MÍNIMO EXISTENCIAL: UM PARÂMETRO PARA O CONTROLE JUDICIAL DAS POLÍTICAS SOCIAIS DE SAÚDE

December 4, 2021 | Author: Cássio Coelho Anjos | Category: N/A
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1 Universidade Católica do Salvador Superintendência de Pesquisa e Pós-Graduação Mestr...

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Universidade Católica do Salvador

Superintendência de Pesquisa e Pós-Graduação

Mestrado em Políticas Sociais e Cidadania

LUCIANO CHAVES DE FARIAS

MÍNIMO EXISTENCIAL: UM PARÂMETRO PARA O CONTROLE JUDICIAL DAS POLÍTICAS SOCIAIS DE SAÚDE

Salvador 2010

LUCIANO CHAVES DE FARIAS

MÍNIMO EXISTENCIAL: UM PARÂMETRO PARA O CONTROLE DAS POLÍTICAS SOCIAIS DE SAÚDE

Dissertação apresentada ao Mestrado em Políticas Sociais e Cidadania da Universidade Católica do Salvador, como requisito parcial para obtenção do título de mestre em políticas sociais e cidadania. Orientadora: Profª. Drª. Denise Vitale

Salvador 2010

UCSAL. Sistema de Bibliotecas F224

Farias, Luciano Chaves de. Mínimo existencial: um parâmetro para o controle das políticas sociais de saúde/ Luciano Chaves de Farias. – Salvador, 2010. 148 f.

LUCIANO CHAVES DE FARIAS

Dissertação (mestrado) - Universidade Católica do Salvador. Superintendência de Pesquisa e Pós-Graduação. Mestrado em Políticas Sociais e Cidadania. Orientação: Profa. Dra. Denise Cristina Vitale Ramos Mendes 1. Políticas públicas sociais - Saúde - Brasil 2. Controle de políticas sociais - Saúde 3. Direitos sociais - Saúde 4. Judicialização - Saúde pública 5. Mínimo existencial - Teoria I.Título. CDU 342.7:614 (81)

MÍNIMO EXISTENCIAL: UM PARÂMETRO PARA O CONTROLE DAS POLÍTICAS SOCIAIS DE SAÚDE

Dissertação aprovada como exigência parcial para obtenção do Título de Mestre em Políticas Sociais e Cidadania, Universidade Católica do Salvador, pela seguinte Banca examinadora: _________________________________________________ Profª. Drª. Denise Vitale – Orientadora (UCSAL - BA) _________________________________________________ Profª. Drª Inaiá Carvalho (UCSAL - BA) _________________________________________________ Prof. Dr. Dirley da Cunha Júnior (UCSAL - BA)

Salvador 2010

À minha pequena e adorável Ananda, o maior presente que ganhei da vida, que, simplesmente pela sua existência, motivame a ser uma pessoa cada vez melhor. Dedico, então, à minha filhota

esta

conquista

acadêmica,

momentos subtraídos do nosso convívio.

principalmente

pelos

AGRADECIMENTOS Primeiramente, a Deus, pelo milagre da vida e por permitir toda e qualquer conquista. A minha amada e companheira de jornada Manuela, por dividir mais esta alegria e por ter-me proporcionado a maior realização na vida. A minha mãe Joana Angélica, que, além do amor incondicional, proporcionou-me os alicerces necessários para encarar qualquer desafio. A meu pai, que, novamente presente, contribui sobremaneira na construção deste trabalho, com seus preciosos conhecimentos técnicos e gramaticais. Ao meu irmão Cristiano, pela constante fonte de inspiração jurídica e acadêmica. Ao meu irmão Fabiano, pela silenciosa e relevante força da irmandade e aos meus sobrinhos Felipe, João, Pedro e Otávio. Às minhas cunhadas Thânia, Gabriela, Sara e Daniela e aos meus diletos sogros Antônio (Tõe) e Julita (Ju), por ampliarem o meu espectro familiar e por todo carinho imanente. Aos meus eternos amigos, simbolizados em Marcos Leal, Igor Marques , Alexandre Perazzo e Luís Henrique Mendonça, por ensejarem, num seio além-família, mais um porto seguro em minha vida. Às professoras Denise Vitale, Inaiá Carvalho e Ângela Borges, pelas valiosas contribuições e pelos embasados ensinamentos acadêmicos. Ao professor Dirley Cunha Jr., por, mais uma vez, participar ativamente de uma nova conquista acadêmica. Aos seletos colegas de mestrado, pelos debates e pelas trocas durante todo o período acadêmico. Finalmente, agradeço ao Tribunal de Contas da Bahia, instituição de controle a que pertenço desde 1997 e que me deu régua e compasso, além de incentivo material para esta conquista.

RESUMO A Constituição de 1988 foi pródiga em estabelecer um extenso rol de direitos fundamentais. Para que seja possível a implementação desses direitos (notadamente os direitos sociais), são necessárias ações governamentais, que se materializam por meio de políticas públicas. A promoção dessas políticas envolve o dispêndio de recursos públicos. Como esses são escassos e limitados, a Administração Pública é obrigada a fazer escolhas alocativas. O Poder Judiciário, por meio de sua atuação, fundamental e legítima, acaba impactando essas escolhas administrativas. Desse modo, ele vem exercendo um controle gradual e pontual das políticas sociais, notadamente nas de saúde. Entretanto, devido à falta de parâmetros e critérios racionais, por vezes o Judiciário tem agido de maneira excessiva e desarrazoada. O presente trabalho tem como propósito enveredar no debate sobre essa atuação pontual dos magistrados no controle das políticas públicas de saúde. A partir da análise de decisões judiciais, almeja-se verificar se está ocorrendo a tão em voga judicialização excessiva da saúde pública no Brasil. Nesse cenário, o ponto fulcral é a proposição de limites e parâmetros racionais para a atuação do Judiciário no controle das políticas sociais de saúde. E uma alternativa que se apresenta com bastante pertinência, e que é defendida neste trabalho, é a teoria do mínimo existencial. Por ela, o Judiciário ficará plenamente autorizado a atuar no controle das opções políticas relacionadas ao direito à saúde, sem precisar se preocupar com as consequências práticas de sua decisão. Assim, quando não houver a alocação de bens primários, quando não forem satisfeitas as condições materiais mínimas para uma sobrevivência digna, o controle judicial deve ser inflexível e radical. Por outro lado, as demandas que versarem acima dessas condições mínimas devem ser ponderadas e sopesadas com bastante cuidado, atentando para os limites dos recursos públicos e os impactos em outros direitos sociais.

Palavras-chave: Políticas públicas. Controle das políticas sociais de saúde. Direitos sociais à saúde. Judicialização da saúde pública. Teoria do mínimo existencial.

ABSTRACT The 1988 Constitution was generous to establish an extensive list of fundamental rights. Governmental actions, which materialize through public policies, are necessary to allow the implementation of those rights (especially social rights). The promotion of these policies involves the expenditure of public funds. Because these are scarce and limited, the Government is obliged to make allocative choices. The Judicature, through its activities, fundamental and legitimate, ends up impacting these administrative choices. Thus, it has had a gradual and timely control of social policies, notably in health policy. However, due to the lack of rational criteria and parameters, sometimes it has acted to an excessive and unreasonable degree. The present work aims to engage in the debate on this timely performance of judges in the control of public health policies. From the analysis of judicial decisions, the intention is to verify if the fashionable legalization of public health in Brazil is occurring. In this scenery, the focus is to propose reasonable limits and parameters for the performance of the Judicature in controlling the social policies. The theory of the existential minimum is an alternative which shows quite rightly, and is advocated in this work. For its sake, the Judicature will be fully authorized to act on the control of policy options related to the right to health, without having to worry about the practical consequences of its decision. So when there will not be the allocation of primary goods, or the minimal material conditions for a dignified survival will not be provided, the judicial control must be inflexible and radical. Moreover, the demands ranging above these minimal conditions must be considered and weighed very carefully, with attention to the limits of public resources and to the impacts on other social rights.

Keywords: Public policies. Control of social health policies. Social rights to health. Legalization of public health. Theory of the existential minimum.

SUMÁRIO NOTAS INTRODUTÓRIAS, 10 A pesquisa, 15 Abordagem metodológica, 15 Construção Teórica, 16

1 O MODELO CONTEMPORÂNEO DO ESTADO BRASILEIRO, 22 1.1 As Mutações do Estado, 22 1.1.1 O Estado Liberal, 22 1.1.2 O Estado Social, 24 1.1.3 O Estado Contemporâneo (Subsidiário ou Neoliberal), 26

2 OS DIREITOS FUNDAMENTAIS À SAÚDE E A QUESTÃO DA EFETIVIDADE, 31 2.1 As Dimensões dos direitos fundamentais, 31 2.2 Direitos fundamentais na Constituição Federal, 34 2.3 Direito à saúde: um direito social e fundamental, 38 2.4 Os direitos fundamentais à saúde e sua dependência das políticas sociais, 44 2.5 Políticas sociais: origem, conceitos e possibilidades, 47 2.6 A efetividade dos direitos fundamentais à saúde, 52

3 A FINITUDE DOS RECURSOS PÚBLICOS E A NECESSIDADE DE ESCOLHAS POLÍTICAS ALOCATIVAS, 58 3.1 Limites Gerais das Políticas Públicas, 58 3.2 A Escassez de Recursos e a questão da Reserva do Possível, 62 3.3 A Inevitabilidade de Escolhas Políticas Alocativas de Recursos, 71

SUMÁRIO

(Continuação) 4 A ATUAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO NO CONTROLE DAS POLÍTICAS SOCIAIS: CRÍTICAS À JUDICIALIZAÇÃO EXCESSIVA, 79 4.1 O papel do Poder Judiciário no sistema político-institucional, 79 4.2 O reconhecimento da legitimidade do controle judicial das políticas públicas, 82 4.3 Manifestações concretas da atuação do Judiciário no controle das políticas sociais: a judicialização da saúde, 93 4.4 A Micro-justiça x Macro-justiça, 102 4.5 Os limites da atividade judicial: a busca por parâmetros racionais para o controle das políticas sociais, 104 5 O MÍNIMO EXISTENCIAL COMO ELEMENTO NORTEADOR DO CONTROLE DAS POLÍTICAS SOCIAIS, 106 5.1 Delineamentos conceituais sobre o mínimo existencial, 106 5.2 Visão sociológica do mínimo existencial: as necessidades humanas, 110 5.3 A construção teórica de Rawls sobre o mínimo social, 115 5.4 A função parametrizadora do mínimo existencial para o controle judicial das políticas sociais, 118 NOTAS CONCLUSIVAS, 135 REFERÊNCIAS, 140

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NOTAS INTRODUTÓRIAS O tema abordado no presente trabalho destaca-se pela sua atualidade e relevância social e jurídica. Envereda no debate sobre a efetividade e concretização dos direitos sociais, analisando notadamente o direito universal à prestação de saúde pública. Apesar de ser possível a constatação de que as manifestações sobre políticas públicas, direitos fundamentais e controle judicial são bem debatidas no âmbito acadêmico, literário e profissional, pode-se, por outro lado, afirmar que rareiam os debates acerca da inter-relação desses três temas. O reconhecimento da possibilidade de se exercer controle judicial sobre as políticas públicas (sociais e econômicas) e a fundamental importância de um exercício comedido, racional e criterioso desse controle para efetividade dos direitos fundamentais apresentam-se como campo instigante para exploração dissertativa. Na seara judicial, há notícias de diversas decisões que impõem o atendimento imediato, pelo Estado, de determinados direitos sociais, notadamente os direitos à saúde. Sobre esse fato, jornais e revistas1 recorrentemente têm apresentado interessantes reportagens sobre a polêmica das consequências acarretadas pelo excesso dessas manifestações judiciais na área da saúde pública. É cediço que a Constituição é norma jurídica central no sistema e tem o condão de vincular a todos dentro do Estado, sobretudo os Poderes Públicos. É de conhecimento geral também que, de todas as normas constitucionais, os direitos fundamentais integram um conjunto normativo que, por variadas razões, deve ser especificamente prestigiado. Essa visão bem resumida do constitucionalismo contemporâneo não apresenta nenhuma novidade. O que carece de debate são as formas de atuação do Estado voltadas à efetivação dos direitos fundamentais. Em outros termos, tem-se que o Estado atua por meio das políticas públicas, que envolvem a priorização dos fins a serem concretizados à luz dos preceitos constitucionais e exigem a escolha dos meios ou instrumentos mais adequados para alcançar esse desiderato.

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As políticas públicas envolvem, inevitavelmente, gastos financeiros e, como não há recursos ilimitados, muito pelo contrário, será preciso priorizar e escolher onde e como o dinheiro disponível será investido. A priorização e as escolhas governamentais devem ser profundamente debatidas e o controle judicial dessas opções tem papel essencial nesse processo. Entretanto, tem-se observado um certo abuso e excesso cometido pelo Poder Judiciário nessa atuação, uma vez que os magistrados vêm exercendo, em algumas situações, o controle sem nenhum critério ou parâmetro racional, apenas enxergando a possível amplitude da norma posta. Ou seja, por vezes emitem um comando judicial sem maiores preocupações com as consequências oriundas do seu cumprimento. No plano deontológico, a plenitude dos direitos fundamentais dos cidadãos deveria ser prontamente garantida e concretizada pelo Estado. Porém, na realidade fática, a escassez dos recursos públicos impede a efetivação de todos esses direitos de uma só vez. Assim, é imperioso que, pelo menos, haja a concretização de um núcleo com conteúdo básico dos direitos fundamentais. Tal núcleo vem sendo referido pela doutrina como o mínimo existencial ou mínimo social, que, com arrimo em Ana Paula de Barcellos (2008, p. 278), consiste em um conjunto de prestações materiais mínimas sem as quais se poderá afirmar que o indivíduo se encontra em situação de indignidade. Portanto, as políticas sociais têm de garantir, pelo menos, a concretização do mínimo existencial e, à medida que esse mínimo for se efetivando, deve-se reavaliar o alcance das políticas para ir se aproximando, gradativamente, do ideal idealizado pela Constituição Federal (eficácia progressiva dos direitos fundamentais). Se a atuação do Judiciário, no controle das políticas sociais, for balizada por esse mínimo existencial, não haverá tantos problemas institucionais na seara da saúde pública. Destarte, é pretensão do presente estudo lançar elementos contributivos para 1

A título exemplificativo, tem-se o jornal Folha de São Paulo, do dia 09/05/2009, que promoveu um debate sobre se a judicialização do acesso à saúde contraria os princípios do SUS e a Revista Época, edição n.º 574, de 18/05/2009, que promoveu o seguinte debate: o Estado deve assegurar remédios caros para todos?

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fortalecer e aquilatar o debate em busca da higidez do sistema institucional brasileiro relacionado à saúde pública. Diante do exposto, podem-se idealizar as consequências práticas de uma atuação abusiva e excessiva do Poder Judiciário no âmbito da saúde. As concessões individualizadas, certamente, não representam, nem irão representar a solução adequada para os graves problemas do sistema público de saúde. Por isso, torna-se de bom alvitre uma atuação sensata, razoável e criteriosa. Foi nesse terreno fértil, embora polêmico, que se assentou a fonte de inspiração para estas pesquisas. Ademais, espera-se que a presente abordagem possa ensejar algum tipo de contribuição para o tão atual debate sobre a “judicialização da saúde”. Sobre esse tema, cabe registrar que o Supremo Tribunal Federal, nos meses de abril e maio de 2009, promoveu a Audiência Pública n.º 04 para debater com diversos atores sociais e institucionais a questão dos excessos cometidos pelo Poder Judiciário na área de saúde pública e as possíveis alternativas para uma melhoria geral do sistema. A propalada “judicialização” da saúde pública é fato de notória constatação. O que se faz necessário é a racionalização dessa “judicialização”, que tem se apresentado, muitas vezes, com carga pejorativa, em face das posições extremadas, desarrazoadas e excessivas dos magistrados. Comprovando tais características negativas da judicialização na área de saúde, recente pesquisa, divulgada na revista Época, edição n.º 574, de 18/05/2009, demonstra a distorção no fornecimento gratuito de remédio de alto valor pelo Estado. Conforme a pesquisa, quando é fornecido pela via administrativa, sem a interferência do Judiciário, o custo médio anual por paciente é de R$2.500,00. Já quando o fornecimento gratuito se realiza por determinação judicial, o custo médio anual por paciente é de R$10.600,00. Isso é forte indicativo da falta de critérios e de parâmetros racionais para conduzir a atuação do magistrado, que, muitas vezes, não se preocupa, nessa seara, com o grau de experimentalidade do medicamento, com a existência de similar mais acessível, com a possível indicação de genérico, etc.

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No contexto atual de escassez de recursos públicos, aumento da expectativa de vida dos brasileiros, expansão dos recursos terapêuticos e multiplicação das doenças, as discussões que envolvem o bem-estar representam um dos principais desafios à efetividade dos direitos fundamentais, notadamente os relacionados à saúde pública. O presente trabalho utilizou como fonte de pesquisa as decisões judiciais realizadas no país envolvendo os direitos sociais à saúde pública. Elas foram analisadas e estudadas à luz de temas como a efetividade dos direitos fundamentais, a escassez de recursos públicos, a reserva do possível e o mínimo existencial. O intento precípuo da investigação, portanto, é apresentar razoável critério e parâmetro para mitigar a forte tensão existente entre os elaboradores e executores das políticas sociais de saúde e o Poder Judiciário, que, em algumas circunstâncias, vem utilizando de forma excessiva e temerária sua prerrogativa, hoje reconhecida e induvidosa, de controle das escolhas políticas. Nesse sentido, defende-se a teoria do mínimo existencial como instrumento balizador das condutas de todos aqueles que tratam das políticas sociais, principalmente os magistrados, que, em determinadas oportunidades, têm demonstrado que não vêm utilizando critérios racionais na sua atuação em busca da concretização dos direitos da saúde. Embora sejam apresentados possíveis parâmetros e critérios racionais (com base na teoria do mínimo existencial), é também pretensão deste trabalho fomentar e ampliar o acalorado e polêmico debate sobre o controle judicial das políticas sociais da saúde. O texto se desenvolve em partes. No primeiro capítulo, são abordados os direitos à saúde no Brasil, a partir da sua delimitação e enquadramento como direito social e fundamental. Em virtude disso, torna-se necessária uma abordagem, mesmo que perfunctória, dos direitos fundamentais, analisando, principalmente, suas dimensões e o seu tratamento constitucional. Também são debatidas, neste capítulo, as políticas sociais, uma vez que os direitos à saúde somente podem ser viabilizados e concretizados por meio de políticas públicas. Assim, apresentam-se breves considerações sobre a origem, as definições e as possibilidades das políticas sociais. Por fim, é encarada e debatida a questão da efetividade dos direitos

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fundamentais à saúde, tangenciando-se ainda temas como a dimensão objetiva, a eficácia progressiva e a eficácia horizontal dos direitos fundamentais. No segundo capítulo, confirma-se a inexorável questão da limitação dos recursos públicos, a partir de diversas manifestações doutrinárias. Portanto, em virtude do reconhecimento da escassez dos recursos, o capítulo aborda a questão da teoria da reserva do possível, porém, vendo-a como uma realidade fática pontual e excepcional e não como um mero e cômodo argumento demagógico do Estado. Tal limitação genérica de recursos acarreta uma inevitável necessidade de fazer escolhas políticas de “como”, “onde” e “quanto” serão aplicadas as verbas públicas. O terceiro capítulo aborda, de maneira perfunctória, o papel do Poder Judiciário no sistema político-institucional, trazendo, inclusive, manifestações da sociologia jurídica. Após essa abordagem inicial, enfrenta-se a questão do reconhecimento da plena possibilidade de o Poder Judiciário exercer um efetivo controle das políticas públicas. Em sequência, são trazidas manifestações concretas emanadas do Poder Judiciário interferindo na atuação administrativa na área de saúde. Também debatem-se os impactos dessas decisões judiciais nos princípios da igualdade e da universalidade e as diferenças entre os conceitos de micro-justiça e macro-justiça. Conclui-se o capítulo com a abordagem dos limites da atividade judicial e da necessária busca por parâmetros racionais para o controle das políticas sociais de saúde. No quarto capítulo é tratado o ponto fulcral da dissertação, qual seja, a consideração da teoria do mínimo existencial como um eficaz instrumento balizador da atuação do Poder Judiciário no controle das políticas sociais de saúde. Para se chegar a essa proposição, fez-se necessária uma abordagem sobre os conceitos da expressão mínimo existencial, fazendo-se, inclusive, uma breve visitação às definições apresentadas por Jonh Rawls e Habermas. Também é apresentada uma visão sociológica sobre o mínimo existencial, partindo do debate sobre as necessidades humanas. Em arremate, considerou-se a possibilidade de se utilizar o conceito sintetizado de mínimo existencial para exercer uma função parametrizadora para o Poder Judiciário na sua atuação de controle das políticas sociais de saúde.

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A pesquisa O objeto central da pesquisa são as decisões judiciais realizadas no país envolvendo os direitos sociais à saúde pública, que foram analisadas e estudadas à luz de temas como a efetividade dos direitos fundamentais, a escassez de recursos públicos, a reserva do possível e o mínimo existencial. O intento precípuo da pesquisa é apresentar razoáveis critérios e parâmetros para mitigar a forte tensão existente entre os elaboradores e executores das políticas sociais de saúde e o Poder Judiciário. Nesse sentido, é defendida a teoria do mínimo existencial como um eficaz instrumento balizador das condutas de todos aqueles que tratam das políticas sociais, principalmente os magistrados. Com a pesquisa, pretende-se demonstrar, a partir de uma revisão bibliográfica e da análise de decisões judiciais, a possibilidade (e a importância) de um

controle

judicial

racional

e

criterioso

das

escolhas

das

prioridades

governamentais na área de saúde. Abordagem metodológica A presente pesquisa situa-se no âmbito do direito público, notadamente no campo do Direito Constitucional, com intensa interface com as Ciências Sociais, a Ciência Política e a Teoria Geral do Estado. Tem como intento o estudo sobre os direitos sociais à saúde, especificamente no que tange ao controle realizado pelo Poder Judiciário. A partir da análise jurisprudencial e doutrinária do tema, pretendese chegar à conclusão de que há um razoável meio termo entre a negação da legitimidade dos magistrados para o controle das políticas sociais e a sua possibilidade plena e absoluta. Vale dizer, busca-se com a pesquisa uma indicação de um ponto de equilíbrio entre a insindicabilidade das políticas sociais e a sua judicialização excessiva. E esse equilíbrio poderá ser alcançado com a contribuição da teoria do mínimo existencial, como elemento norteador e balizador para uma atuação judicial racional e criteriosa.

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Para se chegar à conclusão dissertativa foi realizada uma revisão teórica e bibliográfica sobre o tema, bem como uma espécie de estudo de caso, a partir da análise de decisões judiciais que versavam sobre os direitos à saúde. Adotou-se uma perspectiva descritivo-analítica do fenômeno estudado. Portanto, o método de abordagem adotado neste trabalho foi o analítico. As técnicas de pesquisa utilizadas foram as pesquisas bibliográficas, abarcando a doutrina, nacional e estrangeira, e a literatura especializada, assim como a consulta jurisprudencial, incluindo repertórios autorizados e internet. A pesquisa bibliográfica, adicionada às consultas de decisões jurisprudenciais, ensejou a coleta de elementos considerados relevantes para o estudo. Com efeito, a pesquisa bibliográfica consistiu no principal instrumental do trabalho. A

pesquisa

bibliográfica

utilizada

neste

estudo

foi,

intencional

e

necessariamente, multidisciplinar, uma vez que foram abordados temas pertinentes a diversas áreas do conhecimento, particularmente a Ciência Política, a Sociologia, do Direito e a Teoria Geral do Estado. Ao estudar os assuntos-chave para a pesquisa, procurou-se, na medida do possível, trazer um enfoque multidisciplinar, fugindo à limitada visão dogmática. Construção Teórica Cumpre registrar que a implementação dos direitos fundamentais em caráter geral (entre eles os direitos sociais) é competência primária da Administração Pública. Para o cumprimento desse mister, será necessária a adoção de ações e programas governamentais e a prestação de serviços públicos. Em outras palavras, será preciso implementar, de maneira eficiente, determinadas políticas públicas. Somente pelas políticas sociais2 o Estado poderá, de forma sistemática e

2

As políticas sociais, ao lado das políticas econômicas, devem ser compreendidas como uma espécie do gênero “políticas públicas”. Tendo em vista que é tênue a linha segregadora de uma espécie para outra, Cohen e Franco (2004, p. 19) recomendam ”explorar os verdadeiros limites – usualmente confusos – que separam a política econômica da política social.” Embora seja relevante considerar essas diferenças, o que importa frisar neste trabalho é que as políticas sociais são, de fato, espécies de políticas públicas. Desse modo, estas últimas abrangem as primeiras.

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abrangente, realizar os fins previstos na Constituição, sobretudo no que concerne aos direitos fundamentais, cuja fruição direta depende de ações positivas do Estado. Com relação ao direito social à saúde pública, a Constituição Federal3 a define como direito de todos e dever do Estado, devendo ser garantida mediante políticas públicas sociais e econômicas comprometidas com a redução do risco de enfermidades e de outras doenças. Afirmar que a fruição dos direitos fundamentais, como o acesso à educação formal, à prestação de saúde ou a condições habitacionais, depende diretamente da promoção pelo Poder Público, de ações estatais positivas, não é dizer nenhuma novidade. Pelo contrário, é até bastante óbvio diante do arcabouço normativo pátrio. Entretanto, considerando que essas ações capazes de concretizar os direitos fundamentais pressupõem decisões acerca do dispêndio de recursos públicos, torna-se pertinente analisar a forma como o Estado vem gastando tais recursos e, também, a viabilidade de agentes externos ao Poder Executivo (notadamente o Poder Judiciário) poderem controlar as opções administrativas. Com efeito, as políticas sociais são indispensáveis para a garantia e a concretização dos direitos fundamentais, mormente os sociais prestacionais4, que requerem ações positivas do Estado. De outro lado, toda e qualquer política ou ação estatal envolve gasto de recursos públicos, que são sempre limitados e dependentes de uma autorização legislativa (lei orçamentária). Para Ana Paula de Barcellos (2007, p. 605), essas conclusões são evidências fáticas e não teses jurídicas. Nesse diapasão, Ingo Sarlet (2007, p. 303) é incisivo ao sublinhar que o Estado dispõe apenas de limitada capacidade de dispor sobre o objeto das prestações reconhecidas

pelas

normas

definidoras

de

direitos

fundamentais

sociais.

Diferentemente das omissões estatais, as prestações estatais positivas demandam dispêndio ostensivo de recursos públicos e, conforme aponta Marcos Maselli Gouvêa (2004, p. 217), tais recursos são finitos e o espectro de interesse que procuram suprir é ilimitado, razão pela qual nem todos estes interesses poderão ser 3

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação. (Destaque não constante do original)

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erigidos à condição de direitos exigíveis. Ou seja, os reclamos, os anseios e as necessidades da sociedade, cada vez mais plural e complexa, são infinitos, porém, os recursos financeiros de que dispõe o Estado são limitados. Em suma, a implementação de políticas sociais, inevitavelmente envolve expensa de recursos públicos. E, como estes não são ilimitados, será necessário priorizar e escolher “quanto” e “onde” a verba pública disponível será investida. Partindo, portanto, dessa constatação de que o Estado não possui recursos aptos a prover a uma demanda, tendencialmente infinita, de ações de saúde, surge a premente necessidade de formulação de critérios lógicos e razoáveis para respaldar e legitimar as escolhas políticas. Nesse sentido, Ricardo Lobo Torres (1999, p. 183) entende que as prestações de medicina curativa, compreendidas no âmbito dos direitos sociais, devem ser analisadas a partir de critérios e que tais prestações dependem de escolhas orçamentárias, sempre dramáticas num ambiente de escassez de recursos financeiros, que conduzem inexoravelmente à exclusão de algumas.

Na visão de Ana Paula de Barcellos (2008, p. 311), o fato é que sempre há uma decisão, explícita ou implícita, uma escolha que prioriza determinadas situações de necessidade em detrimento de outras. Apesar de essas escolhas serem reservadas, fundamentalmente, à Administração Pública (com a chancela do Poder Legislativo – pelas leis orçamentárias), constituindo-se em decisões próprias da esfera de deliberação democrática, existe um certo direcionamento normativo influenciando incisivamente essas opções. Vale dizer, as opções estabelecidas na Constituição Federal condicionam e direcionam (pelo menos em tese) as opções do administrador público. Embora o legislador constituinte não tenha estabelecido com clareza e detalhes as opções relacionadas à área de saúde pública, como o fez na área de educação5, é necessário buscar, racionalmente, critérios e parâmetros que legitimem 4

A expressão direito prestacional é preferida, dentre outros, por Robert Alexy (1997, p. 482), conforme extrai-se de sua clássica obra Teoría de los derechos fundamentales, traduzida por Virgílio Afonso da Silva e publicada pela Malheiros em 2008. 5 O Art. 208 da CF, de maneira louvável, fixa parâmetros e diretrizes pragmáticas para o dever do Estado com a educação. Por exemplo, no inciso I, estabelece que o ensino fundamental será obrigatório e gratuito, assim como também deverá ser a educação infantil, conforme inciso IV. Porém, com relação ao ensino médio, o inciso II preconiza a progressiva universalização do ensino médio gratuito. Já para os níveis mais elevados de ensino (nível superior, pesquisa e extensão), o inciso V determina a oferta conforme a capacidade de cada ente

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a adoção das políticas sociais de saúde, incluindo a de distribuição de medicamentos. Destarte, pode-se afirmar que as escolhas em matéria de gasto público não constituem tema integralmente reservado à deliberação política ou à vontade dos administradores públicos; ao revés, ele recebe importante incidência das normas, princípios e valores constitucionais. Em função desse direcionamento constitucional às opções políticas, da subjetividade dos direitos fundamentais e dos princípios e valores que norteiam a vida social, torna-se plenamente possível a existência de controle sobre essas escolhas. O foco do presente trabalho é no controle realizado pelo Poder Judiciário sobre as políticas de saúde; é na atuação dos magistrados, que vem repercutindo nas

escolhas

dos

administradores

públicos.

Em

virtude

do

induvidoso

reconhecimento da força normativa dos valores e princípios e do status de direito fundamental que possuem os direitos sociais (entre ele os direitos à saúde), com sua

prerrogativa

de

aplicabilidade

imediata

e

de

subjetividade,

torna-se

inquestionável que o Poder Judiciário possa controlar as opções políticas do governo6. E esse controle pontual (realizado por meio das ações judiciais) sobre as políticas públicas7 já vem sendo exercido pelos magistrados há muito tempo e até de forma crescente e reiterada.8 Entretanto, tem-se verificado um certo abuso e excesso por parte do Poder Judiciário nos julgamentos relacionados à questão da saúde pública, sendo institucionalizado, inclusive, o fenômeno da judicialização da saúde.9

estatal. Portanto, fica bem evidenciada a definição de parâmetros constitucionais para a prestação das políticas públicas de educação. 6 Ana Paula de Barcellos (2008, p. 258) assevera que seria equivocada a leitura de que ao Judiciário não é dado qualquer juízo quanto às escolhas políticas atinentes à alocação de recursos. 7 Ratificando essa possibilidade de controle das escolhas governamentais pelo Judiciário, pode-se apontar o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental n.º 45, em 29/04/2004, como uma decisão paradigmática. Nesse julgamento, cuja relatoria coube ao Ministro Celso de Mello, ficou decidido pela Corte Suprema que há legitimidade constitucional no controle e na intervenção do poder judiciário em tema de implementação de políticas públicas, quando configurada hipótese de abusividade governamental. 8 Ao longo dos anos noventa, foi se tornando cada vez mais frequente a propositura de ações judiciais visando ao fornecimento de remédios necessários ao tratamento da síndrome da imunodeficiência adquirida (Sida) e de outras doenças. Atualmente, de acordo com Marcos Maselli Gouvêa (2004, p. 201), essas demandas assumem uma porcentagem relevante dos processos que tramitam nas varas de fazenda pública da Comarca do Rio de Janeiro, despertando uma série de questionamentos concernentes à própria sindicabilidade destas posições jurídicas. 9 Tal fenômeno se caracteriza pela demanda demasiada ao Poder Judiciário, com a consequente e desmedida concessão de benefícios sem critérios e parâmetros razoáveis. Impende registrar que a judicialização de diversos temas, não apenas os relacionados à saúde, já é fato consumado. O que o Brasil precisa fazer é

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Sobre esse fato, o ex-Presidente do Supremo Tribunal Federal, o Ministro Gilmar Mendes, ao tecer palavras de abertura à Sessão de Audiência Pública, convocada em 05/03/2009, assim se posicionou: O fato é que a judicialização do direito à saúde ganhou tamanha importância teórica e prática que envolve não apenas os operadores do direito, mas também os gestores públicos, os profissionais da área de saúde e a sociedade civil como um todo. Se, por um lado, a atuação do Poder Judiciário é fundamental para o exercício efetivo da cidadania e para a realização do direito social à saúde, por outro, as decisões judiciais têm significado um forte ponto de tensão perante os elaboradores e executores das políticas públicas, que se vêem compelidos a garantir prestações de direitos sociais das mais diversas, muitas vezes contrastantes com a política estabelecida pelos governos para a área de saúde e além das possibilidades orçamentárias. A ampliação dos benefícios reconhecidos confronta-se continuamente com a higidez do 10 sistema.

Portanto, como se percebe da fala do Ministro da Corte Suprema do país, há uma nítida tensão, há um patente desvirtuamento e excesso na atuação do Poder Judiciário no exercício do controle das políticas sociais. Tais excessos e inconsistências, além de serem, de per si, um problema pontual, põem em risco a própria continuidade das políticas de saúde pública, desorganizando a atividade administrativa e impedindo a alocação racional dos escassos recursos públicos. Luís Roberto Barroso (2008, p. 222) chega a sustentar que o casuísmo da jurisprudência brasileira pode impedir que políticas coletivas, dirigidas à promoção da saúde pública, sejam devidamente implementadas. Para o ilustre constitucionalista, tal situação se configura hipótese típica em que o excesso de judicialização das decisões políticas pode levar à não realização prática da Constituição Federal. Torna-se necessário, então, encontrar um ponto de equilíbrio entre os poderes constituídos na questão da saúde pública, até porque a própria Constituição consagrou, no seu art. 2º, a harmonia entre os Poderes do Estado. Urge a superação da era dos extremos, pois existe um meio-termo entre a judicialização racionalizar essa judicialização. Sobre essa temática, o Supremo Tribunal Federal (STF) realizou a Audiência Pública n.º 04, em abril e maio de 2009, visando debater, justamente, a polêmica questão do excesso de judicialização no Brasil das demandas relacionadas à saúde pública. 10 Notas sobre a Audiência Pública n.º 04, realizada nos meses de abril e maio de 2009 no Supremo Tribunal Federal, acessíveis no site .

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excessiva e a negação do controle das políticas sociais por atores externos à sua definição, sustentada pelo suposto caráter programático dos direitos sociais. Entende-se que existe um razoável balanço entre essa negação da legitimidade dos magistrados para o controle das políticas sociais e a sua possibilidade absoluta e ilimitada. Vale dizer, é possível estabelecer-se um ponto de equilíbrio entre a insindicabilidade das políticas sociais e a sua judicialização excessiva. E esse equilíbrio poderá ser ensejado pela teoria do mínimo existencial ou mínimo social. Assim, faz-se mister a adoção de critérios e parâmetros adequados e razoáveis para o exercício desse controle realizado pelo Poder Judiciário sobre as políticas públicas de saúde. Nesse terreno, apresenta-se o ponto fulcral do presente trabalho, que é a defesa de um núcleo essencial inafastável por qualquer dos Poderes do Estado. Tal núcleo, aqui denominado, com base em sólidas doutrinas, de mínimo existencial, poderá ser utilizado como parâmetro para um exercício comedido e razoável do controle judicial das políticas sociais, principalmente as de saúde.

