Imagens da metrópole no cinema brasileiro

May 29, 2017 | Author: Vitorino Bardini Sabrosa | Category: N/A
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1 Marlivan Moraes de Alencar Imagens da metrópole no cinema brasileiro Programa de estudos Pós-Graduados e...

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Imagens da metrópole no cinema brasileiro

Marlivan Moraes de Alencar

Imagens da metrópole no cinema brasileiro

Programa de estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais PUC/SP

Março 2008

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Imagens da metrópole no cinema brasileiro

Marlivan Moraes de Alencar

Imagens da metrópole no cinema brasileiro

Programa de estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais PUC/SP

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Ciêncas Sociais sob a orientação da Professora Doutora Livre Docente Sílvia Helena Simões Borelli.

Março 2008

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Imagens da metrópole no cinema brasileiro

Banca Examinadora

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Imagens da metrópole no cinema brasileiro

Autorizo, exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta tese por processos de fotocopiadoras ou eletrônicos. Assinatura:

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São Paulo, 31 de Março de 2008.

Imagens da metrópole no cinema brasileiro

Dedicatória Este trabalho eu dedico aos meus pais, Ivan e Marlene.

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Imagens da metrópole no cinema brasileiro

Agradecimentos Aos amigos (todos, sem nenhuma exceção) A Capes Ao Centro Universitário Senac, principalmente aos coordenadores dos cursos da Faculdade de Comunicação e Artes: Vilma Vilarinho, Denise Roma, Alécio Rossi e Maria Sílvia Queiroga Reis. À minha orientadora Sílvia Helena Simões Borelli A Gilmar de Carvalho, um grande e especial amigo.

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Resumo

Esta tese discute as imagens da metrópole construídas pelo cinema brasileiro contemporâneo. A análise prevê pelo menos três elementos que lhe servem de base: (1) o filme como pensamento e mediação; (2) a necessidade de considerar a forma fílmica como fundamental na construção dessa mediação e (3) a cidade como um ambiente mobilizado pela interação entre as pessoas e o espaço modificado. Para o estudo foram selecionados quatro longasmetragens de ficção, dirigidos por jovens cineastas originários de estados diferentes: O invasor (São Paulo, 2001) de Beto Brant, O homem que copiava (Rio Grande do Sul, 2002) de Jorge Furtado; Amarelo manga (Pernambuco, 2002) de Cláudio Assis e O outro lado da rua (Rio de Janeiro, 2004), dirigido por Marcos Bernstein. Trata-se de entender as imagens como capazes de acionar imaginários, e de assumir com questionamento motivador desta tese a pergunta sobre o quê e de que modo os filmes estão pensando a vida na metrópole. A análise se estrutura a partir das relações entre sujeitos/personagens e ambiente urbano, tomadas como linhas de força a definir cidades conceituais identificadas através dessas relações. A postura teórica adotada assume um caráter multidisciplinar como condição necessária para o processo analítico, agenciando áreas como antropologia, sociologia, filosofia e teoria do cinema entre outras. A tese se divide em três capítulos: o primeiro discute O invasor e O homem que copiava como filmes que se assemelham por estruturarem uma idéia de cidade que está em devir, em processo de transformação entre o virtual e o atual, daí seu título: “A cidade virtual”; o segundo – “A cidade à (ou na) deriva” – aborda o longa pernambucano como um filme composto por imagens à deriva que buscam comprovar a tese de seu diretor sobre a miséria do homem; e o terceiro capítulo, “Cidade-corpo”, considera que o filme de Bernstein, através de uma decupagem clássica, aproxima sua protagonista da metrópole de modo a configurar entre elas uma relação de quase indissociabilidade.

Palavras chave: imagem, cinema, metrópole, crítica.

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Abstract

This thesis argues the images of the metropolis constructed by the contemporary Brazilian cinema. The analysis foresees at least three elements that are on the basis of this cinema: (1) the film as an intellectual experience and mediation; (2) the necessity to consider the film form as a fundamental element in the construction of this mediation; and (3) the city as an environment mobilized for the interaction between the people and the modified space. For the present study it was selected four feature film fictions, directed by young movie makers from different Brazilian states: O Invasor (2001), of Beto Brant, O homem que copiava (Rio Grande do Sul, 2002), of Jorge Furtado; Amarelo Manga (Pernambuco, 2002), of Cláudio Assis;; and, O outro lado da rua (Rio de Janeiro, 2004), directed by Marcos Bernstein. All of them deal with the comprehension of the images as something capable to set the imaginary, and, to assume with the motivational questionings of this thesis the inquiries on what and how these movies are thinking the life in metropolis. The analysis is structured from the relationship between subject/personage and the urban environment, considered as force lines to define conceptual cities identified by those relationships. The adopted theoretical position assumes a multidisciplinary character as a necessary condition for the analytical process, connected to areas such as Anthropology, Sociology, Philosophy and Cinema Theory, among others. The thesis is divided in three chapters: the first one is a discussion that considers O invasor (2001) and O homem que copiava (2002) as similar movies since they have a structural similarity, which is the point of view of the metropolis as a place still under construction, a process of transformation between the virtual and the reality; and for this reason the chapter is titled “Virtual city”. The second chapter – titled “The city to drift (adrift)” – approaches the film feature from Pernambuco as a movie composed by floating images that try to prove the thesis of its director about the misery in man’s life. Finally, the third chapter, titled “The body-city”, considers that the movie of Bernstein , through a classic decoupage, approaches its protagonist to the metropolis in order to configure among them an almost indissociated relationship. Key-words: image, film (movie), metropolis, critical.

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Sumário

Introdução .............................................................................................................17 Capítulo 1. A cidade virtual ..............................................................................59 Filmes em construção ........................................................................................... 61 O invasor: a história ...............................................................................................69 O grão da imagem .................................................................................................72 O coro....................................................................................................................82 A cidade .................................................................................................................87 Cidade sem limites ................................................................................................90 Nas quebrada .......................................................................................................100 Grafias urbanas ...................................................................................................103 Segredos públicos ................................................................................................108 O homem que copiava: a história ..........................................................................117 Sobre a voz polifônica ....................................................................................... 120 A cidade ...............................................................................................................131 A personificação do ambiente urbano .............................................................. 133 A síndrome do pânico........................................................................................ 140 Dinheiro ............................................................................................................. 152 A cidade virtual .................................................................................................. 160 Capítulo 2. A cidade à (ou na) deriva ........................................................... 161 Um filme disruptivo ........................................................................................... 163 Amarelo manga: as histórias ............................................................................... 168 A uma distância segura ...................................................................................... 172

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A cidade .............................................................................................................. 180 O lar Avenida ..................................................................................................... 184 Os párias somos nós que vivemos em ruínas .................................................... 189 Nas ruas da deriva anônima .............................................................................. 199 A cidade irradiada ...............................................................................................207 Ao rés do chão ..................................................................................................... 211 A cidade à (ou na) deriva ....................................................................................215 Capitulo 3. Cidade-corpo ............................................................................... 229 Um filme clássico ...............................................................................................231 O outro lado da rua: a história ............................................................................. 236 A cidade .............................................................................................................. 240 A pequenez do sujeito urbano ........................................................................... 246 Da monótona casa à aventurosa rua ................................................................. 268 Cidade-corpo...................................................................................................... 282 Considerações finais ........................................................................................ 303 Filmes analisados ............................................................................................. 319 Referências bibliográficas .............................................................................. 327

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Introdução

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Introdução Quatro filmes e impressões sobre a vida em quatro grandes cidades brasileiras. Todos exibidos em circuito comercial e ganhadores de prêmios em festivais nacionais e internacionais. Quatro cineastas, alguns em seu primeiro trabalho, outros em seu segundo ou no máximo terceiro filme. Uma pergunta: como este cinema se apropria do que é a vida na metrópole? Vejam que não estou falando da cidade apenas como estrutura urbana e arquitetônica, refiro-me à vida na metrópole, o que pressupõe considerar o espaço urbano mas também, e fundamentalmente, as pessoas que lhe conferem significado. Na verdade, procurei unir duas coisas que me dão muito prazer: o cinema e o que se diz sobre a cidade. Aqui estou pensando na literatura, nos jornais, nos ditos cotidianos e na teoria. Cinema brasileiro, porque essa seria uma oportunidade de me debruçar sobre ele como um objeto de estudo; e cidade, porque, como emigrada do Nordeste, me deparei com esta metrópole, a maior do país, como quem passa a viver a experiência do desenraizamento. Alguém que vai ficando sem nada que realmente o prenda, sujeito às contingências afetivas, financeiras e profissionais, como tantos outros que por aqui chegam.

