641; a D. Afonso VI, a partir de 1664; a D. Pedro II e aos dois filhos deste a partir de 1675. 9

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escolhido por Deus, mas jamais modificava a condição verdadeiramente real dele, nos termos do próprio conceito da sucessão dinástica. Caberia a este por fim, ir à frente e colocar em marcha o futuro universal da cristandade12. Mas vale ressaltar que por um longo período (de 1641 a 1664), Vieira sustentou, com base nas trovas de Bandarra, que quem haveria de ressuscitar, para encaminhar Portugal ao Quinto Império do mundo, seria D. João Quarto, até mesmo pela própria profecia, que afirmava, que após a décima sexta geração atenuada, chegaria o rei que libertaria o povo português da “escravidão” e levaria o seu estado a se expandir pela África, Ásia, e pelo restante da Europa, exterminando, a partir desta expansão, todo o Império dos muçulmanos e tomando Constantinopla. Mas, ao longo do tempo, por perceber que D. João não ressuscitara, modificou o escolhido por D. Afonso e, de um modo extremamente “inaciano” ou “jesuítico”, por assim dizer (de acordo com as circunstâncias), soube redigir em favor deste novo rei, fazendo com que a profecia o contemplasse como o “grande” e esperado rei Encoberto que a tantos anos a nação portuguesa esperava que chegasse. Desta forma, escreve para seu público, de modo a convencê-lo de suas proposições e da legitimidade existente em suas profecias, principalmente nos seis primeiros capítulos de sua História do Futuro, direcionada especificamente à corte portuguesa, o principal alvo de Vieira, já que caberiam a ela, as principais decisões para que as mudanças esperadas pelo jesuíta ocorressem em Portugal. A partir de todas estas certezas é que o jesuíta busca profetizar sobre o futuro de Portugal, a fim de que sua fala pudesse ter uma maior mais confiabilidade, uma vez que tudo o que falara anteriormente realmente aconteceu. Para chegar a tal objetivo é necessário, segundo Vieira, enxergar com toda clareza tudo o que está encoberto nas profecias. O jesuíta vai buscar entender as palavras ditas pelos profetas, “usando delas como candea luzente em lugar escuro e cartilaginoso, até que amanheça o dia”.13 Este lugar referido por Vieira é o futuro, a candeia que o ilumina são as profecias, o sol que amanhecerá é justamente o cumprimento delas.14 Os autores do Antigo Testamento são chamados por Vieira de “videntes”, já que suas profecias chegavam aos lugares secretos do futuro e viam neles de forma clara o que para a maioria dos outros homens não existia e não podiam ver e ninguém o pode, se não estiver alumiado pela luz que vem de Deus. É este quem a dá, quando e a quem quiser. O jesuíta

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PÉCORA, Alcir, op cit, p. 252-256. Idem, cap IX, p. 154. 14 Idem. 13

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confessa não ter esta luz ainda, mas se vê como um escolhido ciente do tempo de Deus, que se utiliza dos profetas antigos, para que os modernos pudessem ver e enxergar com esta luz o que eles viram e conheceram com a sua.15 Neste sentido, as primeiras fontes da História que Antônio Vieira se propunha a utilizar, eram as profecias vistas no Antigo Testamento, desde Oséias até Malaquias. No Novo Testamento estão as profecias do Apocalipse de São João. Todas elas vão ajudar na construção desta História, quando puderem servir ao conhecimento e inteligência dos tempos futuros. De fato, muitos destes trechos serão empregados nesta obra de forma que os primeiros e principais fundamentos desta História serão as Sagradas Escrituras, que têm como autor o próprio Deus em “hum só livro e hum só author”.16 A partir de uma verdade estabelecida se deduzem as demais, ou seja, sobre estes fundamentos desta primeira verdade entrará o discurso que vai crescendo e frutificando, sem perder o seu significado e seu sentido. Assim, segundo Vieira, crescem e “florescem” todas as ciências, não somente as naturais, mas também as divinas. O jesuíta se utiliza bastante da teologia, de princípios sobrenaturais, não evidentes mas conhecidos, e tira conclusões ainda mais corretas do que a filosofia, posto que não são evidentes. Tanto na forma do discurso humano de buscar conhecer as revelações proféticas, os mistérios, assim como usando da teologia para tal fim, é importante o estudo do que Vieira chama de “mestre divino”, assim como o de seus sucessores.17 É necessário neste estudo proposto por Vieira juntar o lume natural do discurso com o sobrenatural da profecia com muito cuidado, lendo e meditando bastante para que desta forma se previna do falso profetismo, que não consegue estabelecer uma harmonia entre estas duas instâncias. Nesta união, as profecias vão aos poucos se propagando e se estendendo a muitas coisas, tempos, sucessos, até mesmo a circunstâncias que nelas estavam ocultas. Neste contexto se busca saber em que tempo, isto é, a determinação do tempo certo em que as coisas vão se suceder e em qual tempo, ou seja, em que qualidades e circunstâncias do mesmo tempo - o estado dos reinos, das nações, os fatos particulares de guerra, de paz.18 Para adentrar na escuridão que é o futuro, o jesuíta emprega um método claro e conciso19. Ele vai combinar a Luz da profecia com uma outra luz que o próprio Cristo chamou 15