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1. O MODELO CONTEMPORÂNEO DO ESTADO BRASILEIRO Antes do enfrentamento dos temas centrais deste trabalho, faz-se necessária uma contextualização do Estado Brasileiro. Vale dizer, é pertinente uma abordagem, mesmo que perfunctória, sobre o modelo contemporâneo do Estado, que se encontra inserido no regime democrático e sob a égide de uma Constituição Federal que teve uma concepção eminentemente social, mas que, com as dezenas de emendas, ganhou uma conotação mais flexível, mais liberal. Para se compreender o status atual do Estado brasileiro é preciso retroagir no tempo para examinar os modelos de Estado que se sucederam no Brasil e no mundo ocidental. 1.1 As Mutações do Estado Para uma adequada análise das transformações ocorridas nos modelos estatais é preciso considerar algum ponto de partida. E esse marco inicial é o momento da compreensão do Estado como uma sociedade política permanente, como ficou consagrado por Nicolau Maquiavel, em sua consagrada obra “O Príncipe”, de 1532. Então, para se entender o Estado contemporâneo, chamado na doutrina de Estado Regulador, que se insere no contexto neoliberal11 da atualidade, é fundamental conhecer as raízes dessa linha ideológica: o liberalismo. Portanto, serão comentadas cronologicamente as mutações ocorridas a partir do Estado Liberal. 1.1.1 O Estado Liberal Como forma de combate às estruturas e instituições que sufocaram o indivíduo nos regimes feudais e absolutistas, surgiu o Estado Liberal, preocupado 11

Com um pensamento destoante, impende registrar o entendimento de Fernão Justen de Oliveira (2007, p. 50-51), que defende a tese de que não se faz apropriada “a identificação do Estado Regulador como emanação da doutrina neoliberal.” O referido autor baseia seu entendimento no fato de que o Estado contemporâneo assume outras importantes funções além da de regulação, por isso o Estado atual, além de Regulador, deve também ser denominado de Estado Financiador, Fomentador ou Desenvolvimentista.

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em garantir a autonomia e a liberdade individuais na sua máxima extensão. Para alcançar tal intento, a atuação interventora do Estado na sociedade deveria ser mínima, de maneira a restringir o mínimo possível a liberdade dos indivíduos. Conforme os ideais liberais12 propugnados por Adam Smith nos primórdios do século XIX, o Estado deveria apenas fornecer a base legal para que o mercado livre pudesse maximizar os benefícios aos homens. Uma mão invisível do mercado levaria naturalmente os indivíduos a promoverem o bem-estar coletivo. Para os liberais, o Estado deveria assumir o papel neutro, de legislador e árbitro, desenvolvendo apenas ações complementares ao mercado. De acordo com Behring e Boschetti (2007, p. 62), a intervenção estatal, no modelo liberal, deveria restringirse a regular as relações sociais com vistas a garantir a liberdade individual, a propriedade privada e assegurar o livre mercado. O Estado era, então, um mal necessário, como discorre Bobbio (1988, p. 37). Aliás, essa maneira de enxergar o Estado, com sua atuação mínima, permanece nos pensamentos neoliberais. Essa nova ordem liberal, entretanto, conseguiu garantir apenas uma igualdade formal (jurídica, positivada) entre os indivíduos. Na prática, esse modelo disseminou um regime de fortes desigualdades sociais13, marcado pela exploração impiedosa das classes trabalhadoras. Com supedâneo em Fernão Justen de Oliveira (2007, p. 44), a concepção ideológica do liberalismo, que surgiu como reação à concentração de toda a iniciativa político-econômica em torno do Estado, logo se transformou em conveniência das categorias sociais que emergiram como titulares do poder econômico. Assim, diante da pressão para modificações na estrutura da sociedade, duas alternativas principais se apresentavam como solução, de acordo com as lições de 12

A doutrina liberal, conforme escólio de Clèmerson Merlin Clève (2000, p. 36) era tributária de uma idéia limitada e juridicamente controlada de Estado. Esse jurista paranaense, afirma que, pelos ideais liberais, o Estado devia unicamente zelar pela segurança das relações sociais e, para isso, devia se limitar a produzir leis, executá-las e censurar sua violação. O Estado Liberal, segundo Clève, seria um Estado “gendarme”, por isso mesmo apelidado de `guarda noturno por Lassalle. 13 Cabe aqui abrir um parêntese para trazer a lume o conceito de dawirnismo social criado para definir o comportamento dos indivíduos durante os tempos de liberalismo. A teoria lançada por Charles Darwin (em A origem das espécies, em 1859) de que a luta pela vida e a seleção natural implicariam na extinção da espécie animal menos aperfeiçoada, foi adaptada para a seara humana. Conforme Hebert Spencer apud Behring e Boschetti (2007, p. 60), a intervenção do Estado no organismo social seria contrária à evolução natural da sociedade, onde os menos aptos tenderiam a desaparecer.

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Boaventura Sousa Santos (2000, p. 149), “a reforma ou a revolução”. Como cediço, prevaleceu, na Europa Ocidental, a via reformista. A reação pacífica do Estado aos conflitos sociais deu-se mediante uma mudança de paradigma: o surgimento do Estado Social. 1.1.2 O Estado Social A implantação do modelo intervencionista de Estado se deu de maneira paulatina. O Estado mínimo, com suas reduzidas competências, foi passando, gradativamente, a assumir mais e mais funções. Utilizando-se das denominações de Clèmerson Clève (2000, p. 37), o “Estado-árbitro” cede espaço para o “Estado de prestações”. Não obstante esse contínuo processo de mudança que se deu à época, pode-se afirmar, com respaldo em Fernão Justen de Oliveira (2007, p. 45), que a profunda recessão econômica mundial sobrevinda na década de 1930 e a eclosão da Segunda Guerra Mundial precipitaram a consolidação de um novo modelo econômico assumido pelo Estado. O Estado Social14 surgiu com o fito de diminuir as desigualdades e injustiças sociais, permeando o cotidiano da vida social concreta, por meio de uma ampla e contundente intervenção estatal na sociedade, principalmente na economia. O Estado Social possui uma concepção providencial – por esse motivo foi denominado pela doutrina francesa de Estado-Providência – que não deve ser confundida com uma concepção meramente protetora, típica do Estado Moderno (o Estado-Protetor), reinante no período entre o século XIV e o século XVIII. O francês Pierre Rosanvallon (1992, p. 19) capta com precisão essa diferença substancial entre o antanho Estado-Protetor e o Estado-Providência, mais conhecido como Social: O Estado-providência é, de facto, muito mais complexo que o Estadoprotector: não tem apenas a função de proteger bens adquiridos (a vida ou a propriedade); visa igualmente acções positivas (de redistribuição de rendimentos, de regulação das relações sociais, de direcção de certos serviços colectivos, etc.).

De mero garantidor da autonomia e da liberdade individuais, o Estado Liberal se transforma, segundo Aranha (2000, p. 96), em ator central responsável por guiar 14

Também denominado de Estado do Bem-Estar Social (Welfare State) pelas nações de tradição anglogermância, Estado-Providência (État Providence) na dicção francessa ou ainda Estado de Serviço, como

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e implementar políticas públicas capazes de promover um desenvolvimento social mais justo e solidário, garantindo, além da mera igualdade formal, uma igualdade concreta e material. Sabe-se que para implementação do modelo intervencionista foi necessário ampliar o aparato institucional, induzindo a gestão burocrática a se revestir de extremo formalismo legal para absorver a diversidade de serviços e atividades impostas ao Estado. O resultado inevitável foi a elevação dos custos da gestão burocrática, tornando-a lenta e ineficiente. As crescentes despesas já não eram mais suportadas pelo governo e contribuíam ainda mais para o aumento do déficit público. Então, a adoção desse modelo social (intervencionista) em substituição ao modelo liberal acarretou um crescimento desenfreado do Estado, assim como das áreas de intervenção deste na sociedade. Essa hipertrofia estatal resultou na crise do modelo social, composta, basicamente, de acordo com o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos15 (2000, p. 145), por duas dimensões: a “crise fiscal”, decorrente do grande aumento das atribuições estatais, o que gerou um endividamento enorme para os cofres público; e a “hiperjuridicização da vida social”, pois o direito passou a ser utilizado como instrumento normatizador da intervenção estatal na sociedade, regulando os mais diversos campos da realidade social. Comentando sobre essa crise do Estado-Providência, o francês Rosanvallon (1992, p. 33) a atribui ao fato de a sociedade estar cada vez mais segmentada, oligopolizada, balcanizada sob pressão da evolução das estruturas econômicas (segmentação de mercado do trabalho) e das estruturas de negociação social. Nessas circunstâncias, não bastava mais apenas estar sob a tutela do Estado, como se este fosse o único recurso, era preciso oferecer uma maior autonomia à atuação da sociedade capitalista. Boaventura de Sousa Santos (2000, p. 155) sintetiza as acrescenta Clèmerson Clève (2000, p. 37). Portanto, quaisquer dessas denominações devem ser entendidas como sinônimas na designação de um modelo de Estado intervencionista. 15 Em oportunidade anterior, manifestando-se também sobre esse Estado promotor do Bem-estar Social, Boaventura Sousa Santos (1995, p. 61) já afirmava peremptoriamente que a centralidade do Estado é exercida com grande dose de ineficiência.

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causas da crise afirmando que o Estado-Providência acabou sucumbindo pela dificuldade de prestar à população a assistência a que inicialmente se propusera e pelas pressões de mercado, carecedor de maior abertura, inclusive no âmbito internacional. 1.1.3 O Estado Contemporâneo (Subsidiário ou Neoliberal) É cediço que a década de 80 foi marcada pelo crescente déficit público e pelo considerável aumento do endividamento externo, levando à impossibilidade de serem continuadas as políticas públicas que colocavam o Estado como o promotor direto do bem-estar social e do desenvolvimento econômico16. Paralelamente às transformações políticas, surgiu a necessidade de uma redefinição do modelo adotado de Estado. Sobre a premência de um novo modelo estatal substituindo o modelo intervencionista, cabe trazer a lume opinião de Bresser Pereira (1996, p. 272), manifestada nos meados dos anos 90, época da Reforma Gerencial do Estado: [...] já chegamos a um nível cultural e político em que o patrimonialismo está condenado, que o burocratismo está condenado, e que é possível desenvolver estratégias administrativas baseadas na ampla delegação de autoridade e na cobrança a posteriori dos resultados.

Essa crise do Estado do Bem-Estar Social abriu caminho para novas propostas e novos modelos de configuração e atuação do Estado na sociedade. Assim, apresentou-se, mais fortemente a partir da segunda metade década de 1990, o contemporâneo Estado Subsidiário17, um modelo que se concentra apenas no desenvolvimento de suas atividades exclusivas, atuando subsidiariamente à

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Para Ramesh Mishra (1995, p. 5), as razões para o declínio do Estado-Providência foram mais materiais do que ideológica, evidenciando que a questão econômica foi crucial para o desencadeamento desse processo de crise. 17 O caráter subsidiário do Estado contemporâneo indica que este deve se ocupar, cada vez mais, em ser regulador e promotor apenas dos serviços sociais básicos. Por isso, hodiernamente, também se ouve falar bastante em Estado Regulador, que pode ser considerado como uma faceta, ou como sinônimo, desse Estado Subsidário. Entretanto, boa parte da doutrina prefere denominar esse atual modelo de Estado Neoliberal, uma vez que retoma alguns dos ideais do liberalismo de Adam Smith.

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sociedade civil e à iniciativa privada no fomento das demais atividades não exclusivas do Estado. Sobre essa mudança na forma de atuação do Estado, Dinorá Musetti Grotti (2005, p. 187) historiou o seguinte:

Na quadra final do século passado as alterações efetuadas por conta da chamada Reforma do Estado levaram a um desmonte do Estado prestador, produtor, interventor e protecionista, e a um redimensionamento de sua atuação como agente regulador da atividade econômica, constituindo-se a privatização e a desregulação nos dois remédios mais importantes da receita neoliberal.

Em síntese, a crise institucional do Estado Social no final do século XX implicou a sua inadequação às mudanças no cenário nacional e mundial. Além das necessárias transformações estruturais concretizadas com o modelo contemporâneo e neoliberal de Estado Regulador (Subsidiário), o resgate de uma democracia efetiva demanda o surgimento de um novo modelo de gestão voltado para a transparência e para participação dos cidadãos no processo político. Sabe-se que do final do século passado em diante, operou-se uma nítida transformação no papel do Estado. Na visão de Luís Roberto Barroso (2002, p. 116), em lugar de protagonista na execução dos serviços, suas funções passam a ser as de planejamento, regulamentação e fiscalização das empresas concessionárias. Juarez Freitas (1995, p. 36), acompanhando esse entendimento, afirma que o traço característico desse novo perfil da Administração Pública reside na redução da participação direta do Estado na execução de serviços públicos e a ampliação da sua dimensão fiscalizadora. O festejado mestre de Coimbra José Joaquim Gomes Canotilho (2002, p. 346), sobre essa transformação estatal, afirma que o Estado Social assume hoje a forma moderna de Estado Regulador de atividades econômicas essenciais. E explica que a razão dessa mudança não assenta apenas em premissas ideológicas (menos Estado, melhor Estado), mas na verificação de que a multiplicação de

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muitas tarefas do Estado (serviços essenciais, investigação, emprego) faz apelo a recursos financeiros, saberes, competências, experiências técnicas e profissionais que se encontram fora do aparelho do Estado.

Comungando desse entendimento, Alexandre Santos de Aragão (2002, p. 68) assevera

que,

paralela

e

simultaneamente

aos

desafios

colocados

pela

globalização, o Estado contemporâneo sofre a crise do financiamento das suas múltiplas funções. Para o autor, diante dessa crise, há, como pensam os neoliberais, inevitabilidade de retração do Estado frente às necessidades sociais, ou, alternativamente, adotam-se novas estratégias de atuação compatíveis com a escassez de recursos. Ainda na seara desse novo modelo de Estado Regulador, Floriano Peixoto de Azevedo Marques Neto (2002, p. 15) entende que com esse novo papel do Estado, abandona-se o perfil autoritário em prol de uma maior interlocução do Poder Público com a sociedade. Com supedâneo em Bucci (2006, p. 2), afirma-se que nesse modelo neoliberal e conservador, as funções estatais seriam apenas de gestão e regulação, indo além da mera ordenação do laissez-faire ideal, mas aquém de um Estado promocional que atuava como parceiro ativo de empreendimentos econômicos. Com base em todo o exposto, pode-se concluir que esse modelo regulador reserva

ao

Estado

contemporâneo

funções

eminentemente

voltadas

ao

planejamento, fomento, regulação e fiscalização. Utilizando-se das palavras de Sérgio Guerra (2005, p. 26), a participação direta do Estado deve ser interrompida naqueles setores que não se refira a imperativos da segurança nacional, relevante interesse coletivo ou prestação de serviços públicos, mesmo que o desempenho estatal seja eficiente e, até mesmo, rentável. Em interessante artigo publicado na revista Época18, intitulado “Menos estatais e mais eficiência”, o articulista Ricardo Neves sugere que os governos

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deveriam dedicar-se a uma agenda básica cujas prioridades seriam: manter a estabilidade da moeda nacional, garantir a manutenção da ordem e da segurança pública, zelar pelo cumprimento da lei, cuidar da educação básica, da saúde e da assistência social. E ainda conforme o referido consultor, se o Estado se intrometer fora dessa agenda básica, qualquer boa intenção vai acabar se pervertendo. Nesse diapasão, cabe trazer à baila também as conclusões de Maria Sylvia Zanella Di Pietro. A administrativista entende que devem ficar a cargo do Estado as atividades que lhe são próprias como ente soberano, consideradas indelegáveis ao particular (segurança, defesa, justiça, relações exteriores, legislação, polícia); e devem ser regidas pelo princípio da subsidiariedade as atividades sociais (educação, saúde, pesquisa, cultura, assistência) e econômicas (industriais, comerciais, financeiras), as quais o Estado só deve exercer em caráter supletivo da iniciativa privada, quando ele for deficiente (DI PIETRO, 2005, p. 37). A partir dessas conclusões, Di Pietro (2005, p. 38) consigna uma pertinente advertência de que não se deve confundir o Estado Subsidiário com o Estado Mínimo, apesar de suas semelhanças, principalmente no tocante ao enxugamento da máquina estatal. Neste, o Estado (Mínimo) só exercia as atividades essenciais, deixando tudo o mais para a iniciativa privada (idéia de liberdade individual do Estado Liberal); naquele, o Estado (Subsidiário) exerce as atividades essenciais, típicas do Poder Público, e também as atividades sociais e econômicas que o particular não consiga desempenhar a contento no regime da livre iniciativa e livre competição, além de exercer o incentivo à iniciativa privada, auxiliando-a pela atividade de fomento. Mesmo não sendo o local apropriado para o debate, cabe registrar aqui que diante desse contemporâneo Estado Subsidiário, que nada mais é do que um fiel retrato do capitalismo neoliberal, vem surgindo uma certa tensão social, uma vez que, cada vez mais, a sociedade está, legitimamente, demandando dos governantes políticas públicas direcionadas às suas diversas necessidades. Então, se de um lado 18

Artigo publicado na Revista Época, de 08/10/2007, na coluna Nossa Bússola, p. 56.

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há a ideologia de desoneração do Estado, de outra banda, há uma sociedade carente de serviços públicos de qualidade, disponíveis de forma contínua, universal, eficiente e eficaz, como são os casos das demandas na área de saúde pública.

Com efeito, a diminuição do tamanho da máquina estatal19, importando, dentre outras situações, a transferência de competências públicas para o setor privado, apresenta-se como uma realidade inexorável. Tal fato se mostra claro em relação à atividade administrativa de serviço público, sendo uma das técnicas mais incisivas de intervenção do Estado no domínio econômico e na ordem social. Entretanto, o encargo de proteção dos interesses da coletividade, consubstanciado nesse processo de serviço público, permanece nas mãos do Estado por determinação do sistema constitucional brasileiro vigente Assim, a sociedade pode continuar exigindo do Estado a prestação de serviços públicos de qualidade, independentemente das delegações e transferências de competências. Porém, por outro lado, não se pode olvidar que a capacidade de investimentos e de ações governamentais não é ilimitada.

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Sobre o tamanho do Estado, cabe colacionar uma interessante analogia feita por Wilson Roberto Mateus (2005, p. 26), com base em um artigo do Prof. Stephen Kanitz, no qual este professor dizia que os grandes animais são os que possuem maiores dificuldades para sobreviver, pois precisam de maior quantidade de alimentos e, no entanto, são mais lentos, ao passo que pequenos animais, mais velozes e com menores necessidades, têm sua perpetuação mais garantida. Mateus estabelece, então, com base nessas idéias trazidas por Kanitz, uma analogia com o Estado. Para ele, um Estado gigantesco, paternalista, presente em todas as atividades, inclusive na regulação da economia, certamente estará fadado a fracassar naquilo que deveria ser mais caro a ele, ou seja, na promoção do desenvolvimento social, na extirpação da pobreza e da marginalidade, procurando reduzir as desigualdades sociais e regionais, em busca do bem comum e, por extensão, da paz social.

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2 OS DIREITOS FUNDAMENTAIS À SAÚDE E A QUESTÃO DA EFETIVIDADE 2.1 As Dimensões dos Direitos Fundamentais Boa parte da doutrina brasileira costuma dividir os direitos fundamentais do homem em gerações ou dimensões20, a partir do momento histórico em que foram efetivamente reconhecidos. Registre-se que tal divisão em gerações ou dimensões contribui para o aspecto didático do tema. Entretanto, em termos práticos, não há nenhuma diferença entre os direitos integrantes dessas dimensões. Vale dizer, não há hierarquia, por exemplo, entre os direitos de primeira dimensão e os de segunda. Os direitos fundamentais visam, entre outras, resguardar o homem em sua liberdade, igualdade e fraternidade. Nesse particular, remonta-se ao lema da revolução francesa, que exprimiu nesses três princípios cardeais todo o conteúdo possível dos direitos fundamentais. Desse modo, com base no escólio de Dirley da Cunha Júnior (2008, p. 563), os direitos fundamentais passaram a se manifestar institucionalmente em três gerações ou dimensões sucessivas, dando ensanchas ao surgimento dos direitos da primeira, da segunda e da terceira geração ou dimensão, que correspondem, respectivamente, aos direitos de liberdade, igualdade e fraternidade.

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O autor Willis Santiago Guerra Filho (2001, p. 39) adverte que ao invés de “gerações” é melhor se falar em “dimensões dos direitos fundamentais”. Segundo o autor, o termo é mais adequado, não só porque as gerações anteriores não se extinguem pelo advento das novas, mas, notadamente, porque os direitos reconhecidos em uma geração assumem uma outra dimensão quando em relação com os novos direitos gestados posteriormente.

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O saudoso filósofo italiano Norberto Bobbio, há muito já asseverava que os direitos do homem não nascem todos de uma vez. Para Bobbio (1992, p. 33), os direitos fundamentais do homem nascem quando devem ou podem nascer. Nascem quando o aumento do poder do homem sobre o homem – que acompanha inevitavelmente o progresso técnico, isto é, o progresso da capacidade do homem de dominar a natureza e os outros homens – ou cria novas ameaças à liberdade do indivíduo, ou permite novos remédios para as suas indigências: ameaças que são enfrentadas através de demandas de limitações do poder; remédios que são providenciados através da exigência de que o mesmo poder intervenha de modo protetor. Às primeiras, correspondem os direitos de liberdade, ou um não-agir do Estado; aos segundos, os direitos sociais, ou uma ação positiva do Estado.

Portanto, as dimensões ou gerações dos direitos revelam a ordem cronológica do reconhecimento e afirmação dos direitos fundamentais, que se proclamam, conforme Cunha Júnior (2008, p. 564), gradualmente na proporção das carências do ser humano, nascidas em função da mudança sociais. Os direitos fundamentais de primeira dimensão foram os primeiros direitos solenemente reconhecidos, o que muito se deve às Declarações do século XVIII e às primeiras Constituições escritas, mormente a francesa e a americana. A deflagração da Revolução Francesa, amparada no ideário de liberdade individual e política, determinou o surgimento dos direitos fundamentais de primeira dimensão, marcados pelo signo da ausência do Estado nas questões individuais. Os direitos dessa dimensão são eminentemente individualistas, pois refletem os direitos dos indivíduos frente ao Estado, os conhecidos direitos de defesa. Então, incluem-se entre os direitos de primeira dimensão os direitos políticos (notadamente o direito de votar e de ser votado) e civis, entre os quais se destacam os direitos à vida, à liberdade, à propriedade, à segurança. Registre-se que a postura estatal em relação a esses primários direitos é passiva, de mera proteção e respeito. No contexto pós-revoluções, imperou o liberalismo, com a sua defesa de um Estado mínimo e com os ideais materializados no lema laisser-faire, laisser-passer, o que gerou um Estado omisso e oportunizou o recrudescimento das desigualdades sociais. Nesse cenário, surgem os direitos de segunda dimensão, já umbilicalmente relacionados ao novo modelo de Estado: o Estado do Bem-Estar Social (Welfare Estate). A postura estatal muda diametralmente. Deixa de ser passiva, negativa e

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indiferente ao desenvolvimento econômico-social, e passa a ser intervencionista, ativa e providencial, não se contentando em ser apenas a “mão invisível”. O que caracteriza, portanto, esses direitos é a sua dimensão positiva, pois passaram a exigir do Estado a sua intervenção ativa para atender as crescentes necessidades do indivíduo. Os direitos fundamentais de segunda dimensão são os direitos sociais ou prestacionais, incluindo os direitos fundamentais à saúde, à educação, ao trabalho, à seguridade, à segurança, ao lazer, à moradia. Para Paulo Bonavides (2000, p. 518), os direitos de segunda dimensão estão abraçados ao princípio da igualdade, do qual não se podem separar, pois fazê-lo equivaleria a desmembrá-lo da razão de ser que os ampara e estimula. Com base no exposto, o presente trabalho aborda um tema relacionado a um direito fundamental de segunda dimensão, que é o direito à saúde. No tocante a esses direitos fundamentais sociais (de segunda dimensão), cabe gizar a real constatação de que o grande problema que os aflige não está relacionado à sua declaração ou ao reconhecimento formal de suas garantias, mas, sim, como bem observa Cunha Júnior (2008, p. 574) à sua efetivação, que consiste na realização concreta das prestações que compõem seus respectivos objetos, quais sejam: acesso à saúde, educação, assistência e previdência social, ao trabalho, etc. Os direitos fundamentais de terceira dimensão têm relação intrínseca com a qualidade de vida dos indivíduos. Surgiram como resultado das novas ansiedades e necessidades humanas, sobretudo após a grande explosão demográfica, com seus impactos tecnológicos e ambientais. Esses direitos de terceira dimensão se caracterizam por destinarem-se à proteção da coletividade social, e não apenas do homem em sua dimensão individual. São de titularidade coletiva e difusa21. Compreendem o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, o direito à segurança, o direito à paz, o direito à solidariedade universal, o direito à comunicação, ao desenvolvimento, etc. De acordo com Ingo Wolfgang Sarlet (2007, p. 53), esses direitos de terceira dimensão são denominados usualmente de 21

Manoel Jorge e Silva Neto (2006, p. 464), atento à dificuldade de distinção entre os interesses difusos (direitos de terceira dimensão) e os direitos sociais (direitos de segunda dimensão), alerta que os direitos à educação, saúde, trabalho, etc. (direitos sociais) são destinados à coletividade de uma forma geral, o que os

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direitos de solidariedade ou fraternidade, em razão do interesse comum que liga e une as pessoas e de modo especial, em face de sua implicação universal, e por exigirem esforços e responsabilidades em escala, até mesmo mundial, para sua efetivação. Hodiernamente, existe uma forte tendência doutrinária a reconhecer a existência de uma quarta dimensão de direitos fundamentais. De acordo com Bonavides (2000, p. 524), essa quarta dimensão seria o resultado da globalização dos direitos fundamentais, no sentido de uma universalização desses direitos no plano institucional. Para esse autor, os direitos de quarta dimensão compreendem os direitos à democracia direta, ao pluralismo e à informação. O jurista André Ramos Tavares apud Silva Neto (2006, p. 464) ainda acrescenta o direito das minorias como um dos direitos de quarta dimensão. Nestes, têm-se, por exemplo, os direitos dos idosos, dos deficientes, dos indígenas. Outros direitos, ainda embrionários, podem ser enquadrados também nessa quarta dimensão, como os direitos à biotecnologia e à inclusão digital. Com base nessas dimensões, pode-se concluir que os direitos fundamentais resultaram da luta histórica de gerações por uma existência digna. O surgimento da proteção dos direitos fundamentais confundiu-se com a limitação do arbítrio e interferências estatais no âmbito da liberdade dos indivíduos, fazendo eclodir, como visto, a tutela aos direitos de primeira geração: os civis e os políticos. Com a evolução das sociedades, esses direitos de liberdade (primeira dimensão) passaram a ser insuficientes para a garantia da dignidade da pessoa humana. Daí, passou-se a exigir do Estado uma atuação mais efetiva na materialização real das novas dimensões dos direitos fundamentais. 2.2 Direitos Fundamentais na Constituição Federal

assemelha aos de compostura difusa. A diferença substancial está no fato de que os direitos sociais permitem a fruição por indivíduo isolado.

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A expressão “direitos fundamentais” se encontra sedimentada na doutrina e no sistema normativo brasileiro22. Entretanto, convém assinalar que outros termos vêm sendo utilizados como sinônimos, tais como “direitos do homem”, “direitos humanos”, “direitos ou garantias individuais”, “liberdades públicas”, ou ainda “direitos públicos subjetivos”. Não obstante a utilização recorrente dessas expressões como sinônimas, o jurista Silva Neto (2006, p. 461) adverte que o rigor técnico exigível de quem se propõe a descrever o sistema normativo impõe desvendar a dessemelhança havida entre as diversas terminologias. Grosso modo, a designação de fundamentais revela um conjunto de direitos assim considerados por determinado sistema constitucional, ao passo que direitos do homem ou direitos humanos são termos recorrentemente empregadas nos tratados e convenções internacionais, a exemplo da Declaração Universal dos Direitos Humanos, criada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1948. Assim, a terminologia empregada neste trabalho será a de direitos fundamentais, uma vez que se abordará o conjunto de direitos com envergadura constitucional. A partir de uma breve incursão nos textos constitucionais anteriores, pode-se constatar que a Carta Magna de 1988 privilegiou de forma inédita os direitos fundamentais. Logo no seu primeiro dispositivo23, a dignidade da pessoa humana, vetor dos direitos humanos, foi erigida a um dos princípios fundamentais da República. O § 1º do art. 5º24 da Carta Magna de 1988 determinou a aplicabilidade imediata das normas que abrigam direitos humanos fundamentais, vinculando de modo imediato os Poderes Públicos e as entidades públicas e privadas. Já o § 2º do art. 5º25 promoveu a abertura do catálogo dos direitos humanos fundamentais, uma vez que considerou a possibilidade de existirem outros direitos fundamentais 22

Comprovando a consagração do termo, a Lei Suprema brasileira de 1988 inicia o Título I com a epígrafe “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”. 23 Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] III - a dignidade da pessoa humana. 24 Art. 5º, § 1º - As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.

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Art. 5º, § 2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

36

decorrentes de tratados internacionais, além daqueles já previstos no texto constitucional. Recentemente, a Emenda Constitucional n.º 45, de 18/12/2004, que promoveu uma tímida “reforma do Poder Judiciário”, acrescentou o § 3º ao art. 5º26, estabelecendo que os tratados de direitos humanos que forem aprovados pelo Congresso Nacional serão equivalentes às emendas constitucionais, numa clara intenção de conferir fundamentalidade formal àqueles tratados. Ademais, deve-se registrar que, com o texto de 1988, os direitos fundamentais passaram a integrar o seu núcleo duro, o núcleo protegido pelas cláusulas pétreas27, condição até então exclusiva de algumas normas atinentes à organização do Estado. Portanto, da simples leitura do Título II, nota-se que a Constituição Federal de 1988 foi pródiga em estabelecer um extenso rol de direitos fundamentais. Além dessa extensa e expressa previsão, pela primeira vez na história das constituições, indo no sentido contrário da tradição constitucional, a ordem do texto constitucional de 1988 trouxe os direitos fundamentais à frente da organização do Estado. Portanto, numa opção deliberada, a assembleia constituinte elegeu uma prioridade: a preocupação com o cidadão antes do Estado. O cidadão passou a ser, então, o centro das atenções. Por isso, é comum ouvir referências à centralidade dos direitos fundamentais. Nesse sentido, transcrevem-se, a seguir, as lições de Ana Paula de Barcellos (2007, p. 603): Os direitos fundamentais têm um status diferenciado no âmbito do sistema constitucional e, a fortiori, do sistema jurídico como um todo. Fala-se da centralidade dos direitos fundamentais, como consequência da centralidade do homem e da sua dignidade. Isso significa, de forma simples, que, em última análise, tanto o Estado como o Direito existem para proteger e promover os direitos fundamentais, de modo que tais estruturas devem ser compreendidas e interpretadas tendo em conta essa diretriz.

26

Art. 5º, § 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. 27 Art. 60, § 4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I - a forma federativa de Estado; II - o voto direto, secreto, universal e periódico; III - a separação dos Poderes; IV - os direitos e garantias individuais.

37

É cediço que a positivação dos direitos fundamentais pela Constituição é uma das características do Estado Democrático de Direito. Destarte, os direitos fundamentais integram a essência do Estado Constitucional, uma vez que funcionam como o alicerce da Constituição. Dirley da Cunha Júnior (2008, p. 583) defende com altivez que a constitucionalização dos direitos fundamentais produz, em breve síntese, as seguintes consequências: a) as normas que os reconhecem situar-se-ão no escalão máximo do ordenamento jurídico positivado, não podendo ser contrariadas por nenhuma outra; b) essas normas se submetem ao processo complexo e agravado de reforma constitucional; c) tais normas funcionam como limites materiais do próprio poder reformador; d) são dotadas de imediata aplicabilidade e vinculatividade dos poderes públicos; e) são protegidas através do controle de constitucionalidade dos atos comissivos e omissivos do poder público.

Com efeito, a constitucionalização dos direitos fundamentais torna-os referência imediata, obrigatória e vinculada de organização e de limitação dos poderes constituídos, que devem pautar as suas ações e políticas de modo a respeitá-los. Eles se constituem numa categoria jurídica reconhecida em razão da dignidade da pessoa humana e são essenciais para o Estado Democrático de Direito. Os direitos fundamentais possuem características comuns que os identificam entre si e os distinguem das outras categorias jurídicas. A doutrina costuma apontar duas características: a historicidade e a universalidade. Os direitos fundamentais são históricos, na medida em que emergem progressivamente das lutas que o homem trava por sua emancipação. E são universais por serem imprescindíveis à convivência e existência digna, livre e igual da pessoa humana, destinando-se a todos os seres humanos. Como ressalta Dirley da Cunha Júnior (2008, p. 586), é da essência dos direitos fundamentais a sua generalidade, vale dizer, a sua universalidade.

38

Outrossim, cabe registrar que a moderna teoria dos direitos fundamentais vem reconhecendo uma dupla perspectiva ou dimensão dos direitos fundamentais, na medida em que esses direitos podem ser considerados tanto como posições jurídicas subjetivas essenciais de proteção do indivíduo ou como valores objetivos básicos de conformação do Estado Constitucional Democrático de Direito. Desse modo, conforme Cunha Júnior (2008, p. 590), os direitos fundamentais se manifestam ora como carta de concessões subjetivas, ora como limites objetivos de racionalização do poder e como vetor para a sua atuação. Os direitos fundamentais, portanto, devem ser observados não-somente sob a ótica das posições subjetivas conferidas aos seus titulares (perspectiva subjetiva), mas também sob o enfoque da construção de situações jurídico-objetivas, que contribuam para o atendimento das expectativas fomentadas pelos indivíduos titulares dos direitos (perspectiva objetiva). O reconhecimento dessa dupla perspectiva (subjetiva e objetiva) dos direitos fundamentais

é apontado como importante contribuição para a sua dogmática.

Alguns autores, inclusive, afirmam que essa nova perspectiva objetiva tem provocado a “hipertrofia dos direitos fundamentais”. Nesse sentido, faz-se mister colacionar o escólio de Bonavides (2000, p. 540) sobre a perspectiva objetiva dos direitos fundamentais: A perspectiva jurídico-objetiva dos direitos fundamentais provocou uma significativa variação qualitativa na compreensão dos direitos fundamentas, uma vez que rompeu e mudou uma vetusta relação direta, exclusiva e unidimensional entre o cidadão e o Estado, característica dos status negativus e do subjetivismo individualista do regime liberal, sucedendo outra relação, agora mais ampla, pluridimensional, característica do status positivus, em face da qual se reconciliam o cidadão, a Sociedade e o Estado, de modo que os direitos fundamentais, outrora jungidos à relação cidadão-Estado, extrapolam-na, ganhando validade universal e compondo a abóboda de todo o ordenamento jurídico enquanto direitos constitucional de cúpula.

2.3 Direito à Saúde: um direito social e fundamental Os direitos sociais, na teoria de Habermas (2003, p. 133), são aqueles que servem como condição para que os direitos básicos possam vir a ser exercidos. São as condições mínimas para que o indivíduo possa reconhecer nas normas da sociedade o respeito por sua própria pessoa. Nessa ordem de idéias, Rawls (2003) considera direitos fundamentais aquilo que denomina “liberdades básicas”. Para ele,

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as faculdades morais do cidadão são intrinsecamente relacionadas às liberdades básicas que delas decorrem. Vale dizer, sendo reconhecida a possibilidade de exercício das faculdades morais, automaticamente será necessário garantir certas liberdades básicas, sem as quais aquelas não podem ser exercidas, conforme afirma Dias (2007, p. 119). No sistema constitucional atual, o núcleo central dos direitos sociais assentase no direito ao trabalho, no direito à educação e no direito à seguridade social, inserindo-se neste último o direito à saúde. Hodiernamente, a doutrina não hesita ao classificar os direitos sociais como direitos fundamentais. Nesse sentido, tornouse clássica a lição do professor José Afonso da Silva (1998, p. 289), que assim se manifesta: Os direitos sociais, como dimensão dos direitos fundamentais do homem, são prestações positivas estatais, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais. São, portanto, direitos que se ligam ao direito da igualdade.