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Esta metrópole me tocava: suas ladeiras; as inúmeras praças que não são praças, mas pedacinhos de terra tomados pelo mato, sem sequer uma árvore ou um banco para um merecido descanso; as pessoas que, em meio a tanta pressa, têm tempo para dar atenção ao artista de rua ou ao pastor protestante; a cara de blasé dos intelectuais e modernos; o calor infernal em janeiro e fevereiro, os ônibus lotados e o abandono das crianças e dos adultos e dos idosos. O que se mostrava na cidade e o que se escondia ou se esquecia me causavam estranheza, e também o que diziam sobre ela, nem sempre confirmado no seu diaa-dia. Tudo isso e muito mais davam um cheiro a essa metrópole que me fazia perguntar: o que afinal queremos desse ou nesse lugar? A grande cidade foi se tornando então uma sensação, algo que me afetava como conceito, uma idéia de cidade, ampliada pelas leituras que me traziam imagens, visões de cidade que aqui encontravam ressonância, não necessariamente material. Em casa, longe daqui, me encontrava acolhida, tranqüilizada; aqui me sentia instigada, desafiada, mas também e inúmeras vezes muito cansada. Pensava então em abandoná-la, em me deixar ir. Mas fui ficando, até quando eu não sei. Essa é a vantagem de não ser da grande cidade. Eu posso abandoná-la, mesmo ela

já sendo um pedaço da minha vida, e um pedaço não tão pequeno. O cinema me transporta a outra cidade, uma minúscula cidade onde morei toda a minha infância e um pouco da adolescência. Lá, no interior do Maranhão, nas matinês do cine Babu –, eu assistia com meus irmãos às aventuras da Jovem Guarda, aos filmes de Tarzan e Bruce Lee. Depois da sessão, na hora do jantar, a conversa ia longe. Anos mais tarde, já em São Luís, ir sozinha ao cinema foi o meu primeiro ato de independência. Tinha dezessete anos. Não me ocorre qual era o filme, mas recordo a sensação de liberdade e de conquista da autonomia. De lá para cá, continuo indo muitas vezes sozinha ao cinema, mesmo quando acompanhada. A seleção dos filmes para este trabalho teve como parâmetro inicial – como não poderia deixar de ser em um país onde a produção nacional está sempre à mercê dos financiamentos e da capacidade de gerenciamento de verbas aplicadas na cultura – um levantamento da produção por estado. Era interessante que se saísse do eixo Rio de Janeiro – São Paulo,1 o que não foi difícil, uma vez que Pernambuco e Porto Alegre também estreavam longasmetragens em circuito comercial e com boa

1 Rio de Janeiro e São Paulo são, tradicionalmente, os maiores pólos de produção cultural do país. No en-

tanto o Nordeste, em especial Pernambuco, tem ocupado regularmente as telas de cinema, mas ainda com temáticas centradas no homem do sertão, como Baile perfumado (1997), de Lírio Ferreiro e Paulo Caldas, Eu, tu, eles (2000), de Andrucha Waddington, e Cinema, aspirinas e urubus (2005), de Marcelo Gomes. 20

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representatividade em festivais e mostras de cinema, um dos critérios propostos para a escolha do corpus da pesquisa. Esses filmes teriam então a recepção do espectador comum e dos aficionados e críticos que participam de tais festivais. Foram escolhidos quatro filmes: O invasor (Beto Brant, 2001), O homem que copiava (Jorge Furtado, 2002), Amarelo manga (Cláudio Assis, 2002) e O outro lado da rua (Marcos Bernstein, 2004), respectivamente de São Paulo, Porto Alegre, Recife e Rio de Janeiro. Essas produções representam um momento em que o cinema brasileiro adquire projeção não somente dentro do país, mas também no exterior, ancorado por participações em festivais como o de Cannes e de Berlim, além de ter estado presente em algumas edições do Oscar. Um período de afirmação depois da derrocada propiciada pelo governo de Fernando Collor de Melo e do que se configurou chamar de cinema da retomada.2 Uma produção que conseguiu se reerguer graças à política de financiamento das leis de incentivo fiscal, que chegou a atrair em 2003 um público de 22 milhões de espectadores em todo o país, um crescimento de 220% em relação ao ano anterior, segundo o boletim especializado Filme B.

Dados da Agência Nacional de Cinema (Ancine) indicam que, entre 1995 e 2004, foram exibidos em salas de cinema de todo o país 207 filmes nacionais entre longasmetragens e animações, realizados por 119 produtoras. Esse cinema do século XXI, que ocupa um espaço no mercado e que também assume a influência da cultura de massa – particularmente da televisão –, se apropria da metrópole como o lugar das suas narrativas. O invasor é o primeiro filme de Beto Brant ambientado em uma metrópole. Seus dois primeiros trabalhos traziam narrativas que se passavam no interior do Brasil: Os matadores (1997) conta a história de pistoleiros que agem na fronteira do Brasil com o Paraguai; Ação entre amigos (1998) é um filme político com sua narrativa ambientada no interior do Brasil, para onde seguem quatro amigos torturados durante a ditadura militar em busca do torturador reconhecido por um deles. O invasor traz uma mudança no trabalho do cineasta paulista, não só pela temática, que apresenta um tipo de violência ditada pela lógica empresarial urbana ambiciosa e corrupta, mas também pelo deslocamento do interior para a cidade, decisão mantida desde então se considerarmos os dois outros filmes dirigidos por Brant – Crime delicado (2006) e Cão sem dono (2007).3

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Expressão polêmica que busca identificar o momento vivido pelo cinema brasileiro após o governo Collor (entre 1990 e 1992) como um período de retomada das produções, o qual teria iniciado em 1995 com as leis de incentivo à cultura. 3 O primeiro foi filmado em São Paulo, o segundo, em Porto Alegre. 21

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Segundo longa-metragem de Jorge Furtado, O homem que copiava carregava em si a responsabilidade de confirmar o talento do cineasta gaúcho em contar histórias para o cinema, capacidade já comprovada quando se tratava de televisão. Pouco preocupado com essa questão, Furtado tratou de dar-lhe uma feição ágil, a qual se deve, em grande parte aos exercícios estéticos realizados na TV Globo, junto ao núcleo dirigido por Guel Arraes. A cidade de Porto Alegre aparece como um ambiente fechado e restritivo, onde jovens de classes populares vivem também uma vida restrita e limitada às suas esparsas oportunidades, trabalhando no comércio e sem nenhuma perspectiva de mudança. Diante desse quadro aparentemente desolador, o filme traz as peripécias de André em busca de driblar, sem nenhum escrúpulo, esse destino, utilizando o que a cidade lhe oferece como oportunidade. O diretor se utiliza de várias formas de expressão e linguagem, levando o filme para um campo fantasioso e inconseqüente. O ano de 2002, o mesmo de lançamento de O homem que copiava, foi também o ano de estréia do primeiro longa-metragem do diretor pernambucano Cláudio Assis, que levava para o seu filme uma metrópole popular no sentido mais agressivo que possa se colar ao termo, sem cair na representação de uma violência explosiva.

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O Recife de Assis é uma cidade mobilizada por acontecimentos cotidianos, fatos corriqueiros para uma gente que sobrevive a duras penas, buscando na metrópole formas de vida que apostem na potência criativa de cada um. No entanto, essa imagem não traz nenhuma mensagem de esperança, ao contrário. O cineasta escolhe mostrar o quanto há de sujo e feio nessa luta diária, acentuando a cidade através de imagens documentais, aumentando o tom da agressividade rotineira ao escolher cuidadosamente o que confirma no homem a sua condição de animal entregue a impulsos e desejos pouco controláveis. Entre os filmes que formam esta pesquisa, o dirigido por Marcos Bernstein é aquele que traz a figura do roteirista para o set de filmagem em busca de uma cidade real, capaz de expressar seu interesse pela vida em um bairro tradicional na cidade do Rio de Janeiro. Bernstein adota uma linguagem clássica mantendo o foco no drama vivido pela protagonista: uma mulher de classe média, em um bairro de classe média, em pleno processo de envelhecimento. No calçadão, a cidade assume a lentidão de uma vida à beira-mar, como uma gente sem pressa e despreocupada, enquanto nas ruas de comércio o movimento lhe confere uma dinamicidade própria às metrópoles tomadas por carros e por transeuntes indiferentes.