Idem, p. 154-155. Idem, p.154-155. 17 Idem, p.156. 18 Idem, p. 157. 19 Sobre este assunto ver o artigo A modernidade jesuítica e a História do Futuro de Vieira escrito por Beatriz Helena Domingues, professora do departamento de História da ufjf, quando esta faz um paralelo entre a busca de um método claro e distinto em Vieira e Descartes. Em 1630, segundo esta autora, houve o início do pensamento 16

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de “luz do mundo”, que são primeiramente os Apóstolos presentes nas Bíblia, e depois os Padres e Doutores da Igreja. Estas duas luzes é que vão iluminar este caminho tão difícil de ser trilhado. Serão usados para tal façanha, tochas e também um fio, as primeiras para ver o escuro dos caminhos e o segundo para entrar e sair pelo intricado deles. As profecias e os doutores servirão de tochas enquanto que o entendimento e o discurso servirão de fio. Neste caso o jesuíta está tratando das profecias e dos profetas canônicos, que têm muita importância na sua visão, assim como os novos profetas, entre os quais ele se encaixa, e que são iluminados com o mesmo espírito dos outros.20 Vieira emprega, na construção de seu livro, uma rígida qualificação do espírito profético em todos os profetas do futuro que vão comparecer nesta História. Por este motivo, em todas as profecias incertas, cujo autor não se conhece assim como o espírito com que foram escritas, este jesuíta utilizará de muito rigor metodológico, de modo a provar se este espírito da profecia destes autores vem da vontade divina ou não, além de dizer o tempo em que estes profetas “escreveram” as obras e se realmente poderão ter ou não crédito os seus relatos proféticos para serem incluídos em sua obra. Isto fica explícito na seguinte passagem: e não só provaremos, quando for necessário, o espírito da profecia nestes authores, mas diremos o tempo em que se escreverão as obras que delles existão, a incerteza ou corrupção, com que se tem conservado, com uma breve relação também das mesmas pessoas (quando não forem geralmente muy conhecidas) pelo muyto que importa estas notícias, não só para fé e crédito, senão ainda para a intelligencia e combinação das mesmas profecias, que geralmente dependem do tempo e de outras semelhantes circunstancias.21

Na História do Futuro observa-se a persistência da certeza na prevalência de Portugal com relação aos outros países existentes no que se refere ao seu futuro glorioso. A forma como Vieira mostra isto em seu livro leva em consideração as circunstâncias dos tempos passados, presentes e dos que estão por vir. Todas são abordadas em seu favor, ou seja, em favor da nação portuguesa, até mesmo as conquistas dos portugueses tem uma razão de ser, tem uma raiz bem antiga, que já os colocava como os “escolhidos” para o domínio mundial. Segundo Vieira, o primeiro português que houve no mundo foi Tubal22, presente no décimo capítulo do livro do Gêneses, sendo este o quinto filho de Jafé em que se verificou a benção de seu avô Noé e se cumpriu assim, na visão deste jesuíta, a profecia e promessa feita a seu

moderno com a publicação das “Meditações filosóficas” e do “Discurso do Método” de Descartes e do Julgamento de Galileu. Vieira, portanto, se insere dentro deste pensamento, apesar de manter também um arcabouço impregnado de idéias medievais. 20 Idem, p. 159. 21 Idem, p.160. 22 O significado deste nome é homem de todo o mundo, de todo o orbe, daí a justificativa de que os portugueses conquistarão as quatro partes da terra, que se torna sinônimo de Portugal. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, Jul.-Dez., 2007