Portanto, neste trabalho, os direitos à saúde, cuja efetividade é também debatida, são considerados, inexoravelmente, como direito fundamental de segunda dimensão, como já apontado, constituindo-se verdadeiros direitos de crédito do indivíduo em face do Estado. Manifestando esse entendimento, Andreas J. Krell (2002, p. 19) afirma que os direitos fundamentais sociais (dentre eles o direito à saúde) não são direitos contra o Estado, mas sim direitos através do Estado, exigindo do poder público certas prestações materiais. Os direitos sociais surgiram com maior intensidade a partir do início do século XX e se caracterizam como direitos a prestações positivas ou direitos de crédito. O jurista gaúcho Ingo Sarlet (2007, p. 170 e ss), ao proceder a longa análise sobre a questão dos direitos fundamentais e respaldado pela doutrina alienígena de Georg Jellinek e Robert Alexy, propõe a divisão em “direitos fundamentais de defesa” e “direitos fundamentais prestacionais”, de natureza fática e jurídica. Grosso modo, os direitos de defesa correspondem aos direitos de primeira dimensão (civis e políticos) e os direitos prestacionais são os direitos sociais. Esses direitos fundamentais a prestações possuem o status positivus socialis e caracterizam-se, em geral, pela

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atuação do Poder Publico como manifestação do Estado Social, tendo em vista não somente a ideia de criação, mas também de distribuição de prestações materiais já existentes. No Brasil, de maneira inédita, os direitos sociais passaram, com a Carta Magna de 1988, a integrar expressamente o rol de direitos e garantias fundamentais (Capítulo II, do Título II), ao lado dos direitos e garantias individuais (Capítulo I, do Título II). Com essa acolhida, os direitos sociais, que no passado vinham positivados no capítulo da ordem econômica e social, ficaram livres de quaisquer dúvidas acerca de sua condição de autênticos direitos fundamentais. Para citar alguns desses direitos sociais, reconhecidos e assegurados nos arts. 6º e 7º da Constituição Federal, têm-se o direito à educação, à saúde, à moradia, ao salário mínimo, à proteção da maternidade e a infância e à licença-maternidade. Então, com base na arquitetura constitucional, os direitos sociais, da mesma forma que os direitos civis e políticos, são autênticos direitos fundamentais, dotados de eficácia e exigíveis judicialmente. Sendo direitos fundamentais, devem ser interpretados de modo a garantir a dignidade da pessoa humana e seus efeitos devem ser otimizados gradativamente, nos termos do princípio da aplicabilidade imediata. No Supremo Tribunal Federal (STF)28, a questão dos direitos sociais, notadamente os direitos à saúde, foi enfrentada, com ênfase em diferentes aspectos, desde o final da década passada e o início da década atual, tendo sido sistematizada da seguinte forma: PACIENTE COM HIV/AIDS - PESSOA DESTITUÍDA DE RECURSOS FINANCEIROS - DIREITO À VIDA E À SAÚDE - FORNECIMENTO GRATUITO DE MEDICAMENTOS - DEVER CONSTITUCIONAL DO PODER PÚBLICO (CF, ARTS. 5º, CAPUT, E 196) - PRECEDENTES (STF) - RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. O DIREITO À SAÚDE REPRESENTA CONSEQÜÊNCIA CONSTITUCIONAL INDISSOCIÁVEL DO DIREITO À VIDA - O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art. 196). Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja 28

STF. AGRRE 271286-RS, Rel. Min. Celso de Mello, DJU 23/08/2000.

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integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular - e implementar - políticas sociais e econômicas idôneas que visem a garantir, aos cidadãos, inclusive àqueles portadores do vírus HIV, o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica e medico-hospitalar. - O direito à saúde - além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas - representa conseqüência constitucional indissociável do direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional. - O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política - que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro - não pode converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado. - O reconhecimento judicial da validade jurídica de programas de distribuição gratuita de medicamentos a pessoas carentes, inclusive àquelas portadoras do vírus HIV/AIDS, dá efetividade a preceitos fundamentais da Constituição da República (arts. 5º, caput, e 196) e representa, na concreção do seu alcance, um gesto reverente e solidário de apreço à vida e à saúde das pessoas, especialmente daquelas que nada têm e nada possuem, a não ser a consciência de sua própria humanidade e de sua essencial dignidade. (Grifos não constantes do original). (RTJ 175/1212-1213, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

Como bem destaca Luís Roberto Barroso (2006, p. 107), a transcrita decisão do STF atribuiu vários rótulos ao direto à saúde: direito fundamental, norma programática, prerrogativa jurídica e preceito fundamental. No entanto, o mais relevante da decisão meritória é a disposição de dar efetividade à norma, superando pela via judicial as omissões do Poder Público, a custo de um ativismo judicial pouco visto na tradição brasileira. Portanto, não há dúvidas de que a saúde é um direito humano fundamental, aliás, como bem salienta Ingo Sarlet (2002, p. 3), “fundamentalíssimo”, pois, mesmo em países nos quais não está expressamente previsto na Constituição, há o seu reconhecimento como direito fundamental, tal como ocorre na Alemanha. Superada a discussão acerca da fundamentalidade dos direitos sociais, o jurista Luís Roberto Barroso (2006, p. 99), avançando no tema, classifica o direito à saúde, integrantes dos direitos sociais, como norma constitucional definidora de direitos. Essas normas, explica Barroso, criam para os seus beneficiários situações jurídicas imediatamente desfrutáveis, a serem materializadas em prestações positivas ou negativas. Caso as prestações não sejam satisfeitas, pelo Estado ou por quem tenha o dever jurídico de realizá-las,

tem-se

a

possibilidade

de

seus

destinatários postularem

seu

42

cumprimento, inclusive em juízo. Desse modo, no entendimento do autor, os direitos à saúde se configuram um direito subjetivo.29 Nessa seara dos direitos à saúde, Ingo Sarlet (2002, p. 10 e ss), abordando o seu aspecto positivo ou prestacional, aponta algumas reais dificuldades para a sua implementação. Exemplificando uma dessas dificuldades, o autor afirma que a Constituição de 1988 não define claramente em que consiste o direito à saúde, limitando-se a algumas referências genéricas, apesar dos termos dispostos nos artigos 196 a 200. Conclui o autor, em que pesem essas dificuldades, que o direito à saúde tem a prerrogativa de ser exercido plenamente, nos moldes de direito público subjetivo. Passando a abordar a eficácia do direito à saúde, Ingo Sarlet (2002, p. 2-3), enfatizando a sua fundamentalidade formal e material, posiciona-se do seguinte modo: Assim, a saúde comunga, na nossa ordem juridico-constitucional, da dupla fundamentalidade formal e material da qual se revestem os direitos e garantias fundamentais (e que, por esta razão, assim são designados) na nossa ordem constitucional. A fundamentalidade formal encontra-se ligada ao direito constitucional positivo e, ao menos na Constituição pátria, desdobra-se em três elementos: a) como parte integrante da Constituição escrita, os direitos fundamentais (e, portanto, também a saúde), situam-se no ápice de todo o ordenamento jurídico, cuidando-se, pois, de norma de superior hierarquia; b) na condição de normas fundamentais insculpidas na Constituição escrita, encontram-se submetidos aos limites formais (procedimento agravado para modificação dos preceitos constitucionais) e materiais (as assim denominadas “clausulas pétreas”) da reforma constitucional; c) por derradeiro, nos termos do que dispõe o artigo 5, §1º, da Constituição, as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais são diretamente aplicáveis e vinculam diretamente as entidades estatais e os particulares. [...] Já no que diz com a fundamentalidade em sentido material, esta encontra-se ligada a relevância do bem jurídico tutelado pela ordem constitucional, o que - dada a inquestionável importância da saúde para a vida (e vida com dignidade) humana dispensa maiores comentários.

Por todo o exposto, não pairam dúvidas de que os direitos sociais, dentre eles os direitos à saúde, são reconhecidos como espécie dos direitos fundamentais e se 29

Segundo Luís Roberto Barroso (2006, p. 99-100), singularizam o direito subjetivo, distinguindo-o de outras posições jurídicas, a presença, cumulada, das seguintes características: a) a ele corresponde sempre um dever jurídico; b) ele é inviolável, ou seja, existe a possibilidade de que a parte contrária deixe de cumprir o seu dever; c) a ordem jurídica coloca à disposição de seu titular um meio jurídico – que é a ação judicial – para exigirlhe o cumprimento deflagrando os mecanismos coercitivos e sancionatórios do Estado.

43

constituem um direito subjetivo de todos os cidadãos brasileiros, gerando o dever do Estado de propiciá-los à universalidade dos cidadãos. Diante desse fato, Marcos Maselli Gouvêa (2004, p. 210) constata que, ao referenciar o direito à saúde à categoria dos direitos fundamentais, o legislador nacional atrela seu conteúdo à série de características típicas dos direitos fundamentais, quais sejam: a preexistência à ordem positiva; imprescritibilidade, inalienabilidade, oponibilidade erga omnes, autoaplicabilidade, caráter absoluto e prioridade. A Constituição Brasileira, no seu art. 196, consagra o direito à saúde como direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação. Observa-se certa divergência doutrinária e jurisprudencial sobre a interpretação do dispositivo transcrito. E essa divergência interpretativa gravita em torno da possível dimensão programática do direito à saúde. Luís Roberto Barroso (2006, p. 210) chega a apontar que a dicção do art. 196 é ambígua, uma vez que, de um lado faz referência ao “direito” à saúde e ao “dever” do Estado, e, de outra banda, fala em “políticas sociais” e “econômicas” que não estão especificadas, com uma redação típica de norma programática.30 Destarte, diferentes posicionamentos se apresentaram e formaram, basicamente, duas correntes a depender do entendimento sobre a carga eficacial do dispositivo em questão.

De

um

lado,

encontram-se

aqueles

que

enxergam

implicações

prestacionais no comando constitucional do direito à saúde, atribuindo-lhe aplicabilidade imediata. No outro lado, há outros tantos que entendem que o art. 196 não passa de norma programática, de mera diretriz a ser seguida pelo administrador público na medida em que sua sensibilidade política reputar conveniente, conforme sintetizou Marcos Maselli Gôuvea (2004, p. 218). Pode-se afirmar que, hodiernamente, a divergência entre os dois lados encontra-se arrefecida. As discussões atuais que se têm observado giram em torno 30

Normas programáticas são aquelas em que a Constituição apenas aponta um norte, estabelece uma direção, uma diretriz, cabendo à legislação infraconstitucional ou à Administração Pública implementar o conteúdo e promover a efetividade do dispositivo.

44

da forma e dos meios de efetivação dos direitos fundamentais à saúde. Há uma patente preocupação com a busca pela máxima efetividade e não apenas com a exegese do dispositivo. Nesse sentido, Marcos Maselli Gôuvea (2004, p. 218) entende que a discussão mais recente e aprofundada acerca da eficácia dos preceitos constitucionais ligados à saúde, felizmente, tem abandonado o viés positivista de se debruçar simplesmente na gramaticalidade do texto legislado. Os direitos sociais são comumente identificados como aqueles que envolvem prestações positivas por parte do Estado, razão pela qual, como afirma Luís Roberto Barroso (2008, p. 223), demandariam investimento de recursos, nem sempre disponíveis. Para Dirley da Cunha Júnior (2004, p. 283) os direitos sociais se caracterizam, verdadeiramente, pela existência de necessidade de um atuar permanente do Estado, ou, utilizando suas palavras, um “facere” consistente numa prestação positiva de natureza material ou fática em benefício do indivíduo. A esses direitos a prestações fáticas, Robert Alexy (2008, p. 500) chama de direitos sociais em sentido estrito, que os indivíduos podem exigir do Estado. Outrossim, cabe abrir um parêntese para advertir que não se pode perder de vista o atual entendimento sobre o que significa saúde. Há muito que a saúde já é compreendida como “um estado dinâmico de completo bem-estar físico, mental, espiritual e social e não apenas a ausência de doença ou enfermidade”31. Há, portanto, uma relação estreita da saúde com a questão da qualidade de vida. Desse modo, prestar efetivamente bons serviços de saúde não é somente se preocupar em curar as doenças e enfermidades da população. É preciso disponibilizar situações e serviços que garantam o bem-estar físico, mental, espiritual e social dos indivíduos. Assim, diante desse amplo conceito, os serviços públicos de saúde devem ser integrados por um conjunto de ações que abranjam não-somente as medidas preventivas do adoecimento, mas também as providências que assegurem o conforto mínimo físico, emocional e social dos indivíduos. Portanto, promover a saúde não é apenas curar doenças do corpo e da mente. Com esse pensar, Raquel

31

Atual conceito de saúde fornecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

45

Melo Urbano de Carvalho (2009, p. 44) leciona que seria intolerável reduzir o dever consagrado no art. 196 da CR à medicina curativa. 2.4 Os direitos fundamentais à saúde e sua dependência das políticas sociais Tais direitos sociais, já referidos como prestacionais, materializam-se com a entrega de determinadas utilidades concretas, como é o caso da saúde pública. Não basta que o Estado incorpore, em âmbito constitucional, um extenso rol de direitos sociais em prol do cidadão. É dever estatal planejar suas ações e realizar esses direitos no plano concreto, cumprindo os mandamentos constitucionais, mormente os relacionados à dignidade da pessoa humana, o que está indissociável da garantia de um mínimo existencial, como será a abordado no Capítulo 5. Portanto, esse dever estatal de planejamento e realização das prestações positivas garantidoras dos direitos sociais se efetiva por meio das políticas sociais.

Ingo Sarlet (2007, p. 298), além de salientar a dificuldade para definir o conteúdo prestacional do direito em tela, ainda se refere à questão prática, haja vista que a realização destes direitos depende da disponibilização de meios e, também, da progressiva implementação e execução de políticas públicas na esfera socioeconômica. Nesse sentido, cabe trazer a lume o trabalho de Flávio Galdino (apud Torres, 2009, p. 77), que, com o sugestivo título “Direitos não nascem em árvores”, esforça-se para demonstrar que o senso comum formado no pensamento jurídico brasileiro em torno dos direitos fulcra-se em premissa equivocada, qual seja, de que existem direitos fundamentais cuja tutela estatal independe de qualquer ação positiva, e, portanto, de qualquer custo. Desse modo, resta inequívoco que o usufruto desses direitos sociais à saúde dependerá, sobremaneira, de ações governamentais, melhor denominadas de políticas sociais. Diante desse quadro, infere-se que a realização desses direitos irá consumir

consideráveis

recursos

públicos.

Pode-se

afirmar

que

a

constitucionalização do direito à saúde na atual Carta Magna possui duas

46

características principais: o seu reconhecimento como direito fundamental e a definição dos princípios que regem a política publica de saúde. Ou seja, a Constituição de 1988, mesmo que sem a clareza visualizada em outras áreas, como na educação32, passou a definir algumas diretrizes para a implementação das políticas de saúde. Como já visto, a Lex Legum, no seu art. 196, consagrou o direito à saúde como direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas. Desse modo, três aspectos se sobressaltam do dispositivo constitucional. O primeiro é a questão da universalidade dos direitos à saúde (consagrado na expressão direito de todos). Ou seja, as políticas adotadas para garantir tal direito devem respeitar o seu caráter universal. O segundo aspecto, advindo da expressão dever do Estado, é bem tortuoso e complexo. De acordo com Vanice Regina Lírio do Valle (2009, p. 63), a dificuldade está em definir qual o conteúdo desse dever – e esse é o tema de todo o contencioso envolvendo à garantia desse mesmo direito fundamental. Há uma patente indeterminação do conteúdo da ação estatal, gerando, inevitavelmente, uma liberdade quanto ao grau de concretização obrigatória pelo Estado. Já o terceiro aspecto, evidenciado na expressão mediante políticas sociais e econômicas, não apresenta grandes dificuldades interpretativas, embora ainda se encontrem posicionamentos contrários ao evidente caráter programático desse dispositivo. É de clareza solar que a implementação dos direitos à saúde dependerá diretamente da adoção de políticas públicas pelos entes estatais. Não se pode negar a natureza programática do direito à saúde, nem a possibilidade de escolha governamental entre as várias condutas possíveis e aptas para promover o acesso universal aos serviços de saúde. A Administração Pública possui a prerrogativa constitucional de escolher pelas medidas que melhor atendam as necessidades da população como um todo. Cabe ao Poder Executivo, nas suas diferentes esferas de governo, estabelecer, com base nas diretrizes constitucionais, os critérios para a 32

Conforme já abordado na Introdução, na área da educação, o texto constitucional enunciou expressamente, em seu art. 208, quais são as vertentes de atuação cuja garantia seja dever do Estado, numa solução que explicita mais o que lhe seja exigível.

47

adoção

das

políticas

públicas

de

saúde,

como,

por

exemplo,

critérios

epidemiológicos, maior ou menor prevalência, gravidade de contaminação dos diversos males que atacam a saúde das pessoas, grau de comprovação de eficácia de condutas médicas e de medicamentos, etc. Contudo, tal caráter programático da norma e a consequente liberdade de ação para a Administração Pública não tem o condão de retirar a natureza fundamental, subjetiva e individual do direito à saúde. Afirmando esse pensamento, Andrea Salazar e Karina Grou (2009, p. 32) lecionam que diante de necessidades peculiares não previstas nas políticas públicas, e que sejam prementes para assegurar sua vida e sua saúde, o indivíduo tem a prerrogativa de solicitá-las aos órgãos competentes, incluindo, naturalmente, o Poder Judiciário. Nesse diapasão, o gaúcho Ingo Sarlet (2007, p. 327) reconhece que as normas constitucionais que tratam do direito à saúde (arts. 196 e SS) possuem cunho programático e impositivo, uma vez que também estabelecem uma série de tarefas

e

diretrizes.

No

entanto,

o

cunho

programático

dessas

normas

constitucionais não é impeditivo da outorga dos direitos subjetivos, inclusive os prestacionais. Ao revés, o autor vislumbra a possibilidade de, para alem dessa dimensão programática, as referidas normas reconhecerem direitos subjetivos aos seus beneficiários. Conforme já abordado no item anterior, a dicção do art. 196 é ambígua, uma vez que, de um lado faz referência ao direito à saúde e ao dever do Estado, e, de outro, fala em políticas sociais e econômicas que não estão especificadas. Assim sendo, a implementação dessas políticas públicas, visando ao pronto atendimento dos diversos aspectos do direito à saúde, é, nas palavras de Luís Roberto Barroso (2006, p. 105), bastante complexa e, por vezes, se depara com limites de cunho econômico e político. O autor se refere ainda aos aspectos da “reserva do possível”, tema este adiante encarado. Assim, diante da inescapável dependência de um aparato financeiro e orçamentário para a implementação das políticas públicas que irão garantir os

48

direitos sociais, vários doutrinadores, a exemplo de Ingo Sarlet, são incisivos ao afirmar que o Estado possui apenas limitada capacidade de dispor sobre o objeto dessas prestações sociais. Como assevera Sarlet (2007, p. 347), a questão da limitação dos recursos constitui limite fático à efetivação desses direitos. Mais à frente, de maneira clara e elucidativa, Ingo Sarlet (2007, p. 376) vai afirmar que: O que a Constituição assegura é que todos tenham, em princípio, as mesmas condições de acessar o sistema público de saúde, mas não que qualquer pessoa, em qualquer circunstância, tenha um direito subjetivo definitivo a qualquer prestação oferecida pelo Estado ou mesmo a qualquer prestação que envolva a proteção à saúde.

2.5 Políticas sociais: origem, conceitos e possibilidades Um trabalho que pretenda abordar os aspectos relacionados ao controle jurisdicional das políticas públicas deve, inevitavelmente, delimitar o que sejam essas políticas públicas, definindo os seus conceitos teóricos e precisando os seus contornos. Portanto, a construção teórica das políticas públicas fez parte das pesquisas materializadas no presente texto. Constata-se que cada vez mais o tema políticas públicas vai se infiltrando entre as preocupações do jurista. De logo, registre-se que o conceito de políticas públicas é muito mais afeto à ciência política, sociologia e ciência da administração do que à ciência jurídica, que somente passou a se ocupar do tema nas últimas décadas. Como observa Potyara Pereira (2008, p. 163), nunca se falou tanto em política social como nos últimos tempos. Para a autora, a menção a esse tipo de política se tornou uma recorrente tendência intelectual e política. Diante disso, a abordagem sobre esse tema será eminentemente multidisciplinar. De acordo com o entendimento tradicional, as políticas públicas no Brasil se desenvolvem em duas frentes, quais sejam, políticas públicas de natureza econômica e de natureza social. Para Eduardo Appio (2007, p. 136), ambas possuem um sentido complementar e uma finalidade comum, qual seja, de impulsionar o desenvolvimento da Nação, através da melhoria das condições gerais de vida de todos os cidadãos.

49

Então,

as

políticas

sociais,

ao

lado

das

econômicas,

devem

ser

compreendidas como uma espécie do gênero “políticas públicas”. Corroborando esse entendimento, Potyara Pereira (2008, p. 173) afirma categoricamente que a política social é uma espécie do gênero política pública (public policy). Tendo em vista que a linha segregadora de uma espécie para outra é tênue, Cohen e Franco (2004, p. 19) recomendam explorar os verdadeiros limites – usualmente confusos – que separam a política econômica da política social. Embora seja relevante considerar essas diferenças33, o que importa frisar neste trabalho é que as políticas sociais são, de fato, espécies de políticas públicas. Desse modo, no presente trabalho, a terminologia políticas sociais será sempre utilizada com essa ideia de espécie do gênero políticas públicas. A ênfase será dada na espécie “políticas sociais”, notadamente na área de saúde pública.

Sabe-se que as políticas públicas (englobando as suas duas espécies: políticas econômicas e sociais) se relacionam intimamente com a evolução do capitalismo. Para o cientista social Euvaldo Vieira (2007, p. 136), qualquer exame da política econômica e da política social deve fundamentar-se no desenvolvimento contraditório da história. E tal exame, para o autor, revelará as vinculações dessas políticas com a acumulação capitalista. No caso específico das políticas sociais, tem-se que a sua construção surge das mobilizações operárias sucedidas ao longo das primeiras revoluções industriais. Nesse sentido, Vieira, apoiado na obra de T. H. Marshall, sustenta que a política social somente “pôde existir com o surgimento dos movimentos populares do século XIX.” Portanto, remontando às suas origens, compreende-se que a política social é uma maneira de expressar as relações sociais, cujas raízes se localizam no mundo da produção. Portanto, os planos,os programas, os projetos referentes em certo

33

Cabe aqui trazer a lição de Euvaldo Vieira (2007 p. 142), que entende que a política econômica e a política social apenas formalmente se distinguem e, às vezes, dão a enganosa impressão de que tratam de coisas muito diferentes. Prosseguindo com os seus pensamentos, o autor ainda adverte que não se pode analisar a política social sem remeter à questão do desenvolvimento econômico, ou seja, à transformação quantitativa e qualitativa das relações econômicas, decorrente de processo de acumulação de capital.

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momento à saúde, educação, habitação popular, trabalho, etc., não se colocam como totalidades absolutas (VIEIRA, 2007,p. 142-143). Partindo para a definição das políticas públicas, faz-se mister uma primária abordagem sobre a conotação do termo “política”. Para Ronald Dworkin (2002, p. 36), política é aquele tipo de padrão que estabelece um objetivo a ser alcançado, em geral, uma melhoria em algum aspecto econômico, político ou social da comunidade (ainda que certos objetivos sejam negativos pelo fato de estipularem que algum estado atual deva ser protegido contra mudanças adversas).

Destarte, o conceito de política adotado por Dworkin está, conforme Dias (2007, p. 41), estruturado em função de dois elementos centrais: a existência de uma entidade capaz de produzir tais padrões (comunidade política) e a identificação dos objetivos e a fixação de meios com o fim de alcançá-los. Essa definição de “política” por Dworkin é totalmente compatível com as noções de política econômica e de política social, mas se afasta um pouco da forma como a Ciência Política a compreende. Para essa ciência, “política” significa o estudo do poder, mais precisamente do poder estatal. Então, seguindo essa ordem de ideias, deve-se entender por políticas públicas, de acordo com Boneti (2007, p. 74) o resultado da dinâmica do jogo de forças que se estabelece no âmbito das relações de poder, relações essas constituídas pelos grupos econômicos e políticos, classe sociais e demais organizações da sociedade civil. Não se afastando muito dessa concepção, Dias (2007, p. 44) preconiza que as políticas públicas são programas de intervenção estatal a partir de sistematizações de ações do Estado voltadas para a consecução de determinados fins setoriais ou gerais, baseados na articulação entre a sociedade, o próprio Estado e o mercado. Na clássica definição de Maria Paula Bucci (2006, p. 252), políticas públicas são instrumentos de ação dos governos, e, como categoria analítica,

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envolveriam sempre uma conotação valorativa; de um lado, do ponto de vista de quem quer demonstrar a racionalidade da ação governamental, apontando os vetores que a orientam; de outro, da perspectiva de seus opositores, cujo questionamento estará voltado à coerência ou eficiência da ação governamental. Essa dimensão axiológica das políticas públicas aparece nos fins da ação governamental, os quais se detalham e concretizam em metas e objetivos.

Ainda conforme Bucci (2006, 241), as políticas públicas são programas de ação governamental visando a coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados. Pode-se então concluir que as políticas públicas simbolizam a pretensão de planejamento social a partir da execução dos projetos governamentais das sociedades contemporâneas. Entretanto, cabe advertir, com base em Bucci (2006, p. 259), que a política é mais ampla que os planos e projetos, constituindo-se, a priori, num processo de escolha dos meios para a realização dos objetivos do governo. Para ela (2006, p. 264), as políticas públicas devem ser vistas como processo ou conjunto de processos que culmina na escolha racional e coletiva de prioridades, para a definição dos interesses públicos reconhecidos pelo direitos.

Dessa forma, a política pública transcende os instrumentos normativos do plano ou programa. Diante desse entendimento, José Reinaldo de Lima Lopes (2005, p. 132) afirma que para a compreensão das políticas públicas é essencial compreender-se o regime das finanças públicas. Vieira (2007, p. 142) adverte que a política social consiste em uma estratégia governamental e normalmente se exibe em forma de relações jurídicas e políticas, não podendo ser compreendida por si mesma. Conclui-se, portanto, com supedâneo em Potyara Pereira (2008, p. 171), que, apesar de o termo política social estar relacionado a todos os outros conteúdos políticos, possui identidade própria. Conforme a autora, a política social refere-se à política de ação que visa, mediante esforço organizado e pactuado, atender necessidades sociais cuja resolução ultrapassa a iniciativa privada, individual e espontânea, e requer deliberada decisão coletiva regida por princípios de justiça social. Desse modo, a política social está

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inexoravelmente relacionada ao Estado, aos governos, às políticas (no sentido de poder) e aos movimentos dos vários segmentos da sociedade. Por fim, cabe trazer as características apontadas por Vanice Regina Lírio do Valle para as políticas públicas. Para ela (2009, p. 37), duas idéias despontam dos conceitos de políticas públicas: a “multiplicidade” e “continuum”. Explicando essas características, a multiplicidade seria de atores, de possibilidades e de instrumento de concretização; continuum seria a continuidade de ações (ou omissões) determinado consequências práticas. Assim, em face da associação dos conceitos das políticas públicas com os planos, programas, projeto, fica evidenciada uma projeção no tempo do agir estatal. Vale dizer, as ações adotadas pela Administração Pública visando concretizar uma determinada política social terão sempre a característica da continuidade, da gradualidade temporal. Assim sendo, os resultados pretendidos dependerão inevitavelmente do transcurso do tempo. Apoiada nesses aspectos, Vanice do Valle (2009, p. 37) define as possibilidades das políticas públicas do seguinte modo: Políticas públicas expressam, portanto, decisões – nos termos do conceito supratranscrito – que, todavia, se constroem a partir do signo da multiplicidade, e hão de ser entendidas numa perspectiva de continuidade, de projeção para o futuro de efeitos e obrigações.

Diante dessas perspectivas abordadas, pode-se afirmar que uma determinada política social não pode ser objeto de qualquer avaliação, dissociada de sua relação com o tempo e com os aspectos financeiros. 2.6 A efetividade dos direitos fundamentais à saúde Desde a advertência clássica de Ferdinand Lassale (2001), feita na sua célebre obra “A essência da Constituição”, publicada no século XIX, tem-se como certo o desafio consistente no distanciamento entre a enunciação textual de um Diploma Fundamental, e sua transposição para o plano da vida real. Para Lassale, a constituição de um país é, em essência, a soma de fatores reais do poder, que irão reger uma nação. Essa é a constituição real e efetiva. Porém, se a constituição escrita não se coadunar com esses fatores reais de poder, não passará de uma

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mera folha de papel. Com base nesse entendimento, o democrata-social alemão ensina que uma constituição escrita somente será considerada boa e duradoura quando refletir os fatores reais e efetivos do poder. Nesse sentido, Lassale (2001, p. 68) adverte que de nada serve o que se escreve numa folha de papel se não se ajusta à realidade, aos fatores reais e efetivos do poder. No caso brasileiro, esse dilema entre a enunciação de direitos sociais e o arcabouço institucional apto à sua concretização incorporou-se definitivamente à agenda jurisdicional, como bem registra Vanice do Valle (2009, p. 57). Nesse âmbito, cabe trazer a advertência do Ministro do STJ Luiz Fux34: a Constituição não é ornamental, não se resume a um museu de princípios, não é meramente um ideário; reclama efetividade real de suas normas. Na sua promulgação, a Carta Magna de 1988 tinha 245 artigos e 1.627 dispositivos, constituindo-se em uma das maiores do mundo. Atualmente, a Lex Legum continua crescendo, já são 70 emendas (06 de revisão e 64 ordinárias) incorporadas ao texto original, tornando-a 25% maior. Para se ter uma ideia desse ritmo de ampliação constitucional, recentemente, mais precisamente em 04/02/2010, o dispositivo referente aos direitos sociais sofreu uma salutar alteração, para incorporar mais um direto: à alimentação35. Portanto, essa situação não pode ser vista como um defeito em si, muito pelo contrário, significa, pelo menos em tese, uma grande vitória da cidadania36. Abordando a questão da efetividade dos direitos fundamentais, o memorável filósofo italiano Norberto Bobbio (1992, p. 24) deixou a consagrada lição, com significativa ressonância no Brasil, de que o problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los.

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REsp n.º 836.913-RS. Rel. Min. Luiz Fux, 1ª Turma do STJ, DJU de 31/05/2007, p 371. Com a promulgação da Emenda Constitucional n.º 64, o art. 6º da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte redação: "Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição." (NR) 36 O que levou, inclusive, o Presidente da Assembleia Constituinte a apelidar a nova carta de Constituição-cidadã. Entretanto, com um pensamento mais crítico, o ilustre historiador e membro da Academia 35

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Explicitando o significado do termo efetividade, tem-se que se trata da realização do direito, a partir do desempenho concreto da sua função social. Em lapidar definição, Barroso (2006, p. 82-83) entende que a efetividade representa a materialização, no mundo dos fatos, dos preceitos legais e simboliza a aproximação tão íntima quanto possível, entre o dever-ser normativo e o ser da realidade social. Nesse particular, seguindo as lições de Michel Temer (1998, p. 23), é pertinente registrar que a eficácia das normas divide-se no plano jurídico e social. A eficácia jurídica observa-se quando a regra está pronta e acabada para produzir seus efeitos desejados, é uma conseqüência da sua simples edição. A eficácia social se verifica quando a norma, além de vigente, é efetivamente aplicada ao caso concreto. Assim, todas as normas constitucionais detêm eficácia, seja jurídica ou social, ou apenas jurídica. Vale dizer, todas as normas constitucionais são dotadas de eficácia jurídica, no sentido de que seu efeito principal é revogar a ordem jurídica naquilo que com ela for incompatível. Ocorre que poderá a norma não ter eficácia social, que se verifica no caso de não ser efetivamente aplicada aos casos concretos. Portanto, o conceito de eficácia social da norma guarda íntima relação com a sua efetividade, podendo ser consideradas como sinônimas. Abordando essa diferença entre a eficácia jurídica e efetividade (ou eficácia social), Andreas Krell (2002, p. 39) leciona o seguinte: Por eficácia jurídica entendemos a capacidade (potencial) de uma norma constitucional produzir efeitos jurídicos. A efetividade, por sua vez, significa o desempenho concreto da função social do Direito, representa a materialização, no mundo dos fatos, dos preceitos legais e simboliza a aproximação entre o dever-ser normativo e o ser da realidade social.

Hodiernamente, o reconhecimento da força normativa das normas e princípios constitucionais não se encontra mais em discussão. Essa fase foi superada. O problema a ser enfrentado agora é justamente no que tange à efetividade dessas normas constitucionais, pois a partir do momento em que houve uma ampliação significativa dos direitos sociais (desde o preâmbulo da Constituição) e diversos Brasileira de Letras José Murilo de Carvalho (2004, p. 199) assevera que a Constituição de 1988 contribuiu para a popularização do conceito de cidadania a ponto mesmo de banalizá-lo.

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temas ganharam envergadura constitucional, há uma patente dificuldade em se concretizar esse extenso elenco de direitos. Assim, no campo dos direitos fundamentais, a questão atual que se afigura demasiadamente tormentosa e pontual diz respeito à sua efetividade, à sua concretização. Nesse cenário, identifica-se um movimento jurídico-acadêmico denominado de “doutrina brasileira da efetividade”, que busca superar algumas crônicas disfunções da formação nacional, oriundas da utilização meramente retórica e demagógica da Constituição, da sua mistificação ideológica e da falta de determinação política em dar-lhe cumprimento. A essência da doutrina da efetividade é tornar as normas constitucionais aplicáveis direta e imediatamente, na extensão máxima de sua densidade normativa.37 Quem aborda o tema dessa carência de efetividade com lucidez e firmeza é o professor Luís Roberto Barroso, que chega a utilizar a nomenclatura “frustração constitucional” para nominar um dos capítulos do seu livro e “insinceridade normativa” para intitular um dos subitens desse capítulo. Com base no escólio do autor, é comum a existência formal e inútil de Constituições que invocam o que não está presente, afirmando o que não é verdade e prometendo o que não é exeqüível, num excesso de ambição que colide com as possibilidades reais do Estado. Para Barroso (2006, p. 64), todas estas normas, que ressoam preciosamente inócuas, padecem de um mesmo mal: não são eficazes na prática, não se realizam efetivamente no dia-a-dia da vida das pessoas. O ideário constitucional torna-se, assim, vazio e vão. Dentre diversos dispositivos, a Carta Magna de 1988 preconiza que o principal vetor na ordem econômica e social brasileira é, ao lado do desenvolvimento, a justiça social (art. 160, caput); que o trabalho é mais valorizado que o capital (art. 160, II), que a propriedade terá sempre uma função social (art. 160, III); que os trabalhadores perceberão sempre um salário mínimo capaz de satisfazer às suas necessidades básicas e às de sua família. Enfim, diante desse 37

Sobre esse movimento jurídico-acadêmico, v. Luís Roberto Barroso (2006), que reservou um capítulo post scriptum na sua obra para abordar essa doutrina da efetividade. Consoante sua visão (2006, p. 284), essa doutrina se consolidou no Brasil como mecanismo eficiente de enfrentamento da insinceridade normativa e de superação da supremacia política exercida fora e acima da Constituição. O autor, por fidelidade ideológica, atribui a paternidade da expressão doutrina brasileira da efetividade a Cláudio Pereira de Souza Neto.

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arcabouço normativo que estabelece uma série de direitos sociais, pode-se afirmar que a Constituição vem se transformando em um mito, em um mero instrumento demagógico, pois está repleta de promessas que não poderão ser honradas na sua plenitude, como bem arremata Barroso (2006, p. 63). Essa situação representa a grande tensão vivida modernamente entre a norma e a realidade. Tal tensão é traduzida por Vera Telles pela dicotomia Brasil legal e Brasil real. Para Teles (2001, p. 43), no interior de um imaginário que desrealiza a realidade do vazio e de carência, a questão da pobreza esclarece algo desse divórcio entre Brasil real e Brasil legal. Ao analisar essa questão da concretização dos direitos fundamentais, o alemão Robert Alexy (2008, p. 502) apresenta uma divisão para o seu atendimento, ao estabelecer um programa minimalista e um programa maximalista. O primeiro diz respeito ao atendimento dos chamados direitos mínimos e o segundo programa tenta promover uma realização completa dos direitos fundamentais. Segundo o autor, essa diversidade de capacidade de atendimento (mínimo e máximo) dá ensejo à suposição de que o problema dos direitos fundamentais sociais não pode ser resumido a uma questão de tudo-ou-nada. Decerto, a Constituição Federal de 1988 expressou a aspiração por uma sociedade democrática e mais justa e igualitária. Assim, um dos maiores dramas atuais do Direito é conseguir evoluir da mera enunciação de princípios e regras à sua concretude, com um efetivo cumprimento das normas estabelecidas. Demonstrando a complexidade do tema, Thomas Fleine (apud Freire Júnior, 2005, p. 95), ao se questionar como podem ser realizados (efetivados) e protegidos os direitos fundamentais do homem, afirma que aquele que pudesse dar uma resposta válida para esta pergunta deveria receber vários prêmios Nobel da paz. De fato, com supedâneo nas lições de Bobbio, a questão da efetividade é o grande problema atual a ser enfrentado na seara dos direitos fundamentais. Luís Roberto Barroso (2008, p. 224) proclama que a efetividade foi a passagem do velho para o novo direito constitucional, fazendo com que a Constituição deixasse de ser

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uma miragem, com as honras de uma falsa supremacia, que não se traduzia em proveito para a cidadania. Entretanto, essa evolução na efetividade não pode ser alcançada a qualquer custo. É preciso que haja ações racionais e que os poderes constituídos prezem sempre pela tão-almejada harmonia38. A questão da efetividade dos direitos sociais não se resolve por intermédio de ações pontuais e isoladas de cada um dos poderes do Estado. É preciso ter uma visão sistêmica e holística dos problemas que gravitam sobre as políticas sociais. Nesse diapasão, trazendo as lições de Maria Fariñas Dulce, Andreas Krell (2002, p. 39) afirma que: Quaisquer estudos a respeito da efetividade dos direitos sociais devem incluir necessariamente o comportamento dos operadores, que protagonizam a sua implementação, isto é, todas as pessoas, autoridades ou organismos públicos, grupos de pressão, operadores sociais, etc.