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Em nenhum desses espaços parece haver lugar para a protagonista entediada mas não cansada. Cada um desses filmes dirige um olhar diferente para a vida nas grandes cidades. É importante frisar este ponto: não se trata de filmes sobre a cidade, mas sobre vidas que encontram nesse ambiente as condições necessárias para as suas tramas. Fora dele essas narrativas não seriam possíveis, isto porque devem os seus enredamentos a situações propiciadas pela eloqüência e grandiosidade da vida na metrópole. Talvez fosse interessante incorporar aqui a fala de Félix Guattari quando classifica esse homem contemporâneo como um sujeito desterritorializado, vivendo em uma realidade em que paradoxalmente tudo circula e ao mesmo tempo se mantém petrificado. À circulação de músicas, slogans publicitários, turistas, chips de informática etc. corresponde, na mesma medida, uma espécie de paralisia em que tudo parece permanecer no lugar, explica Guattari. Segundo ele, “no seio de espaços padronizados, tudo se tornou intercambiável, equivalente” (1992, p. 169). A seu ver, o que os homens podem esperar é reconstituir uma relação particular com o cosmos e com a vida, é se “recompor” em sua singularidade individual e coletiva. A vida de cada um é única. O nascimento,

a morte, o desejo, o amor, a relação com o tempo, com os elementos, com as formas vivas e as formas animadas são, para um olhar depurado, novos, inesperados, miraculosos. (Ibid., p.169 e 179)

Trata-se, segundo Guattari, de restaurar uma cidade subjetiva, “que engaja tanto os níveis mais singulares da pessoa quanto os níveis mais coletivos” (ibid., p. 172). Dentro dessa discussão, Jesús Martín-Barbero destaca o quanto se tornou difícil pensar a cidade, quando significa ter de assumir uma experiência de desordem e opacidade que resiste ao olhar monoteísta, onicompreensivo e exige de nós um pensamento nômade e plural, capaz de burlar os compartimentos disciplinares e integrar dimensão e perspectivas até então obstinadamente separadas. (1997, p. 206)

Este é o olhar que o presente trabalho busca dirigir a essas imagens de cinema, como imagens que trazem as nossas cidades para as telas: um olhar nômade, aberto ao que se torna visível e ao que pode nos auxiliar a pensá-las a partir de uma perspectiva que considera os filmes como uma forma de dizê-las ou mostrá-las. Neles estão várias e diferentes cidades. Nenhuma é a cidade real, mas imagens que encontram na realidade a sua referência, matéria-prima aberta a

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interpretações. Imagens técnicas que nem por isso deixam de ser também imaginárias, quando extrapolam de todas as maneiras essa referencialidade e, subjetivas, são dotadas de poder de significação, uma construção possível e capaz de multiplicar e ampliar imaginários. Imagens fílmicas como uma mediação, segundo conceito proposto por Jésus MartínBarbero. Ao referir-se à televisão, o teórico sugere um modo de pensá-la a partir dos lugares dos quais provêm as construções que a delimitam e configuram sua materialidade social e sua expressividade (1997, p. 292). Seriam estas construções o que o autor considera como mediação. Esses lugares não são nem o campo da produção nem o da recepção, mas a cotidianidade familiar, a temporalidade social e a competência cultural. Estendendo o conceito, as mediações estão em lugares sociais onde a cultura se processa. No texto “De la comunicación a la filosofia y viceversa: nuevos mapas, nuevos retos”, Martín-Barbero explica as “raíces hermenéutícas del concepto de mediación,4 considerando que suas bases estão na hermenêutica de Paul Ricoeur e na fenomenologia de Maurice Merleau-Ponty. O conceito, discorre, teria se originado do entrecruzamento de três tipos de mediação

propostos por Ricoeur: “la que produce el espesor de los signos, la que emerge en el reconocimiento que del otro implica el lenguaje y la que constituye la relación al mundo como lugar de emergencia del sentido” (in TOSCANO; REGUILLO 1996, p. 203). Estas mediações, explica, estão presentes nas três partes que estruturam sua tese de doutorado. A primeira trata de las formas de objetivación de la acción en el lenguaje, y las formas de objetivación del lenguaje como acción. Segunda, la comunicación como emergencia del otro, el lenguaje como pregunta e interpelación. Y tercera, lo que yo quise compendiar a través del concepto de expresión y que se (…) denominó auto-implicación, esto es la emergencia y constitución del sujeto en el cruce del lenguaje y la acción. (Ibid., p. 203)

De Merleau-Ponty,5 Martín-Barbero traz a discussão sobre “um saber del cuerpo”, explicado como un saber no pensable desde la conciencia que se representa el mundo, pero que es accesible a la experiencia originaria en que se constituye el mundo, especialmente en la experiencia constitutiva del arte, ese interfaz entre la percepción y la expresión, punto del vista desde el que

4 Itálico do autor. 5 Segundo Martín-Barbero, o filosofia de Merleau-Ponty teria sido a que mais influenciou o conjunto de seu trabalho.

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el mundo toma forma y sentido. En esa experiencia el cuerpo deja de ser el instrumento de que se sirve la mente para conocer y se convierte en el lugar desde el que veo y toco al mundo, o mejor aún desde el que siento cómo el mundo me toca. (Ibid., p. 203)

Considerando as matrizes dadas por Ricoeur, a fenomenologia de Merleau-Ponty e os eixos traçados por Martín-Barbero, é possível entender o conceito de mediação como algo que não está indissociado da ação do homem como um sujeito de linguagem: entre a ação e a linguagem não há nenhuma separação. Ao expressar-se (como ação) o sujeito está objetivando a linguagem na mesma medida em que esta expressão (ação) está assumindo a forma da linguagem. A mediação pode ser pensada, desse modo, como uma espécie de relação entre o sujeito e o mundo, algo que se processa cotidianamente sem que de fato se faça necessário ter consciência do que nela está implicado. Desse ponto de vista, os filmes podem ser considerados como mediações que põem em contato o imaginário do cineasta expresso através das imagens técnicas, o que estas são capazes de provocar nos indivíduos que com elas se deparam e como estes respondem a ou questionam tais imagens. Esse encontro não necessariamente ocorre no âmbito da consciência, o que me permite recorrer ao

conceito de experiência proposto por Walter Benjamim tomado aqui como uma mediação. A experiência está na possibilidade de troca espontânea do que se viveu como uma ação cujo objetivo é transmissão de um ensinamento, sem que isto seja definido como uma operação artificial desvinculada da existência coletiva. Essa experiência se apresenta como narrativa que não está interessada em transmitir o “puro em si” da coisa narrada como uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-lo dele. Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso. (BENJAMIN, 1994b, p. 205)

O cinema como mediação, portanto, poderia ser tratado como uma experiência, segundo o proposto por Benjamim, algo que se realiza como um encontro que mobiliza tradições e atualiza imaginários. Este trabalho de pesquisa e de escrita vem ao encontro de um desejo de apreender e discutir a imagem ou as imagens, considerando-as como produções culturais carregadas de sentidos, sentidos estes que estão nelas próprias e naquilo que elas incitam sobre a vida na metrópole. Os filmes trazem imagens da metrópole impregnadas de atualidade e de preocupações

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que se descolam, pelo menos em sua aparência, de uma proposta política ideológica mais engajada, como a que caracterizou o cinema brasileiro dos anos 1960 e 1970, e indicam outros questionamentos sobre a vida nas grandes cidades, com uma dimensão talvez mais cotidiana, mesmo que por vezes um pouco aventuresca. Apesar desse “descomprometimento” político nos moldes do Cinema Novo, nenhum desses filmes pode ser visto sem que, imediatamente, a marca de uma produção nacional seja a ele agregada. O cinema no Brasil não é o cinema simplesmente e sim o cinema brasileiro. Um adjetivo que, mais do que referir-se a uma produção realizada no país, busca atribuir uma identidade a essas imagens. A perspectiva de representação dessa vida metropolitana coloca-se dentro do contexto de uma cinematografia que procura, mais do que nunca, estar inserida no que se considera um cinema internacional, tanto pelos critérios de qualidade, quanto de universalidade das temáticas. No entanto, citando Rogério Luz, “mesmo quando procura internacionalizar-se por meio da cópia do bom modelo de linguagem, exemplificado no cinema americano, ou do diálogo com as propostas renovadoras de outras cinematografias (…), o cinema brasileiro persegue seu destino representativo (de um país), e sob este prisma é, e mesmo pretende ser,

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julgado” (LUZ, 2002, p. 126). Essa questão, para Jean-Claude Bernardet, está posta desde as primeiras imagens filmadas no país, o que fez do cinema uma forma de expressão do caráter nacional, imagens que trazem o peso dessa representação como um elemento que faz parte de sua gênese. Enquanto os europeus falam no nascimento do cinema, os historiadores brasileiros falam do nascimento do cinema brasileiro. O acréscimo do adjetivo não se limita a restringir o âmbito do nascimento e a adaptar para dentro das nossas fronteiras essa concepção de história. A insistência sobre um marco inaugural adquire outra tonalidade. Sociedades de origem colonial manifestam inquietação quanto à sua identidade, assunto de constante indagação: a busca de raízes “autênticas” responde ao caráter exterior do aparecimento dessas sociedades. (BERNARDET, 1995, p. 22)

Em alguns momentos da história, a busca por essa identidade ocorre de modo mais aprofundado. No contexto da ditadura militar, entre os anos 1950 e 70, segundo Ismail Xavier (2001), diante de um alinhamento do pensamento e da produção nacional com cineastas como Orson Welles, Renoir, Antonioni, Pasolini, e movimentos como a nouvelle vague francesa e o neo-realismo italiano, se configura o

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cinema brasileiro moderno que traz para o debate, entre outras, a questão do nacionalpopular.6 As opções desse cinema foram diversas, e a cidade se fez presente em diversas produções: o Rio de Janeiro nos filmes de Nelson Pereira dos Santos e Leon Hirszman, São Paulo nos de Luís Sérgio Person, Walter Hugo Khouri e Rogério Sganzerla,7 entre outros. No cinema neo-realista de Nelson Pereira dos Santos ou alegórico de Sganzerla como dois extremos dessa produção, a questão da inserção do habitante da cidade8 no contexto da sociedade capitalista era um tema recorrente, ainda que apontasse para direções completamente diferentes, tanto no que se refere às histórias quanto às opções estéticas de cada um dos cineastas. Essas escolhas estéticas são elementos de fundamental importância para se pensar as imagens, tornando-se, como afirma Luz, uma questão definidora do pensamento sobre a produção nacional.