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pai Jafé de que só os portugueses filhos, descendentes e sucessores de Tubal conquistariam as quatro partes do mundo, por herança deixada já a muito tempo, como visto acima.23 Entre os anos de 1646 e 1648 Vieira faz viagens à Holanda e lá conhece formas de organização política e econômica completamente diferentes daquelas por ele até então conhecidas, o que impressiona o referido jesuíta. Encontra-se com os judeus e há certa identificação de esperanças messiânicas de Vieira com as deste povo, além da expectativa em relação à visão apocalíptica de história ser bastante semelhante.24 O jesuíta entra em contato com os judeus, mas não inteiramente por aspirações religiosas e nacionais, como ele próprio alegara, porém, por razões também de ordem financeira. Vieira era ambicioso e aguardava de forma paciente a saída de Portugal da crise e seu futuro “crescimento”, visando fazer isso de maneira completamente racional e lúcida. Chegou até a propor que se fundassem duas companhias de comércio nos moldes das que havia visto na Holanda. Porém, concomitantemente a tal busca, visava justificar com ela o seu tratado profético ou a sua exegese com relação ao destino providencial reservado ao reino português. Por isso, não é de se estranhar que este jesuíta, em 1643 declarou-se favorável aos cristãos novos além de emitir a D.João IV um plano de recuperação econômica para Portugal, que a pouco tempo libertado do domínio Espanhol pelo fim da União Ibérica e início da Restauração, necessitava de novos recursos para voltar a ter o prestígio e a riqueza de outrora. A partir destas circunstâncias, o padre Antônio Vieira escreve em 1648 o documento que ficou conhecido como “Papel Forte”. Neste, há uma tentativa por parte do jesuíta, de negociações em Haia, 25 para o estabelecimento de paz com os holandeses em troca do estado de Pernambuco. Por este motivo, Vieira fica conhecido como o “Judas do Brasil”, o “vilão do Papel Forte”, antipatriota, que propunha o pagamento à Holanda para que esta ficasse de vez com Pernambuco, fato não ocorrido devido a este Estado ter conseguido se livrar dos inimigos e conseguir se manter sob a coroa de Portugal. 26 23

PÉCORA, Alcir, op cit, p.234-235. 24 Idéia tirada da introdução do livro Anteprimeiro da História do futuro escrita por Besselar. Vale ressaltar que os judeus tinham o seu messianismo baseado nas profecias que os colocavam como o povo escolhido por Deus, tendo por base de seu apocalipse o sonho de Daniel, no qual pela primeira vez se pensava um reino glorioso que ultrapassava os limites da Palestina e que na verdade enquadrava toda a terra. Este reino terrestre (visto na concepção judaica) é semelhante ao que Vieira refere em sua argumentação, diferente do que pensava a Igreja Romana que faz menção ao “Reino dos Céus.” E a partir do século XV, o judaísmo passa a crer na possibilidade de interferência do homem no processo divino, o que torna mais próximo a chegada do Redentor (fato ocorrido mediante às perseguições sofridas pelos judeus na Península Ibérica), idéia também compartilhada por Vieira. Sobre as relações entre judaísmo e o padre Vieira, ver o artigo escrito por Antônio José Saraiva intitulado “Antônio Vieira, Menasseh Bem Israel e o Quinto Império”. 8 Este documento defendeu o prosseguimento das negociações de Portugal com a Holanda, mesmo com o custo de perder o “estado” de Pernambuco, que era “protegido” por todos os outros “estados” do reino. 26 PÉCORA, op cit, p. 48-49. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, Jul.-Dez., 2007