Enfim, a questão da efetividade dos direitos sociais é um grande desafio que se apresenta para a sociedade atual. E para a sua superação torna-se necessário o exercício criativo e racional para atuação dos diversos atores do processo, que transpassa por várias áreas do conhecimento. Logicamente que não será possível, de imediato, dar efetividade a todos os direitos sociais, mas, com base em critérios razoáveis, pode-se pautar no atendimento do núcleo essencial desses direitos (mínimo existencial), cujo conteúdo, gradativamente, será dilatado à medida em que se concretiza o seu patamar básico. É a questão da gradualidade na efetivação dos direitos fundamentais. Tal característica, inclusive, já foi apontada pelo STF39, na paradigmática decisão da ADPF n.º 45, posteriormente transcrita e comentada aqui neste trabalho. Na ocasião, o Ministro Celso de Mello reconheceu que a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais se caracteriza pela gradualidade de seu processo de

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Inclusive, a própria Lei Suprema do país preconiza a harmonia entre os poderes. Veja-se a dicção constitucional: “Art. 2º. São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.” 39 STF. ADPF n.º 45, Rel. Min. Celso de Mello, j. 29/04/2004, DJU 04/05/2004.

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concretização. Há quem prefira se referir a esse processo como uma eficácia progressiva dos direitos fundamentais40. Com opinião similar, Leonardo Boff (apud Pereira, 2004, p. 98) denomina esse processo de universalidade pela via da parcialidade. Segue o escólio do estudioso Boff: Em função disso, hierarquiza prioridades; primeiro, salvar a vida dos pobres; depois, garantir os meios de vida para todos (trabalho, moradia, saúde, educação, segurança); em seguida, assegurar a sustentabilidade da casa comum, a Terra, com seus ecossistemas e a imensa biodiversidade, e a partir dessa plataforma básica, garantir as condições para realizar os demais direitos fundamentais, consagrados em tantas declarações universais.

Por fim, não se pode olvidar a também moderna teoria que defende a eficácia horizontal dos direitos fundamentais.41 Por essa teoria, os direitos fundamentais se aplicam também às relações privadas (relação entre particulares).

3. A FINITUDE DOS RECURSOS PÚBLICOS E A NECESSIDADE DE ESCOLHAS POLÍTICAS ALOCATIVAS 3.1 Limites Gerais das Políticas Públicas Como já abordado no capítulo anterior, a Constituição brasileira apresenta um vasto catálogo de direitos sociais, com conteúdo complexo e plural. Tais direitos, alcunhados de prestacionais, exigem, para a sua efetivação, ações positivas do Estado (por meio das políticas públicas) e se apresentam em constante crescimento de demanda. Nessa esteira, Ana Paula de Barcellos (2008, p. 259) ressalta que falar 40

Preferindo essa terminologia, Clemerson Clève (2010, p. 09) afirma peremptoriamente que os direitos fundamentais sociais são direitos de eficácia progressiva. 41 De acordo com Silva Neto (2006, p. 468), essa teoria da eficácia horizontal dos diretos fundamentais surgiu no século passado na Alemanha. Podem-se encontrar outras nomenclaturas para se referir a essa mesma teoria. Assim, a depender da preferência do autor, têm-se também a “eficácia direta dos direitos fundamentais nas relações privadas”, “eficácia privada dos direitos fundamentais” e “eficácia externa dos direitos fundamentais”.

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em concretização de direitos fundamentais sempre se traduz em uma implantação onerosa. Com pensamento similar, Araken de Assis (2007, p. 85) afirma que, nos casos em que os direitos dependem de prestações positivas do Estado, sua concessão fica subordinada às condições econômicas, que representam um limite real (circunstância fáticas) ao seu oferecimento. Deve-se registrar que a demanda por políticas públicas engloba inúmeros e infindáveis anseios em diversas áreas, como a saúde, educação, moradia, saneamento básico, segurança, transporte, lazer, cultura, entre outros. De fato, essas demandas, inseridas no contexto dos direitos fundamentais e que são direcionadas ao Estado, precisam ser satisfeitas pelos poderes públicos. Nota-se também o surgimento de demandas em novas áreas sociais, que passam a se configurar, cada vez mais, como necessidades públicas, como é o caso do livre acesso às tecnologias de informação, acarretando a inevitável consequência da adoção de políticas públicas de inclusão digital42 voltadas à satisfação dessas novas demandas. Na área de saúde, a variedade de demandas é bem visível, haja vista que existem intensas procuras por fornecimento gratuito de medicamentos, pelos mais diversos tipos de exames, de tratamentos, de cirurgias, etc.

Diante desse plexo de direitos sociais (juntamente com os econômicos e culturais), torna-se evidente a constatação da escassez de recursos públicos para concretizá-los na sua plenitude e universalidade. Corroborando esse pensamento, a professora mineira Raquel Melo Urbano de Carvalho (2008, p. 332) considera ser faticamente impossível que o Estado supra todas as necessidades de saúde de todos os cidadãos.

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A título de ilustração, o Estado da Bahia criou, em 2004, a Secretaria de Ciência, Tecnologia e Inovação (SECTI), que passou a ter, desde 2006, como uma das políticas prioritárias o Programa de Inclusão Digital (PID).

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Reconhecendo essa dificuldade para a realização dos direitos fundamentais, o jusfilósofo Norberto Bobbio (1992, p. 44) se manifesta nos seguintes termos: [...] para a realização dos direitos do homem, são frequentemente necessárias condições objetivas que não dependem da vontade dos que proclamam, nem das boas disposições dos que possuem os meios para protegê-los. Mesmo o mais liberal dos Estados se encontra na necessidade de suspender direitos de liberdade em tempo de guerra; do mesmo modo, o mais socialista dos Estados não terá condições de garantir o direito a uma retribuição justa em épocas de carestia. Sabe-se que o tremendo problema diante do qual estão hoje os países em desenvolvimento é o de se encontrarem em condições econômicas que, apesar dos programas ideais, não permitem desenvolver a proteção da maioria dos programas sociais.

Portanto, para que seja possível a compreensão adequada do mecanismo de atuação do Estado por meio das políticas públicas, torna-se inevitável examinar os elementos, as condições objetivas, que afetam a sua realização. E, sem a menor dúvida, o principal elemento que impacta na execução das políticas públicas é o elemento financeiro. Debruçando-se sobre a análise desse elemento que afeta a atuação governamental, Thiago Lima Breus (2007, p. 231) conclui que é de notória ciência que o planejamento, a implementação e o controle das políticas públicas levadas a efeito pelo Estado dependem, inequivocamente, da disponibilização de recursos públicos. Então, percebe-se que os recursos financeiros e as políticas públicas são realidades indissociáveis. Não há como considerar, implementar e também controlar as políticas públicas desconsiderando o elemento financeiro, que, embora nem sempre legitimamente, acaba por limitar a atuação estatal na satisfação dos direitos sociais.

Abordando a limitação fática das políticas públicas, Araken de Assis (2007, p. 85) adverte que é preciso, quando da efetivação dos direitos fundamentais, levar-se em conta os fatores econômicos, bem como a organização da Administração Pública, com a verificação da realidade circundante. Especificamente com relação às políticas sociais de saúde, Assis (2007, p. 177) argumenta que: [...] na condição de direito prestacional, o direito fundamental à saúde exige uma atuação positiva e ativa por parte do Estado. Este, por sua vez, possui limitações materiais que o impossibilitam muitas vezes de atender às prestações reclamadas, ou seja, o Estado possui capacidade limitada e

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restrita para prestar a saúde, uma vez que há escassez de recursos, o que constitui limite fático à efetivação desse direito e acaba por gerar diversas dificuldades, a ponto de alguns doutrinadores pretenderem negar sua eficácia plena e sua aplicabilidade imediata.

Reforçando ainda essa ideia de limitação dos recursos públicos, pode-se extrair uma série de decisões emanadas do Poder Judiciário. Pela clareza e objetividade

das

palavras,

segue

transcrição

de

trecho

da

decisão

do

Desembargador Jarbas Ladeira, do Tribunal de Justiça de Minas Gerais exarada no julgamento do Mandado de Segurança (MS) n.º 296.243-9: A questão é bastante controversa, e suas duas faces devem ser analisadas. Se é verdade que a Constituição assegura à população uma assistência médica condigna, a ser prestada pelo Poder Público, também é verdade que este mesmo Poder Público não possui condições financeiras ou operacionais de proporcionar a devida assistência. […] De fato, é sabido que o Estado nem de longe possui recursos necessários para proporcionar, a cada um que dele necessita, o devido tratamento médico, e não se pode tentar “a fórceps” retirar esses recursos de um combalido e extremamente deficitário sistema . Em resumo, não se pode olvidar a realidade do déficit financeiro e operacional em que tem de atuar o Estado, desconsiderando totalmente a falta de recursos da Administração, apenas para invocar preceitos constitucionais cuja aplicação plena e satisfatória é difícil e, muitas vezes, 43 impossível.

Nessa esteira de raciocínio, a primeira turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ)44 entendeu que a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais, além de caracterizar-se pela gradualidade de seu processo de concretização, depende, em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado. Seguindo essa linha argumentatória, Ingo Sarlet (2007, p. 303) é contundente ao afirmar que o Estado dispõe apenas de limitada capacidade de dispor sobre o objeto das prestações reconhecidas pelas normas definidoras dos direitos fundamentais sociais, de tal sorte que a questão da limitação dos recursos constituiu um certo limite fático à efetivação desses direitos. Ainda sobre esse tema, Ana Paula de Barcellos (2008, p. 271) sintetiza sua opinião do seguinte modo: 43

TJ/MG. MS n.º 296.243-9, Relator Des. Jarbas Ladeira, julgado em 30/04/2003, publicado no DJ em 09/05/2003.

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Em resumo: a limitação de recursos existe e é uma contingência que não se pode ignorar […] é preciso não ignorar o assunto, sob pena de divorciar o discurso jurídico da prática de tal forma que o jurista pode até prosseguir confiante, quilômetros de distância, até olhar para trás e para os lados e perceber que está sozinho.

Aproveitando o escólio de Paulo Osório Gomes Rocha (2008, p. 320) pode-se considerar que há relativa robustez em considerar que não há disponibilidade financeira para que o Poder Público possa concretizar todos os direitos sociais. Em outras palavras, os recursos públicos são limitados em contrapartida à infinitude das necessidades humanas. Cabe advertir, entretanto, que essa inegável limitação de recursos para atender a todas as necessidades sociais de todos os indivíduos não deve inviabilizar a proteção de um conjunto mínimo de condições materiais para que os indivíduos possam viver com dignidade. Em que se pese o reconhecimento desse elemento limitador das políticas públicas, não se pode aceitar que tal circunstância sirva como discurso para justificar o não-atendimento do núcleo essencial dos direitos fundamentais. É preciso encontrar o equilíbrio entre a limitação dos recursos públicos e o dever estatal de realizar as políticas públicas necessárias à efetivação dos direitos sociais. Nessa tarefa, torna-se imprescindível, mormente na área de saúde, a racionalização, a padronização e o estabelecimento de critérios.

3.2 A Escassez de Recursos e a questão da Reserva do Possível Considerando válida a argumentação lógica de que existem, de um lado, necessidades e anseios ilimitados dos indivíduos, traduzíveis juridicamente no extenso rol de direitos sociais que lhes são assegurados, e, de outro lado, recursos públicos finitos e limitados, cabe agora enfrentar a circunstância da existência ou 44

STJ. REsp 811608/RS; Recurso Especial n.º 2006/0012352-8. 1ª Turma, Relator Min. Luis Fux, julgado em 15/05/2007, publicado no DJ em 04/06/2007, p. 314.

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não de recursos disponíveis para atender a todas prestações positivas a cargo do Estado. Sabe-se que o Estado, ao executar as políticas públicas necessárias à efetivação dos direitos sociais, tem de despender recursos públicos. Desse modo, não há como se analisar a efetividade dos enunciados normativos constitucionais sem considerar as circunstâncias de fato, sobretudo, as circunstâncias financeiras. Nas palavras de Barcellos (2008, p. 260), ao se interpretarem os direitos constitucionais, notadamente os sociais, é preciso ter em mente, além dos elementos puramente jurídicos, dados da realidade, sendo um deles as condições materiais e financeiras de realização dos comandos normativos. Não se pode ignorar os fatos reais no momento de definição de políticas públicas e da consequente construção da efetividade dos enunciados constitucionais de direitos sociais45. Transparecendo essa preocupação, o Desembargador Araken de Assis, na relatoria de uma Apelação Cível46, exarou o seguinte entendimento: [...] não há dúvida que, a partir do art. 196 da CF/88, o Estado obriga-se a prestações positivas na área de saúde. No entanto, os recursos orçamentários são escassos e hão de ser harmonizados, de resto, com outras prioridades. [...] Na verdade, trata-se do princípio da realidade, algo esquecido nos dias atuais, segundo o qual não se pode pretender o impossível. (Destaque não constante do original)

De acordo com Gustavo Amaral (2001, p. 108), há um descompasso entre as necessidades e possibilidades, pois se os direitos fundamentais devem valer para todos e se as necessidades humanas são infinitas, os recursos para atendimento das demandas daí decorrentes são ontologicamente finitos. Sobre essa temática de escassez de recursos públicos, Gustavo Amaral construiu uma teoria própria e a apresentou como uma tese acadêmica, posteriormente publicada. Na sua singular e esgotada obra, Gustavo Amaral (2001, p. 180) entende que a escassez de recursos públicos é inerente às prestações positivas e, de modo mais acentuado, à saúde.

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Sobre esse fato, Humberto Ávila (2005, p. 107) lembra que desvincular-se da realidade é violar os princípios do Estado de Direito e do devido processo legal. Portanto, quando o Direito não observa as circunstâncias de fato que os circunda, atentando para as variações do tempo e do espaço, passa a se constituir apenas em um argumento retórico, em um mero discurso desvinculado da realidade, incapaz de alterá-la. 46 TJ/RS. Apelação Cível n.º 70011124955, 4ª Câmara Cível, Rel. Des. Araken de Assis, j. 03/08/2005.

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Sob a égide dessas doutrinas, torna-se induvidoso que a finitude e a escassez de recursos públicos são realidades fáticas que não podem ser desconsideras. Acrescente-se, ainda, que essa questão de escassez, proveniente das ciências econômicas, refere-se à noção de finitude real e concreta dos recursos financeiros existentes. Para Mariana Filchtiner Figueiredo (2007, p. 134), a escassez dos recursos financeiros demonstra que os direitos fundamentais possuem, todos, uma dimensão econômica comum, atrelada aos custos exigidos para que sejam concretizados. A referida autora, para colmar seu ponto de vista, ainda acrescenta uma paráfrase a Ronald Dworkin, feita pelos americanos Holmes e Sunstein, que enfatizaram que levar a sério os direitos significa levar a sério a escassez. É como diz Ana Paula de Barcellos (2008, p. 259), o tema precisa ser encarado com honestidade e seriedade intelectual, longe de paixões, argumentos corporativos ou meramente teóricos, pois, infelizmente, não há milagres e o dinheiro não cai do céu. Evidencia-se que o debate em torno dessa questão da existência ou não de recursos disponíveis para atender às prestações positivas a cargo do Estado tem sido conduzido no Brasil ao derredor da teoria da “reserva do possível”, que vem sendo popularizada, principalmente, em virtude das argumentações de defesa levantadas pela Administração Pública. Com base nas lições do ilustre constitucionalista lusitano José Joaquim Gomes Canotilho (2002, p. 451), tem-se que ao contrário dos direitos de liberdade, onde o Estado consegue garanti-los sem que se sobrecarregue, os direitos sociais necessitam de uma verba estatal razoável, o que levou à criação da referida construção da dogmática da reserva do possível, objetivando ressaltar que os direitos sociais só existirão quando e enquanto existirem recursos públicos. Extrai-se da doutrina que a ideia da reserva do possível, como elemento limitador da ação estatal, surgiu na Alemanha, tendo sido acolhida pela Corte Constitucional germânica na década de 1970. Abordando essa origem alemã da teoria, Nagibe de Melo Jorge Neto (2008, p. 148) narra a sua primeira manifestação.

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Aponta o autor que, em julho de 1972, foi levado ao Tribunal Constitucional Federal alemão a questão sobre a constitucionalidade da limitação no número de calouros admitidos no curso de medicina da Universidade de Hamburgo e Munique, sendo argumentado que o acesso às universidades públicas estava assegurado a todos alemães, que podiam livremente escolher os locais de ensino para a sua formação. Com fulcro na literatura germânica, Jorge Neto (2008, p. 148) assim resumiu o posicionamento da Corte alemã sobre essa questão: [...] mesmo na medida em que os direitos sociais de participação em benefícios estatais não são desde o início restringidos àquilo existente em cada caso, eles se encontram sob a reserva do possível, no sentido de estabelecer o que pode o indivíduo, racionalmente falando, exigir da coletividade.

Diante dessa decisão, conclui-se que a Corte Constitucional germânica, assumindo a paternidade no acolhimento da teoria da reserva do possível, entendeu que os direitos constitucionais individuais devem ser racionalmente limitados pelas possibilidades da coletividade. Reconheceu a Corte, portanto, a existência de um conflito entre um direito fundamental individual reconhecido pela Constituição e as possibilidades dos serviços públicos estatais, que precisa ser examinado e resolvido com racionalidade. Essa foi a gênese apontada para a doutrina da reserva do possível. Após esse nascimento germânico, a teoria da reserva do possível passou a ser difundida e debatida em vários países, especialmente nos Estados Unidos. No Brasil, o tema passou a ser ventilado de forma mais intensa a partir da publicação da obra de Stephen Holmes e Cass Sustein, denominada The cost of rights, em 1999, na qual os autores procuram fazer uma análise econômica do custo dos direitos (BARCELLOS, 2008, p. 264). Não obstante esse registro temporal apresentado por Ana Paula Barcellos, desde o início da década de 1990 já se podia verificar, na obra de Diogo de Figueiredo Moreira Neto (1992, p. 63), o reconhecimento, mesmo que tácito, da teoria da reserva do possível. O emérito professor há muito já advertia que as normas jurídicas não devem enveredar pela fantasia, tampouco podem exigir o impossível; como ensina o brocardo ad impossibilia nemo tenetur.

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Partindo para a conceituação do tema, Ana Paula de Barcellos (2008, p. 261) pondera que: […] a expressão reserva do possível procura identificar o fenômeno econômico da limitação dos recursos disponíveis diante das necessidades quase sempre infinitas a serem por eles supridas. No que importa ao estudo aqui empreendido, a reserva do possível significa que, para além das discussões jurídicas sobre o que se pode exigir judicialmente do Estado – e em última análise da sociedade, já que é esta que o sustenta –, é importante lembrar que há um limite de possibilidades materiais para esses direitos. A reserva do possível se apresenta, pois, como uma condição de realidade, ou seja, como um elemento do mundo dos fatos que influencia a aplicação do Direito, como bem observou Thiago Lima Breus (2007, p. 237). Diante dessa realidade do mundo dos fatos, a doutrina de Ingo Sarlet aponta que a reserva do possível abrangeria pelo menos duas dimensões principais, quais sejam: uma dimensão fática, atrelada à noção de limitação dos recursos materiais, normalmente equiparados pela doutrina aos recursos financeiros que o Estado pode dispender; e uma dimensão jurídica, concernente à capacidade jurídica ou ao poder de disposição de que deve titularizar o destinatário das obrigações impostas pelos direitos fundamentais sociais a prestações materiais (SARLET, 2007). Em outras palavras, a dimensão fática trata da inexistência real de recursos e a dimensão jurídica tem a ver com a simples ausência de autorização orçamentária para determinado gasto em particular. Ainda sobre essa dupla dimensão, Sarlet (2002, p. 103) já tinha se manifestado da seguinte forma:

Embora tenhamos de reconhecer a existência destes limites fáticos (reserva do possível) e jurídicos (reserva parlamentar em matéria orçamentária) implica certa relativização no âmbito da eficácia e efetividade dos direitos sociais prestacionais, que, de resto, acabam conflitando entre si, quando se considera que os recursos públicos deverão ser distribuídos para atendimento de todos os direitos fundamentais básicos, sustentamos o entendimento, que aqui vai apresentado de modo resumido, no sentido de que sempre onde nos encontramos diante de prestações de cunho

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emergencial, cujo indeferimento acarretaria o compromisso irreversível ou mesmo o sacrifício de outros bens essenciais , notadamente – em se cuidando da saúde – da própria vida, integridade física e dignidade da pessoa humana, haveremos de reconhecer um direito subjetivo do particular à prestação reclamada em juízo.

No Judiciário pátrio, a questão da reserva do possível, já há alguns anos, vem sendo enfrentada. É possível encontrar decisões antagônicas, ora inadmitindo a sua arguição pelo Estado, ora reconhecendo a sua pertinência e validade. O paradigmático e didático acórdão de lavra do ministro Celso de Mello do Supremo Tribunal Federal47, em sede da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 45, estabelecendo um sensato norte para as demais decisões judiciais, abordou diretamente a questão da reserva do possível nos seguintes termos: […] Não deixo de conferir, no entanto, assentadas tais premissas, significativo relevo ao tema pertinente à "reserva do possível" (STEPHEN HOLMES/CASS R. SUNSTEIN, "The Cost of Rights", 1999, Norton, New York), notadamente em sede de efetivação e implementação (sempre onerosas) dos direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais), cujo adimplemento, pelo Poder Público, impõe e exige, deste, prestações estatais positivas concretizadoras de tais prerrogativas individuais e/ou coletivas. É que a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais - além de caracterizar-se pela gradualidade de seu processo de concretização - depende, em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que, comprovada, objetivamente, a incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, considerada a limitação material referida, a imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta Política. Não se mostrará lícito, no entanto, ao Poder Público, em tal hipótese, mediante indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou políticoadministrativa, criar obstáculo artificial que revele o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência. Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da "reserva do possível" ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível - não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade. […]

O feliz acórdão, além de reconhecer a dependência das possibilidades orçamentárias para a realização dos direitos fundamentais, deixa patente duas diretrizes. A primeira é que a reserva do possível não pode ser invocada livremente pelo Estado para se eximir do atendimento dos direitos fundamentais. Vale dizer, 47

STF. ADPF n.º 45, Rel. Min. Celso de Mello, j. 29/04/2004, DJU 04/05/2004.

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não se torna um manto protetivo estatal. E a segunda diretriz que se pode extrair do decisum é que não se pode falar em reserva do possível quando se estiver em questão as condições materiais mínimas (ou os direitos constitucionais de essencial fundamentalidade). Com efeito, a ressalva do acórdão supratranscrito de que o Estado não pode, sem justo motivo, invocar a reserva do possível com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais tem pertinência devido aos recorrentes argumentos frágeis e genéricos apresentados pela Administração Pública. Constata-se que em várias defesas judiciais os órgãos públicos se limitam a mera arguição genérica de impossibilidade material de implementação das políticas sociais, sem apresentar elementos probatórios mais robustos. Isso gerou uma lógica antipatia e um grave desvirtuamento da teoria da reserva do possível. Nesse diapasão, Barcellos (2008, p. 271), entende que houve uma utilização exaustiva do argumento da reserva do possível pelo Poder Público, que acabou por gerar certa reação de descrédito. Ainda conforme a autora, a reserva do possível funcionou muitas vezes como o mote mágico, que impedia qualquer avanço na sindicabilidade dos direitos sociais. Nesse ponto, merece destaque o posicionamento de Cláudia Maria Gonçalves (2007, p. 65) sobre a reserva do possível. A autora considera que houve uma desnaturação da teoria no Brasil, uma vez que passou a se constituir como regra, quando, em verdade, deveria caracterizar-se como exceção, não devendo colocar-se como um mero discurso retórico da administração pública para justificar a não-implementação de políticas públicas. Segue in verbis o pensamento da autora: Logo, o que deveria ser uma exceção termina por se consolidar como regra, ou seja: o princípio constitucional da reserva do possível, que só deveria justificar a contenção de gastos públicos para além do básico, termina por servir de justificativa para políticas de assistência social pouco comprometidas com a redistribuição de riquezas, alicerçadas em programas minimalistas, residuais e afastados da s diversidades culturais e pessoais de cada família.

Portanto, a teoria da reserva do possível não deve ser simplesmente rechaçada e vista de forma pejorativa, o que deve ser feito é coibir os abusos e a utilização indevida da teoria como fundamento para a inércia estatal na seara dos

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direitos fundamentais. Faz-se necessário resgatar a ideia original da doutrina alemã. O próprio Andreas Krell (2002, p. 51-52), crítico contumaz da importação brasileira da teoria, apontando-a como uma “falácia”, reconhece, com base na literatura germânica, que os direitos a prestações positivas estão sujeitos à reserva do possível no sentido daquilo que o indivíduo, de maneira racional, pode esperar da sociedade. Dessa sua gênese, tem-se a sua essência, que está intrinsecamente relacionada à incidência dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. A teoria da reserva do possível, do modo como foi concebida, traz interessante contribuição para a análise de casos concretos, à medida em que oferece parâmetro para o controle das políticas sociais. Trazendo exemplo na área do direito à saúde, verifica-se que as cortes brasileiras têm constantemente se deparado com um conflito oriundo do pleito de autores que reclamam tratamentos de saúde específicos, geralmente muito caros e, por vezes, até experimentais. Diante dessas demandas por direitos sociais, cabe a indagação: é razoável exigir da coletividade o custeio de tais tratamentos? Cabe enfatizar que, em última análise, o ônus financeiro recairá efetivamente sobre a coletividade, pois os recursos públicos não pertencem aos governantes, mas sim à sociedade como um todo. Voltando à pergunta, seria justo e razoável obrigar o ente estatal a cobrir tais despesas de maneira indiscriminada? É aí que entra a teoria da reserva do possível. Foi analisando de maneira proporcional e razoável a demanda que lhe foi posta, que a Corte germânica negou o provimento dos que pleiteavam vagas ilimitadas nas faculdades de medicina. Entendeu aquele tribunal alemão que, diante da reserva do possível, não seria justo e razoável impor ao Estado (e logicamente aos cidadãos em geral) o ônus de conseguir vaga em universidades públicas para todos que viessem a pleitear.

Enfim, a reserva do possível é um argumento que pode ser apresentado e que deve ser analisado e sopesado antes da decisão judicial. Corroborando esse pensamento, o Juiz Federal e autor Américo Bedê Freire Júnior (2005, p. 79), mesmo tecendo duras críticas à teoria da reserva do possível, admite a possibilidade

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de sua argüição, não para impedir a fixação da responsabilidade estatal, mas para que seja construída uma forma de viabilização de uma Constituição compromissada com a dignidade da pessoa humana e com os direitos fundamentais. O também Juiz Federal e autor Nagibe de Melo Jorge Neto (2008, p. 145) reconhece que a reserva do possível é uma escusa legítima para o cumprimento de determinações judiciais, mas há de ser feita de modo adequado. No tocante a esse modo adequado, o já referido voto emblemático do Ministro Celso de Mello, exarado na ADPF n.º 45, deixa bem evidenciada a maneira como a teoria da reserva do possível deve ser aplicada. Assim se posicionou o Ministro relator: […] os condicionamentos impostos, pela cláusula da "reserva do possível", ao processo de concretização dos direitos de segunda geração - de implantação sempre onerosa -, traduzem-se em um binômio que compreende, de um lado, (1) a razoabilidade da pretensão individual/social deduzida em face do Poder Público e, de outro, (2) a existência de disponibilidade financeira do Estado para tornar efetivas as prestações positivas dele reclamadas. [...]

Destarte, na análise de uma pretensão por direitos sociais, especificamente no caso dos direitos à saúde, deve-se se atentar para a razoabilidade do conteúdo do pedido e para as disponibilidades financeiras do ente estatal demandado. Com isso, muito dificilmente, num país ainda em desenvolvimento, como é o caso do Brasil, poderá ser considerada razoável e compatível com a capacidade financeira da Administração Pública o pleito por medicamentos experimentais e específicos ou tratamentos médicos eletivos e de alto custo em outros países. Diante de demandas desse tipo, o ente estatal pode trazer legitimamente o argumento da reserva do possível, demonstrando que o dispêndio de vultosos recursos públicos para cobrir tratamentos eletivos no exterior ou fornecer medicamentos supérfluos ou experimentais pode prejudicar significativamente outras políticas sociais mais adequadas e necessárias. Nota-se, então, que a aplicação da teoria da reserva do possível, além de pautada nos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, está intensamente vinculada à questão do mínimo existencial, tema este que será debatido em capítulo específico.

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Ana Paula Barcellos (2008, p. 272), confirmando o vínculo da teoria da reserva do possível com a questão do mínimo existencial, apresenta a seguinte conclusão: […] Ao apurar os elementos fundamentais dessa dignidade (o mínimo existencial) estar-se-á estabelecendo exatamente os alvos prioritários dos gastos públicos. Apenas depois de atingi-los é que se poderá discutir, relativamente aos recursos remanescentes, em que outros projetos se deverá investir. Como se vê, o mínimo existencial associado ao estabelecimento de prioridades orçamentárias é capaz de conviver produtivamente com a reserva do possível.

Nesse mesmo sentido, Araken de Assis (2007, p. 178) pondera que a reserva do possível, sempre que invocada, deve ser sopesada com a idéia do “mínimo existencial”, a qual corresponde, em síntese, a uma espécie de desdobramento do princípio da dignidade da pessoa humana. Concluindo seu pensamento, Assis registra que não há como se entender razoável a alegação de falta de recursos econômicos por parte do Estado sem o balanceamento com o mínimo existencial. Pode-se então concluir, resgatando a gênese alemã da teoria, que, quando se estiver diante de demandas por direitos sociais compondo o mínimo existencial, não cabe ao Estado a arguição da teoria da reserva do possível. Ao revés, quando a demanda tratar de questões fora do núcleo essencial dos direitos fundamentais, tornar-se-á possível que o Poder Público, comprovando a limitação fática dos recursos, apresente o argumento da reserva do possível. Na área de educação, essa análise casuística é bem mais simples, em face da clareza dos dispositivos constitucionais. Como exemplo, tem-se a questão do ensino fundamental e do ensino superior. Ambos se configuram como direitos fundamentais sociais, porém somente torna-se possível exigir do Estado que disponibilize vaga para todos os cidadãos no ensino infantil e fundamental (mínimo existencial). Na demanda por vagas em universidades públicas, pode-se perfeitamente exigir dos Poderes Públicos (Estado, Distrito Federal e União) que amplie a sua rede de ensino superior, mas não se pode exigir que esses entes

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estatais disponibilizem vaga imediata para qualquer cidadão que venha a pleitear. Neste último caso, tem-se como inegável a aplicação da teoria da reserva do possível. Portanto, esse é o raciocínio lógico que se deve ter, entretanto, cabe reconhecer que a identificação do mínimo existencial na área de saúde é tarefa muito mais complexa, tendo em vista a laconicidade constitucional. 3.3 A Inevitabilidade de Escolhas Políticas Alocativas de Recursos Em decisão recente48, o próprio STF, por meio de decisão monocrática do Ministro Gilmar Mendes reconheceu a inexistência de suportes financeiros suficientes para a satisfação de todas as necessidades sociais, e enfatizou que a formulação das políticas sociais e econômicas voltadas à implementação dos direitos sociais implicaria, inevitavelmente, escolhas alocativas. O Ministro ainda registra a contribuição de dois autores norte-americanos (Stephen Holmes e Cass Sustein), já citados anteriormente, que reconhecem que todas as dimensões dos direitos fundamentais têm custos públicos, dando significativo relevo ao tema da “reserva do possível”, especialmente ao evidenciar a “escassez de recursos” e à necessidade de se fazer escolhas alocativas e conclui, com base nessa doutrina americana, que levar a sério os direitos significa levar a sério a escassez. Partindo para a doutrina, Thiago Lima Breus (2007, p. 241) preconiza que na medida em que todos os Direitos Fundamentais dependem de recursos financeiros para serem efetivados, a questão da alocação de recursos, ou seja, a definição de que bens jurídicos serão prioritariamente promovidos, mostra-se relevante. Araken de Assis (2007, p. 85) registra que, se nem todos os direitos podem ser tornados plenamente operativos em certo momento, há que se fixar prioridades, que, aliás, é a atividade precípua do exercício da política partidário-ideológica. Preocupada com a forma como devem ser procedidas as escolhas, Raquel Melo Urbano de Carvalho (2008, p. 332) afirma que é inegável que o Estado tem

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Decisão sobre o pedido de suspensão de medida liminar do Mandado de Segurança n.º 711/2007, prolatada em 20/04/2009 pelo então Ministro Presidente Gilmar Mendes.

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recursos limitados que precisam ser distribuídos entre as várias demandas, segundo critérios de prioridades e razoabilidade. Nesse nível de argumentação, Marcos Maselli Gouvêa assevera que: [...] óbice representado pela reserva do possível justamente, em países como o Brasil, onde a maioria da população carente seria destinatária por excelência dos direitos prestacionais. É nos países pobres que a questão da alocação de recursos traduz-se, efetivamente, numa escolha dramática, em que deliberar a realização de uma determinada despesa, contemplando certo projeto, importa reduzir ou suprimir os recursos necessários para outra atividade.

Gustavo Amaral (2001, p. 181), também nessa linha de ideias, entende ser imperiosa a adoção de mecanismos alocativos, que terão uma dupla ética: [...] a escolha de quem salvar, mas também a escolha de quem danar. Gustavo Amaral (2001, p. 184) ainda rechaça a máxima de que se está na lei é para ser cumprido, uma vez que o simples fato de estar na lei não remove a escassez e [...] existindo ela (a escassez), alguém deixará de ser atendido, alguém sofrerá dano ou mesmo morrerá. Abordando a questão, Luís Roberto Barroso (2008, p. 223) afirma que a realidade dos direitos fundamentais à saúde é bastante dramática. Para ele, em muitos casos, o que pode estar em jogo, é o direito à vida de uns versus o direito à vida e à saúde de outros. E conclui assegurando que não há solução juridicamente fácil nem moralmente simples nessa questão. São essas as famosas escolhas trágicas, que, inevitavelmente, deverão ser feitas, uma vez que não há, atualmente, recursos públicos disponíveis para atender a todas as necessidades da população. Ainda mais que essas necessidades sociais estão cada vez mais complexas e plurais. Registre-se que essa expressão escolhas trágicas, de acordo com Ana Paula de Barcellos (2008, p. 309), ganhou força e passou a ser generalizadamente utilizada no meio acadêmico a partir do livro de Guido Calabrese e Philip Bobbitt, denominado “Tragic Choise”, publicado em 1978. Acerca dessas complicadas e complexas decisões, Luís Roberto Barroso (2008, p. 239) atesta que, diante da insuficiência dos recursos públicos para atender

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às necessidades sociais, impõe-se ao Estado sempre a tomada de decisões difíceis. Para Barroso, investir recursos em determinado setor sempre implica deixar de investi-los em outros. Além disso, regra geral, o orçamento se apresenta aquém da demanda social por efetivação de direitos, sejam individuais, sejam sociais. Falando mais especificamente das escolhas de políticas sociais de saúde pública, Ricardo Lobo Torres (1999, p. 183) traz o seguinte entendimento: As prestações estatais de medicina curativa, por outro lado, dependem de escolhas orçamentárias, sempre dramáticas num ambiente de escassez de recursos financeiros, que conduzem inexoravelmente à exclusão de alguns – a depender das opções por investimentos em hospitais, sanatórios ou postos médicos que atendam à população segundo as condições de idade, sexo ou domicílio. Qual é o cardíaco brasileiro que tem o direito de ser operado por Dr. Jatene? Qual o critério de justiça que deve presidir as opções fundamentais em torno da saúde?