Perguntar sobre que realidade o filme brasileiro estaria dando a ver e pensar por meio dessa operação estética é mais que se perguntar sobre como ele deveria se comportar para bem cumprir seu papel de representante – delegação/ideação – da chamada realidade brasileira, da identidade ou diversidade cultural brasileira. (2002, p. 128-129)

Com isso, a atenção que se volta ao filme, além de considerar o seu conteúdo, também o considera como um produto construído, cuja forma revela quem está fazendo e como estão sendo feitos os filmes no país. O cinema brasileiro não se define, nessa perspectiva, simplesmente por abordar temas pertinentes ao que pode ser considerado como a alma brasileira ou o que se deseja expurgar, mas sim, pelos elementos implicados na produção dessas imagens, o modo como a linguagem cinematográfica está sendo tratada. Dessa forma, é possível que se descubra, como já vem ocorrendo nos últimos anos, que, mais do que estar identificada com a idéia de um

6 “Inserido na constelação do moderno, o jovem cinema brasileiro traçou percursos paralelos à experiência européia e latinoamericana. Viveu, no início dos anos 60, os debates em torno do nacional popular e da problemática do realismo (…) em consonância com novas estratégias encontradas pelo cinema político, foram típicos ao longo da década, os debates em que, na tônica do ‘cinema de autor’, godardianos e não godardianos (…) discutiram os caminhos do cinema entre a linguagem mais convencional e uma estética da colagem e da experimentação (…)” (XAVIER, 2001, p. 15). 7 Destacam-se entre essas produções: Rio 40 graus de Nelson Pereira dos Santos (1955), A falecida de Leon Hirszsman (1965), São Paulo S/A de Luíis Sérgio Person (1965), Noite vazia (1964) de Walter Hugo Khouri (1964) e O bandido da luz vermelha de Rogério Sganzerla (1968). 8 A produção contemporânea tem se voltado profusamente para os espaços urbanos, talvez a seguir a tendência do país em concentrar sua população nessas regiões. Segundo dados do IBGE, a população urbana, até o ano 2000, já era 4,3% maior do que a rural. Uma metrópole como São Paulo, em 2006, tinha uma população estimada em cerca de 11 milhões de habitantes.

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cinema nacional, a produção contemporanea está comprometida com o fazer cinema, utilizando dispositivos cinematográficos que possibilitem ao espectador e ao produtor estabelecer algum tipo de diálogo que inclua um reconhecimento ou um conhecimento do que pensa o cinema sobre o país, pensamento que está não somente na história narrada, mas também na estruturação da narrativa fílmica, no campo de tais escolhas estéticas. Como pensamento, o filme expressa idéias e pontos de vista e se apresenta como uma construção que traz para as suas imagens e sons a presença do outro a quem se refere. André Parente encontra nessa presença a aproximação entre cinema e antropologia, como o que se coloca como uma questão de método: como mostrar o outro sem o reduzir a um objeto, ou como mostrar o outro preservando aquilo que ele tem de mais interessante: a sua diferença, a sua radical “alteridade”? (In MONTEMOR; PARENTE, 1994, p. 51)

Parente não está tratando somente do cinema etnográfico, mas também do ficcional, considerando que diante do objeto filmado estabelece-se um distanciamento entre a identidade do cineasta (equipe de produção do filme) e aquela que se supõe conhecer

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para filmar. No fazer documental, diz, essa relação estaria mais clara quando o que se pretende é extrair do objeto a sua verdade. Obviamente que este posicionamento vem acompanhado da discussão sobre o quanto isto é possível, quando se considera que a relação entre o que filma e o filmado é uma relação de posse, ao que Parente completa: (...) o saber que exercemos sobre o outro e a sua cultura é uma forma de poder: fazer do outro um objeto já é um ato de posse. Se por um lado, o cinema documentário, em particular o cinema etnográfico, recusa a ficção, por outro, ele muitas vezes conserva e sublima um ideal de verdade que é a mais profunda ficção. (Ibid., p. 52)

No cinema documentário, essa verdade que se pretende extrair sofre a mediação da câmera não só através dos procedimentos definidos pelo cineasta (posicionamento da câmera, enquadramento, ângulo etc.), mas também pelas intenções do filmado em deixar ver aquilo que lhe interessa que seja visto. Nessa ação há explicitamente o propósito de construir uma realidade que não é a vivida cotidianamente, mas a que se pretende projetar fora da comunidade, como discute Novaes (2004, p. 12). Acharse-ia nesse procedimento, de acordo com a autora, uma das diferenças entre o cinema ficcional e o documentário ou etnográfico.

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Em ambos, no cinema ficcional e no documental, a realidade que se mostra não se confunde com a verdade. Há sempre uma mediação dos imaginários que abrem as portas para a construção do significado.9 A este cinema contemporâneo interessa menos marcar um território como um cinema brasileiro e muito mais dizer algo como expressão individual, e a partir de preocupações próprias, sobre a vida no país. Não é à toa que estes jovens cineastas, em sua grande maioria, mesmo os estreantes, afirmam nos letreiros iniciais: “um filme de…”, sintoma da necessidade de autoria ou de assumir a responsabilidade, para o bem ou para o mal, sobre que estão dizendo, em todos os seus aspectos. Um nome de um autor não é um nome próprio como os outros, nos diz Foucault. Esse nome carrega uma singularidade que não está nele próprio, mas naquilo que diz e no modo como diz, não é um discurso quotidiano, indiferente, um discurso flutuante e passageiro, imediatamente consumível, mas se trata de um discurso que deve ser recebido de certa

maneira e que deve, numa determinada cultura, receber um certo estatuto. (FOUCAULT, 2002, p. 45)

Um autor, desse modo, é identificado através de seu discurso.10 É este ou são estes que o carregam e que expressam um pensamento próprio, dentro de um universo de produção e de recepção discursiva que o reconhece como tal. Nessa perspectiva, a resposta à pergunta sobre como este cinema se apropria do que é a vida na metrópole se encaminha em direções variadas, na medida em que variadas são as formas narrativas construídas por esses filmes, cada um deles apontando para tipos distintos e particulares de representação imagética, postos como posicionamentos sobre o que é o cinema brasileiro em sua contemporaneidade. Um cinema que busca uma comunicação com o público sem deixar de lado a tentativa de construção de uma marca autoral, um lugar dentro da produção nacional que ultrapassa o alcance de sua bilheteria, mas também um cinema que diz algo sobre a vida na metrópole brasileira, tanto por narrá-la quanto pelo modo como monta essa narrativa.

9 O modo como se estabelece a relação entre produtor, imagem e espectador é, de todas as maneiras, plural, a partir do momento em que essa relação pode ser de distanciamento diante do que as imagens mostram, o que tornaria clara a afirmação de Godard sobre “isto é justo uma imagem”, ou pode, de outras maneiras e por ser imagem, ser considerada como uma representação, um duplo (Morin) ou mesmo uma reprodução do real. Essa discussão está em grande parte desenvolvida por Paulo Menezes no texto “O cinema documental como representificação”, publicado no livro Escrituras da imagem, organizado por Sylvia Caiuby Novaes et al. (2004). 10 Foucault usa o termo discurso para pensar a produção textual.