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Este documento é dividido por Vieira em alguns pontos fundamentais em sua argumentação: um primeiro, em que ele mostra que os inconvenientes propostos pela coroa portuguesa de ceder Pernambuco aos holandeses não são tão verdadeiros e tão grandes como se parecem. Depois ele responde “às razões com que no tal caso se persuade a guerra” e vai provar que em todas elas convém mais a paz e, mesmo havendo os meios para se fazer a guerra, estes ainda não eram suficientes para combater a poderosa frota holandesa (finalizando assim, seu último argumento). 27 Para entender melhor o raciocino do jesuíta apresentado no “Papel Forte” e conceber assim a sua visão acerca do Brasil naquele período, é necessário explicitar melhor o conteúdo deste documento, que retrata de forma bem clara como Vieira enxergava de maneira bem lúcida e racional tanto as “províncias” pertencentes ao reino português, quanto à organização econômica, social e fundamentalmente (neste contexto) a bélica da Holanda, país que representava junto à Espanha o principal inimigo de Portugal neste período. Vieira inicia o seu argumento mostrando a questão religiosa, a necessidade de manter em seu território regiões que receberam o cristianismo e aparentemente Pernambuco seria fundamental para Portugal neste sentido. Porém, caso este país entrasse em guerra contra Holanda, quantos territórios cristianizados não poderia perder. Este anseio de Vieira de conservar o reino português, buscando a paz e não correndo riscos ainda maiores com a guerra por uma pequena e duvidosa parcela que seria Pernambuco está bem expresso nesta passagem: E pois a glória de Deus e aumento da fé católica é a primeira obrigação de vossa majestade, enquanto rei das conquistas, aqui devia fazer o maior reparo zelo dos ministros de vossa majestade, e considerar se é razão que se ponha a tão evidente perigo tudo isto, para conservar uma parte tão duvidosa que nos resta de Pernambuco, aonde não há conversões sem cristandades.28

O jesuíta tinha a plena noção naquele período do pouco que Pernambuco representava para Portugal diante da pressão sofrida por este país pela Holanda. O jesuíta prezava, naquele momento, pela conservação do reino português e pelo seu crescimento político e econômico, pois como um grande diplomata, entendia bastante de negociações e estava ciente do lucro que tal empresa representaria para Portugal. Além disso, esta medida faria com que Vieira ganhasse tempo com o decorrente retardo das ações mais decisivas da frota holandesa. Pois, na sua visão, “se chegava às portas de um momento que acreditava iminente e que operaria

27

VIEIRA, Antônio. Escritos Históricos e Políticos. Edição prefaciada e comentada por Alcir Pécora, Martins Fontes, São Paulo, 2002, p.337-338. 28 Idem, p. 341. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, Jul.-Dez., 2007

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verdadeira transformação na história humana”, uma vez que o ano de 1666 seria a data em que Portugal estabeleceria a hegemonia sobre todos os outros países e seria o protagonista do Quinto Império do mundo. 29 Vieira percebe de forma clara em suas explanações que o mais importante ao rei português era a conservação de seu reino, por isso a perda de Pernambuco poderia ser considerada tão insatisfatória, porém, correr o risco de entrar em Guerra contra a Holanda, não valeria a pena, já que o a força bélica portuguesa perdia e muito para a Holandesa. Além disso, o jesuíta entendia bem o processo pelo qual passava o “estado” pernambucano, acabara de ocorrer a insurreição nesta província, ela já estava praticamente comprada pela Holanda, ou seja, este país estava reivindicando o que praticamente já era seu, pois o rei de Castela no período da União Ibérica já o havia concedido aos holandeses. Isso porque Pernambuco, após a insurreição, já estava quase que destruída, não tinha tanto valor em termos econômicos. Portanto, para Vieira este era o maior inconveniente que o risco de uma guerra neste contexto poderia trazer: o de arriscar todo um reino por causa de uma pequena e quase que desprezível parte, representada pelo “estado” Pernambuco. 30 Este jesuíta demonstra conhecimento da situação vivenciada por Portugal e pela sua principal colônia no período – o Brasil, e sabe quão arriscado financeiramente para o reino português seria tal medida de lutar por uma simples província, pois o jesuíta está preocupado em gerar fortuna para esta metrópole, para que esta obtenha a recuperação financeira de forma rápida e eficaz, podendo desta forma atingir suas metas a fim de que, em um futuro próximo, possa Portugal triunfar sobre os outros países. Desta forma, o jesuíta demonstra claramente à corte portuguesa a forma como seria feito a “entrega” de Pernambuco aos holandeses, no intuito de esperar o momento certo (em que estiver mais bem preparado em termos econômicos) para retomá-la das mãos dos holandeses. Este anseio de “riqueza ao reino” por parte de Vieira, é bem claro neste documento, como descrito no trecho a seguir: Desta maneira damos Pernambuco aos holandeses, e não dado, senão vendido pelas conveniências da paz, e não vendido para sempre, senão a retro aberto, para o tornarmos a tomar com a mesma facilidade, quando nos virmos em melhor fortuna; que agora, é querer perder isto e os demais... Em conclusão, senhor, considerando tudo o que temos em Pernambuco, é uma guerra, e se se puser em fiel da balança a despesa que esta guerra há de fazer com todo o rendimento que vossa majestade pode tirar da campanha de Pernambuco, é certo que não há de igualar o rendimento à décima parte da despesa, como a experiência já tem mostrado.31