Analisando essa questão de escolhas acerca dos direitos fundamentais à saúde, a 2ª Câmara Cível do TJ/MG49 decidiu que não se admite que o Poder Judiciário decida se os parcos recursos existentes deverão tratar milhares de vítimas de doenças comuns ou um pequeno número de doentes terminais. Interessante colacionar, com base nos estudos de Raquel de Carvalho (2008, p. 333), o artigo publicado no Jornal Folha de São Paulo, de 10/07/2003, seção “Tendências/Debates”, pelo médico e consultor em administração de serviços de saúde, o Dr. Alberto Hideki Kanamura. O articulista é bastante enfático ao se referir à questão de escolhas na área de saúde pública. Segue trecho do artigo: Num país onde ainda se morre de desnutrição, por falta de água tratada ou por pura ignorância de preceitos sanitários, é difícil não questionar decisões que priorizem gastos em saúde para tratar o raro, quando o mesmo recurso poderia beneficiar milhares que vivem a doença como regra. Doenças essas que no mundo desenvolvido já não existem e que em tese são muito simples de tratar. [...]

Deve-se ressaltar que essas escolhas, sejam elas tranquilas, trágicas ou dramáticas, cabem, prioritariamente, aos Poderes Executivo (no exercício de sua

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atividade típica de adotar as políticas públicas) e Legislativo (mormente quando aprova as leis orçamentárias). Porém, o Poder Judiciário, quando provocado a decidir sobre questões que versem sobre direitos fundamentais sociais, acaba também por fazer escolhas para resolver a querela judicial. Não obstante essa possibilidade, cabe advertir que a situação ideal, de acordo com a arquitetura institucional prevista no Texto Constitucional, é que as escolhas públicas sejam feitas por meio de mecanismos deliberativos. Vale dizer, o chefe do Poder Executivo, eleito pelo povo, elege as prioridades e o parlamento, também eleito pelo povo, ratifica ou modifica essas escolhas das políticas públicas a serem adotadas. A atuação do Judiciário nessa seara é, portanto, episódica e excepcional. Esse entendimento já foi, inclusive, sedimentado no STF50, a partir da famosa decisão do Ministro Celso de Mello na ADPF n.º 45. Segue trecho do decisum:

É certo que não se inclui, ordinariamente, no âmbito das funções institucionais do Poder Judiciário - e nas desta Suprema Corte, em especial - a atribuição de formular e de implementar políticas públicas (ANDRADE, José Carlos Vieira. “Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976”, p. 207, item n. 05, 1987, Almedina, Coimbra), pois, nesse domínio, o encargo reside, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo. Tal incumbência, no entanto, embora em bases excepcionais, poderá atribuir-se ao Poder Judiciário, se e quando os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem, vierem a comprometer, com tal comportamento, a eficácia e a integridade de direitos individuais e/ou coletivos impregnados de estatura constitucional, ainda que derivados de cláusulas revestidas de conteúdo programático.

Em outra oportunidade, o STF51, em decisão proferida pelo Ministro Gilmar Mendes num processo em que se debatia a ordem judicial exarada no bojo de ação civil pública determinando providências imediatas de recuperação de rodovias no Rio Grande do Sul, entendeu que, inobstante fosse possível ao Judiciário empreender ao controle de políticas públicas, tal intervenção haveria de ser limitada pelo princípio da proporcionalidade, donde incabível a intervenção na espécie, priorizando o reparo de um trecho em detrimento da gestão como um todo da malha 49

TJ/MG. 2ª Câm. Civ. Apel. Civ. n.º 1.0024.03.163240-9/002 (1). Rel. Des. Brandão Teixeira. j. 01/03/2005. 50 STF. ADPF n.º 45. Rel. Min. Celso de Mello. j. 29/04/2004. p. DJU de 04/05/2004.

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viária. Dessa decisão, resta evidenciada a sensibilidade da Corte Suprema em perceber a dependência recíproca entre as ações estatais, atentando para o impacto que uma decisão do Judiciário pode provocar na Administração Pública. No caso em tela, houve a percepção de que a ordem judicial em favor de um trecho de rodovia implicava em priorizar àquela intervenção, sem que se conhecessem os efeitos no plano geral da gestão da malha rodoviária do Estado gaúcho. Em suma, considerando que não há possibilidades de atender a todas as demandas sociais, principalmente na área de saúde, fica patente a necessidade da realização de escolhas, da eleição de prioridades. Com base no artigo supracitado do Dr. Alberto Kanamura , será que o Estado brasileiro, que ainda luta para erradicar doenças comezinhas, como tuberculose, malária, leptospirose, doença de chagas, varíola, meningite, etc., possui condições de bancar vultosos tratamentos no exterior para todos que precisem? De oferecer gratuitamente medicamentos experimentais ou especiais? De disponibilizar indistinta e gratuitamente remédios contra a impotência (como o Viagra)? De se responsabilizar por tratamentos estéticos e eletivos para toda a população? Certamente que não, mesmo que se estivesse diante de um Estado que respeitasse integralmente os princípios constitucionais e não desviasse recursos públicos. Cabe trazer o magistério de Ana Paula de Barcellos (2008, p. 311): Na realidade, tanto em um caso como no outro, isto é, tanto quando o magistrado nega ou concede determinada prestação de saúde solicitada, como o Poder Público a coloca ou não à disposição (ou quando determinadas prestações são oferecidas em algumas áreas e não em outras), o fato é que sempre há uma decisão, explícita ou implícita, uma escolha que priorize determinadas situações de necessidade em detrimentos de outras. (Destaque não constante do original)

Trazendo a lume um caso real, foram levados ao Poder Judiciário do Estado de Goiás determinadas demandas tendo por objeto o provimento jurisdicional relacionado ao fornecimento de medicamentos voltados ao tratamento de infertilidade feminina inespecífica. O Poder Judiciário inicialmente, em instância 51

STF. STA n.º 113. Rel. Min. Gilmar Mendes. j. 22/03/2007. p. DJU de 09/04/2007.

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inferior, deu provimento ao pedido, acarretando um verdadeiro efeito multiplicador no Estado de Goiás. Porém, a demanda foi parar no STF52, cuja Presidência deferiu, em dois processos distintos, a suspensão de segurança pela ausência na espécie da irreversibilidade configuradora do provimento liminar, negando ainda a extensão da decisão aos demais casos. Esse exemplo é bastante contundente ao demonstrar que o debate em torno dos direitos fundamentais à saúde nem sempre tem como pauta o tema da preservação da vida, devendo ser analisado com parcimônia e proporcionalidade. Comentando essa decisão do STF, Vanice Regina Lírio do Valle (2009, p. 135) enfatiza que [...] a escolha pela priorização de uma estratégia de tratamento da infertilidade como política pública prioritária implica numa escolha alocativa de recursos sujeita a sérias críticas, ao menos num país com a configuração do nosso, em que a tuberculose volta a se apresentar como problema de saúde pública.

Abordando agora uma situação hipotética, imagine-se um cidadão que se alimente compulsivamente e que esteja há alguns anos bem acima do peso normal da idade e, por consequência, apresente problemas de relacionamentos sociais. Pode ser que esse sujeito passe a se esconder da vida social. Assim, com um “bom” advogado, o caso desse cidadão pode ser levado ao Poder Judiciário, cabendo o pleito, contra o Estado, por uma cirurgia gratuita de redução de estômago com base na dignidade da pessoa humana. Daí cabe a pergunta: o Estado será obrigado a bancar essa cirurgia? Seria justo e razoável a imputação dessa responsabilidade? Independentemente do teor da decisão judicial, é certo que haverá uma escolha sobre a prioridade de prestação de serviço público. Se decidir a favor do pleito, o Judiciário fará uma escolha por uma determinada ação governamental e abrirá um perigoso precedente. Se decidir contra, a escolha do Judiciário será coincidente com a do Executivo. Ou seja, sempre haverá escolhas a serem feitas. Outrossim, sem muitas delongas no assunto, que será propriamente abordado em capítulo específico, defende-se aqui neste trabalho que decisões do Judiciário, como a da questão hipotética levantada, devem ser pautadas em critérios 52

STF. SS. n.º 3.201/GO, rel. Min. Ellen Gracie. j. 20/06/2007. p. DJ de 27/06/2007 e SS n.º 3.274/GO,

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e parâmetros razoáveis norteados pelo mínimo existencial. No caso trazido, se o indivíduo carece de recursos e já chegou a um grau de obesidade mórbida, o Estado deve, induvidosamente, ser coagido a oferecer gratuitamente o tratamento, independentemente da existência de política social. Isso porque se está diante de um caso que pode ceifar a vida do indivíduo. Mas, se o caso não é de obesidade mórbida e uma mudança de hábitos de vida poderia resolver o problema do cidadão, não cabe exigir nada do Estado. Destarte, a escolha sobre a destinação de recursos públicos para a prestação de serviços de saúde é um grande desafio para um Estado com demandas maiores que a disponibilidade. Qualquer escolha ou decisão não pode ser tomada sem se avaliar a relação custo/benefício. O Poder Judiciário deve buscar, à luz do caso concreto, uma compatibilização e harmonização dos bens em disputa, fazendo prevalecer, quando e na medida do necessário, os bens mais relevantes e observado sempre os parâmetros do princípio da proporcionalidade, como, inclusive, já recomendou o Excelso Pretório. Em inúmeros casos, como argumenta Luís Roberto Barroso (2008, p. 236), será necessário efetuar a ponderação entre direitos fundamentais e princípios constitucionais que entram em rota de colisão, hipóteses em que os órgãos judiciais precisam proceder a concessões recíprocas entre normas ou fazer escolhas fundamentadas. É

verdade

que

nem

sempre

essa

ponderação,

esse

juízo

de

proporcionalidade, é fácil de ser realizado. Quando a demanda por direito à saúde se apresentar com iminente perigo de vida, a ponderação é tranquila. O problema a ser enfrentado é que, como bem observa Vanice do Valle (2009, p. 67), a expressiva maioria das demandas que invoquem o direito fundamental à saúde variam do câncer à alopecia; da diabetes à infertilidade. Ademais, deve-se pontuar que as escolhas políticas alocativas de recursos voltadas à concretização dos direitos fundamentais devem ser norteadas por dois fatores de suma importância: (i) a proibição da insuficiência das políticas pública; e rel. Min. Ellen Gracie. j. 15/08/2007. p. DJU de 22/08/2007.

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(ii) a vedação do retrocesso. Ambas são construções doutrinárias que passaram a servir de motriz na busca pela efetividade dos direitos fundamentais. A proibição de insuficiência das políticas públicas para concretizar os direitos fundamentais tem como base o dever constitucional de ação, o dever-poder de agir que possui o Estado, ou ainda o princípio da indisponibilidade do interesse público. Entretanto, logicamente, como já abordado, o Estado tem limites de atuação e precisa definir prioridades, não podendo ser dele exigido o cumprimento instantâneo da integralidade de todos os direitos fundamentais, mesmo porque vigora a já comentada eficácia progressiva desses direitos. Nesse sentido, Ingo Sarlet (2007, p. 414) adverte que para a verificação da proibição da insuficiência de realização dos Direitos Fundamentais sociais por meio das políticas públicas que se voltem a realizá-los, é fundamental a utilização dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. A vedação ou proibição do retrocesso como forma de eficácia protetória dos direitos fundamentais tem, como registra Ingo Sarlet (2007, p. 415), contígua relação com a garantia constitucional dos direitos adquiridos, dos atos jurídicos perfeitos e da coisa julgada. Tal mecanismo se destina à exigência de desenvolvimento ou, ao menos, da manutenção dos níveis gerais de proteção social alcançados pela atuação do Estado. Para Luís Roberto Barroso (2006, p. 158), a proibição ou vedação do retrocesso se trata de um postulado que não é expresso, mas decorre do sistema jurídico constitucional. A doutrina lusitana de José Joaquim Gomes Canotilho (2002, p. 131) indica que os direitos sociais de caráter positivo implicam proibição de retrocesso, pois uma vez dada satisfação ao direito, este se transforma, nessa medida, em direito negativo, ou direito de defesa, isto é, num direito a que o Estado se abstenha de atentar contra ele.

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4 A ATUAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO NO CONTROLE DAS POLÍTICAS SOCIAIS: CRÍTICAS À JUDICIALIZAÇÃO EXCESSIVA 4.1 O papel do Poder Judiciário no sistema político-institucional O Poder Judiciário brasileiro, diferentemente dos demais poderes públicos, apresenta uma notável particularidade. Embora seja ele, por definição, a principal garantia do respeito integral aos direitos humanos, os seus membros não são escolhidos pelo voto popular, diferentemente da generalidade dos países. Desse modo,

a compatibilidade do Poder Judiciário com o regime democrático não é

visualizada automaticamente. Faz-se necessária uma análise da sua arquitetura constitucional, notadamente de seu funcionamento e de sua organização. Entretanto, deve ser advertido, conforme José Reinaldo de Lima Lopes (2005, p. 72), que a questão da democracia no Judiciário está ainda por ser completada e devidamente analisada. Sobre a matéria, Fábio Konder Comparato (1998, p. 40) argumenta o que se segue: Na verdade, o fator que compatibiliza o Poder Judiciário com o espírito da democracia (no sentido que Montesquieu conferiu ao vocábulo) é um atributo eminente, o único capaz de suprir a ausência do sufrágio eleitoral: é aquele prestígio público, fundado no amplo respeito moral, que na civilização romana denominava-se auctoritas; é a legitimidade pelo respeito e a confiança que os juízes inspiram no povo. Ora, essa característica particular dos magistrados, numa democracia, funda-se essencialmente na independência e na responsabilidade com que o órgão estatal em seu conjunto, e os agentes públicos individualmente considerados, exercem as funções políticas que a Constituição, como manifestação original de vontade do povo soberano, lhes atribui.

O Poder Judiciário, conforme a doutrina da separação dos poderes difundida pelo Barão de Montesquieu (2003, p. 171), não passava de um mero executor de leis. Esse terceiro poder (o Judiciário), chamado de poder de julgar, teria como função punir os criminosos e resolver as querelas entre os particulares. Montesquieu (2003, p. 179) também definia os juízes como apenas a boca que pronuncia as palavras da lei, seres inanimados que não podem moderar sua força, nem seu rigor.

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Nos dias atuais, é fantasioso conceber que a função judicial simplesmente se restringe a verificar a ocorrência da hipótese prevista em lei e aplicar os efeitos jurídicos por ela comandados. Essa visão limitada do Judiciário, capitaneada por Montesquieu, não mais resiste à complexidade das sociedades modernas. Com precisão sintética, Freire Júnior (2005, p. 128) destaca que o juiz não é mais a simples boca da lei, mas sim um intérprete constitucional qualificado. Na verdade, a função de aplicação do direito, dada a sua complexidade, contém também elementos criativos. Com frequência, encontram-se textos normativos abertos, com mais de um significado possível, fato que atribui ao juiz uma certa liberdade, ao julgar, em optar entre as interpretações cabíveis. Nesse sentido, Barroso (2008, p. 236) leciona que, em muitas situações, caberá aos juízes e tribunais o papel de construção do sentido das normas jurídicas, notadamente quando esteja em questão a aplicação de conceitos jurídicos indeterminados e de princípios. O que parece estar por trás da concepção inaugural exposta por Montesquieu é a necessidade de se limitar ao máximo a liberdade de criação do juiz de modo a preservar o princípio da segurança jurídica. Afirmava Montesquieu (2003, p. 174) que, se os tribunais não devem ser fixos, os julgamentos devem sê-lo a tal ponto que nunca sejam mais do que um texto preciso de lei. Se fossem uma opinião particular do juiz, viveríamos em sociedade sem saber precisamente os compromissos que ali assumimos. Nitidamente, Montesquieu teve a intenção de coibir a viabilidade do uso arbitrário do poder jurisdicional. Com efeito, o Poder Judiciário é aquele estruturado para prestar a jurisdição pública, consistindo, simultaneamente, numa evolução das formas primitivas de pacificação social e em uma proposta de concentração política da tarefa de traduzir e dar significado ao fenômeno jurídico para a sociedade. A atividade jurisdicional, hoje, no Brasil, constitui atividade praticamente monopolizada pelo Estado-Juiz53. O Poder Judiciário está delineado nos arts.92 a 126 da Lex Legum, tendo como 53

Não se pode falar que é uma atividade integralmente monopolizada em virtude da existência da arbitragem, que, conforme Lei Federal n.º 9.307/96, configura-se num meio não-estatal de composição de conflitos.

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precípua função dar concretude ao direito, a partir da solução dos conflitos. Além dessa prerrogativa, a jurisdição tem também a atribuição de efetivar a norma, implementando direitos regulamentados. Deve-se registrar que, cada dia mais, a jurisdição é entendida e exigida como um direito fundamental e uma garantia ao cidadão. Em seus estudos sobre as atividades jurisdicionais, Morgana Carvalho (2009, p. 105) aponta que as atribuições do Judiciário de solucionar os litígios tiveram de ser gradativamente ampliadas para viabilizar a sua utilização instrumental. Quanto à função de dizer o direito, no sentido de dar concretude prática às normas imperativas de convivência social, é certo afirmar que remonta aos primórdios da civilização. No rigor técnico, pode-se dizer que as decisões judiciais, regra geral, somente irão produzir efeitos para os litigantes do processo. Entretanto, tal característica, embora esteja consubstanciada tecnicamente, acaba por mascarar, como bem defende Morgana Carvalho (2009, p. 113) um dos maiores fatores de relevância da atividade jurisdicional para a sociedade, o '”feedback” para os sujeitos de direito, estranhos à relação processual. Enfim, é fato que, boas ou más, as decisões do Judiciário são amplificadas quando repercutem socialmente e passam a nortear a conduta de toda a sociedade. Destarte, a decisão emanada pelo Poder Judiciário, embora seja destinada a alterar o patrimônio jurídico apenas dos litigantes do processo, uma vez proferida, atinge um espectro muito maior de influência e repercussão na sociedade. Para Morgana Carvalho (2009, p. 115), desprezar essa realidade é tentar ignorar o direito como sistema de regulação das relações sociais, é dissociar a teoria da prática, é crer que o problema jurídico se esgota no estudo formal da norma e dos procedimentos de sua aplicação. Portanto, não basta decidir simplesmente. Faz-se necessário que o Poder Judiciário decida de forma legítima, construtiva, proporcional, harmônica com a realidade social, comprometida com os valores

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existentes na comunidade. As decisões judiciais devem ser realizadas com a consciência da sua repercussão social na vida comunitária. Abordando esse tema, Habermas (2003, p. 246) enfatiza que: […] as decisões judiciais têm que satisfazer, a um só tempo, aos requisitos de aceitabilidade racional e de decisão consciente, para que possam desempenhar a função integradora da ordem jurídica e garantir a legitimidade do direito. Mas a função jurisdicional não pode ser vista apenas como uma função ancilar que possibilita integrar a ordem jurídica e assegurar a legitimidade do sistema. Mais que mero instrumento ancilar, a jurisdição desempenha um papel de fundamental importância na construção da ordem jurídica, no preenchimento do sentido axiológico dos princípios constitucionais e na concretização dos direitos fundamentais em uma medida razoável, ditada pelo discurso democrático.

Além dessas necessárias pontuações em relação às decisões judiciais, José Eduardo Faria (2005, p. 95) entende que existe um grande dilema a ser hoje enfrentado pelo Judiciário brasileiro. Tal dilema consiste em cobrir o fosso entre o sistema jurídico-positivo e as condições de vida de uma sociedade com 40% de seus habitantes vivendo abaixo da linha da pobreza, em condições sub-humanas. Diante dessa situação desconfortável, José Faria (2005, p. 112) conclui advertindo que se o Judiciário não souber despertar para a realidade social, política e econômica do país, mais cedo do que se imagina poderá passar a ser considerado uma instituição irrelevante ou até mesmo “descartável”, por parte da sociedade. 4.2 O reconhecimento da legitimidade do controle judicial das políticas públicas Sempre que a Constituição define um direito fundamental, ele se torna exigível, inclusive mediante ação judicial, embora possam ocorrer ponderações quando um direito fundamental entre em choque com um outro direito fundamental. Esse é o pensamento hodierno da matéria. Porém, esse entendimento sobre a possibilidade de o Poder Judiciário sindicalizar as políticas públicas, determinado a adoção de condutas positivas para a Administração Pública omissa, era bastante minoritário. Durante muitos anos, vigorava a ideia, no âmbito do direito público, da

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impossibilidade de se controlar a discricionariedade política ou administrativa estatal, apenas se permitindo ao Judiciário analisar os aspectos estabelecidos em lei. Nesse cenário se coloca o tema da sindicabilidade jurisdicional das políticas públicas, com a identificação de dois grupos, quais sejam, aqueles favoráveis ao seu pleno controle judicial e que reconhecem e defendem a legitimidade desse; e os que negam e questionam tal legitimidade, enquadrando a matéria (políticas púbicas) no terreno próprio da deliberação política e administrativa. Nas linhas seguintes são demonstrados alguns dos argumentos dessas duas correntes, ao tempo em que será demonstrada a aderência pela primeira corrente com os temperamentos necessários, evitando, assim, posições extremadas. Segundo Raquel Melo Urbano de Carvalho (2008, p. 296), essa referida posição de refutar o controle judicial das políticas públicas partia da ideia de que os interesses relativos à conveniência e oportunidade são privativos do legislador e do administrador

público.

Com

isso,

impunha-se

a

absoluta

imunização

da

discricionariedade em face do controle judicial. A conveniência e oportunidade dos atos discricionários compunham, tradicionalmente, o mérito administrativo e, assim sendo, ficava imune à sindicabilidade pelos outros poderes. Então, o controle judicial sempre foi condicionado apenas ao efetivo controle da legalidade. Essa foi uma das principais bandeiras levantadas pela corrente dos que negavam a legitimidade do controle judicial das políticas públicas, porém existem outros argumentos contrários, que se constituem em verdadeiros dogmas pela posição conservadora que ostentam. De acordo com essa corrente, o Poder Judiciário não pode, como registra Morgana Carvalho (2009, p. 140), interferir nas decisões sobre a alocação de recursos públicos, distribuição orçamentária, eleição de políticas públicas, realização de programas sociais e definições de prioridades governamentais, pois, se o fizer, estará se politizando, o que não seria aconselhável. Esse pensamento consolidou a doutrina brasileira da ideia da imunidade do poder discricionário. Ainda com base nas lições de Morgana Carvalho (2009, p. 142):

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[...] essa concepção dominou a doutrina nacional por algum tempo e ainda influencia juristas, que defendem que o ato discricionário é imune ao controle jurisdicional, porque se encontra na esfera da liberdade do Poder Executivo, estando proibido ao Poder Judiciário interferir.

Outro aspecto defendido pela corrente negativista é que a tutela judicial das políticas públicas viola o princípio da separação dos poderes, consagrado constitucionalmente. A falta de legitimidade em si é também um óbice para se aceitar que o Poder Judiciário possa controlar políticas públicas, visto que os juízes não são eleitos. Assim, quando os juízes atuam em matéria política, há uma ilegítima invasão de poder reservado a outra função estatal. Para Freire Júnior (2005, p. 51), por melhor intencionado que estivesse o magistrado, sua ação careceria de conteúdo constitucional. Na opinião do autor, haveria, portanto, um insanável ‘déficit democrático’ na atuação de juízes exercendo controle de atividades políticas. Comentando esse argumento da falta de legitimidade democrática, Luís Roberto Barroso (2008, p. 239) assim se manifesta: Não são poucos os que sustentam a impropriedade de se retirar dos poderes legitimados pelo voto popular a prerrogativa de decidir de que modo os recursos públicos devem ser gasto. [..] É o próprio povo – que paga os impostos – quem deve decidir de que modo os recursos públicos devem ser gastos. E o povo pode, por exemplo, preferir priorizar medidas preventivas de proteção da saúde, ou concentrar a maior parte dos recursos públicos na educação das novas gerações. Essas decisões são razoáveis, e caberia ao povo tomá-las, diretamente ou por meio dos seus representantes eleitos.

Resumindo as objeções à legitimidade do controle jurisdicional das políticas públicas, Vanice Regina Lírio do Valle (2009, p 99) aponta duas principais. A primeira trata das objeções atinentes ao déficit democrático, já comentado; e a segunda trata das objeções que apontam as deficiências funcionais do Poder Judiciário para o controle ou redirecionamento das políticas públicas. No âmbito dessa segunda objeção, é apontada a ausência de expertise do Judiciário para influir ou determinar tecnicamente as políticas públicas.

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Especificamente no que tange aos direitos fundamentais à saúde, além das objeções genéricas referidas, há uma frequente crítica oposta à possibilidade de controle judicial das políticas sociais. Tal crítica se apóia, segundo Barroso (2008, p. 238), na circunstância de a norma constitucional aplicável estar positivada na forma de norma programática. O art. 196 da Constituição Federal, já transcrito neste trabalho, deixa claro que a garantia do direito à saúde se dará por meio de políticas sociais e econômicas e não por meio de decisões judiciais. Além dessa forte justificativa, alguns outros argumentos têm sido utilizados para afastar as pretensões judiciais envolvendo o direito à saúde, a exemplo da reserva de competência legislativa, o afronte ao princípio da separação dos poderes e a teoria da reserva do possível. Portanto, como visto, a corrente dos que defendem a falta de legitimidade do controle judicial das políticas públicas apresenta uma série de argumentos fáticos e jurídicos. Isso fez com que predominasse na doutrina por longos anos. Entretanto, com a nova tábua axiológica advinda com a Constituição Federal de 1988, que promoveu a centralidade dos direitos fundamentais, e com o pleno reconhecimento de normatividade dos princípios jurídicos, ocorreu uma verdadeira virada jurisprudencial54, como proclama Barroso (2008, p. 236). A partir desse momento, passou-se a enxergar que o Poder Judiciário não só poderia como também deveria intervir nas políticas que envolvessem os direitos sociais, visando, justamente, garantir-lhes a efetividade. Na defesa da possibilidade de atuação do Judiciário no âmbito das políticas públicas, o jurista Aury Lopes Júnior (2004, p. 73) traz o seguinte pensamento: [...] a legitimidade democrática do juiz deriva do caráter democrático da Constituição, e não da vontade da maioria. O juiz tem uma nova posição dentro do Estado de Direito e a legitimidade de sua atuação não é política, mas constitucional, e seu fundamento é unicamente a intangibilidade dos direitos fundamentais. É uma legitimidade democrática, fundada na garantia dos direitos fundamentais e baseada na democracia substancial.

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Expressão traduzida da obra de J.J Gomes Canotilho (2002, p. 26), que se referia a uma viragem jurisprudencial, uma vez que as decisões dos tribunais constitucionais passaram a considerar-se como um novo modo de praticar o direito constitucional – daí o nome de moderno direito constitucional.

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Como afirma Raquel de Carvalho (2008, p. 324), o controle judicial, destarte, é possível, recomendável, necessário e indispensável, nos estritos termos da Constituição. Também reconhecendo a plena possibilidade da intervenção judicial nas decisões políticas e administrativas, Morgana Carvalho (2009, p. 141) se posiciona da seguinte forma: Entende-se ser perfeitamente possível o controle dos atos administrativos, principalmente dos discricionários. Igualmente se podem exigir judicialmente políticas públicas, respeitando-se os ditames constitucionais, naquilo em que, de fato, for flagrante a violação, pelo Poder Público, das prioridades sociais irrenunciáveis, como os requisitos para a cidadania mínima, pressuposto básico para o gozo dos demais direitos sociais

Nesse diapasão, Dirley da Cunha Júnior (2004, p. 353) sustenta a ideia de que: [...] quando os Poderes Legislativo e Executivo mostram-se incapazes ou totalmente omissivos em garantir o cumprimento adequado dos direitos fundamentais sociais, em violação evidente de seus deveres constitucionais, cabe inevitavelmente a intervenção do Judiciário, como terceiro gigante no controle do Poder Público.

Habermas acredita, a fortiori, que a intervenção judicial na formulação das políticas públicas se revela possível, já que as instâncias de democracia participativa legitimaram a intervenção positiva dos juízes. A concepção de Habermas, segundo Appio (2007, p 43), oferece respostas satisfatórias a algumas das indagações inerentes às sociedades pós-industriais, tais como sobre o grau de efetiva influência da ‘massa de eleitores’ nas decisões governamentais acerca das políticas públicas. Como bem salienta Ingo Sarlet (2007, p. 52), a consequência principal de se classificar a saúde como direito fundamental é a sua auto-aplicabilidade, entendida como a exigibilidade judicial sem subterfúgio normativo inferior, de acordo com os ditames do art. 5º, § 1º da CF/88. Constituindo-se em um direito fundamental, tornase também um direito subjetivo, oponível ao Estado em caso de descumprimento de seus preceitos. Estabelece-se, assim, uma relação obrigacional, na qual o cidadão é o credor e o Estado, o devedor. Daí se obtém uma justicialidade de tal direito. Ou

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seja, em face dessa relação obrigacional, o Poder Judiciário passa a ter legitimidade para controlar as políticas públicas destinadas a atender os direitos sociais. Assim, diante de várias doutrinas, percebe-se que a autorização para a atuação

do

Poder

Judiciário

no

controle

das

políticas

públicas

advém,

precipuamente, da sua prerrogativa constitucional de guardião dos direitos fundamentais. Lênio Streck entende que a importância do Poder Judiciário está relacionada ao fato de ser este um instrumento para o resgate dos direitos nãorealizados. Como o Judiciário tem o dever de conferir aos direitos fundamentais a máxima eficácia possível, tornou-se plenamente possível a defesa de sua postura ativa. Ronald Dworkin (1999, p. 42) já dizia há muito que o objetivo da decisão judicial não é meramente nomear direitos, mas assegurá-los. Sobre o fato, Dirley da Cunha Júnior (2008, p. 585) enfatiza que o Poder Judiciário se apresenta como a última trincheira de defesa dos direitos fundamentais. Entretanto, apesar de esta pesquisa aderir à corrente que entende ser plenamente legítima a atuação judicial no controle das políticas sociais, a questão que continua a se apresentar, não obstante as crescentes intervenções judiciais, diz respeito à efetividade e concretude dos direitos à saúde. Desse modo, a questão é saber até que ponto essa legítima atuação do Poder Judiciário está contribuindo para a efetividade dos universais direitos à saúde. Deve-se levar em conta nessa procura os anseios e necessidades de uma sociedade complexa e plural. Nesse sentido, Habermas (2003, p. 308) afirma que está fora de dúvida que existe uma mudança na conceitualização dos direitos fundamentais, que se reflete na jurisprudência constitucional – uma mudança nos princípios de uma ordem jurídica que garantem a liberdade e a legalidade de intervenção, que sustentam os direitos de defesa e transportam inexplicavelmente o conteúdo de direitos subjetivos de liberdade para o conteúdo objetivo de normas de princípio, enérgicas e formadoras de estrutura.

Depois de superar as objeções de legitimidade e as ortodoxas correntes doutrinárias contra a sua atuação no controle das políticas públicas, o Poder Judiciário passou a assumir um papel de destaque, deixando de ser mero

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coadjuvante. Os já previsíveis riscos de uma tendência a um ativismo por parte do Judiciário no controle das políticas sociais se confirmaram. Vanice do Valle (2009, p. 97) assevera que o Judiciário, apontado como garantidor desses mesmos direitos, vê-se tentado a ampliar o seu espaço de atuação, em nome do valor maior de proteção à dignidade da pessoa.

É possível se notar, em algumas áreas, como no controle das políticas sociais de saúde, uma interferência demasiada, uma valorização excessiva do Judiciário, acarretando uma hipotética “judicialização da saúde”, reconhecida, inclusive, pelo STF55, que, de maneira louvável, convocou a sociedade civil organizada, com seus múltiplos atores, para debater a questão dos excessos cometidos pelo Poder Judiciário na área de saúde pública. Sobre esse fato, o ilustre constitucionalista lusitano José Gomes Canotilho (apud Freire Júnior, 2005, p. 91) expressou o seu posicionamento deste modo: Bem. Eu tenho escrito e dito que não sou muito defensor da ideia de uma total judicialização da vida política. Aqui, na Europa, parece que se considera que os tribunais constitucionais e os outros tribunais são a última etapa do aperfeiçoamento político. As últimas sugestões feitas aqui mesmo, na minha faculdade, vão no sentido de que a visão principialista só tem sentido numa visão jurisprudencialista do direito. [...] A isso eu respondo: pelo contrário, as grande etapas do homem não foram os juízes que a fizeram, foi o povo, com outros esquemas organizativos e com outras propostas de actuação.

Com efeito, apresenta-se bastante temerário esse exacerbado ativismo judicial no controle das políticas sociais, principalmente de saúde. Carl Schmitt (apud Freire Júnior, 2005, p. 51), há muito, já alertava que, com a justicialização da política, a política não tem nada a ganhar e a justiça tem tudo a perder. Nos dias atuais, não mais se admite uma postura passiva, omissiva do Poder Judiciário. Utilizando a interessante expressão de Freire Júnior (2005, p. 59), não mais é cabível um “Juiz Pilatos”, que não pretende assumir sua importante missão na nova 55

Nos meses de abril de maio de 2009, o STF promoveu a Audiência Pública n.º 04 com diversos atores sociais e institucionais ,intentando sistematizar o debate sobre a intensa participação do Poder Judiciário nas políticas sociais de saúde. Para obter maiores informações e visualizar os diversos depoimentos, acessar o site

www.stf.gov.br.

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ordem constitucional. Essa postura do Judiciário não guarda mais compatibilidade com o Estado Democrático de Direito. O Judiciário transcendeu a sua origem montesquiana, não podendo mais ser visto como a boca que pronuncia as palavras da lei. (MONTESQUIEU, 2003, p. 179). Porém, por outro lado, também não se pode pretender estabelecer uma nova ditadura, agora, sendo a dos juízes. Tem-se, então, de um lado, o isolamento dos responsáveis pela implementação e escolhas das prioridades e das políticas públicas e, de outro, como aborda Nagibe Jorge Neto (2008, p. 153) um ativismo judicial exagerado, em que a intromissão do Poder Judiciário no planejamento e execução das políticas públicas acaba por prejudicar o planejamento estratégico da gestão pública em prejuízo a toda a sociedade. Entre esses dois extremos da negativa absoluta da intervenção do Judiciário; e a atuação exagerada e ilimitada desse mesmo Poder, há de se buscar uma solução intermediária, evitando, como adverte Boaventura de Souza Santos (apud Vanice do Valle, 2009, p. 107), que a ausência de uma determinada racionalidade ou solução, funcione como bloqueio ao desenvolvimento de outras alternativas, e reduza a realidade somente àquilo que já existe. Numa síntese lapidar, Inocêncio Coelho (apud Freire Júnior, 2005, p. 120) conclui como segue: Em suma, nem o protagonismo irresponsável, nem o alheamento apassivador, porque tanto um quanto o outro não se coadunam com o princípio da lealdade constitucional e, afinal, podem comprometer a credibilidade e a própria sobrevivência da jurisdição constitucional como criatura da Constituição.