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Jeanne Marie Gagnebin,11 a partir de um trecho do texto Armários de Walter Benjamin, nos auxilia a pensar essa questão: O primeiro armário que se abriu por minha vontade foi a cômoda. Bastavame puxar o puxador, e a porta, impelida pela mola, se soltava do fecho. Lá dentro ficava guardada minha roupa. Mas entre todas as minhas camisas, calças, coletes, que deviam estar ali e dos quais não sei mais, havia algo que não se perdeu e que fazia minha ida a este armário parecer sempre uma aventura atraente. Era preciso abrir caminho até os cantos mais recônditos; então deparava com minhas meias que ali jaziam amontoadas, enroladas e dobradas na maneira tradicional, de sorte que cada par tinha o aspecto de um bolso. Nada superava o prazer de mergulhar a mão em seu interior tão profundamente quanto possível. E não apenas pelo calor da lã. Era “o trazido junto” (das Mitgebrachte), enrolado naquele interior que eu sentia na minha mão e que, desse modo, me atraía para aquela profundeza. Quando encerrava no punho e confirmava, tanto quanto possível, a posse daquela massa suave e lanosa, começava então a segunda etapa da brincadeira que trazia a empolgante revelação. Pois agora me punha a desembrulhar “o trazido junto” de seu bolso de lã. Eu o puxava cada vez mais próximo de mim até que se consumasse o espantoso: “o trazido 11

junto” tinha sido totalmente extraído do seu bolso, porém este último não estava mais. Não me cansava de provar aquela verdade enigmática: que a forma e o conteúdo, o envoltório e o envolvido, “o trazido junto” e o bolso, eram uma única coisa ― e, sem dúvida, uma terceira: aquela meia em que ambos haviam se convertido.

Dessa maneira, sob uma perspectiva análoga, pode-se considerar a narrativa da vida na metrópole como “o que é trazido junto”, o bolso como o filme e a meia como o que o cinema está nos dizendo, o que expressa, o seu pensamento, afinal. Narrativa e filme fazem parte desta terceira coisa que é esse posicionamento, esse imaginário que o cinema constrói. No mesmo texto, Gagnebin discorre sobre este trecho destacando que “a criança não descobre um segredo inefável dentro das meias e dos livros mas, muito mais, o avesso inseparável da superfície”. Para ela, no texto há uma crítica bem-humorada mas contundente à separação tão freqüente entre conteúdo e forma, interior e exterior, verdade e aparência. Esta partilha faz geralmente do “conteúdo” algo de profundo e de escondido sob uma forma indife-rente; a forma é desvalorizada como superficial ao mesmo tempo que se reserva o acesso à verdade a poucos iniciados.

Disponível em: . Acesso em: 05 fev. 2008, ou em BENJAMIN (1995). Gagnebin Nas Obras Escolhidas II. BENJAMIN, Walter. São Paulo, Brasilienses, 1995.explica que fez algumas alterações nesta tradução que se diferencia da publicada no volume editado pelaBrasiliense.

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A mão que penetra na meia-bolso assim o faz, continua com cuidado mas sem respeito exagerado, não para descobrir uma mensagem misteriosa e sagrada, mas para experimentar, para tocar de perto, para seguir com o dedo os contornos desta arquitetura íntima que une o fora e o dentro, o som e o sentido, o significante e o significado.

Essa discussão também é posta por Mikhail Bakhtin (1993) no primeiro capítulo de Questões de literatura e estética, quando trata do conteúdo, do material e da forma na criação literária. Segundo ele, “não pode ser destacado da obra de arte um elemento real qualquer como sendo um conteúdo puro, como aliás, realiter não há forma pura: o conteúdo e a forma se interpenetram, são inseparáveis…” (1993a, p. 36-37). O parâmetro de aproximação e abordagem das imagens tratados nesta tese se dá pelo viés da teoria do cinema e das ciências sociais. Aqui são analisadas imagens concretas, resultantes de seleções e cortes como modo de produção de toda e qualquer imagem, o que permite a configuração de uma experiência estética que restitui ao espectador/sujeito do cinema a possibilidade de defrontar-se com imagens de uma cidade

muitas vezes desaparecida sob sua própria imensidão, sob sua luz ou escuridão. Diante dessas imagens é possível discorrer, inferir e refletir em busca de sentidos que não são únicos, mas possíveis, uma vez que o objeto se abre de forma autônoma para leituras múltiplas. Considerado não apenas um produto cultural mas também comercial, um filme é resultado de um trabalho que envolve variados materiais e procedimentos, além de uma equipe numerosa, cujos membros atuam em diversas fases de sua realização. Isto ocorre em uma sociedade que traz para o processo questões relativas ao domínio tecnológico, à economia, à ideologia, às disputas políticas, entre outros elementos configuradores da dinâmica sociocultural. As imagens fílmicas colocam em pauta questões coletivas ou individuais, suscitam debates de caráter estético ou político, discussões que buscam apreender os seus significados. A metodologia de aproximação e análise partiu de uma postura fluida, tomando como condutor do trabalho a idéia, proposta por Walter Benjamin, de que se perder na cidade é o único modo de apreendê-la, método transposto para o filme, diante do qual é preciso livrar-se da história como único modo de aproximação, para perder-

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se nos detalhes, naquilo que compõe os seus planos, cenas e seqüências, buscando, para eles, significados que se sustentam tomando por base o filme como um todo, considerando que este todo é mais do que a soma de tais detalhes, mas que sem a presença destes não é nada. Ainda que não seja usual explicar um método de análise de um objeto tema de tese através de uma citação literária, é a esta que desejo recorrer aqui: um trecho de um diálogo entre Kublai Khan e Marco Polo, escrito por Ítalo Calvino, em Cidades invisíveis: Kublai perguntou para Marco: ― Você, que explora em profundidade e é capaz de interpretar os símbolos, saberia me dizer em direção de qual desses futuros nos levam os ventos propícios? ― Por esses portos eu não saberia traçar a rota nos mapas nem fixar a data da atracação. Às vezes, basta-me uma partícula que se abre no meio de uma paisagem incongruente, um aflorar de luzes na neblina, o diálogo de dois passantes que se encontram no vaivém, para pensar que partindo dali construirei pedaço por pedaço a cidade perfeita, feita de fragmentos misturados como o resto, de instantes separados por intervalos de sinais que alguém envia e não sabe

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quem capta. Se digo que a cidade para a qual tende a minha viagem é descontínua no espaço e no tempo, ora mais rala, ora mais densa, você não deve crer que pode parar de procurá-la. (1990b, p. 149)

O filme, como essas pequenas coisas que instigam Polo e que podem fazê-lo construir a cidade perfeita, é tomado através dessas minúcias que me levam a pensar nos seus significados dentro da estrutura maior. O que resulta dessa análise é outro filme, ainda que o mesmo, mas agora mediado pelo olhar do pesquisador. As palavras escritas neste texto levam ora para dentro do filme em busca da vida nele posta, ora para fora em uma tentativa de entender o que propõem as aberturas dadas por essas imagens. Desse modo, a análise e a discussão em alguns momentos seguem a linearidade da narrativa; em outros, os personagens em busca de traçar mapas afetivos; e em outros, situações que podem ser vistas, a partir de perspectivas diferentes como o que se aproxima ou, ao contrário, como o que se confronta. Para isso, foi necessário um olhar atento em busca dessas especificidades, sem perder, no entanto, o olhar para o todo. O que se coloca é um modo de encarar o filme como uma obra aberta porém completa, na qual os personagens e a própria cidade solicitam a

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mesma atenção, ainda que com tipos variados de abordagem. A procura de significados se concretiza como uma etnografia da cidade fílmica que traz para o primeiro plano detalhes e pequenos fragmentos. O que se pretende é ver e entender as ligações que se estabelecem entre sujeitos/ personagens e cidade a partir das as afirmações que o filme faz sobre ambos. A produção cinematográfica aqui é pensada como uma intervenção na própria realidade, como um produto cultural que revela um pensamento, uma postura sobre o que é a cidade e sobre o próprio cinema. As imagens são o foco, como parte de um todo que se realiza no filme e nas aberturas interpretativas que permitem. Como explica Casetti e Chirio, la práctica analítica tiene evidentemente que ver tanto con la descripción como con la interpretación. A primera vista, la descripción triunfa en la fase de la descomposición del texto, mientras que la interpretación emerge sobre todo en la fase de La recomposición de los datos. (1997, p. 24)

Este texto problematiza imagens. São estas a sua motivação e justificativa. Ele irá se estruturar e ampliar a partir da discussão de questões suscitadas pelas próprias imagens. A condição para o seu

desenvolvimento está no encontro entre o meu olhar e os filmes e no que resulta de importante dentro de uma perspectiva que considera um modo particular de ver os filmes. Esse encontro analítico é um encontro de segunda ordem na medida em que já houve outro, o da encenação dos atores para a câmera. Aqui é possível recorrer a Marc Henri Piault (in ECKERT; MONTE-MÓR, 1999, p. 29), para quem o momento de registro imagem-som é menos um método de abordagem e de recolhimento de dados do que uma abordagem-conhecedora, um processo cognitivo.12 Esse processo cognitivo, visto como uma experiência que se vale não somente pelo que mostra e como mostra, mas também pelo que provoca entre seus espectadores, é o que nos instiga a pensar e nos inclui como artífices de um universo que se expande a cada nova interpretação (MANGUEL, 2001). Cada um desses filmes traz as suas próprias questões e afirmações, exigindo uma análise que se estenda para as direções por eles propostas. Tomou-se como medida objetiva a decomposição fílmica, trazendo para a discussão sua forma e seu conteúdo, buscando diferenças e semelhanças entre as produções analisadas de modo a se identificar posicionamentos sobre cidades tão distintas