29 PÉCORA, op cit, p. 64. 30 VIEIRA, Antônio. Escritos Históricos e Políticos, op cit, p. 344-346. 31 Idem, p. 352. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, Jul.-Dez., 2007

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Vale ressaltar que o jesuíta enfatiza muito mais a região onde fica Angola, do que, no caso em questão, Pernambuco. Pois, segundo Vieira o Brasil não poderia se conservar sem os negros, além de não haver como tirar proveito nenhum de Pernambuco, sendo Portugal “os senhores de Angola”, não podem os holandeses ter escravos a não ser “pela nossa mão” diz Vieira, o que segundo o jesuíta, força uma relação de dependência e os obriga a “nos guardarem o prometido”. 32 Vieira fala o quanto as terras do Brasil são férteis e “nunca ninguém lá morreu de fome”, podendo os portugueses e outros residentes de Pernambuco deixar seus lares e transferir todos os seus bens móveis para outras localidades do Brasil, como Bahia, Rio de Janeiro, entre outros, podendo desta forma habitar nestas outras localidades, também com poucos mantimentos, mas onde um número grande de pessoas, segundo Vieira, já se habituaram a viver com certas dificuldades financeiras. Portanto, roupa, escravos, açucares, excetuando criações de gado ou outras coisas pertencentes aos engenhos, eram possíveis de serem levados por estas pessoas que deixariam Pernambuco, caso este fosse entregue aos holandeses. 33 Após demonstrar conhecimento de várias partes não só do nordeste brasileiro, mas tendo uma visão desta colônia como um todo, sempre pensando no bem de Portugal, é claro, Vieira mostra estar ciente dos reais motivos da invasão holandesa no Brasil, não sendo eles de razão simplesmente comercial, mas também territorial, uma vez estar disputando palmo a palmo com a Espanha e França a hegemonia mundial. Como se sabe vários produtos brasileiros, como o açúcar e o sal, eram “explorados” pelos holandeses, mas ambicionavam também uma maior expansão de seu território, daí também vem o interesse por Pernambuco, que de fato, representava uma boa parte do Brasil em termos territoriais, mas insiste o jesuíta que em todos os outros aspectos, esta província pouco valeria a Portugal diante das circunstâncias vividas pelo país naquele momento. Além de que, segundo o jesuíta, “não nos falta terras, senão habitadores, os quais levarão e trabalharão para si e não para os holandeses”. 34 A partir de todas estas argumentações Vieira ainda mostra que, mesmo o inimigo, representado pelos holandeses, não ser digno de confiança de que irá cumprir o acordo e manter a paz a ser estabelecida, o jesuíta mostra várias razões para estes manterem a paz com os portugueses. Entre elas destacam-se: o fato de os holandeses terem paz com todos os

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Idem, p. 361. Idem, p. 358. 34 Idem, 352-360. 33

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príncipes e nações do mundo, portanto, hão de manter também com os portugueses; após uma guerra de oitenta anos, é muito provável a busca de descanso e quietação por parte da Holanda.; este país tem muitas conveniências com a paz de Portugal, porque são vizinhos em todas as partes do mundo e muito importa a eles terem francos os portos pertencentes ao reino português e lograr desta forma das drogas presentes nas colônias portuguesas; por último e muito importante é que importa à conservação das províncias de Holanda , que o poder de Castela não torne à sua antiga pujança, e para que haja quem sempre esteja diminuindo as forças com guerra intestina, assentaram os estados, que convinha se conservasse Portugal, e por isso se deliberaram a que se nos não fizesse guerra nas conquistas, contanto que se restituíssemos o que eles têm por seu, e que nos demais se salvasse a reputação. 35