Portanto, é preciso consciência dos juízes para usar do ativismo na exata proporção. Vale dizer, sem excessos e também sem omissões. Esse é um desafio a ser enfrentado. Superado, então, o debate em torno da possibilidade de controle judicial sobre as políticas públicas, resta agora buscar limites e parâmetros para que esse controle não se torne excessivo e nem prejudique a gestão pública voltada à satisfação do interesse da coletividade. É cediço que o Poder Judiciário não possui competência para definir prioridades orçamentárias. Desse modo, faz-se necessário verificar em que medida a atividade judiciária pode impor coativamente a satisfação

91

dos direitos fundamentais. Partindo da constatação, já demonstrada, de que o Estado não dispõe de recursos aptos a prover a uma demanda tendecialmente infinita às ações de saúde, uma postura cientificamente responsável ensejará o ônus de se estabelecer um critério racional que permita segregar aquilo que poderá ser exigido judicialmente daquilo que permanecerá no âmbito do juízo discricionário da Administração Pública. 4.3 Manifestações concretas da atuação do Judiciário no controle das políticas sociais: a judicialização da saúde O estudo da jurisprudência merece destaque porque se entende que o direito mais pulsante é aquele efetivamente praticado nos tribunais. A postura atual do Poder Judiciário no exercício do controle das políticas sociais é bem ativa e intervencionista, principalmente na área dos direitos fundamentais à saúde. Utilizando as palavras de Vanice Regina Lírio do Valle (2009, p. 117), ainda que sem uma suficiente elaboração teórica, ainda que sem a dimensão integral do problema, ainda sem alcançar o signo de universalidade que seria desejável na seara de políticas públicas, o Judiciário tem optado por abraçar o problema, e chamar a si a possibilidade de intervir, controlar, e mesmo (ocasionalmente) formular políticas públicas. Desse modo, a partir da análise da essência de alguns desses julgados, pretende-se,

de

maneira

empírica,

extrair

a

tendência

manifestada

e

o

direcionamento jurisprudencial na área dos direitos à saúde, esboçando uma análise crítica do tema que ainda não se encontra inteiramente teorizado. De logo, registre-se que a maior parte dos julgados relacionados à implementação de direitos sociais de cunho prestacionais diz respeito a prestações ligadas à saúde, envolvendo o fornecimento de remédios e equipamentos, custeio de viagens para tratamento no exterior, de cirurgias eletivas, etc. Nesse âmbito, Marco Maselli Gouvêa (2005, p. 375) aponta que, desde os processos pioneiros

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ajuizados na década de noventa, a tendência das cortes brasileiras tem sido francamente favorável aos postulantes. Com a pesquisa ora materializada, tal entendimento restou comprovado. No exercício do controle sobre as políticas sociais, a partir da análise da jurisprudência de diversos Tribunais brasileiros56, podem ser notadas variadas decisões obrigando o Estado (União, Estados e Municípios) a fornecer específicos e complicados tratamentos de saúde e medicamentos de elevado custo aos cidadãos que buscam o Poder Judiciário. Destaca-se, porém, que as decisões judiciais colacionadas são meras ilustrações de uma vasta e diversificada jurisprudência em produção permanente, em todo o país, nas diversas estruturas do Judiciário. De acordo com um levantamento realizado pelo Ministério da Saúde57, notase que a progressão de aumento nos gastos do Ministério da Saúde com a compra de medicamentos por determinação judicial é geométrica. Foram gastos R$2,4 milhões, em 2005, R$7,6 milhões, em 2006, R$ 17,3 milhões, em 2007, e R$ 52 milhões, em 2008. portanto, em quatro anos, o aumento ultrapassou a 2.000%. Além dos gastos diretos, grande parte dos recursos despendidos com ações judiciais pelos Estados é oriunda de repasses dos Ministérios para os mesmos. Calcula-se, com base em estimativa de especialistas58, que nove de cada dez pedidos de tratamentos e remédios específicos sejam deferidos pelos juízes brasileiros. Está ocorrendo uma verdadeira “epidemia de ações judiciais”. Em termos gerais, as decisões judiciais que deferem os pedidos para delicados e custosos tratamentos de saúde ou para fornecimento de medicamentos de elevado custo baseiam-se somente nos direitos fundamentais elencados pela Constituição Federal. Não há a mínima preocupação com a viabilidade orçamentária do Estado para cumprir aquelas determinações sem impactar nas demais políticas

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Apenas para citar as decisões das Cortes Superiores, no Superior Tribunal de Justiça (STJ) pode-se verificar o RESP n.º 353.147-DF; RESP n.º 430.536-SP e PET n.º 1775-SP e no Supremo Tribunal Federal (STF), vide o RE n.º 247.900 e RE n.º 279.519. 57 Essas informações podem ser verificadas no seguinte site mantido pelo Ministério da Saúde: http://www.portal.saude.gov.br. 58 Informação extraída de reportagem publicada na Revista Época n.º 501, de 24/12/2007, p. 68-70.

93

sociais. Nesse sentido, a excelente dissertação de mestrado de Alexandre Vitorino Silva, apud Cláudia Fernanda Oliveira Pereira (2004, p. 89), capta esse problema com singularidade. Veja-se o trecho a seguir:

Toda a vez que um magistrado [...] determina o custeio imediato de um tratamento caríssimo no exterior a um paciente [...] que não encontra terapia adequada no sistema público de saúde, outras prioridades, definidas pelo Parlamento e pelo Poder Executivo, com o mesmo nobre escopo de concretizar direitos fundamentais, tais como a adequada proteção policial, a modernização do Poder Judiciário, o combate a epidemias, a prestação de serviços simples de saúde [...] perdem a sua parte no “bolo”.

Resumindo, ao ser obrigado, por exemplo, com alicerce no princípio supremo da dignidade da pessoa humana, a pagar um tratamento de mudança de sexo no Canadá a um determinado cidadão que ingressou com uma ação em juízo, o Estado terá de deslocar esse recurso de um outro destino anteriormente previsto. Dessa forma, pode-se afirmar, nesse simples exemplo, que a transformação física, moral e psicológica daquele cidadão no Canadá poderá significar a morte por tuberculose de outros cidadãos, que não puderam ser plenamente cuidados pelo Poder Público em virtude do remanejamento orçamentário, conforme já comentado no capítulo 3. Diversas decisões judiciais autorizando o custeio pelo Estado de vultosos tratamentos em países estrangeiros, de medicamentos experimentais de elevado custo, de procedimentos cirúrgicos eletivos e não indispensáveis, e até de tratamentos estéticos, podem ser identificadas. Primeiramente, colaciona-se uma decisão proferida, em 14/08/2007, pelo Tribunal Regional Federal (TRF) da 4ª Região, que condenou o Governo Federal a promover, no prazo de 30 dias, todas as medidas apropriadas para possibilitar aos transexuais a realização, pelo Sistema Único de Saúde, de todos os procedimentos médicos necessários para garantir a cirurgia de transgenitalização. Segue trecho da Ementa do Acórdão do TRF 4ª Região: DIREITO CONSTITUCIONAL. TRANSEXUALISMO. INCLUSÃO NA TABELA SIH-SUS DE PROCEDIMENTOS MÉDICOS DE TRANSGENITALIZAÇÃO. PRINCÍPIO DA IGUALDADE E PROIBIÇÃO DE DISCRIMINAÇÃO POR MOTIVO DE SEXO. DISCRIMINAÇÃO POR MOTIVO DE GÊNERO. DIREITOS FUNDAMENTAIS DE LIBERDADE. LIVRE DESENVOLVIMENTO DA PERSONALIDADE. PRIVACIDADE E

94

RESPEITO À DIGNIDADE HUMANA. DIREITO À SAÚDE. FORÇA NORMATIVA DA CONSTITUIÇÃO. 1 – A exclusão da lista de procedimentos médicos custeados pelo Sistema Ùnico de Saúde das cirurgias de transgenitalização e dos procedimentos complementares, em desfavor de transexuais, configura discriminação proibida constitucionalmente, além de ofender os direitos fundamentais de liberdade, livre desenvolvimento da personalidade, 59 privacidade e proteção à dignidade humana e à saúde.

Deve-se registrar, com relação ao caso supramencionado, que o STF60, em boa hora, suspendeu a tutela antecipada concedida pelo TRF da 4ª Região. Na ocasião, a então Ministra-Presidente Ellen Gracie destacou a importância da consideração dos efeitos inter-relacionais de uma ordem judicial que tenha por objeto o remanejamento de verbas originalmente destinadas a outras políticas públicas de saúde, assinalando, ainda, o risco de problemas de alocação dos recursos públicos indispensáveis ao financiamento do Sistema Único de Saúde em âmbito nacional. Um outro caso interessante é o de um garoto do Estado do Pará, que foi diagnosticado como portador de linfoma de Hodgkin e que fez tratamento por mais de um ano no Hospital do Câncer em São Paulo. Foi submetido, sem sucesso, em fevereiro de 2003, a um transplante de medula óssea. Devido à falta de sucesso no tratamento, os pais entraram na Justiça, pretendendo obrigar a União a custear um novo transplante nos EUA, orçado em US$300 mil. Após examinar o pedido, o juiz concedeu antecipação de tutela, determinando à União o imediato depósito do equivalente a US$218.833,00 na conta do paciente no M.D. Anderson Cancer Center, centro de referência mundial, localizado na cidade de Houston, no Texas. A União protestou, mas o juiz federal da 2ª Vara Judiciária do Pará fixou uma multa de R$ 50 mil em caso de descumprimento ou retardamento da liminar. O Tribunal Regional Federal da 1ª Região confirmou em parte a tutela, apenas restringindo o custeio das despesas ao restabelecimento do transplante. Apesar do insucesso da primeira intervenção cirúrgica, vale pontuar que, conforme foi noticiado à época, o Brasil era destaque mundial no tratamento dessa doença e que vários outros 59

TRT 4ª Região, Apelação Cível n.º 2001.71.00.026279-9/RS, Julgamento em 14/08/2007, Relator Juiz Roger Raupp Rios. 60 Decisão da Ministra Relatora Ellen Gracie, então Presidente do STF, que se manifestou favorável aos argumentos da União, na STA n.º 185, j. 10/12/2007, p. DJU de 14/12/2007.

95

brasileiros portadores da doença estavam sendo bem sucedidos nos seus tratamentos. De modo semelhante ao do caso anteriormente abordado, o STJ, por meio do então Presidente, o Ministro Edson Vidigal, concedeu medida suspensiva de liminar para que a União não fosse mais compelida a custear o tratamento do jovem.61 O Ministro destacou que o SUS oferecia condições seguras para a realização do transplante, com equipes médicas e instalações hospitalares adequadas, frisando, ainda, que o Brasil encontrava-se em posição de destaque mundial no tocante aos procedimentos de transplantes de órgãos. Além disso, o Ministro se manifestou, com extrema lucidez, nos seguintes termos: A quantia extremamente vultosa necessária para a realização do transplante do autor da ação no exterior, US$300.000,00 (trezentos mil dólares), poderia beneficiar um sem-número de pacientes também necessitados de tratamento. [...] Tenho por configurada a potencialidade lesiva à própria saúde pública e presente o efeito multiplicador, mormente porque aqui já aportaram ações iguais, circunstância que pode acarretar irreversível lesão ao Erário.

Também merece registro o caso do indivíduo que era portador da doença denominada “retinose pigmentar”, que ataca a retina e diminui progressivamente a visão. O indivíduo buscou do Estado, por meio do Poder Judiciário, o custeio integral de um tratamento médico em Havana, Cuba. O pleito, que estava respaldado em recomendação médica colacionada pelo autor, teve, de logo, provimento judicial, que condenou a União a custear todo o tratamento no exterior. Depois, o TRF da 1ª Região resolveu negar provimento ao requerente, desonerando a União do pagamento do tratamento no exterior. O caso chegou ao STJ, que, após muitos debates e posicionamentos divergentes na segunda turma, resolveu manter a imputação de responsabilidade da União. A seguir, tem-se o resumo da decisão do STJ62: EMENTA RECURSO ESPECIAL. TRATAMENTO DE DOENÇA NO EXTERIOR. RETINOSE PIGMENTAR. CEGUEIRA. CUBA. RECOMENDAÇÃO DOS 61 62

Fonte: portal do STJ - .www.stj.gov.br/portal_stj/objeto/texto. STJ. Resp. n.º 353.147/DF, Rel. Min. Fraciulli Netto., j. 15/10/2002, p. DJ 24/10/2002.

96

MÉDICOS BRASILEIROS. DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE. DEVER DO ESTADO. O Sistema Único de Saúde pressupõe a integralidade da assistência, de forma individual ou coletiva, para atender cada caso em todos os níveis de complexidade, razão pela qual, comprovada a necessidade do tratamento no exterior para que seja evitada a cegueira completa do paciente, deverão ser fornecidos os recursos para tal empresa.

A tese vencedora no STJ, em 2002, foi a de que o Estado deveria arcar com todas as despesas necessárias para salvaguardar o direito à saúde, bastando para isso o respaldo médico, providenciado pelo próprio autor, atestando a necessidade do tratamento, não importando quaisquer limitações fáticas ou jurídicas. Em que se pese essa opinião vencedora, que gerou a ementa supra transcrita, cabe destacar o brilhante voto em apartado, manifestado pela Ministra Eliana Calmon, que, discordando

veementemente

da

simples

e

automática

imputação

de

responsabilidade à União, registrou sua opinião e deixou claro que ficou provado nos autos a existência, no Brasil, de tratamento cirúrgico adequado para a cura. Podia até não ser a melhor equipe mundial, mas a medicina local apresentava-se bastante apta para tratar de casos como a do requerente pelo tratamento no exterior. Seguem alguns trechos do voto separado da Ministra Eliana Calmon: Sr. Ministro-Relator, data venia de V. Exa., entendo que a medicina pública deve obedecer a um direcionamento, que passa, necessariamente, pela disponibilidade dos órgãos públicos, a fim de que tenham uns mais que outros. [...] É muito fácil o discurso de que o direito à vida e à saúde é absoluto e acima de qualquer interesse. Mas a verdade é que só o conhecimento médicoadministrativo pode priorizar os tratamentos e autorizá-los ou não, o que não pode ficar ao sabor das informações obtidas pela parte, ou chanceladas pelo Judiciário, que, sem o conhecimento fático necessário, enxerta razões subjetivas como fundamentos das decisões da Justiça, o que me parece lamentável, em termos de segurança jurídica. Com essas singelas considerações, pedindo a juntada de meu voto, ouso divergir do relator.

Mais um caso digno de nota foi o pleito judicial por fornecimento gratuito de aparelho auditivo por parte do Estado do Rio de Janeiro. Em virtude da conquista, em primeira instância, da antecipação da tutela imputando a responsabilidade ao Estado para fornecer o aparelho, o caso foi parar no Tribunal de Justiça Estadual. Nessa segunda instância, a decisão foi reformada e a tutela revogada em virtude do argumento de que embora o aparelho auditivo possa assegurar à agravada melhoria

97

na sua qualidade de vida, inexiste prova inequívoca de que o mesmo é indispensável à preservação de sua saúde ou que esta se encontre em risco.63 De igual maneira, em um outro processo requisitando do Estado aparelho auditivo, o mesmo Tribunal de Justiça fluminense assim decidiu64: [...] Na espécie, a insuficiência auditiva comprovada pela autora não se apresenta de forma grave a justificar o desembolso pelo orçamento público de tão elevada quantia (R$4.600,00). É fácil imaginar que a postulação coletiva de tal equipamento comprometeria a receita pública destinada a atender, com prioridade, os casos de urgência e enfermidade grave. Desprovimento do recurso.

Na seara do fornecimento gratuito de medicamentos, pode-se constatar, até com certo grau de recorrência, decisões judiciais autorizando o fornecimento gratuito pelo Estado de caríssimos medicamentos ainda em fase experimental ou de medicamentos que possuem genéricos a disposição, ou ainda daqueles que não estejam previstos no rol estabelecido pela Portaria do Ministério da Saúde. À guisa de exemplo, têm-se as decisões a seguir colacionadas: [...] “A obrigação de fornecer remédios deve ser mantida, mesmo que, no caso concreto, os medicamentos experimentais anti-retroviaris prescritos não figurem ainda da lista do Ministério da Saúde, por serem indispensáveis à continuidade do tratamento de combate à progressão da carga viral.” (Apelação Cível nos autos do Processo 2000.001.10281, Quinta Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Relator Desembargador José Affonso Rondeau, em 13/02/2001) [...] “O medicamento, ainda que não padronizado, deve ser fornecido gratuitamente pelo Estado se comprovada a necessidade” (Apelação Cível 2003.011879-9, Tribunal de Justiça de Santa Catarina, Relator Desembargador Luiz Cézar Medeiros, em 22/09/2003) [...] “Apesar da alegação de que o medicamento solicitado pelo autor não faz parte do consenso sobre terapias-retrovirais, não tem o condão de inviabilizar a tutela do agravado, uma vez que a decisão impugnada está amparada na lei e Constituição.” (Agravo de Instrumento 51719 nos autos do Processo 2000.02.01.0086520/RJ, Quinta Turma do Tribunal Regional Federal da Segunda Região, Relatora Desembargadora Vera Lúcia Lima, em 21/11/2000, publicado no DJU, em 15/03/2001)

63 64

TJ/RJ. AI 2006.002.27573, Rel. Desª. Cássia Medeiros, j. 13/02/2007, p. 22/02/2007. TJ/RJ Ap. Civ. 2006.001.32130, Rel. Desª. Suimei Meira Cavalieri, j. 02/08/2006, p. 10/08/2006.

98

RECURSO ESPECIAL. MANDADO DE SEGURANÇA. FORNECIMENTO GRATUITO DE MEDICAMENTOS. SUS. LEI N. 8.080⁄90 O v. acórdão proferido pelo egrégio Tribunal a quo decidiu a questão no âmbito infraconstitucional, notadamente à luz da Lei n.8.080, de 19 de setembro de 1990. O Sistema Único de Saúde pressupõe a integralidade da assistência,de forma individual ou coletiva, para atender cada caso em todos os níveis de complexidade, razão pela qual, comprovada a necessidade do medicamento para a garantia da vida da paciente, deverá ser ele fornecido. Recurso especial provido. Decisão unânime" (REsp 212.346⁄RJ, Rel. FRANCIULLI NETTO, 2ª Turma, unânime, DJ 04⁄02⁄2002). PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. SUSPENSÃO DE TUTELA ANTECIPADA. SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE. FORNECIMENTO DE MEDICAÇÃO GRATUITA. DEVER DO ESTADO. AGRAVO REGIMENTAL. 1.Consoante expressa determinação constitucional, é dever do Estado garantir, mediante a implantação de políticas sociais e econômicas, o acesso universal e igualitário à saúde, bem como os serviços e medidas necessários à sua promoção, proteção e recuperação (CF⁄88, art. 196). 2.O não preenchimento de mera formalidade – no caso, inclusão de medicamento em lista prévia – não pode, por si só, obstaculizar o fornecimento gratuito de medicação a portador de moléstia gravíssima, se comprovada a respectiva necessidade e receitada, aquela, por médico para tanto capacitado. Precedentes desta Corte. 4.Agravo Regimental não provido (AgRg na SUSPENSÃO DE TUTELA ANTECIPADA Nº 83 – MG – Corte Especial do STJ – j. 25.10.04 – DJU 06.12.04 – Rel. Min. EDSON VIDIGAL - Revista Eletrônica de Jurisprudência do STJ – Doc. nº 508739). CONSTITUCIONAL. RECURSO ORDINÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA.FORNECIMENTO DE MEDICAÇÃO (INTERFERON BETA). PORTADORES DE ESCLEROSE MÚLTIPLA. DEVER DO ESTADO. DIREITO FUNDAMENTAL À VIDA E À SAÚDE (CF,ARTS. 6º E 189). PRECEDENTES DO STJ E STF. 1. É dever do Estado assegurar a todos os cidadãos o direito fundamental à saúde constitucionalmente previsto. 2. Eventual ausência do cumprimento de formalidade burocrática não pode obstaculizar o fornecimento de medicação indispensável à cura e⁄ou a minorar o sofrimento de portadores de moléstia grave que,além disso, não dispõem dos meios necessários ao custeio do tratamento. 3. Entendimento consagrado nesta Corte na esteira de orientação do Egrégio STF. 4. Recurso ordinário conhecido e provido" (ROMS 11.129⁄PR, Rel. FRANCISCO PEÇANHA, 2ª Turma, unanimidade, DJ 18⁄02⁄2002).

Em

outros

julgados

pesquisados,

encontrou-se

até

deferimento

de

fornecimento de medicamentos para tratamento de acne65 e de fornecimento de complementos dietéticos de eficácia cientificamente controvertida, como aborda Gouvêa (2005, p. 381).

65

No caso da acne, tem-se dois acórdãos coligidos junto ao Tribunal de Justiça fluminense, que se filiaram ao entendimento de que o poder público deveria fornecer os medicamentos requeridos. No agravo de Instrumento n.º 2003.002.09711, a 11ª Câmara Cível deu provimento ao recurso interposto pelo autor da ação,

99

Ainda nessa área de responsabilização judicial do Estado para o fornecimento gratuito de medicamentos, Vanice Regina Lírio do Vale (2009, p. 139) aponta decisões totalmente desarrazoadas. De acordo com a autora, as distorções são gritantes, sendo notórias as decisões em todo o território nacional, particularmente no campo de dispensação de medicamentos, que asseguram florais de Bach, medicação voltada contra a impotência ou a alopecia66. É verdade que todas essas demandas

podem

envolver

dramas

humanos

significativos,

mas

não

necessariamente se configuram manifestações de violação ao direito fundamental à saúde, como registra do Valle, não sendo passível de responsabilização do Estado. Como se pode perceber das decisões judiciais apresentadas, apesar de pontuais manifestações noutra direção, há uma certa tendência em se conceder as tutelas

pleiteadas,

imputando

ao

Estado

total

responsabilidade

pela

sua

observância, independentemente das circunstâncias fáticas e jurídicas envolvidas. Induvidosamente a questão é tormentosa, pois envolve a eficácia dos direitos fundamentais sociais. Porém, determinadas situações e restrições fáticas não podem ser superadas pelo dever jurídico, por uma simples ordem judicial, ainda que o bem jurídico em jogo possua status fundamental. Nessa linha de raciocínio, Gouvêa (2005, p. 381), adverte que: Contemplar a pretensão autoral, nesta hipótese, seria fechar os olhos, insensivelmente, aos direitos fundamentais de milhares de outros brasileiros que, necessitando de prestações na área de saúde, vêm diariamente tolhido seu acesso aos remédios e tratamentos mais básicos.

No tocante a esse tema, Ana Paula Barcellos (2007, p. 615), com extrema perspicácia, afirma o seguinte: [...] nem o jurista, e muito menos o juiz, dispõem de elementos ou condições de avaliar, sobretudo em demandas individuais, a realidade da ação estatal como um todo. Preocupado com a solução dos casos concertos – o que se poderia denominar de micro-justiça – o juiz fatalmente ignora outras necessidades relevantes e a imposição inexorável de gerenciar recursos limitados para o atendimento de demandas ilimitadas: a macro-justiça. Ou seja: ainda que seja legítimo o controle jurisdicional das políticas públicas, o jurista não disporia do instrumento técnico ou de diante do indeferimento da liminar. Já no julgamento da Apelação Cível n.º 2003.001.07782, a 14ª Câmara Cível negou provimento ao apelo do Estado do Rio de Janeiro, que foi sucumbente. 66 Alopecia significa a redução parcial ou total de pêlos em determinada área da pele.

100

informação para levá-lo a cabo sem desencadear amplas distorções no sistema de políticas públicas globalmente consideradas.

Concluindo, até por dedução lógica, sabe-se que o juiz não detém informações completas sobre as múltiplas necessidades que os recursos públicos devem acudir. Os magistrados não possuem tempo e os meios necessários para fazer constantes investigações completas sobre as demandas que lhes são levadas. E, como arremata Barcellos (2007, p. 616), nem cabe ao juiz levar a cabo um planejamento global da atuação dos poderes públicos. No Supremo Tribunal Federal (STF), as decisões tomadas na seara da saúde pública aparentam-se um pouco mais comedidas e parcimoniosas, embora ainda não seja possível identificar, até mesmo na corte máxima, parâmetros seguros para balizar as decisões nessa área. Com arrimo na interessante pesquisa da Dra. Luciana Temer Castelo Branco, tem-se no quadro a seguir um resumo de todas as decisões proferidas pela Presidência do STF (Min. Ellen Gracie), em sede de fornecimento de medicamentos, no ano de 2007. Mantida a Ação

Data

SS 3345/RN

13/09/07

STA 138/RN

12/09/07

STA 139/RN

31/08/07

SS 3350/GO

16/08/07

SS 3274/GO

15/08/07

SS 3263/GO

23/07/07

SS 3201/GO

20/06/07

SL 166/RJ

14/06/07

SS 3193/RN

05/06/07

Doença

Doença crônica degenerativa Adenocarcinoma de colón reto Anemia falciforme Infertilidade feminina Infertilidade feminina Infertilidade feminina Infertilidade feminina Câncer de cólon com metástase Carcinoma

Medicação

decisão que

similar na

Referência à

obrigou o

Portaria do

hipossuficiência

fornecimento do

Ministério da

do paciente?

medicamento?

Saúde?

Sim

Não

Sim

Sim

Não

Sim

Sim

Sim

Não

Não discute

Não discute

Não

Não discute

Não discute

Não

Não discute

Não discute

Não

Não discute

Não discute

Sim

Não

Sim

Sim

Não

Sim

Não (mas obrigou o similar)

101

inflamatório de mama Deficiência SS 3183/SC

05/06/07

auditiva

Não

Sim

Sim

Sim

Não

Sim

Sim

Não

Sim

Sim

Não

Não

Não

Sim

Não discute

Não

Sim

Não discute

Não

Sim

Não discute

neurossensorial SS 3205/AM

31/05/07

SS 3158/RN

31/05/07

Hiperinsulinismo congênito Doença vascular encefálica isquêmica

SS 3231/RN

28/05/07

SS 3145/RN

11/04/07

STA 91/AL

26/02/07

SS 3073/RN

09/02/07

Fonte:

Pesquisa

Diabete mellitus Hipertensão arterial Paciente renais crônicos Câncer realizada

por

Luciana

Castelo

Branco,

publicada

em

www.cepam.sp.gov.br/arquivos/artigos. Da análise dessas decisões do STF em 2007 na área de fornecimento de medicamentos, pode-se afirmar que não há um direcionamento preciso, em que se pese uma ligeira tendência de se manter a obrigação de fornecimento gratuito pelo Estado quando há um risco iminente de morte. Assim, conclui-se que a gravidade da doença seria o principal motivo para a determinação da responsabilidade do Estado no atendimento de um direito individual. Por outro lado, a então Presidente, a Ministra Ellen Gracie, deixa clara a preocupação com as limitações dos recursos públicos. Ao deferir a suspensão da SS 3274/GO, a Ministra enfatiza que a responsabilidade do Estado em fornecer os recursos necessários à reabilitação da saúde de seus cidadãos não pode inviabilizar o sistema público de saúde. Destarte, não pode ser mais admitido aquele discurso meramente retórico e supostamente emocionado sobre a importância dos direitos fundamentais e da dignidade da pessoa humana. Perfilhando a corrente de Barcellos (2007, p. 606), é preciso examinar o tema do controle judicial das políticas sociais com seriedade e honestidade intelectuais. O simples argumento de que as garantias estão contempladas na Constituição Federal e necessitam ser disponibilizadas a qualquer preço não tem resolvido o problema da efetividade dos direitos fundamentais. Pelo

102

contrário, à medida que o Estado vem sendo obrigado a cumprir demandas judiciais específicas, outras políticas sociais deixam de ser satisfatoriamente prestadas e, consequentemente, outros direitos fundamentais, de outros cidadãos, deixam de ser atendidos. A regra é muito simples: sendo os recursos públicos limitados e condicionados, para se gastar em uma ação não prevista será necessário cortar o gasto de uma ação anteriormente planejada.67 Além desse patente problema, um outro aspecto digno de preocupação é o fato de que os indivíduos que recorrem ao Judiciário para postular algum bem ou serviço em matéria de direitos fundamentais nem sempre serão os representantes das classes menos favorecidas da sociedade. Regra geral, as necessidades daqueles que mais necessitam não chegam aos Tribunais e nem são ouvidas pelos juízes. Assim sendo, como as decisões judiciais apenas produzem efeitos apenas pontuais, entre os postulantes, o princípio da igualdade na efetivação dos direitos fundamentais fica prejudicado. E isso é o reflexo daquele tão debatido problema do acesso universal à Justiça. Portanto, essa realidade não deve ser ignorada: as decisões judiciais em matéria de direitos sociais à saúde, grosso modo, não têm se mostrado “seletivas”, como se pôde notar dos julgados supratranscritos. Percebe-se, então, que é comum, por exemplo, que alguns magistrados determinem a entrega de remédios inexistentes no país, experimentais, ou alternativos, que, em regra, são muito dispendiosos. Sobre essa concessão de medicamentos pelos juízes, Lúcia Léa Guimarães Tavares (2002, p. 109) firmemente se posiciona: É comum que alguns magistrados determinem a entrega de remédios inexistentes no país, que devem ser importados, às vezes muito dispendiosos. Em geral, não são sensíveis aos argumentos de sua inexistência ou de seu alto custo, firmes na posição de que recursos existem, mas são mal aplicados pelo Poder Executivo. Não posso, e nem quero, entrar no mérito da questão do desperdício dos recursos públicos, desperdício este que, 67

O dito popular do cobertor curto retrata bem a situação: se cobre a cabeça, os pés ficam descobertos e vice-versa.

103

lamentavelmente, não é privilégio do Poder Executivo. Mas não há dúvida de que os recursos são escassos e sua divisão e apropriação por alguns segmentos – mais politizados e articulados – pode ser feita em detrimento de outras áreas da saúde pública, politicamente menos organizadas e, por isso, com acesso mais difícil ao Poder Judiciário.

Do mesmo modo, o presente trabalho não aborda a questão das inegáveis mal-versasões dos recursos públicos, dos tantos casos notórios de desperdícios, de corrupção e de desvios de verbas públicas. Tais mazelas, pela sua importância, merecem um estudo separado e detalhado. Porém, infelizmente, essa é a realidade do país e, muitas vezes, a mera retórica ou um apaixonado discurso sobre essas questões não resolvem de imediato o problema. Ademais, mesmo considerando um mundo ideal, livre de quaisquer dessas mazelas, a realidade fática da limitação dos recursos públicos não será modificada, muito embora possa ser bem atenuada.

4.4 A Micro-justiça x Macro-justiça Como cediço, a Constituição Federal de 1988 trouxe um elenco significativo de direitos fundamentais sociais, que se configuram em direitos subjetivos. Como tais, passam a ser direta e imediatamente exigíveis do Poder Público, por via das ações constitucionais e infraconstitucionais contempladas no ordenamento jurídico. Diante desse quadro, o Poder Judiciário, consequentemente, passa a ter um papel ativo e decisivo na concretização dos desígnios constitucionais. Embora esse papel de destaque seja louvável, deve-se atentar para as consequências práticas decorrentes desse protagonismo judicial. A intervenção do Poder Judiciário, mediante determinações à Administração Pública para que preste gratuitamente determinado serviço de saúde ou forneça medicamentos em uma variedade de hipóteses, almeja, primordialmente, à concretização dos direitos fundamentais previstos na Constituição. Porém, por outro

104

lado, acaba por repercutir significativamente na promessa constitucional de prestação universalizada e igualitária do serviço de saúde.68 De acordo com os julgados colacionados no item anterior, percebe-se que, em muitos casos, o que se revela é a concessão de privilégios a alguns jurisdicionados em detrimento da generalidade das pessoas, que continuam dependente das políticas universalistas implementadas pelo Poder Executivo. Como bem destaca Barroso (2008, p. 240), cada uma das decisões pode atender às necessidades imediatas do jurisdicionados, mas, globalmente, impediria a otimização das possibilidades estatais no que toca à promoção da saúde pública. É a questão da micro-justiça e da macro-justiça. Aqui, cabe mais uma vez retomar as lições de Ana Paula de Barcellos (2007, p. 615), que pondera o seguinte: Preocupado com a solução dos casos concertos – o que se poderia denominar de micro-justiça – o juiz fatalmente ignora outras necessidades relevantes e a imposição inexorável de gerenciar recursos limitados para o atendimento de demandas ilimitadas: a macro-justiça.

Portanto, a jurisprudência brasileira sobre a questão da saúde pública tem se apoiado

exclusivamente

numa

abordagem

individualista

(micro-justiça)

dos

problemas sociais. Conforme opinião de Barroso (2008, p. 246), com essa preocupação apenas com o caso concreto – micro-justiça –, o juiz acaba fatalmente ignorando outras necessidades relevantes e sem atentar para o inexorável gerenciamento dos recursos limitados para o atendimento de demandas ilimitadas: a macro-justiça. Nesse ponto, acaba gerando um conflito com a pauta administrativa do gestor público, que deve, necessariamente, apoiar-se em mecanismos eficientes de políticas sociais, sempre orientadas pela avaliação de custo e benefícios e visando atender à generalidade dos indivíduos. Sobre essa situação, Marcos Maselli Gouvêa (2003, p. 19) emite a seguinte opinião:

68

Além de a Constituição Federal proclamar, no seu art. 196, a garantia do acesso universal e igualitário às ações e serviços de saúde, a Lei do SUS (Lei Federal n.º 8.080/90) estabeleceu os princípios pelos quais sua atuação deve se orientar, destacando, dentre eles, o princípio da universalidade.

105

Certas prestações, uma vez determinada pelo Judiciário em favor do postulante que ajuizasse ação neste sentido, poderiam canalizar tal aporte de recursos que se tornaria impossível estendê-las a outras pessoas, gerando evidente prejuízo ao princípio igualitário.

Em suma, quando o Judiciário assume o papel de protagonista na implementação das políticas sociais, de acordo com o escólio de Luís Roberto Barroso (2008, p. 241) acaba por privilegiar aqueles que possuem acesso qualificado à Justiça, seja por conhecerem seus direitos, seja por poderem arcar com os custos do processo judicial. Com pensamento similar, Ana Paula de Barcellos (2008, p. 310) entende que, a rigor, a única diferença entre o autor de uma demanda judicial pleiteando caras prestações ao Estado e as milhares de pessoas que estão a sofrer pela falta de tratamentos básicos de saúde é que estas últimas não têm capacidade de mobilização, nem diante do Judiciário, nem diante da mídia. Conclui ainda Barroso (2008, p. 241) que essa atuação judicial no controle das políticas de saúde mais serviria à classe média que aos pobres. Destarte, essa é uma consequência inevitável do exercício da micro-justiça. Com supedâneo em Barcellos (2007, p. 615), infere-se que o juiz é um ator social que observa apenas os casos concretos, a micro-justiça, ao invés da macro-justiça, cujo gerenciamento é mais afeto à Administração Pública. 4.5 Os limites da atividade judicial: a busca por parâmetros racionais para o controle das políticas sociais Nos itens anteriores já se deixou evidente a importância de uma atuação efetiva do Poder Judiciário em prol da concretização das promessas constitucionais, mormente dos direitos fundamentais sociais. Não mais se admite que o Poder Judiciário seja um mero carimbador de decisões políticas, uma simples boca que pronuncia a lei. Na sociedade moderna não há mais espaço para uma postura do “Juiz Pilatos”, que, lavando suas mãos, não se preocupa com a suas funções sociais. Entretanto, como bem pondera Freire Júnior (2005, p. 119), o ativismo judicial não será, de per si, panaceia para toda e qualquer violação de direitos existentes na face da terra. Percebe-se, atualmente, que uma postura mais ativa do Poder Judiciário pode também implicar possíveis zonas de tensões com as demais

106

funções do Estado. Então, é preciso consciência dos juízes para usar do ativismo na exata proporção, ou seja, sem excessos ou omissões. Em síntese, pode-se dizer que o controle judicial das políticas sociais de saúde é recomendável, necessário e indispensável. Porém, há essa atuação judicial deve estar pautada em critérios e parâmetros racionais, para que não ocorram abusos e exageros. Sobre esse fato, Barroso (2008, p. 222), preocupado com os graves sintomas que atual sistema de controle da saúde pública começa a apresentar, entende que a falta de critérios seria um dos motivos para essa situação preocupante. Conclui Barroso que tais excessos e inconsciências não são apenas problemáticos em si. Eles põem em risco a própria continuidade das políticas de saúde pública, desorganizando a atividade administrativa e impedindo a alocação racional dos escassos recursos públicos. Com base nas lições de Robert Alexy, Nagibe Jorge Neto (2008, p. 134) afirma que a teoria da argumentação jurídica não assegura a correção das decisões judiciais, tampouco garante que haja apenas uma única decisão correta para os casos discutidos em juízo. No entanto, afirma Jorge Neto, estabelece parâmetros, que podem ser seguidos para assegurar a racionalidade da decisão judicial ou, ainda, que podem ser utilizados como critérios para se aferir essa racionalidade. Não se pode afirmar que uma decisão judicial irracional, sem a observância de determinados critérios e parâmetros lógicos, seja inválida. Porém, pode-se concluir que uma decisão judicial que não siga os parâmetros de uma argumentação racional carece de legitimidade e estará sujeita a críticas pela comunidade. É o caso atual das decisões judiciais na área de saúde, que vem recebendo fortes críticas, inclusive no próprio STF, acerca de possíveis excessos nessa judicialização. É indiscutível que a construção de parâmetros racionais para pautar uma atuação judicial se apresenta como um desafio. Em verdade, a identificação e aplicação de critérios e parâmetros, muitas das vezes, somente poderão ser feitas na análise e julgamento do caso concreto. Não obstante essa observação, Vanice

107

Regina Lírio do Valle (2009, p. 142) propõe o seguinte esquema de parâmetros para o equacionamento dos potenciais conflitos: 1º) o controle de políticas públicas é atividade que deve ser encarada sempre e sempre a partir de uma perspectiva da coletividade dos destinatários de direitos fundamentais. 2º) a ação de controle substitutiva, mesmo quando desenvolvida pelo Judiciário, constitui-se absoluta exceção ao desenho constitucional de funcionamento do Poder.