12 Essa discussão se dá no âmbito da antropologia audiovisual.

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quanto Rio de Janeiro e São Paulo, Recife e Porto Alegre.13 A cidade no cinema é a cidade do filme, composta de acordo com o que a tecnologia de produção de imagens permite, passando pela forma da representação desejada pelo cineasta e por sua equipe de produção, dentro de uma gramática que aproxima distâncias, prolonga o tempo e se afasta da percepção natural do sujeito que a usufrui. Os filmes, nesse contexto, são uma experiência física, como afirma Jameson, “e como tal são lembrados, armazenados em sinapses corpóreas que escapam à mente racional” (1994, p. 1). Esses filmes que constroem um discurso sobre a metrópole brasileira segundo perspectivas próprias a cada um dos diretores são recontados por este texto que transforma imagens em palavras. Alguns outros conceitos-chave servem como guias para a discussão. Entre eles o de ambiente urbano, como proposto por Giulio Carlo Argan (1998) em texto de 1969 – Urbanismo, espaço e ambiente –, em substituição ao de espaço urbano. A diferença entre os termos está em que o espaço urbano é resultado de um projeto estruturado dentro de um racionalismo que considera a necessidade de organização,

divisão, subdivisão e distribuição do espaço, enquanto o termo ambiente urbano “não admite, evidentemente, nenhuma definição racional ou geométrica” e se concretiza “em um conjunto de relações e interações entre a realidade psicológica e a realidade física” (1998, p. 216). Na cidade, o que o homem cria adquire visibilidade, torna-se marca da civilização, modelo a ser seguido ou recusado. Nesse ambiente, as relações sociais se concretizam também através de intervenções materiais muito ou pouco duráveis, caracterizando um perfil de cidade mais ou menos amigável. Nas metrópoles, as diferenças se revelam explodindo em confrontos ou em laços de solidariedade. O que não é possível afirmar, em momento algum, é que seja um lugar tranqüilo e pacificado. “Na cidade, sociedade e natureza, representação e ser são inseparáveis, mutuamente integradas, infinitamente ligadas e simultâneas, essa ‘coisa’ híbrida sociocultural chamada cidade é cheia de contradições, tensões e conflitos”, afirma Swyngedown (in ACSELRAD, 2001, p. 84). Ainda entre os que consideram a cidade como um espaço vivo e pouco domável está Aldo Rossi. Segundo ele, desde as primeiras

13 Rio de Janeiro e São Paulo são, tradicionalmente, os maiores pólos de produção cultural do país. No entanto o Nordeste, em especial Pernambuco, tem ocupado regularmente as telas de cinema, mas ainda com temáticas centradas no homem do sertão, como Baile perfumado (1997) de Lírio Ferreiro e Paulo Caldas, Eu, tu, eles (2000) de Andrucha Waddington, e Cinema, aspirinas e urubus (2005) de Marcelo Gomes.

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construções havia um objetivo: o de criar “um clima favorável” à vida, o que lhes dava uma “intencionalidade estética” (2001, p. 1). A cidade, dessa forma, não se separaria dos seus homens, estando a eles ligada tanto funcional quando simbolicamente. Seus contornos, objetivos e/ou subjetivos, são estabelecidos em função dos interesses e desejos de quem a constrói e de quem a habita. Não necessariamente isto ocorre sem enfrentamentos e essa história se faz com inúmeras mediações. É essa a concepção de cidade que se encontra nesses filmes, o que justifica a proposta de considerá-los com base para uma leitura que tome essas imagens como mediações ou, dizendo de outra maneira, como posicionamentos sobre a vida na metrópole. É importante ressaltar que não se trata de uma discussão sobre se o que o filme traz é a realidade, mas sobre o que se tornou visível.

Capítulos O campo teórico deste trabalho se alia a autores cuja atitude é a de procurar nas entrelinhas dos seus objetos pistas e indícios que os tornem melhor compreendidos. Walter Benjamin e Georg Simmel são as principais referências, tanto pela leitura que fazem da metrópole, mesmo que sobre a

metrópole européia – e Benjamin ainda do cinema –, quanto pelo tipo de escrita. Tratase aqui não de transpor mecanicamente o que eles escreveram, mas de identificar elementos que podem ser considerados como estruturais à vida nesse ambiente e que, ao invés de terem arrefecido, se intensificaram na cidade grande contemporânea. Benjamin traz a memória afetiva, expõe generosamente o seu pensamento através de fragmentos que se multiplicam em leituras e interpretações que não se fecham, um texto vivo capaz de atualizar-se cada vez que é acessado, como um patchwork que se monta dia a dia com pedaços do que aparentemente não teria nenhuma utilidade. Gagnebin,14 ao responder sobre o método de trabalho do filósofo alemão com base na pergunta “Por que um mundo todo nos detalhes do cotidiano?”, esclarece que esta questão remete a um dos aspectos mais instigantes do pensamento benjaminiano: à importância dos detalhes, dos objetos e dos costumes cotidianos, das coisas pequenas que passam desapercebidas de tão familiares que são; também à importância dos restos, dos resquícios, daquilo que, geralmente, é rejeitado como detrito ou lixo. Esta significação do insignificante, Benjamin a encontra no cruzamento dos caminhos, aparentemente opostos, do surrealismo e do marxismo.

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Disponível em: . Acesso em: 05 fev. 2008, ou em BENJAMIN (1995). Gagnebin Nas Obras Escolhidas II. BENJAMIN, Walter. São Paulo, Brasilienses, 1995.explica que fez algumas alterações nesta tradução que se diferencia da publicada no volume editado pelaBrasiliense. 35

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Esse apreço pelo aparentemente insignificante presente neste trabalho quer, de alguma forma, se aproximar dessa postura benjaminiana quando se volta para objetos e situações fílmicas que, de modo sutil, vão construindo a narrativa, como pequenas partes que a confirmam sem necessariamente chamar a atenção sobre si. O primeiro contato com cada um dos filmes ocorreu na sala de cinema, em uma situação que misturou a fruição estético-narrativa com uma reflexão – ainda incipiente – sobre como o cinema contemporâneo brasileiro vinha se apropriando da cidade. A aproximação analítica se deu, então, do macro para o microuniverso. Macro na perspectiva do filme como um todo, micro na medida em que os detalhes passaram a ser fundamentais nesta análise. Se Walter Benjamin nos auxilia no método, Georg Simmel15 traz a descrição de uma vida que, pelas linhas de força que estruturam a metrópole, vai assumindo traços reveladores de um tipo de distanciamento do mundo ao seu redor, como se o sujeito metropolitano estivesse protegido por uma bolha imaginária que o preserva das solicitações e das agitações e o instrumentaliza a negociar e viver em um mundo onde o dinheiro torna-se a sua principal ferramenta de mediação social, cultural e política, uma vez que a econômica é óbvia:

Na medida em que o dinheiro compensa de modo igual toda a pluralidade das coisas; exprime todas as distinções qualitativas entre elas mediante distinções do quanto; na medida em que o dinheiro, com sua ausência de cor e indiferença, se alça a denominador comum de todos os valores, ele se torna o mais terrível nivelador, ele corrói irremediavelmente o núcleo das coisas, sua peculiaridade, seu valor específico, sua incomparabilidade.

Essa indiferenciação dada pelo aspecto monetário da sociedade é interrompida pelo próprio Simmel, que, no seu trabalho intelectual, segundo Leopoldo Waizbort (2000), tratou não só de temas caros à sociologia, à filosofia, à economia, à psicologia, à história e à estética, como o fez de um modo original e rico em nuanças. Ele se voltou para o esperado e convencional, como a guerra, a dominação, o grupo, o conflito, os círculos sociais etc., mas também para o inesperado e pouco convencional como a ponte, a moldura, a aventura, a ruína, a asa do jarro ou xícara, o estranho, a prostituição, entre outros (WAIZBORT, 2000). A abertura propiciada por estes dois autores deu ao texto características ensaísticas, o que o torna mais subjetivo, menos sistemático,

15 SIMMEL, Georg. As grandes cidades e a vida do espírito (1903). Mana , Rio de Janeiro, v. 11, n. 2, 2005 . Disponível em: . Acesso em: 13 fevFeb. 2008.