Enfim, destaca-se, conforme as palavras de Acir Pécora no prefácio do livro em que seleciona textos escritos por Vieira que este documento, - O Papel Forte, refuta todos os pontos contrários à capitulação portuguesa em Pernambuco, “alegados por seus adversários, apontando sempre a insuficiência crônica dos recursos portugueses disponíveis para a guerra, o que apenas poderia ser remediado, a médio prazo com o incremento das desejadas companhias de comércio”. Como já dito, a situação não era favorável aos portugueses para travar uma guerra como um país que no momento era intensamente mais forte no quesito militar. 36 Porém, toda esta argumentação de Vieira foi descontruída pelo “fanático dos acontecimentos”. Os pernambucanos, sem medir esforços, expulsaram definitivamente os holandeses desta província, conseguindo desta forma, “arruinar todo o acordo de paz tão esforçadamente pretendido por Vieira em sua missão diplomática a Haia e Amsterdã”. Este jesuíta não pretendia simplesmente perder Pernambuco e ficar de braços cruzados, porém, visava a reabilitação política e econômica de Portugal e logo em seguida, cogita atacar algumas das principais posições das conquistas espanholas da América, como as do Canal do Panamá e do Rio da Prata.

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Além disso, ele mostra neste Papel, quantas regiões Portugal

ainda teria por conquistar na África e na Ásia. Portanto, naquele momento era necessário recuar, para posteriormente, quando estivesse mais fortalecido, conquistar o “resto do mundo”. Observa-se nitidamente o intento do jesuíta em muitas de suas ações políticas, com destaque para este parecer evidenciado no Papel Forte, que ele estava preocupado com a

35

Idem, p. 360-361.

36 37

Idem, p. XVI. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, Jul.-Dez., 2007

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realização de sua profecia que, como evidenciado neste texto, foi tão bem elaborada por ele, ambicionava ser reconhecido como um grande exegeta, o anunciador do Quinto Império português que estava próximo. Portanto, esta crença de Vieira no Quinto Império português o movia a tomar decisões, a agir em prol da construção deste reino, que passava por uma crise, mas que na visão do jesuíta, já estava predita, assim como a solução para ela, que necessitava de ação direta da corte portuguesa que, ao ouvir a voz do profeta, encaminharia Portugal para protagonizar uma mudança radical na história humana: a constituição do Quinto Império do mundo.

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Jovem Pesquisador:

O DITO PELO NÃO DITO – AS APROPRIAÇÕES FEITAS DA BULA UNIGENITUS João Henrique dos Santos* Resumo: A presente comunicação visa a discutir as diferentes apropriações da bula papal Unigenitus, de 1343, feitas ao longo da História. Essa bula enunciava textualmente que “a paixão e morte de Cristo adquiriram um inesgotável tesouro de méritos reservado nos céus para a Igreja, para o qual a Virgem Maria e os santos continuavam a contribuir e que tinha especificamente garantido a Pedro e a seus sucessores com o propósito de aliviar os fiéis de suas penalidades temporais, através da aquisição de indulgências”. A questão da aquisição pelos fiéis desse tesouro de méritos foi reapropriada e ressignificada ao longo do medievo e do início da Idade Moderna, sendo um indicativo disso a bula Cum postquam, de 1518, que usava a própria Unigenitus como base para afirmar algo que ela não afirmara. Daí ela ser conhecida desde o século XV como Extravagante, tais e tantas foram as diferentes ressignificações de seu conteúdo, o que a fez ficar excluída do corpus iuris canonicus, o corpo de documentos legais da Igreja. A apreciação de sua trajetória é a análise de como a sociedade medieval estava receptiva às diferentes reapropriações de seu texto e de como estas correspondiam a algumas expectativas dessa mesma sociedade. Palavras-chave: Bula Unigenitus, Bula Cum Postquam, Igreja Católica. Abstract: This paper intends to discuss the different interpretations of the Papal Bull Unigenitus, of 1343, throughout rhe History. This Bull stated that “the passion and death of Christ acquired an endless treasure of merits stored in heaven for the Church, for which the Virgin Mary and the saints continued contributing, and which entrusted Peter and his successors with the aim to relief the faithfull of their temporal penalties, through the acquisition of indulgences”. The issue of the acquisition by the faithfull of such “treasure of merits” got several and different meanings along the Middle Age and the Modern Era, being the Bull Cum Postquam, of 1518, an example of this, as it uses the Unigenitus as a basis to affirm things not affirmed by Unigenitus itself. This is the reason for which Unigenitus was known since de 14th century as “Extravagante”, and to have been put apart of the corpus iuris canonicus, the body of legal documents of the Roman Catholic Church. Keywords: Bull Unigenitus, Bull Cum Postquam , Catholic Church.