Registre-se que esse processo de construção e aplicação de parâmetros para a atuação judicial é de concretização paulatina e requer do Poder Judiciário a intensa

busca

pela

sua

auto-compreensão

e

a

inteira

consciência

da

responsabilidade social das suas decisões. Recorrendo-se novamente ao escólio de Luís Roberto Barroso (2008, p. 222), conclui-se que o Judiciário não pode ser menos do que se deve ser, deixando de tutelar direitos fundamentais que podem ser promovidos com a sua atuação. De outra parte não deve querer ser mais do que se pode ser, presumindo demais de si mesmo.

5 O MÍNIMO EXISTENCIAL COMO ELEMENTO NORTEADOR DO CONTROLE DAS POLÍTICAS SOCIAIS 5.1 Delineamentos conceituais sobre o mínimo existencial Em

verdade,

embora

ainda

não

tratada

sistematicamente

e

com

embasamentos teóricos solidificados, pode-se considerar que a gênese da teoria do mínimo existencial remonta priscas eras. É atribuída ao filósofo e teólogo italiano Aurelius Augustinus, que ficou consagrado como Santo Agostinho, a formulação da seguinte frase: sem um mínimo de bem-estar material não se pode sequer servir a Deus. Portanto, já se percebia no século IV a clara ideia de que era necessária a preservação de um conjunto de condições materiais mínimas para que o ser humano pudesse viver dignamente, seguindo os mandamentos cristãos. Porém, foi

108

somente com o surgimento do Estado de Direito (que surgiu após a derrubada do velho regime absolutista) que se acentuou a reflexão sobre o mínimo existencial dentro dos direitos humanos. Essa

terminologia

mínimo

existencial

foi

consagrada

na

Alemanha

(Existenzminimum) e irradiou para a doutrina pátria, sendo atualmente utilizada em larga escala pelo direito brasileiro. Em outras áreas do conhecimento, mormente na sociologia, prefere-se falar em mínimo social. Inclusive, foi essa a expressão escolhida pela Lei Federal n.º 8.742/93 (a Lei Orgânica da Assistência Social Loas).69 O mínimo social também foi a expressão adotada por ilustres pensadores, como John Rawls e Habermas. A doutrina e a jurisprudência americanas preferiram se referir a esse núcleo essencial como direitos constitucionais mínimos. Ulteriormente, a Suprema Corte americana passou a falar em minimum protection, ou seja, proteção mínima (TORRES, 2009, p. 35). Portanto, qualquer dessa nomenclatura adotada traz consigo a carga subjacente de um núcleo essencial de direitos fundamentais do homem. O presente trabalho optou por utilizar a expressão mínimo existencial. A expressão mínimo existencial carece de uma definição precisa e homogênea. Hodiernamente, a noção de mínimos sociais é muito heterogênea. Conforme

Potyara Pereira (2007, p. 16), a noção de mínimos sociais varia de

acordo com o tipo, a lógica ou o modelo de proteção social adotado (residual ou institucional). A autora critica o fato de que geralmente são definidos como recursos mínimos, destinados a pessoas incapazes de prover por meio de seu próprio trabalho a sua subsistência. Como se pode observar, tais recursos assumem frequentemente a forma de renda e de outros benefícios incidentes sobre as áreas da saúde, da educação, da habitação, etc., ou sobre categorias particulares de beneficiários, como idosos, pessoas portadoras de deficiência, viúvas, etc.

69

O artigo 1º da Loas preceitua que a assistência social, a par de ser um direito do cidadão e um dever do Estado, é política não contributiva de seguridade social, que provê os mínimos sociais mediante um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade, visando ao atendimento de necessidades básicas.

109

Entretanto, não obstante essa heterogenia da acepção do mínimo existencial, na sua essência, o termo pode ser compreendido como um direito às condições mínimas de existência humana digna que não pode ser objeto de intervenção do Estado na via dos tributos (= imunidade) e que ainda exige prestações estatais positivas, como bem sentenciou Ricardo Lobo Torres (2009, p. 35). Uma forma também possível de tentar se compreender o termo é a interpretação residual, a contrario sensu. Assim sendo, tem-se que sem esse mínimo necessário à existência digna cessa a possibilidade de sobrevivência do homem70. Em outras palavras, o mínimo existencial será tudo aquilo necessário para a existência digna do homem. Portanto, não é qualquer direito mínimo que se transforma automaticamente em mínimo existencial. É imprescindível que seja um direito a situações existenciais dignas. Fica claro, então, que a dignidade humana e as condições materiais de existência não podem retroceder aquém de um mínimo, do qual nenhum ser humano pode ser privado, nem mesmo os indigentes ou os prisioneiros.

Não há no ordenamento constitucional pátrio a proclamação expressa do direito ao mínimo existencial. Ou seja, esse núcleo essencial dos direitos fundamentais não possui dicção constitucional71. E isso, certamente, contribui para a sua heterogenia e a falta de precisão terminológica. À guisa de ilustração, de acordo com a pesquisa de Torres (2009, p. 08), a Constituição do Japão, no seu art. 25, declara que todos terão direito à manutenção de padrão mínimo de subsistência cultural e de saúde. Na Alemanha , o art. 105 do texto constitucional afirma que o mínimo existencial é imune a impostos. Essa 70

Ricardo Lobo Torres (2009, p. 36) faz o interessante alerta de que, ao contrário do que ocorre com os direitos fundamentais em geral, somente os direitos da pessoa humana, referidos a sua existência em condições dignas, compõem o mínimo existencial. Assim, ficam fora do âmbito do mínimo existencial os direitos das empresas ou das pessoas jurídicas. 71 Embora a CF/88 estabeleça, no seu art. 3º, III, como um dos objetivos fundamentais a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais e regionais e determine a imunização de um patrimônio mínimo

110

Constituição de Bonn, como é conhecida a Carta Constitucional Alemã, ao encerrar o catálogo dos direitos fundamentais, declara-os, no art. 19, §2º, susceptíveis de restrições pelo legislador ordinário, com a exceção do seu conteúdo essencial72. Influenciada por essa ideia de resguardar expressamente um núcleo dos direitos fundamentais, a Constituição Portuguesa (no seu art. 18, §3º) estabelece que as leis infra-constitucionais não podem restringir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos direitos constitucionais. A Corte Constitucional da Alemanha, interpretando o texto constitucional, passou a definir o mínimo existencial como aquilo o que é necessário à existência digna, conforme aponta Torres (2009, p. 37). Nessa linha, fica claro que o mínimo existencial tem uma relação intrínseca com o conceito de conteúdo essencial, que pode ser entendido como o núcleo intocável e irrestringível dos direitos fundamentais, constituindo-se em limite para a atuação dos poderes do Estado. Assim, com base no direito comparado, tem-se que a expressa previsão constitucional poderia contribuir para aprimorar o delineamento conceitual do “mínimo existencial”. Não obstante essa falta de previsão constitucional expressa, é induvidoso que as raízes do mínimo existencial estão fincadas na ideia de liberdade, nos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da igualdade e do devido processo legal. Outrossim, as declarações internacionais dos direitos humanos, com frequência, fazem referência ao conteúdo do mínimo existencial. Por exemplo, a famosa Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, assevera textualmente, no art. XXV, que: Toda pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para assegurar a sua saúde, o seu bem-estar e o de sua família, especialmente para a alimentação, o vestuário, a moradia, a assistência médica e para os serviços sociais necessários, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle.

contra a incidência de tributos, não há no texto constitucional vigente uma referência expressa ao mínimo existencial.

111

Portanto, o entendimento sobre o mínimo existencial transcende a Constituição Federal, ancorando-se nos valores éticos, morais73 e sociais e com fundamento na liberdade e nos princípios da igualdade e da dignidade humana. Torres (2009, p. 83) adverte que o mínimo existencial está impregnado pelos valores e princípios jurídicos mais relevantes. Muito embora seja uma tarefa difícil a identificação precisa de um conteúdo específico dos mínimos existenciais, é plenamente possível inferir que o seu âmago está umbilicalmente relacionado com os direitos fundamentais, notadamente os de liberdade (também chamados de originários) e os sociais, todos em sua expressão essencial e irredutível. Vale dizer, o mínimo existencial se confunde com o núcleo essencial dos direitos fundamentais. E se verá no próximo item que a ideia e o conceito de mínimo não devem ser entendidos como algo ínfimo, módico, desprezível, mas sim como esse núcleo essencial dos direitos fundamentais. Intentando explicitar o que seriam essas condições básicas, esse núcleo essencial, Ana Paula de Barcellos (2008, p. 288) defende que esse mínimo existencial seja composto de quatro elementos: a educação fundamental, a saúde básica, a assistência aos desamparados e o acesso à justiça.

5.2 Visão sociológica do mínimo existencial: as necessidades humanas A expressão mínimo existencial, utilizada neste trabalho, embora faça referência expressa ao termo “mínimo”, não deve ser entendida e aplicada com a conotação de menos, de menor, de ínfimo, de parco, de reduzido. A melhor interpretação que se deve fazer do mínimo existencial, e aqui há um alinhamento com a visão sociológica, é aquela que procura compreender e qualificar o termo a partir de uma perspectiva conceitual, teórica e histórica mais ampla e includente. Por 72

O Art. 19, § 2º, da Constituição de Bonn diz que: em nenhum caso pode um direito fundamental ser violado em seu conteúdo essencial. (“In keinem Falle darf sin Grundrencht in seinem Wesensgehalt angetastet werden.”).

112

essa perspectiva, conforme obtempera Potyara Pereira (2007, p. 21), há que se enfocar a noção de “mínimos sociais” associada à noção de necessidades humanas básicas que lhe é subjacente. O art. 1º da Loas74 estabelece que a assistência social é política não contributiva de seguridade social, que provê os mínimos sociais mediante um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade, visando ao atendimento de necessidades básicas. Para a doutrina sociológica, mormente Potyara Pereira (2007), esse termo utilizado pela Loas (mínimo social), embora tenha contribuído para a importância da temática75, apresenta-se assimétrico e incompatível com a noção de básico e reproduz o ideário neoliberal. Em função disso, a referida autora prefere trabalhar com a noção de básico social, como prérequisito indispensável à satisfação de necessidades humanas. A doutrina capitaneada pela assistente social, advogada e doutora em sociologia Potyara Pereira entende que mínimo e básico são conceitos distintos. Enquanto o mínimo pressupõe supressão ou cortes no atendimento, tal como preconiza a ideologia liberal, o básico requer investimentos sociais de qualidade visando à prestação de melhores e maiores atendimentos. Por essa visão, enquanto o mínimo nega o 'ótimo' e atendimento, o básico é a mola mestra que impulsiona a satisfação básica de necessidades em direção ao ótimo (PEREIRA, 2007, p. 26). Nesse sentido, essa corrente propõe que as provisões sociais têm de deixar de ser mínima ou menor, para ser básica ou essencial. Somente assim haveria a otimização da satisfação das necessidades humanas básicas. Independentemente da nomenclatura utilizada, é fato pacífico que, sem a satisfação das necessidades básicas do homem, não se pode nem falar em direitos fundamentais. Isso porque aqueles que não usufruem de bens e serviços sociais básicos ou essenciais (como queiram), sob a forma de direitos sociais, não são capazes nem de se desenvolverem como cidadãos ativos. Nesse terreno, inclusive,

73

Nesse sentido, Dworkin entende que a teoria do mínimo existencial está intimamente ligada à moral, até porque os direitos fundamentais vinculam-se aos princípios morais (apud TORRES, 2009, p. 28). 74 Lei Federal n.º 8.742/93 , que instituiu a Lei Orgânica da Assistência Social. 75

Foi a partir da Loas que se verificou a introdução na agenda política brasileira, nos anos 90, de debates sobre os chamados mínimos sociais. (PEREIRA, 2007, p. 20)

113

os Relatórios de Desenvolvimento Humano das Nações Unidas76 têm afirmado que aquelas pessoas que não gozam dos direitos fundamentais básicos, não são capazes de desfrutar uma vida prolongada e saudável. Apesar da utilização, cada vez mais consagrada, da expressão mínimo social (ou existencial), cabe aos diversos atores sociais, mormente aos planejadores e executores das políticas públicas, a consciência plena sobre a essência, sobre o conteúdo do termo, que está umbilicalmente relacionado com a noção de necessidades humanas básicas. Portanto, o grande trunfo da crítica social que se tem feito à expressão “mínimos sociais”, é a de chamar atenção para a discussão do conteúdo desses mínimos. A polêmica que se estabelece em torno da semântica, da definição da melhor expressão a ser utilizada é fato coadjuvante, secundário, de menor importância, diante da magnitude do debate sobre a essência do termo. Em suma, o que interessa efetivamente é o conteúdo dos mínimos existenciais, e não a sua forma, o seu revestimento, a sua embalagem. Independentemente da expressão adotada, deve-se ter em mente que não está se falando em direitos menores, em prestações ínfimas e reduzidas de políticas sócias, mas sim em noções de necessidades humanas. Nesse caso, pode-se aplicar o princípio da instrumentalidade das formas ou da fungibilidade, que traz a ideia de relevância da essência, do conteúdo do fato analisado, não importando a nomenclatura utilizada. Assim, pode-se falar em mínimo social, em mínimo existencial, em proteção básica, ou em qualquer outro termo, mas o fato é que quaisquer dessas expressões possuem uma imanente carga de necessidades humanas, de núcleo essencial dos direitos fundamentais. Mesmo assim, mesmo relacionando o conteúdo do mínimo existencial às noções de necessidades humanas básicas, sabe-se que ainda resta a difícil tarefa de definir o conceito de tais necessidades. Com lastro nas lições de Potyara Pereira (2007, p. 38), muitas vezes o termo “necessidades humanas” tem uma conotação tão ampla, relativa e genérica, que fica difícil identificar os conteúdos, contornos e particularidades desse conceito. O 76

A título de exemplo, vide o RDH,1990: 19.

114

entendimento sobre o real significado dessas necessidades é de suma importância para a sua satisfação, uma vez que a noção sobre as necessidades e os anseios da sociedade é que pautará as políticas sociais adotadas. Na prática, deve-se reconhecer que a missão de definir com precisão o conteúdo das necessidades humanas básicas não é a das mais fáceis, até porque a carga de subjetividade e relatividade com o contexto social é inerente ao tema. Ou seja, essas necessidades irão variar no tempo e no espaço. Desse modo, o problema mais difícil da temática do mínimo existencial é o da sua quantificação. Sobre a questão do mínimo social, o insigne Rui Barbosa, de acordo com Torres (2009, p. 123), há tempos já advertia que se o quisermos determinar precisamente, é uma incógnita muito variável. Entretanto, entende-se que, com bom senso e razoabilidade, é possível se chegar a uma boa definição sobre o núcleo essencial de determinado direito fundamental (mínimo existencial). À guisa de exemplo, tem-se o direito fundamental à educação. É óbvio e inquestionável que a educação é uma necessidade básica do homem. Porém, em que nível? A educação universitária também é necessidade básica? O Estado tem de oferecê-la a toda a população? Certamente, é possível que a educação universitária seja uma necessidade básica em países de primeiro mundo, que há muito tempo já não sofrem problemas com o analfabetismo. Mas aqui no Brasil, a necessidade básica do homem é pelo ensino infantil e fundamental. Quantos brasileiros estão alijados dos procedimentos básicos de educação? Quanta omissão e precariedade se notam no oferecimento de escolas públicas? Portanto, enquanto se têm carências nos níveis mais baixos e enquanto não se têm condições de ofertar uma boa educação pública em todos os níveis (infantil, fundamental, médio e universitário), deve-se entender que o mínimo existencial (a necessidade básica do brasileiro) na educação é o ensino infantil e fundamental universal e de boa qualidade. Aqui se abre um parêntese para lembrar que o legislador constituinte de 1988, positivando esse mesmo entendimento, fixou no art. 20877 alguns deveres do Estado e direitos do cidadão em relação à educação. 77

Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de: I - ensino fundamental, obrigatório e gratuito, assegurada, inclusive, sua oferta gratuita para todos os que a ele não tiveram acesso na idade própria; (Redação da EC nº 14/96)

115

Essa definição de um conteúdo básico não significa a negação da plenitude dos direitos fundamentais ou uma escolha arbitrária e conveniente dos governantes. Ao revés, essa definição contribui justamente para a evolução na satisfação dos direitos do homem, pois numa situação de déficit de políticas públicas e de carência de recursos, deve-se priorizar a satisfação de uma parte para depois se buscar a plenitude, a totalidade de um direito. Ainda utilizando o exemplo da educação, após a garantia universal dos níveis primários de educação (infantil e fundamental), com a plena erradicação do analfabetismo, é que se pode passar a prioridade para os outros níveis, até se chegar à situação ideal em que o Estado possa oferecer universidades públicas para a totalidade da população. Trata-se do procedimento de maximização da satisfação das necessidades básicas. À medida em que se satisfaz integralmente um nível de um direito fundamental, passa-se a buscar intensamente a satisfação de um nível mais elevado. A ilustre e multicitada Potyara Pereira (2007, p. 35) prefere chamar essa evolução gradativa na concretização dos direitos fundamentais de otimização78. Para a autora, a satisfação otimizada de necessidades deverá visar simultaneamente à melhoria da eficiência da política social e da equidade social. Em arremate, a visão sociológica dos mínimos sociais fornece interessantes subsídios para a definição adequada do conceito de necessidades humanas básicas, contribuindo, assim, para a formulação mais coerente e confiável das políticas públicas adotadas para satisfação daquelas necessidades. Por essa visão,

ensino; um;

II - progressiva universalização do ensino médio gratuito; (Redação da EC nº 14/96) III - atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de IV - atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos de idade; V - acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada

VI - oferta de ensino noturno regular, adequado às condições do educando; VII - atendimento ao educando, no ensino fundamental, através de programas suplementares de material didático escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde. § 1º - O acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo. § 2º - O não-oferecimento do ensino obrigatório pelo Poder Público, ou sua oferta irregular, importa responsabilidade da autoridade competente. § 3º - Compete ao Poder Público recensear os educandos no ensino fundamental, fazer-lhes a chamada e zelar, junto aos pais ou responsáveis, pela frequência à escola.

78

Ricardo Lobo Torres (2009, p. 130) também adota essa nomenclatura “otimização” para designar a evolução gradativa dos direitos sociais até o ponto em que não se prejudique o processo econômico nacional, não se comprometa a saúde das finanças públicas, não se violem direitos fundamentais nem se neutralizem as prestações por conflitos internos.

116

com arrimo em Pereira (2007, p. 35), o básico é entendido como direito indisponível (isto é, inegociável) e incondicional de todos, e quem não o tem por falhas do sistema socioeconômico terá que ser ressarcido desse déficit pelo próprio sistema. Auxiliando na construção objetiva de um conceito, os autores ingleses Doyal e Gough (apud Pereira, 2007, p. 67), propuseram a distinção entre necessidades básicas e as necessidades não-básicas (ou intermediárias), as aspirações, preferências e os meros desejos. Para os referidos britânicos, a chave da distinção entre as necessidades básicas e as demais categorias mencionadas reside num aspecto fundamental que confere às necessidades básicas (e somente a elas) uma implicação particular: a ocorrência de “sérios prejuízos” à vida material dos homens, caso essas necessidades não sejam adequadamente satisfeitas. Explicando o termo sérios prejuízos, os autores o qualifica como impactos negativos cruciais que impedem ou põem em sério risco a possibilidade objetiva dos seres humanos de viver física e socialmente em condições de exercer a participação ativa e crítica. Desse modo, a não-satisfação de uma aspiração, de uma preferência, de um desejo, pode causar sofrimentos e criar eventuais prejuízos materiais ou psicológicos, mas não impedirá a pessoa de participar ativamente como sujeito na sociedade. Portanto, com arrimo nessa visão sociológica, básicas são as necessidades sem as quais o sujeito estará privado de participar ativamente da vida social, exercendo seu papel de cidadão. E é com essa noção que devem ser entendidos os mínimos existenciais, que, sendo necessidades humanas básicas, estão na base da concretização dos direitos fundamentais por meio das políticas sociais. E essas políticas devem garantir o máximo do mínimo existencial, e não apenas o mínimo do mínimo existencial, como bem adverte Torres (2009, p. 126).

5.3 A construção teórica de Rawls sobre o mínimo social Nos últimos anos, notadamente a partir dos anos 70 do séc. XX, observa-se o crescimento de teorias que justificam e fundamentam o mínimo existencial, mormente no campo da filosofia política, da sociologia e do direito. Nesse sentido,

117

Ricardo Lobo Torres (2009, p. 54) afirma que a temática do mínimo existencial, a contar da década de 70, retorna à filosofia, como sempre aconteceu desde os gregos,

passando

pelos

liberais

clássicos,

com

a

exceção

do

período

correspondente ao Estado Social. Apesar de não ser o locus apropriado para resgatar, contextualizar e aprofundar o debate das correntes filosóficas sobre o mínimo existencial, merece destaque especial neste capítulo, pela sua vanguarda e magnitude, a teoria defendida por John Rawls, que pode ser apontado como um expoente no assunto, sendo um dos primeiros a se referir diretamente ao tema, contribuindo bastante na construção da teoria do mínimo existencial. John Rawls (2000, p. 314) já visualizava o problema da questão de saber se o sistema social como um todo poderia satisfazer a amplitude dos direitos fundamentais. Ao formular o procedimento equitativo de oportunidades que conduziria a um resultado mais justo ou menos injusto, Rawls (2000, p. 89) idealizava a garantia para cada homem de um conjunto mínimo de condições materiais para sua existência. Daí, na construção de uma teoria da justiça (título de seu livro), ele desenha um quadro protetório do mínimo social (social minimum), com o principal objetivo de assegurar uma imparcial igualdade de oportunidade, o que depende de o governo garantir a igualdade de chances na educação e na cultura de pessoas, por meio de subsídios às escolas particulares e pela manutenção de um sistema de escola pública. Percebe-se que em Uma teoria da justiça, Rawls pretende resolver o problema da distribuição da justiça, utilizando uma variante familiar do contrato social, a justiça como equidade na distribuição dos bens primários (primary goods), como auto-respeito, auto-estima, liberdades de escolha, renda mínima e direitos aos recursos sociais da educação e da saúde básicas. John Rawls propõe um modelo de justiça, em que os homens estabelecem um contrato social, no qual cada um desconhece qual será sua posição na sociedade (“véu da ignorância”), com a

118

determinação de princípios básicos de funcionamento da sociedade e de distribuição de bens. Ao aprofundar diversos temas abordados na sua Teoria da Justiça, John Rawls encara novamente a questão do mínimo existencial na sua obra subseqüente, intitulada O liberalismo político. Nesse livro, Rawls (2000b, p. 07) defende a ideia de que as necessidades básicas dos cidadãos (citizens basic needs) precisam ser garantidas, pelo menos, na medida do necessário para a compreensão e a fruição dos direitos de igualdade e das liberdades. Enfatiza Rawls (2000b, p. 227) que: [...] a essência constitucional (constitutional essential) é que abaixo de um certo nível de bem-estar material e social (material and social well-being) e de instrução e educação, as pessoas simplesmente não podem tomar parte da sociedade como cidadãos, muito menos como cidadãos iguais.

Ainda nessa obra, John Rawls (2000b, p. 217/218) distingue um conteúdo mínimo, que deixa de ser um fim a ser atingido pelo legislador, transformando-se em um direito assegurado pela Constituição, independentemente do Poder Legislativo. No entanto, as prestações que excedem a esse mínimo passariam a depender de lei, em conformidade com as políticas sociais adotadas. A doutrina aponta que a concepção de Rawls sobre o mínimo social teve a extraordinária importância para o pensamento jurídico nas últimas décadas. Para Torres (2009, p. 58), a lição do pensador norte-americano marca o corte com a concepção utilitarista da justiça social, que pretendia promover a utópica redistribuição geral de recursos entre as classes sociais, sem instrumentos políticos adequados, sem limitações quantitativas e sem a indicação dos beneficiários.

A concepção do sociólogo germânico Jürgen Habermas sobre a questão do mínimo social aproxima-se muito dos pensamentos de Rawls. Para Habermas (2003, p. 154), sem o respeito a um conjunto básico de direitos fundamentais, os indivíduos simplesmente não têm condições de exercer sua liberdade, de participar conscientemente do processo político democrático e do diálogo no espaço público. Sintetizando o entendimento de Habermas, o sistema de diálogo democrático não tem como funcionar adequadamente se os indivíduos não dispuserem de condições

119

básicas de existência digna. A similitude no pensamento dos dois filósofos é bem captada por Torres (2009, p. 61), que assevera o seguinte: É, portanto, bem nítida, no sistema de Habermas, a distinção entre os direitos fundamentais à garantia das condições de vida (Grundrechte auf die Gewahrung Von Lebensbedingungen) e os direitos às prestações sociais (Teilhaberechte), já que estes últimos são relativos e se realizam com base na solidariedade. O esquema se assemelha ao de Rawls, que distingue entre basic needs e basic justice.

Outrossim, na mesma toada de Rawls, as lições deixadas por Jürgen Habermas (2003, p. 154 e ss) demonstram que a liberdade somente pode ser exercida em condições razoáveis se existir um conjunto mínimo de condições matérias, como educação, alimentação, etc. Inspirada nessas lições de John Rawls, Ana Paula de Barcellos postula que, para se efetivar o princípio da dignidade da pessoa humana para todas as pessoas, deve o Estado, primeiro, ofertar um mínimo social existencial, para garantir que todas as pessoas tenham uma existência digna. É necessário um núcleo com um conteúdo básico. Esse núcleo, no tocante aos elementos materiais da dignidade, é composto de um mínimo existencial, que consiste em um conjunto de prestações materiais mínimas sem as quais se poderá afirmar que o indivíduo se encontra em situação de indignidade. (BARCELLOS, 2001, p.304) Portanto, o debate sobre a garantia de um mínimo existencial não é novo e nem é complexo. É induvidoso que a construção teórica de Rawls sobre o mínimo social contribuiu sobremaneira para solidificação da teoria, uma vez que, realmente, em condições de pobreza extrema, ou de miserabilidade, a autonomia dos indivíduos para avaliar, refletir e participar ativamente do processo democrático estará totalmente prejudicada. Desse modo, com supedâneo em Rawls, o Estado não pode (pelo menos não deveria) tentar de se desonerar da disponilibilização universal de um núcleo essencial (conteúdo mínimo) dos direitos fundamentais. Porém, as prestações que excedem a esse mínimo passariam a depender das possibilidades de cada ente estatal, dependeria das políticas sociais adotadas. 5.4 A função parametrizadora do mínimo existencial para o controle judicial das políticas sociais

120

O ponto fulcral do presente trabalho é justamente a proposição de parâmetros e critérios racionais para a atuação do Poder Judiciário no controle das políticas sociais destinadas ao atendimento dos direitos à saúde. Nesse aspecto, diante da inegável limitação de recursos públicos e da consequente necessidade de se fazerem escolhas alocativas, avulta-se a possibilidade de se visualizar um núcleo rígido dos direitos fundamentais com conteúdo básico, que é o mínimo existencial. Sem a garantia desse mínimo, como já dito, não há como se falar nem em cidadania em país civilizado. Conforme já abordado neste trabalho, hodiernamente, são verificados intensos debates no seio social acerca da atuação judicial na efetivação das políticas sociais, notadamente na área de saúde. Inclusive, tal debate foi, em 2009, capitaneado pela Corte Judiciária máxima do país, que o transformou em audiências públicas realizadas no próprio STF79. Desse modo, uma possível “judicialização da saúde” foi reconhecida pelo excelso pretório, que, de maneira louvável, convocou a sociedade civil organizada, com seus múltiplos atores, para debater a questão dos excessos cometidos pelo Poder Judiciário na área de saúde pública, almejando identificar as possíveis alternativas para uma melhoria geral do sistema. É importante não transformar esse debate sobre a questão da participação do Poder Judiciário na efetivação das políticas sociais em uma falsa ideia de escolha entre dois extremos. A resolução para esse problema não precisa ser feita com escolhas radicais. Nesse sentido, Ana Paula Barcellos (2007, p. 609) adverte que não existem apenas duas opções radicais: a colonização total da política pelo direito ou [...] a absoluta ausência de controle jurídico em matéria de políticas públicas. Existem possibilidades intermediárias e razoáveis para se controlar judicialmente as decisões políticas e administrativas.

79

Nos meses de abril de maio de 2009, o STF promoveu a Audiência Pública n.º 04 com diversos atores sociais e institucionais ,intentando sistematizar o debate sobre a intensa participação do Poder Judiciário nas políticas sociais de saúde. Para obter maiores informações e visualizar os diversos depoimentos, acessar o site

www.stf.gov.br.

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Visando encontrar essa posição intermediária, urge fixar limites e parâmetros para a atuação judicial no controle das políticas sociais. Uma alternativa que se apresenta com bastante pertinência, e que é defendida neste trabalho, é a aplicação pelo Poder Judiciário da teoria do mínimo existencial. Sobre a aplicação dessa teoria, Ricardo Lobo Torres (2009, p. 255) faz a seguinte observação: No Brasil, parcela importante da doutrina vem adotando posição equilibrada na questão da adjudicação individual de prestações de saúde, procurando delimitá-la segundo a extensão do mínimo existencial, com o reconhecimento do direito dos pobres e miseráveis e com a obrigação estatal de garantir a medicina preventiva e de urgência. As obras de Ingo Sarlet e de Ana Paula de Barcellos são sugestivas.

O que se pretende é justamente uma posição equilibrada em relação à atuação judicial no controle das políticas sociais. Por essa teoria do mínimo existencial, o Judiciário ficará plenamente autorizado a atuar no controle das opções políticas relacionadas ao direito à saúde, sem precisar se preocupar com as consequências práticas de sua decisão. Assim, quando não houver a alocação de bens primários, quando não forem satisfeitas as condições materiais mínimas para uma sobrevivência digna, o controle judicial deve ser inflexível e radical. Por outro lado, as demandas que versarem acima dessas condições mínimas devem ser ponderadas e sopesadas com bastante cuidado, atentando para os limites dos recursos públicos e os impactos em outros direitos sociais. Nessa linha de intelecção, as demandas judiciais que busquem, verbi gratia, vultosos tratamentos em outros países, medicamentos experimentais de elevado custo, procedimentos cirúrgicos eletivos e não indispensáveis, como determinadas intervenções para mudança de sexo, redução de estômago, devem ser analisadas e decididas com base na teoria do mínimo existencial. Não se está querendo negar a autonomia e independência do Poder Judiciário, apenas se está buscando harmonizar o sistema e oportunizar uma reflexão sobre as consequências práticas e sociais de diversas decisões judiciais que estão concedendo os mais audaciosos pedidos na área de saúde, com foi abordado no Item 4.3.

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Nesse diapasão, a autora Cláudia Fernanda Pereira (2004, p. 90) entende que a tese do mínimo existencial autoriza a ingerência do Poder Judiciário para assegurar a disponibilização imediata de medicamentos e tratamentos básicos de saúde, alimentos e tanto mais quanto for necessário para manter o indivíduo vivo. Também concordando com essa ideia, Vitorino Silva apud Pereira (2004, p. 90) sustenta que o magistrado somente pode atuar determinando e influenciando as alocações de recursos públicos quando se estiver numa situação aquém do mínimo existencial ou diante de hipóteses excepcionalíssimas de demandas de prestações singulares. Concluindo seu pensamento, Silva argumenta que não é conveniente e nem se harmoniza com o princípio da separação dos poderes, a figura do juiz administrador, que, sem qualquer representatividade ou legitimidade democrática, passaria a realocar recursos públicos. Com efeito, o Judiciário poderá e deverá determinar, de logo e sem muitas averiguações, o fornecimento das prestações de saúde que compõem o mínimo existencial, mas não deverá fazê-lo (perceba-se que se está falando num plano deontológico, num dever-ser) em relação a outras prestações que estejam fora desse conjunto essencial. Para o julgamento dessas demandas que fujam ao núcleo básico, o Judiciário deve realizar detalhadas análises, atentando para o impacto social daquele provimento e realizando a ponderação de interesses. Será que seria justo e razoável a determinação judicial generalizada para o fornecimento de remédios experimentais, específicos, de vultosos tratamentos no exterior, quando no país existem possibilidades similares? Certamente que não. Tais decisões concessivas não estariam compatíveis, regra geral, com a realidade brasileira. Compete ao Poder Judiciário, portanto, determinar o fornecimento do mínimo existencial independentemente de qualquer coisa. Demonstrando o caráter doutrinário de tal entendimento, Ana Paula de Barcellos (2008, p. 304) destaca: A diferença em relação ao mínimo existencial está em que, em relação a este, o Judiciário pode praticar uma ato específico: determinar concretamente o fornecimento da prestação de saúde com fundamento na Constituição e independentemente de existir uma ação específica da Administração ou do Legislativo nesse sentido.

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Deve-se reconhecer e compreender a tentação por que passa o Juiz, uma vez que a ele é outorgada a possibilidade de dar uma solução jurídica, embora localizada e individual, a um problema essencialmente político. Aquela demanda levada ao Judiciário precisa ser decidida. E, logicamente, é muito difícil para o magistrado ceder à tentação de ver resolvida, por seu intermédio, a falta de efetividade de determinado direito social à saúde. O problema é que a decisão judicial do caso concreto não irá resolver socialmente a questão da saúde coletiva, podendo, inclusive, prejudicar uma programação orçamentária para combater genericamente uma epidemia, por exemplo. Ora, a prestação de saúde concedida por um magistrado a determinado indivíduo, deveria ser concedida também a todas as demais pessoas na mesma situação. E aí, como obtempera Ana Paula de Barcellos (2008, p. 306), seria difícil imaginar que a sociedade brasileira seja capaz de custear (ou deseje fazê-lo) toda e qualquer prestação de saúde disponível no mercado para todos os seus membros. A autora fluminense, a título ilustrativo, cita o exemplo do americano Ronald Dworkin, que tentou, num ensaio, propor critérios para definir quanto a sociedade (norteamericana, por natural) estaria disposta a pagar a título de prestações de saúde. Portanto, é um tema que merece sérias reflexões, principalmente por parte dos membros do Judiciário. Indiretamente, esse debate já foi travado no Supremo Tribunal Federal, antes mesmo das audiências públicas supramencionadas. A Ministra Ellen Gracie, ao julgar o pedido de tutela antecipada feito pelo Estado de Alagoas para limitar a sua responsabilidade no fornecimento dos medicamentos previstos na portaria do Ministério da Saúde, exarou o lúcido entendimento, demonstrado a seguir:80 Entendo que a norma do art. 196 da Constituição da República, que assegura o direito à saúde, refere-se, em princípio, à efetivação de políticas públicas que alcancem a população como um todo, assegurando-lhe acesso universal e igualitário, e não a situações individualizadas. A responsabilidade do Estado em fornecer os recursos necessários à reabilitação da saúde de seus cidadãos não pode vir a inviabilizar o sistema público de saúde. No presente caso, ao se conceder os efeitos da antecipação da tutela para determinar que o Estado forneça os medicamentos relacionados “(…) e outros medicamentos necessários para

80

Vide STF, DJU 05.03.2007, STA 91, Rel.ª Min.ª Ellen Gracie.

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o tratamento (...)” dos associados, está-se diminuindo a possibilidade de serem oferecidos serviços de saúde básicos ao restante da coletividade.

Evidencia-se, desse modo, que as decisões judiciais individualizadas podem comprometer significativamente o acesso igualitário e universal às políticas públicas de saúde. O magistrado e o Poder Judiciário, como um todo, precisam atentar para esse fato. Sabe-se que, muitas vezes, o juiz imagina que negar o pedido do autor, pelo fato de não se tratar de uma prestação de saúde básica, não fará qualquer diferença prática, pois os magistrados duvidam que os recursos em questão serão aplicados pelo Poder Público na saúde coletiva. Em face desse pensamento, os juízes supõem que seja melhor garantir a saúde ao menos daquele real indivíduo que provocou o Judiciário, já que ele (o magistrado) não tem o controle sobre o restante da população. Ao analisar esse pensamento que certamente deve povoar as mentes dos magistrados, Ana Paula de Barcellos (2008, p. 307) faz o seguinte alerta: Ainda que isso possa ser eventualmente verdadeiro, o certo é que, ao determinar o fornecimento de outras prestações de saúde além do mínimo existencial, sem fundamentar-se em uma decisão política pública, o Judiciário também não estará contribuindo para a generalização da saúde básica.