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mais leve e de certa forma intuitivo, ainda que não possa deixar de contemplar a dimensão acadêmica de construção própria a um trabalho com pretensões a se apresentar como uma tese de doutorado. Com Simmel e Benjamim vieram Edgar Morin, Michel de Certeau, Tzvetan Todorov, Marc Augé, Roland Barthes, Erving Goffman, Norbert Elias, Guy Debord e outros mais. Todos teóricos voltados para uma vida mais cotidiana, que por isso mesmo exige um olhar mais atento. Da teoria do cinema, são presenças marcantes Jacques Aumont e Noel Burch, que ajudaram a pensar a dinamicidade do quadro cinematográfico; Pierre Sorlin, com a sua sociologia do cinema, e Pierre Francastel. A discussão sobre a imagem perpassa todo o texto: em alguns trechos de modo mais explícito, em outros mais diluído, no entanto, em nenhum momento ela deixa de se fazer presença. A organização dos capítulos segue uma mesma ordem, dividindo-se em algumas seções que se repetem em todos eles. A primeira seção apresenta os filmes a partir de sua recepção na imprensa – jornal diário ou mídia especializada. O objetivo aqui é explicitar algumas das reações da crítica, além de introduzir questões de natureza

estética pertinentes a este início da discussão sobre cada um dos filmes. A segunda seção trata da história, ou melhor, procura contar a história filmada. Uma terceira seção, que aparece ainda em todos os capítulos – com tantos itens quanto se fizeram necessários –, traz os elementos estéticos definidores de traços específicos a cada um dos filmes. Aqui entram em discussão a textura da imagem, montagem, narrador e narrativa, voz, entre outros aspectos. O único filme que não tem essa seção definida como um item de capítulo é o longametragem de Marcos Bernstein, O outro lado da rua, por apresentar uma decupagem clássica, como um procedimento que se assenta sobre a naturalização16 da narrativa e sobre a ação dramática dos atores. Esse tipo de gramática cinematográfica, de acordo com Ismail Xavier, utiliza os procedimentos fílmicos disponíveis a qualquer cineasta em busca de criar, no nível sensorial, uma continuidade que torne invisível os procedimentos adotados na construção do espaço-tempo da narrativa. “Assim afirmase um sistema de ressonâncias, onde um procedimento completa e multiplica o efeito do outro” (XAVIER , 1984, p. 25). Por último, encerrando todos os capítulos, uma discussão sobre os conceitos identificados

16 O cinema considerado naturalista, como foi convencionado pela gramática grifithiana e pela maior parte da produção norteamericana, monta suas imagens de um modo em que os procedimentos fílmicos sejam cuidadosamente escondidos em busca de permitir essa identificação entre personagem/herói e espectador.

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mediante o estudo analítico e interpretativo da cidade e de como a vida se manifesta através dos personagens. Esses conceitos dão nome não só às sessões conclusivas de cada uma das discussões mas também a cada um dos capítulos que estruturam a tese: “A cidade virtual”, “A cidade à (ou na) deriva” e “Cidade-corpo”. O primeiro capítulo – “A cidade virtual” – reúne em um mesmo bloco O invasor e O homem que copiava, decisão que se justifica em função da idéia de que a metrópole, nessas imagens, adquire traços de virtualidade, concebida aqui como um devir, um tornar-se outro ativado pelo diálogo que os protagonistas estabelecem com a cidade. Nos filmes em questão, esse conceito deixa de lado a concepção de cidade virtual como uma situação instaurada pelas tecnologias digitais de informação, com capacidade para retirar o sujeito da cidade e configurar uma realidade auto-suficiente e autônoma, podendo quase prescindir da fisicalidade dos corpos e das cidades. A virtualidade aqui está posta como algo que se manifesta como uma potência, a partir, exatamente, das relações que se estabelecem entre a metrópole e os personagens, relações estas capazes de trazer uma cidade surpreendente e desconhecida, porém material e presente.

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De um modo mais detalhado, a tese se estrutura da seguinte maneira: o primeiro capítulo, além da abertura inicial já explicada anteriormente, se divide em duas grandes partes em que cada filme é discutido de modo particular. O invasor se apresenta em oito itens. O primeiro deles, “A história”, é seguido por dois outros – “O grão da imagem” e “O coro” – que tratam, respectivamente, da plasticidade fotográfica com características de textura e da música funcionando como o coro do teatro grego; “A cidade” identifica elementos gerais caracterizadores do ambiente em relação à narrativa. Neste caso, vem dar conta de uma metrópole contaminada pela crise éticoexistencial do protagonista. O quinto item, “Cidade sem limites”, refere-se a uma metrópole que extrapola os limites da narrativa, surgindo sobre os créditos e fazendo-se, desde aí, presente através de seus ruídos. Essa falta de limites é patente também na sua dimensão física, que parece impossibilitar qualquer tentativa de cobertura de seu território. “Nas quebrada” traz a periferia de São Paulo como um lugar aonde o ritmo acelerado da urbanidade ainda não chegou, o que lhe confere uma quietude e a experiência de uma temporalidade que se estende. “Grafias urbanas” trata da comunicação visual nas áreas de periferia inseridas no filme através do que Michel de

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Certeau (1994) chamou de táticas, como os modos de apropriação do espaço que revelam uma ação microscópica e intensa em busca de um lugar na sociedade. Por último, “Segredos públicos” se volta para a rua como o lugar do segredo e da trama, um espaço que se tornou afinal seguro, livre de curiosos porque sem pedestres, todos dentro de seus carros e distanciados da experiência urbana vivida no corpo-a-corpo.

abordagens: uma de caráter ficcional e outra, documental. Este trânsito é pensado como uma situação de deriva, como um percurso que se conforma de modo afetivo, a partir das possibilidades de deslocamento pedestre em uma metrópole com força suficiente para atrair a câmera para fora da narrativa. Estar à deriva é deixar-se levar pelo que na cidade adquire significado com base em uma experiência pessoal única e intransferível.

O homem que copiava, por sua vez, tem a sua discussão dividida em seis itens. O segundo, “Sobre a voz polifônica” – que sucede “A história” –, discute a voz dentro do contexto fílmico como um elemento que situa a narrativa, estabelecendo uma espécie de realidade paralela que muitas vezes é contradita pelas imagens. O terceiro – “A cidade” – se volta para a cidade como um personagem a contracenar com o protagonista, argumentação que é aprofundada nos subitens “A personificação do ambiente urbano” e “A síndrome do pânico”. O último item – “Dinheiro” – trata do dinheiro como elemento definidor da saga dos personagens.

Após a contextualização da recepção pela imprensa em “Um filme desruptivo” e do resumo da história ― que, neste caso, são histórias ―, “A uma distância segura” debate o modo como as imagens são construídas a partir de um posicionamento distanciado e cuidadoso que recusa qualquer tipo de envolvimento com aquilo que mostra. Belas imagens para uma realidade não tão bela.

O segundo capítulo – “Cidade à (ou na) deriva” – analisa Amarelo manga. Um filme difícil e rico em proposições; a mais árida e mais trabalhosa das discussões. Nele a cidade é apreendida a partir de duas

“A cidade” discute o olhar e a necessidade de reconhecimento que transparece nesse filme como o seu objetivo precípuo. “O lar avenida” volta-se para uma das locações mais importantes do longa-metragem, o bar de Lígia (Leona Cavalli), uma parte da metrópole freqüentada por miseráveis urbanos que buscam ali um momento de lazer ou de afirmação de sua existência. “Os párias somos nós que vivemos em ruínas…” e “Nas ruas da deriva anônima” se voltam para os anônimos que ocupam

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silenciosamente a cidade, vivendo nas suas ruínas urbanas como exilados dentro de seu próprio país, trabalhando de sol a sol para manter a esperança viva. A cidade irradiada anuncia uma cidade genérica e escandalosa que não diferencia mais os protagonistas de suas histórias, indivíduos sem nome e sem identidade. “Ao rés do chão” flagra os personagens em seus trajetos dentro da cidade, caminhantes que se apropriam dos seus espaços, inseridos no ambiente que lhes é familiar e próximo. Por último, fechando a discussão, o item referente ao conceito de deriva como o que qualifica este Recife do filme de Cláudio Assis. O terceiro e último capítulo, “Cidade-Corpo”, discute O outro lado da rua. Um filme pouco comentado e alvo de algumas críticas não muito favoráveis em razão, exatamente, da sua estrutura clássica já antes aqui referida. O longa-metragem de Bernstein centra a sua narrativa na protagonista Regina (Fernanda Montenegro) e nas suas aventuras no bairro de Copacabana, no estado do Rio de Janeiro. O modo como se constrói a ligação entre essa personagem e a cidade permitiu que se considerasse a idéia de que há uma relação quase simbiótica entre elas. Isso também tornou possível pensar a metrópole como uma espécie de tradutora dos sentimentos e das sensações da protagonista solitária.