Introdução

O beneditino francês Pierre Roger, nascido em 1291, foi eleito Papa, em Avignon, em 1342, assumindo o pontificado com o nome de Gregório VI, sucedendo a Bento XII. É *

Graduando em História (UFJF) e doutorando do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião (UFJF). E-mail: [email protected] Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, Jul.-Dez., 2007

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considerado o mais francófilo dos Papas, tendo feito cardeais majoritariamente a franceses, sempre que havia a abertura de um posto no cardinalato. Mais que isso, governou a Igreja, ao longo dos dez anos de seu pontificado, de uma forma bastante “secular”, com uma corte bastante bem estruturada. Teve importante mediação em conflitos entre príncipes europeus e também amenizou a perseguição aos judeus durante a epidemia de peste negra que assolou a Europa em seu pontificado. A Bula Unigenitus Filius Dei assegurava textualmente que “a paixão e morte de Cristo adquiriram um inesgotável tesouro de méritos reservado nos céus para a Igreja, para o qual a Virgem Maria e os santos continuavam a contribuir e que tinha especificamente garantido a Pedro e a seus sucessores com o propósito de aliviar os fiéis de suas penalidades temporais, através da aquisição de indulgências”. Para além disso, a Bula condenava igualmente que os fiéis leigos tivessem acesso à Bíblia e a lessem, especialmente o Novo Testamento. Estas duas proposições tiveram desdobramentos importantes em dois aspectos na dinâmica da Igreja Católica. O primeiro foi a busca de relíquias (originais ou, na maioria, forjadas) e seu comércio, como parte da “aquisição do tesouro dos méritos de Cristo”, para a qual as Cruzadas também contribuíram grandemente. Quanto ao segundo aspecto, seu resultado imediato foi a concentração de maior poder nas mãos do clero através do monopólio do conhecimento da Bíblia. É bastante interessante, para o ofício do historiador, observar as reapropriações e ressignificações que o texto da Bula Unigenitus recebeu ao longo dos séculos, pois ela expressa o pietismo corrente na Idade Média, enfatizando os aspectos penitenciais como meritórios para a aquisição dos méritos dos tesouros de Cristo. Deve ser recordado que esta Bula foi redigida na esteira dos movimentos ascéticos, que pregavam a pobreza e a penitência, como os dolcinitas, os fraticelli e outros, tidos como heréticos pela Igreja, ao lado dos franciscanos, que pregavam pobreza e penitência como caminhos de excelência.

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A repercussão da Bula ao longo dos séculos

A idéia do “tesouro de méritos” disponível aos fiéis cristalizou-se no imaginário popular no medievo, sobrevivendo à questão da legitimidade dos papas avinhonenses (ainda que tenha sido escrita três décadas antes do cisma do ocidente) e de seus decretos e bulas. Muitos papas viram nesse desejo dos fiéis de adquirir parte desse “tesouro de méritos” como uma oportunidade para arrecadar fundos suplementares para a Igreja, cujas finanças estiveram bastante combalidas em várias ocasiões, inclusive ao final do pontificado do próprio Clemente VI. As indulgências poderiam ser adquiridas de duas formas: através da realização de práticas penitenciais acompanhadas de orações, ou através da compra, mediante doação de importância material ao “óbolo de São Pedro”. Desta forma, o fiel poderia adquirir partes desse tesouro não somente para si, mas também para parentes ou amigos falecidos, reduzindolhes o tempo no purgatório de acordo com a doação ou penitência. Independentemente de quaisquer considerações teológicas que se possa tecer sobre a validade ou nulidade de tais procedimentos, eles indubitavelmente foram bem aceitos pela prática do catolicismo popular europeu. Embora algumas vozes se hajam levantado contra tais práticas, dentre as quais as de Jan Hus e de John Wycliff, somente as críticas feitas por Lutero, a partir de 1517, resultaram em uma efetiva redução da busca a essas práticas, cessando por completo em dadas regiões da Europa.