Assim, além de não contribuir para a plena efetivação dos direitos sociais e para a generalização da saúde básica, essas decisões judiciais individualizadas, concedendo prestações além do núcleo básico da saúde, podem acabar promovendo, involuntariamente, em alguns casos, uma distribuição de renda pouco equitativa, uma vez que somente atenderá a parcela da população que tem consciência dos seus direitos e disponibilidades financeiras para buscar o Judiciário.81 Perceba-se que diferente é a situação do mínimo existencial. Nesse caso, haverá, sim, uma decisão política fundamental (constitucional), pela qual toda a sociedade comprometeu-se a custeá-lo para assegurar uma vida digna a todos os homens. Qualquer homo medio, com um mínimo de bom senso e razoabilidade, entenderá justa a cobertura integral pelo Estado de ações generalizadas de combate 81

É cediço que a parcela mais carente da população, aqueles indivíduos que estão privados do conteúdo básico dos direitos fundamentais, não têm, regra geral, acesso ao Poder Judiciário. Por mais esforços que façam

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à dengue, de fornecimento gratuito de remédios contra a tuberculose, contra leptospirose, mas, certamente, não acharão justo o custeio pelo Poder Público de vultosos tratamentos de saúde no exterior, quando há tratamentos similares no país, e o fornecimento de remédios ainda em fase de experimentação. Na opinião embasada de Torres (2009, p. 127/128), o Poder Judiciário, representado no seu exemplo pelo STF, está vivendo um dilema, uma vez que em inúmeros casos adjudicou individualmente bens públicos (remédios, tratamentos médicos, etc.), aplicando aos direitos prestacionais a lógica e a retórica dos direitos individuais e cometendo indisfarçável injustiça com a multidão dos excluídos. Para o autor, essa insistência do Judiciário brasileiro no adjudicar bens públicos individualizados (remédios), ao revés de determinar a implementação adequada, tem levado à predação da renda pública pelas elites, a exemplo do que acontece em outros países. Nessa trilha de ideias, o historiador e sociólogo do Largo de São Francisco José Reinaldo de Lima Lopes (2005, p. 135) chega até a concluir que as decisões casuísticas agravam as desigualdades entre as pessoas. Com igual sentimento, Torres (2009, p. 134) declara que, no Brasil, está ocorrendo atualmente uma verdadeira predação da renda pública pela classe média e pelos ricos, especialmente nos casos de remédios estrangeiros, com risco de se criar um impasse institucional entre o judiciário e os poderes políticos, se prevalecer a retórica dos direitos individuais para os sociais.

Então, visando a harmonizar os poderes e equilibrar a atuação do Judiciário no controle das políticas sociais, propõe-se a adoção da teoria do mínimo existencial como parâmetro e delimitação das decisões judiciais. Logicamente que a definição sobre quais as prestações de saúde compõem esse mínimo, envolve uma escolha difícil e complicada, uma escolha trágica, conforme comentado no Item 3.3. Numa demanda judicial em que se pleiteia a realização de um transplante no exterior ou o

os heroicos defensores públicos, o aceso universal e igualitário à Justiça brasileira ainda está longe de sair do papel.

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fornecimento de um medicamento importado, é tentador ao magistrado imputar a responsabilidade ao Poder Público para salvar a vida do autor da demanda. Seria realmente penoso para o julgador a negação desse pleito. Entretanto, se é terrível negar vultosa prestação de saúde a um indivíduo, o que dizer, utilizando o exemplo de Barcellos (2008, p. 310), das milhares de mães que morrem no momento do parto porque os hospitais públicos dos três níveis federativos não as assistem? O que dizer das crianças que morrem antes do primeiro ano de vida por falta de acompanhamento pediátrico? O que dizer dos indivíduos que morrem em decorrência de doenças relacionadas à falta de saneamento? O que dizer das vítimas de tuberculose, malária, meningite, dengue, doença de chagas, leptospirose, etc.? Portanto, a saúde básica ainda está longe de ser prestada com qualidade, universalidade e igualdade. Falta o básico na área de saúde. Milhares de pessoas ainda morrem no Brasil, em pleno século XXI, vítimas de doenças que há muitos anos já foram erradicadas em outras nações mais desenvolvidas. Desse modo, sendo cada vez mais obrigado judicialmente a prestar dispendiosos tratamentos no exterior, a fornecer medicamentos de última geração, a realizar cirurgias como as de mudança de sexo ou as bariátricas para quem não apresenta quadro de obesidade mórbida, o Estado tende a se afastar, cada vez mais, do pleno atendimento da saúde básica. Para satisfazer às demandas judiciais, o Poder Público, muitas vezes, precisa fazer remanejamentos orçamentários. E o mais comum é a alteração dentro da própria função orçamentária. Vale dizer, para cumprir uma ordem judicial que determina a prestação de um serviço de saúde, a verba necessária aquele gasto, que não estava previsto, sairá de uma outra ação na área de saúde. É aquele velho dito popular de “cobrir um santo para descobrir outro.” É essa realidade fática que não pode ser ignorada e que deve permear a cabeça dos julgadores quando se deparar com demandas que pedem além do mínimo existencial. Abrindo aqui um parêntese e avançando um pouco mais nessa questão do remanejamento orçamentário, deve-se registrar que há autores, a exemplo de Andreas J. Krell, que entendem ser possível ao Poder Judiciário a correção do

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orçamento, quando esse se apresente dissonante dos preceitos constitucionais. Embora opte-se por não enveredar no assunto neste trabalho, entende-se válido e adaptável à teoria do mínimo existencial esse pensamento avançado e polêmico. Mesmo com essa opção de não avançar no assunto, cabe aqui transcrever trecho da tese defendida por Krell (2000, p. 34 e ss), in verbis: Até hoje existem municípios onde se gasta – legalmente! – mais dinheiro em divertimentos populares (contratação de 'trios elétricos') ou na manutenção da Câmara do que em toda a área de saúde pública. […] Um orçamento público, quando não atende aos preceitos da Constituição, pode e deve ser corrigido mediante alteração do orçamento consecutivo, logicamente com a devida cautela. Em casos individuais, pode ocorrer a condenação do Poder Público para a prestação de determinado serviço público básico, ou o pagamento de serviço privado (exemplo: reembolso das despesas de atendimento em hospital particular).

Tentando encontrar respostas para o problema da interferência judicial nas políticas sociais de saúde, Ana Paula de Barcellos (2008, p. 310) entende que, a rigor, a única diferença entre o autor de uma demanda judicial pleiteando caras prestações ao Estado e as milhares de pessoas que estão a sofrer pela falta de tratamentos básicos de saúde, é que estas últimas não têm capacidade de mobilização, nem diante do Judiciário, nem diante da mídia. Com efeito, em um Estado com inúmeras carências sociais e limitada capacidade financeira de investimentos, como é o caso do Estado brasileiro, haverá sempre a necessidade da realização de escolhas alocativas de recursos públicos. E essas escolhas, muitas das vezes, serão feitas para priorizar a prestação de um serviço de saúde em detrimento de outras prestações, também importantes, mas não tão urgente e essencial como aquela eleita. Por isso que parte da doutrina, seguindo estudo norte-americano, denomina essas eleições de prioridades de trágicas escolhas, conforme abordado no capítulo 382. Destarte, o problema a ser enfrentado agora é a definição prática e objetiva sobre quais prestações de saúde podem compor o mínimo existencial nessa área. Em outras palavras, quais são as políticas sociais que deverão, imediata e 82

Essa expressão “escolhas trágicas”, de acordo com Barcellos (2008, p. 309), ganhou força e passou a ser generalizadamente utilizada no meio acadêmico a partir do livro de Guido Calabrese e Philip Bobbitt, denominado “Tragic Choise”, publicado em 1978.

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irrefutadamente, ser adotadas pelo Estado na área de saúde? Quais os critérios a serem utilizados para a definição concreta do núcleo essencial da saúde, e o posterior balizamento da atuação do Judiciário no controle das políticas adotadas? Antes de tentar esboçar uma alternativa doutrinária para a identificação concreta do núcleo básico para a saúde, é de bom alvitre o registro de que não se pretende esgotar o tema com a proposição da adoção da teoria do mínimo existencial para parametrizar o controle judicial, abarcando todas as questões pertinentes. A matéria é difícil, polêmica e controvertida, sendo ainda pouco explorada83. É induvidoso que a construção teórica do tema exigirá cada vez mais um contato interdisciplinar com as outras áreas do conhecimento. Embora se tente, com o presente trabalho, apresentar proposta concreta para o adequado enquadramento do controle judicial ao mínimo existencial, o certo é que muito ainda deve ser debatido sobre a matéria. Desse modo, a pretensão primária deste trabalho é justamente a de fomentar e ampliar o acalorado e apaixonante debate multidisciplinar sobre o controle judicial das políticas sociais da saúde. A proposta ora apresentada, com respaldo na doutrina de Ana Paula de Barcellos (2008, p. 312), propugna pela inclusão prioritária, no conceito de mínimo existencial, das prestações de saúde de que todos os indivíduos necessitam para garantir a sua existência digna. Como exemplo dessas prestações, tem-se o atendimento pré-natal às todas as parturientes; o atendimento no parto e o acompanhamento da criança no pós-natal; o atendimento preventivo em clínicas gerais e especializadas, como cardiológica e ginecológica; acompanhamento e controle de doenças típicas da terceira idade, como diabetes, hipertensão, etc. A lógica da inclusão dessas prestações é assegurar que todos tenham o direito subjetivo a esse conjunto comum e básico de serviços de saúde, como corolário imediato do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.

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Embora atualmente já se encontrem mais produções literárias e acadêmicas sobre o tema e a sociedade esteja mais envolvida com o assunto, como pôde ser percebido nas Audiências Públicas realizadas em 2009 no STF.

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Já se abordou, neste trabalho, o fato de que, para o exercício do direito social à educação, a Constituição Federal, no seu art. 208, definiu de maneira sistemática e precisa as prioridades, facilitando a identificação do mínimo existencial para a educação básica. Desse modo, sabe-se que não se pode (na verdade, não se deve) recorrer ao Judiciário para exigir que o Estado disponibilize vagas em universidades públicas para todos os que desejem, porque tal pleito está fora do conjunto essencial do direito à educação. Ao revés, é direito de todos exigir do Poder Público a matrícula em creches e escolas de ensino infantil e fundamental. Essa demanda, indiscutivelmente, encontra-se inserida no mínimo existencial da educação. No tocante ao direito à saúde, a Carta Federal não foi tão precisa, prejudicando a exata identificação do núcleo essencial desse direito social. Entretanto, mediante análise apurada do texto constitucional, é possível constatar algumas ações prioritárias previstas para a área de saúde. Ei-las: (i) a prestação do serviços de saneamento básico (arts. 23, IX, 198, II e 200, IV); (ii) o atendimento materno-infantil (art. 227, §1º, I); (iii) as ações de medicina preventiva (art. 198, II); e (iv) as ações de prevenção epidemiológica (art. 200, II). Com base nesse tímido direcionamento constitucional, pode-se concluir, utilizando exemplos hipotéticos, que é possível recorrer ao Judiciário, e este estaria plenamente autorizado a garantir o pleito, para exigir do Estado a prestação de serviços pré-natais para as parturientes. Por outro lado, por exemplo, não se deve exigir do Judiciário, e este caso provocado não deve dar procedência ao pedido, imputação de responsabilidade ao Poder Público para o custeio de uma cirurgia de fimose, apenas por convicção cultural ou religiosa. Então, resta claro que a definição concreta do mínimo existencial dos direitos fundamentais à saúde somente poderá ser feita na análise de cada caso. O parâmetro proposto do mínimo existencial para o controle das políticas de saúde, então, diferentemente da área de educação, somente poderá ser identificado casuisticamente, a partir das demandas direcionadas ao Judiciário.

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Um outro parâmetro a ser proposto para pautar as decisões judiciais na área de saúde envolve a questão da possibilidade de limitação da concessão dos pedidos à comprovação da extrema necessidade (física e econômica) do requerente do socorro estatal. Vale dizer, o Estado deve priorizar o atendimento gratuito somente àqueles que, de fato, precisem do seu amparo. Cabe gizar que esse parâmetro já vem sendo adotado pelo Poder Judiciário, mesmo que tímida e episodicamente. Em virtude da impossibilidade de fornecimento da saúde pública a “todos” os cidadãos, alguns juízes e tribunais têm procurado restringir a prestação de saúde pública pelo Estado apenas às pessoas comprovadamente carentes. À guisa de ilustração, tem-se os julgados a seguir que demonstram a adoção desse parâmetro pelas cortes supremas. “EMENTA: Paciente portador de osteomielite crônica. Pessoa destituída de recursos financeiros. Direito à vida e à saúde. Necessidade imperiosa de se preservar, por razões de caráter ético-jurídico, a integridade desse direito essencial. Fornecimento gratuito de medicamentos indispensáveis em favor de pessoas carentes. Dever constitucional do Estado. (STF. RE 557548/MG, Rel. Min. Celso de Mello, j. 08/11/2007, p. DJ 05/12/2007).” “- O reconhecimento judicial da validade jurídica de programas de distribuição gratuita de medicamentos a pessoas carentes, inclusive àquelas portadoras do vírus HIV/AIDS, dá efetividade a preceitos fundamentais da Constituição da República (arts. 5º, caput, e 196) e representa, na concreção do seu alcance, um gesto reverente e solidário de apreço à vida e à saúde das pessoas, especialmente daquelas que nada têm e nada possuem, a não ser a consciência de sua própria humanidade e de sua essencial dignidade. (STF, AGRRE 271286-RS, Rel. Min. Celso de

Mello, p. DJ 23/08/2000).”

“3 – o funcionamento do Sistema Único de Saúde – SUS é de resoponsabilidade solidária da União, Estados-membros e Municípios, de modo que, quaisquer dessas entidades têm legitimidade “ad causam” para figurar no pólo passivo de demanda que objetiva a garantia do acesso à medicação para pessoas desprovidas de recursos financeiros. (STJ. REsp 704067/SC, Rel. Min. Eliana Calmon, 2ª Turma, p. DJ 23/05/2005).” “Saúde pública. Aparelho auditivo. Hipossuficiência econômica. Ponderação entre o mínimo existencial e a reserva do possível. A Constituição da República assegura o direito à saúde e prevê, em contrapartida, o dever do Estado, mediante políticas sociais e econômicas, de viabilizar o acesso universal igualitário a serviços e ações para a sua proteção e recuperação. (TJ/RJ. Ap. Cível. 2006.001.32130, Rel. Des. Suimei Meira Cavalieri, j. 02/08/2006).” (Grifos não constantes dos originais)

Com uma posição mais radical, o Tribunal de Justiça do Paraná já chegou a decidir que o pagamento, pelo Estado, de serviços médicos gratuitos a quem não

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possua a real necessidade se constitui em ato de improbidade administrativa. Temse trecho do Acórdão a seguir:84 Constitui-se ato de improbidade administrativa o pagamento, com dinheiro público, de internação médica particular (e não pelo SUS) daquele que, sendo irmão do prefeito e secretário municipal, não era considerado pessoa carente, sendo clara a imoralidade dos atos praticados.

No multicitado julgamento da ADPF n.º 45, o próprio STF já deixou claro que deve haver uma razoabilidade da pretensão individual/social deduzida em face do Poder Público. Desse modo, pode-se concluir que a demanda por serviços gratuitos de saúde provocada por quem tem plenas disponibilidades de recursos não encontra guarida no princípio da razoabilidade. Também cabe comentar que a Lei do Estado do Rio Grande do Sul n.º 9.908/1993 passou a adotar taxativamente esse parâmetro, ora sugerido, para o controle judicial das políticas de saúde. O art. 1º do texto legal dispõe que o Estado gaúcho deve fornecer, de forma gratuita, medicamentos para pessoas que não puderem prover as despesas com esses medicamentos sem privarem dos recursos indispensáveis ao próprio sustento e de sua família. Alguns doutrinadores aplaudem a adoção desse parâmetro. Germano Schwartz (2004) é um desses. Segue o seu ponto de vista: O direito à saúde é claro, deverá ser sempre que possível atendido. O fato se encontra (e tormentoso, por sinal) na necessidade de se socorrer do Estado para exercitar tal direito, caso contrário, se todos, mesmo aqueles que não necessitassem do socorro a essa via, delas se agarrassem, a falência do Estado seria inevitável. Adrede a essa conflituosidade, o julgador deve perquirir da imediatidade do dano (estado de saúde, gravidade da doença, prontidão do atendimento à enfermidade) e das condições do requerente da medida.

Entretanto, deve-se frisar que a utilização desse parâmetro será apenas um paliativo, não se configurando na panacéia para a saúde pública. Nesse sentido, tem-se a prudente advertência de Vivian Rigo (2007, p. 182):

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TJ/PR. 1ª Câm, Civ. Apelação n.º 128754300, Rel. Des. Péricles Bellusci de Batista Pereira, j. 02/09/2003.

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Com efeito, não se trata de solução, pois o direito fundamental à saúde não pode ser condicionado por critério de caráter financeiro. Entretanto, a utilização desse argumento para o deferimento de tutelas antecipatórias pode ser uma alternativa emergencial viável a ser utilizada, ressalva-se, com parcimônia, até que se consiga reverter a situação de falência da saúde pública.

Em suma, o que se propõe é que nas demandas envolvendo prestações à saúde deverá ser exigida da parte postulante a comprovação idônea de sua hipossuficiência material. Ressalte-se, todavia, que o conceito de hipossuficiência não deve se confundir com o de pobreza, sendo este último estado muito mais drástico. O simples fato de o indivíduo não ser pobre e perceber uma renda mensal razoável, não significa que possa arcar com os custos de qualquer tratamento indispensável a sua subsistência. Nesses casos, ainda que não se caracterize a pobreza, haverá a hipossuficiência. Avançando na sugestão de parâmetros para a atuação judicial no controle das políticas sociais de saúde, cabe abordar a questão do fornecimento de medicamentos pelo Poder Público. A Lei Federal n.º 8.080, de 1990, que instituiu o Sistema Único de Saúde (SUS), garantiu também o universal acesso aos medicamentos. De acordo com o art. 6º, I, “d”, do diploma legal, estão incluídos no campo de atenção do Sistema Único de Saúde - SUS – a execução de ações de assistência integral, inclusive farmacêutica. Nesse particular, de uma forma simplificada, cabe aos diferentes entes federativos (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) a elaboração das listas de medicamentos que serão adquiridos e fornecidos gratuitamente à população. Com base na pesquisa de Luís Roberto Barroso (2008, p. 234), ao gestor federal caberá a formulação da Política Nacional de Medicamentos, o que envolve, além do auxílio aos gestores estaduais e municipais, a elaboração da Relação Nacional de Medicamentos (Rename). Ao município, por seu turno, cabe definir a relação municipal de medicamentos essenciais85, com base na Rename e executar a assistência farmacêutica. 85

A Organização Mundial da Saúde (OMS) define medicamentos essenciais como aqueles que satisfazem às necessidades de saúde prioritárias da população, os quais devem estar acessíveis em todos os momentos, na dose apropriada, a todos os segmentos da sociedade, além de serem selecionados segundo critérios de relevância em saúde pública, evidências de eficácia e segurança e estudos comparativos de custo-efetividade.

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Nota-se que a problemática dos medicamentos trilhou os mesmos caminhos da assistência médica, quais sejam: o da necessidade de realização de escolhas políticas na alocação de recursos; a ingerência do Poder Judiciário e a falta de parâmetros para o exercício desse controle judicial, embora neste particular haja essas comentadas listas de medicamentos elaboradas pelos entes federativos (Rename). Do mesmo modo que na assistência médica, o Poder Judiciário passou a assegurar o direito a remédios, o que, de certa forma, constitui-se em um avanço na defesa do mínimo existencial. O problema é que os magistrados começaram a cometer exageros na sua atuação de controle. De acordo com Tavares (2002, p. 104 e ss), os tribunais não restringiram o direito aos pobres e aos miseráveis. Houve a predação da renda pública pela classe média e pelos ricos, principalmente no que concerne aos medicamentos caros e importados, aos quais os miseráveis não têm acesso, inclusive por razões culturais. Conforme comentado no Item 4.3, remédios não essenciais à saúde, como o viagra, passaram a ser concedidos indiscriminadamente. Medicamentos ainda em fase de teste, os chamados experimentais, e remédios específicos, ao revés dos genéricos, passaram a ter de ser fornecidos pelo Estado, por força de determinações judiciais. Certamente, tais medicamentos fogem a qualquer conceito de mínimo existencial, e, por consequência, não devem ser, de pronto, disponibilizado gratuitamente à população. Como já visto, hodiernamente, no Estado brasileiro, proliferam decisões judiciais extravagantes ou emocionais, que condenam a Administração ao custeio de tratamentos irrazoáveis – seja porque inacessíveis, seja porque destituídos de essencialidade -, bem como de medicamentos experimentais ou de eficácia duvidosa, como bem retrata Luís Roberto Barroso (2008, p. 222). Intentando racionalizar e uniformizar a atuação judicial no fornecimento de medicamentos, o festejado jurista Barroso apresenta uma série de critérios e parâmetros, ora comentados e sintetizados. Por se concordar integralmente com as São os medicamentos mais simples, de menor custo, organizados em uma relação nacional de medicamentos. (BARROSO, 2008, p. 234).

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propostas do autor, este trabalho resolveu adotá-las, até mesmo como forma de contribuir na divulgação desse interessante e razoável raciocínio. Primo loco, Barroso (2008, p. 243) propõe que, no âmbito de ações individuais, a atuação jurisdicional deve ater-se a efetivar a dispensação dos medicamentos constantes das listas elaboradas pelos entes federativos. Desse modo, o primeiro parâmetro apresentado, dentro do conceito do mínimo existencial, sugere a obediência às opções anteriormente feitas pelos entes federativos (Poder Executivo) e materializadas nas listas de medicamentos. Entende-se que os fundamentos desse parâmetro são lógicos, uma vez que a Constituição Federal, no multicitado art. 196, associa a garantia do direito à saúde às políticas sociais e econômicas, até mesmo como forma de assegurar a universalidade das prestações e preservar a isonomia no atendimento aos cidadãos, independentemente de seu acesso ao Poder Judiciário. É presumível que o Poder Executivo, antes de elaborar as referidas listas de medicamentos, avaliam as necessidades prioritárias a serem supridas, bem como os recursos disponíveis, a partir da visão global que possuem dos fenômenos envolvidos na área. Além disso, os agentes públicos que elaboram as listas avaliam também os aspectos técnicosmédicos envolvidos na eficácia e emprego dos medicamentos. Portanto, indiscutivelmente, o Poder Executivo é quem possui as ferramentas e os requisitos necessários à eleição dos medicamentos a serem disponibilizados pelo Estado, até porque o desempenho de funções administrativas é sua competência típica. Mas isso não significa que o Executivo seja senhor absoluto dos seus próprios atos. Atualmente, dentro do regime democrático, da nova ordem constitucional que privilegia os valores e os princípios, e com base nos mecanismos existentes de freios e contrapesos, nada pode ser afastado da apreciação do Poder Judiciário, nem mesmo os aspectos relativos à oportunidade e conveniência. Em outros termos, em caso de equivocada elaboração da lista, com possíveis omissões, pode o Judiciário atuar visando a sua alteração. Entretanto, essa atuação judicial deve ser realizada com parcimônia e estar sempre respaldada em pronunciamentos

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técnicos emitidos por peritos. Sobre essa possibilidade de alteração, Barroso sugere a avaliação da possibilidade de ajuizamento de uma ação coletiva.86

Em suma, o primeiro parâmetro para a atuação judicial no controle das políticas sociais de fornecimento de medicamentos, que é a apriorística observância das listas elaboradas pela Administração Pública, não é absoluto, uma vez que o Judiciário pode, balizado por laudos técnicos, discordar da lista e determinar o fornecimento remédios que estejam fora da relação. Mas, para isso, repita-se, deve o órgão judicante enfrentar e rechaçar fundamentadamente todos os argumentos médicos e técnicos apresentados Administração Pública. Mesmo sendo despiciendo, cabe ressalvar que aqui se apresentam sugestões para aquilatar a atuação do Poder Judiciário. Não se quer podar ou restringir a atuação judicial. Fala-se no plano deontológico (do dever-ser) e não no plano ontológico (no que efetivamente pode fazer o Judiciário). Um segundo parâmetro proposto por Luís Roberto Barroso (2008, p. 244/245), que na verdade é consequência do não-seguimento do primeiro, é a sugestão de que a alteração das listas (com a inclusão de novos medicamentos) seja objeto de discussão no âmbito de ações coletivas e não individuais. Os argumentos para a adoção deste critério são bastante plausíveis. Em primeiro lugar, a discussão coletiva ou abstrata exigirá naturalmente um exame do contexto geral das políticas públicas discutidas. Em segundo lugar, sabe-se que o juiz, na preocupação com a solução de um caso concreto, tende a ignorar outras necessidades relevantes, esquivando-se do inexorável gerenciamento dos recursos limitados para o atendimento de demandas múltiplas e ilimitadas. Um terceiro 86

Barroso (2008, p. 242) assim se manifesta: “Parece impossível, por evidente, considerando a garantia constitucional de acesso ao Judiciário, impedir demandas individuais que visem ao fornecimento de medicamentos não incluídos em lista . Ao decidir tais demandas, porém, o magistrado terá o ônus argumentativo de enfrentar os expostos no texto. O ideal, a rigor, seria o magistrado oficiar ao Ministério Público para que avalie a conveniência do ajuizamento de uma ação coletiva, ainda que, naquele caso específico, e em caráter excepcional, decida deferir a entrega do medicamento para evitar a morte iminente do autor.”

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argumento em defesa desse parâmetro é que as decisões eventualmente tomadas no âmbito de uma ação coletiva ou de controle abstrato de constitucionalidade produzirá efeitos erga omnes (para todos), preservando, assim, a necessária igualdade e universalidade na prestação das políticas sociais de saúde. Ainda no contexto das demandas que visem ao fornecimento gratuito de medicamentos pelo Estado, Barroso (2008, p. 246), embasado pelos ideais da teoria do mínimo existencial, apresenta outros parâmetros, denominados por ele de complementares, capazes de orientar as decisões na matéria. Ei-los: a) O Judiciário só pode determinar a inclusão, em lista, de medicamentos de eficácia comprovada, excluindo-se os experimentais e os alternativos; b) O Judiciário deverá optar por substâncias disponíveis no Brasil; c) O Judiciário deverá optar pelo medicamento genérico, de menor custo; d) O Judiciário deverá considerar se o medicamento é indispensável para a manutenção da vida. Colmando e sintetizando o que foi apresentado sobre as possibilidades judiciais no controle das políticas sociais de fornecimento de medicamentos, entende-se que, a priori, o Judiciário deva seguir as listas dos remédios elaboradas pelo Poder Executivo. Entretanto, é possível discutir judicialmente a inclusão de novos medicamentos nessas listas. Mas, necessariamente, a tutela judicial determinando a inclusão deve ser excepcional e estar respaldada em perícias, para que seja legítimo o desmerecimento das complexas avaliações técnicas (de ordem médica, administrativa e orçamentária) realizadas rotineiramente pela Administração Pública. Além disso, seria de bom alvitre que essas discussões judiciais se realizassem em sede ampla, ou seja, em ações coletivas, cujos efeitos se estenderiam para todos, e não-somente para os autores das ações. Por fim, o Judiciário somente deve determinar que a Administração forneça medicamentos de eficácia comprovada, excluindo-se os experimentais e os alternativos. Também só

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deve, regra geral, optar por substâncias disponíveis no país, de menor custo, como os genéricos e os indispensáveis para a preservação da vida. Esses são, então, alguns interessantes critérios e parâmetros que podem ensejar uma atuação judicial mais comedida e proativa.

NOTAS CONCLUSIVAS Em face de todo o exposto, pode-se propor a seguinte síntese: (a) a Constituição Federal de 1988 estabeleceu como um dos fins essenciais do Estado a garantia e a promoção de um extenso rol de direitos fundamentais; (b) as políticas públicas (sociais e econômicas) são o meio pelo qual os fins constitucionais podem ser realizados de forma sistemática e abrangente; (c) as políticas públicas envolvem dispêndio de recursos públicos; (d) os recursos públicos são limitados e, por isso, é preciso fazer escolhas alocativas; (e) embora seja possível ao Poder Judiciário o pleno exercício de controle dessas escolhas, faz-se mister a adoção de parâmetros e critérios racionais para essa atuação. Com base nos direitos fundamentais constitucionalmente assegurados e nas escolhas governamentais, o Poder Judiciário vem exercendo um controle pontual sobre as políticas sociais, a partir do momento em que é provocado e que determina ao Estado, por exemplo, a prestação de determinados serviços médicos ou o fornecimento de medicamentos. Porém, essa forma de controle vem se mostrando cada vez menos adequada e mais temerária e excessiva, em função das limitações dos recursos públicos e da consequente impossibilidade da extensão à coletividade dos direitos fundamentais que a Justiça vem determinando para os casos concretos – a micro-justiça. Um viés das críticas contumazes que se destinam ao intervencionismo judicial na área de saúde é que, precisamente, essa atuação

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excessiva acaba por deixar sem assistência médica outros indivíduos, os quais, em várias situações, são mais necessitados do que aqueles que receberam a tutela judicial. Não se pode perder de vista que a prestação de saúde (assim como os demais direitos sociais) concedida por um magistrado a determinado indivíduo deveria ser concedida também a todas as demais pessoas na mesma situação (a macro-justiça).

O art. 196 da CF, que trata do direito fundamental à saúde, como já visto, apenas se restringiu à afirmação de que a saúde é direito de todos e dever do Estado. E como se configura, então, esse dever do Estado? Tudo que se relacione à saúde deve ser prontamente disponibilizado pelo Estado? Não se pode olvidar que a moderna concepção de saúde, conforme já há muito advertido pela OMS, abrange um estado dinâmico de completo bem-estar físico, mental, espiritual e social e não apenas a ausência de doença ou enfermidade Destarte, é difícil imaginar que a sociedade brasileira seja capaz de custear toda e qualquer prestação de saúde disponível no mercado para todos os seus membros. Existe uma demanda bastante extensa e complexa, abarcando procedimentos de exames, de tratamentos, de cirurgias, de medidas preventivas, além do fornecimento de medicamentos. Além das inúmeras e infindáveis necessidades em outras áreas, como educação, segurança pública, moradia, saneamento básico, transporte, lazer, cultura, etc. desse modo, é inegável que se fazem necessárias a racionalização, a padronização e o estabelecimento de critérios equânimes para a escolha de prioridades nas políticas de saúde. Num país em que muitos ainda morrem por desnutrição, por doenças comezinhas, como malária, tuberculose, chagas, meningite, leptospirose, não se pode decidir por um gasto com tratamentos vultosos sem realizar uma adequada análise conjuntural e da relação de custo/benefício, mesmo sabendo que se trata de um direito fundamental. Não se pode negar a limitação dos recursos públicos e a necessidade de realização de escolhas alocativas. Torna-se inevitável ao Estado a adoção de critérios de distribuição dos recursos para atender às várias demandas sociais.

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Resta evidenciado na área de saúde pública que é improvável a disponibilização de tudo (integralidade) para todos (universalidade). Daí pode-se entender como legítima a aplicação da teoria da reserva do possível, que deve se restringir ao sentido da razoabilidade da pretensão requerida perante o Estado (Poder Executivo ou Judiciário). Essa teoria não pode ser recorrentemente arguida pela Administração Pública para simplesmente justificar a indisponibilidade orçamentária e a não prestação dos serviços públicos necessários. Portanto, verifica-se que há uma patente dificuldade em concretizar todas as facetas dos direitos sociais à saúde, em harmonia aos princípios da segurança e da justiça. É justamente nesse ponto que a fixação de critérios e parâmetros tem fundamental importância, pois servem para auxiliar o juiz, numa situação concreta, a decidir com base na equidade e proporcionalidade. Faz-se necessário que o Poder Judiciário não se deixe contaminar com o subjetivismo aleatório ou no arbítrio casuístico. O magistrado, no exercício da sua importante atuação de controle, não pode deixar de se indignar, não pode perder a capacidade de espanto diante de situações em que o mínimo de dignidade é recusado aos cidadãos. No entanto, torna-se indispensável a manutenção de um equilíbrio no exercício desse controle judicial. É preciso que o Poder Judiciário reconheça os limites que são inerentes ao controle das políticas sociais de saúde. A resolução dos conflitos levados aos magistrados deve ser pautada em critérios razoáveis e redimensionados para cada situação concreta. Diante dessa situação, propõe-se a utilização desses parâmetros para balizar o exercício do controle das políticas públicas, que servirão, também, para impor condicionamentos e limites para atuação do Poder Judiciário nessa seara. Esses parâmetros são estabelecidos pela tese do mínimo existencial. Vale dizer, quando a Administração Pública não estiver, por meio das suas políticas sociais, garantindo a satisfação de um conjunto mínimo de condições materiais aos seus administrados, restará plenamente legitimada a interferência do Poder Judiciário (ou de qualquer outra instituição de controle) nas opções políticas feitas pelos gestores públicos, com a determinação direta e imediata da prestação de serviços públicos. Nessa linha de

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intelecção, e com base nos julgados colacionados neste trabalho, as demandas judiciais que busquem vultosos tratamentos em outros países, procedimentos cirúrgicos eletivos e não indispensáveis, como a cirurgia de transgenitalização, medicamentos experimentais de elevado custo ou não-essenciais, como os florais de Bach e os para tratamento de acne devem ser analisadas e decididas racionalmente, com base na teoria do mínimo existencial. A aplicação dessa teoria do mínimo existencial como parâmetro para o controle judicial é de suma importância para a efetividade dos direitos sociais à saúde, uma vez que a Lei Maior não tratou desse direito de maneira detalhada, como o fez com relação aos direitos à educação. Conforme abordado, para o exercício do direito social à educação, a Constituição Federal, no seu art. 208, definiu as prioridades de maneira sistemática e precisa, facilitando a identificação do mínimo existencial para a educação básica. Assim, não se deve recorrer ao Judiciário para exigir que o Estado disponibilize vagas em universidades públicas para todos que desejem, porque tal pleito está fora do núcleo essencial (mínimo existencial) do direito à educação. No tocante às demandas relacionadas aos direitos sociais à saúde, devido à falta de clareza do texto constitucional, haverá a necessidade de uma atuação judicial mais criteriosa e cuidadosa, com vista a uma adequada identificação do conteúdo do mínimo existencial. É de bom alvitre que a ação judicial seja prudente e proporcional à gravidade e à seriedade das demandas, sem cometimento de excessos e exageros. Não se defende aqui uma postura estática do Poder Judiciário no controle das políticas sociais de saúde. O Judiciário não pode ser menos do que se deve ser, deixando de tutelar direitos fundamentais que podem ser promovidos com a sua atuação. Não mais é cabível que as ações desse órgão de controle sejam restritas ao pronunciamento do direito, naquela visão montesquiana. É certo que não cabe mais ao Judiciário uma postura passiva, um papel de mero coadjuvante em matéria de políticas públicas. Ao revés, concorda-se com a postura ativista, politicamente engajada, porém equilibrada e serena nesse processo de contribuição para a concretização das promessas constitucionais. O Judiciário, por outro lado, não deve

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querer ser mais do que se pode ser, presumindo demais de si mesmo e exorbitando no exercício da função jurisdicional. Faz-se mister, então, que o ativismo judicial se realize racionalmente, na exata medida, sem omissões, mas também sem excessos. O exercício das funções judiciais deve ter como base argumentações equânimes e proporcionais.

Desse modo, a pretensão primária deste trabalho é justamente a de fomentar e ampliar o acalorado e apaixonante debate multidisciplinar sobre o controle judicial das políticas sociais da saúde. Buscou-se oferecer elementos que possam contribuir para o aprimoramento do exercício do ativismo judicial em matéria de políticas sociais de saúde. Como visto, a matéria ainda se encontra efervescente nos tribunais brasileiros. Os parâmetros e critérios racionais ainda estão em construção na doutrina e na jurisprudência. É provável que esse ativismo tenha sido uma consequente resposta à tradicional resistência para a aceitação do controle judicial das políticas públicas. Entretanto, espera-se, num curto espaço de tempo, que o Judiciário arrefeça essa pretensão excessiva e passe a buscar racionais critérios para pautar sua atuação de controle. Em arremate, a limitação dos recursos públicos é uma contingência que não pode ser ignorada pelos organismos de controle. O discurso apaixonado negando essa realidade brasileira não se pode verificar na academia, onde, necessariamente, o exercício reflexivo há de ser o da busca de soluções para a efetividade dos direitos sociais aos cidadãos. Por isso, a atuação dessas instituições, principalmente do Poder Judiciário, deve ser pautada no mínimo existencial, cujo conteúdo deverá ser definido na análise do caso concreto. Caso as recorrentes decisões judiciais que determinem a concessão de determinado bem ou serviço não possam ser razoavelmente universalizadas, ocorrerá uma distribuição, no mínimo, desigual e pouco democrática dos bens públicos. Em síntese, no controle judicial das políticas públicas de saúde, espera-se especial atenção aos fins sociais e aos limites que a realidade inexoravelmente impõe ao próprio Direito.

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