Lutero e a Bula

Na audiência que Lutero teve com o legado papal, Cardeal Cajetan de Vio, em Augsburg, em 1518, que buscava sua retratação, Lutero expôs suas dúvidas com relação à validade da Bula Unigenitus, citando que, apesar de ter seus efeitos aprovados pela hierarquia da Igreja Romana, esta escondia a Bula Unigenitus, não raro sendo tratada pelo apelido latino de Extravagante, também porque ela contradizia algumas decisões conciliares, inclusive do Concílio de Basiléia (1431-1449). Para comparecer a esta audiência, Cajetan de Vio recebeu de Leão X o decreto Cum Postquam, através do qual o Papa reafirmava a “doutrina da Igreja Romana acerca das indulgências e de sua eficácia”, de modo que ninguém pudesse, pretextando ignorar tal Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, agosto-dezembro, 2007

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doutrina, escusar-se de cumprir os preceitos. Via-se no texto a legitimação do uso eclesiástico de entender as indulgências, particularmente a posse de relíquias, como remédio eficaz para penas temporais e espirituais tanto para os vivos como para os defuntos, como se lê: ... ne de cetero quisquam ignorantiam doctrinae Romanae Ecclesiae circa huiusmodi indulgentias et illarum efficaciam allegare aut ignorantiae huiusmodi praetextu se excusare, aut protestatione conficta se iuvare, sed ut ipsi de notorio mendacio ut culpabiles convinci et merito damnari possint, per praesentes tibi significandum duximus, Romanam Ecclesiam, quam reliquae tamquam matrem sequi tenentur, tradidisse E ainda: ac tam pro vivis quam pro defunctis Apostolica auctoritate indulgentiam concedendo, thesaurum meritorum Iesu Christi et Sanctorum dispensare, per modum absolutionis indulgentiam ipsam conferre, vel per modum suffragii illam transferre consuevisse. Finalizava o Decreto com a ameaça de excomunhão “latae sententiae” aos que não observassem as disposições acerca das indulgências: Et ita ab omnibus teneri et praedicari debere sub excommunicationis latae sententiae poena ... auctoritate Apostolica earumdem tenore praesentium decernimus.

Em momento algum a Bula estabelece a aquisição física de relíquias ou de certificados de haver peregrinado pelas igrejas determinadas, especialmente a sua compra. Nota-se, visivelmente, que usos (e, mesmo, abusos) praticados por religiosos foram legitimados pela mais alta hierarquia da Igreja Romana. Em defesa de seus pontos de vista, Lutero invocou os pareceres de Nicolau de Tudesco, chamado Panormitanus, uma das maiores autoridades presentes naquele concílio. De um modo especial, sua obra Tractatus de concilio Basileensi defendia a superioridade da autoridade conciliar sobre a pontifical, e neste sentido Lutero apontava que, como alguns Concílios já se haviam manifestado contra a questão das indulgências, estas seriam uma excrescência canônica que deveria ser revogada. A negação da validade das indulgências foi a pedra de toque da Reforma Protestante, que focou a salvação na fé e na graça.

A Igreja e a Bula

A Bula Unigenitus Filius Dei, que no século XVI já era chamada Extravagante, ao ser excluída do corpus iuris canonicus da Igreja Católica, permitiu que sua homônima, assinada Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 9 n. 2, agosto-dezembro, 2007

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por Clemente XI em 8 de setembro de 1713, que tratava da condenação à heresia jansenista e de outras questões específicas da França, seja a única referência explícita feita pela Igreja a uma Bula com esse nome. Embora referida (inclusive por obrigatoriedade histórica) pelos historiadores do papado e da Igreja, as referências nos compêndios simplesmente referem-se à questão do “tesouro de méritos”, e mesmo assim, de forma superficial, sem enfocar a questão da exclusividade da leitura da Bíblia por parte do clero. Eis porque, vista no conjunto, sua alcunha de Extravagante parece bastante bem apropriada, tendo, por seu conteúdo, eclipsado todas as demais realizações do papa Gregório VI, que, apesar dela, teve aspectos bastante positivos. Importante lembrar que esta se encontra disponível no Arquivo Secreto Vaticano para consulta, segundo o indexador Reg. Vat. 192, f. 1rv e Reg. Vat. 272, ff. 16v-18v.

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