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O capítulo se divide então em seis grandes itens. O primeiro e o segundo trazem, como os demais, o contexto dado pelas críticas e a história; o terceiro – “Cidade” – afirma a cidade como tradutora dos estados de espírito da protagonista, estando mulher e ambiente urbano em uma mesma sintonia ― não que isto queira significar equilíbrio ou harmonia, ao contrário, ambas se modificam trazendo desespero, tristeza e falta de perspectiva às imagens. Em “A pequenez do sujeito urbano” está uma metrópole que se agiganta horizontal e verticalmente transformando o indivíduo em um ponto anônimo perdido em sua imensidão. Em “Da monótona casa à aventurosa rua” se discute o tédio e a solidão infligidos às pessoas que não encontram mais lugar na sociedade em razão de pura e simplesmente terem envelhecido. As ruas, no contexto deste filme, se apresentam como a possibilidade de fuga dessa situação que imobiliza e segrega os adultos com mais de sessenta anos. Para encerrar este último capítulo, a discussão da “Cidade corpo”, em que se desenvolve uma escrita sobre o ambiente urbano a partir da confluência entre sujeito/ personagem e a metrópole, como uma via de mão dupla. Aqui é preciso esclarecer que não se trata de pensar a cidade como corpo,

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metáfora orgânica proposta no século XIX como uma forma de encarar e intervir sobre ela, mas de considerar o corpo como o que significa com base não só na relação que estabelece com o lugar onde vive, mas também como o que atribui significado a toda estrutura urbana, a partir exatamente do que os aproxima.

Cidade e cinema: aproximações estético-conceituais A cidade neste trabalho é considerada, ao mesmo tempo, como forma e símbolo (MUMFORD, 2004). Produto cultural, resultado da ação do homem sobre a natureza e da repercussão dessa ação sobre ele. Tudo o que nela acontece afeta o homem e vice-versa. Nada que diga respeito a um é estranho ao outro. (GOITIA, 1992). Nada que se diga sobre a cidade pode ser facilmente descartado, uma vez que isto significa também falar sobre os que nela moram. Um filme, uma obra literária, um programa televisivo, uma imagem, uma matéria de jornal, tudo que a ela se refira está também se reportando a sua gente. Esta gente, gostando ou não, concordando ou não, encontra nessas representações algo de si próprio, e nelas se vê mesmo que em fragmentos.

Uma metrópole é um ambiente multifacetado, onde miséria e riqueza adquirem níveis de desigualdade palpáveis, um ambiente traduzido cotidianamente pelos modos como é apropriado e ressignificado por seus habitantes, numerosos sujeitos, desconhecidos e estranhos entre si. Cidade concreto, cimento armado, formigueiro de gente, deslocamento ininterrupto que a transforma em um emaranhado de linhas que não cessam de se cruzar, configurando um labirinto sem fim e sem começo, tecido social complexo cujos significados se constroem e se reconstroem diariamente. Martín-Barbero destaca que pelo menos quatro processos estão modificando a configuração da cidade. São eles: a explosão espacial que acaba com os limites entre as grandes cidades e as que lhes são periféricas, gerando “conurbações gigantescas”; a variedade de estruturas habitacionais “que desfazem e refazem as formas de sociabilidade, transformando o sentido do bairro e a função dos espaços públicos”; o processo de estandardização dos usos das ruas e, por fim, a “destruição ou (res) significação do centro e dos territórios e lugares-chaves de uma memória cidadã” (1997, p. 208). Quaisquer que sejam as conseqüências, uma coisa é certa: não há uma cidade que não se modifique todos os dias, não só na

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sua forma concreta, mas também no modo como é sonhada ou imaginada. São várias as narrativas em torno da cidade, mas de algo não se pode fugir: uma cidade se faz da interação entre seu espaço modificado e pela população que lhe dá vida. Arquitetura pensada como “construção da cidade no tempo (…) como uma criação inseparável da vida civil e da sociedade em que se manifesta”, sendo uma atividade, “por natureza, coletiva”, como propõe Aldo Rossi (2001, p. 1). No seu “Vocabulário de Cultura e Sociedade”, Raymond Williams (2007) explica que era urbs e não civitas a palavra latina referente ao que se entende hoje como cidade moderna. No decorrer do processo histórico, civitas, que designava um conjunto de cidadãos, passou a servir para identificar a principal cidade de um Estado. Somente no século XIX, a partir das mudanças provocadas pela Revolução Industrial no século anterior, é que a cidade passou a ser entendida como um assentamento com características próprias, “sugerindo um modo totalmente diferente de vida”. Williams chama atenção para a “crescente abstração de cidade17 como um termo relativo a lugares ou formas administrativas específicas, e na crescente generalização das descrições da vida urbana moderna em grande escala” que acontece a partir do século XIX (2007, p. 77). 17 Negrito do autor.

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No contexto de formação dessa cidade grande, o movimento se coloca não só como imperativo, mas também como uma experiência cheia de surpresas, à medida que traz um mundo que se amplia e, de certa forma, se especializa regido por razões mercantis e produtivas. A cidade, ela própria, se torna mercadoria. As obras públicas transformam seu território em objeto de valor comercial (MUMFORD, 2004). As ações de melhoria encarecem e a dividem segundo critérios monetários, onde os menos abastados vêem-se excluídos dessas regiões que vão se enobrecendo. Se o espaço cresce e as distâncias aumentam, andar não é mais suficiente e as ruas se transformam, num primeiro momento, em vias de fluxo de veículos a tração animal; depois, em espaço para a velocidade dos motores a combustão. Essas vias, sob a ditadura do fluxo, se tornam corredores de passagem, criando uma nova realidade construída sob a égide da economia de tempo em relação à distância percorrida. O tráfego gerado pela cidade comercial era tão formidável que, ainda no século XIX, em Nova Iorque, eram comuns engarrafamentos do trânsito, e crescia a demanda de modos mais rápidos de transporte público. (…) A distância que se podia cobrir a pé já não estabelecia os limites do crescimento da cidade. E todo o ritmo da ampliação urbana foi aumentado, já que não se tratava mais de avenida a avenida,

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ou de quarteirão a quarteirão, mas de via férrea a via férrea e de subúrbio a subúrbio, estendendo-se em todas as direções, a partir do distrito central. (MUMFORD, 2004, p. 465)

A capacidade de deslocamento dos corpos, potencializada pela força dos veículos, implica um situar-se em um espaço que parece perder seus limites. O olhar assume a urgência que é dada pela variação do que passa diante da vista. Esse novo tempo de apreensão visual, que se estabelece através da janela do trem no final do século XIX, encontra no campo das imagens cinematográficas uma espécie de universo paralelo. Até então nenhuma tecnologia de produção de imagens havia estado tão alinhada com o que acontecia na vida cotidiana de qualquer indivíduo exposto às mudanças que ocorriam na sociedade industrial do mundo ocidental, particularmente na Europa. Dentro dos vagões ou diante de um filme, o tempo e o espaço assumiam novos significados, configurando novos posicionamentos e práticas tanto no campo do fazer diário quanto no campo da experiência estética. Essa experiência simulada pela imagem em movimento se torna mais impressionante quando a câmera se põe, ela também, a se mover com

a descoberta do travelling, mas também com a possibilidade da montagem que recorta o espaço e o tempo. A experiência sensória dada pelo cinema e pelo deslocamento em velocidade implode a ordem tradicional, antes centrada na capacidade corporal de superação de um espaço em função de um tempo individual traduzido pelo esforço físico necessário para tal deslocamento. A partir de então a força motriz estava em outro ponto, no engenho do veículo ou na engrenagem do cinematógrafo. Ambos se encarregam de propor outros espaços e outros tempos, ambos alteram a relação do sujeito com o mundo. Se o trem possibilita o contato direto com o diferente, colocando frente a frente desconhecidos, o cinema anuncia essas diferenças, inventa situações, estabelece contatos imaginários. Trem e cinema transportam e o imaginário se amplia, enquanto o tempo e o espaço encolhem. Viajante e espectador se vêem deslocados, mas também invadidos pelo que surge durante a ou ao fim da viagem. Ao caráter coletivo do trem corresponde a exibição de filmes em circos e salas de espetáculo para os inúmeros trabalhadores. Em ambas as situações, a experiência é compartilhada por sujeitos que não se conhecem. Como parte de um show de

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variedades, um cinema de atração onde pequenos esquetes demonstram a capacidade da máquina de reproduzir o movimento em uma imagem tão realista quando a própria realidade. É essa possibilidade que fascina George Meliés18 quando pela primeira vez se defronta com as imagens de cinema: “… um cavalo puxando um caminhão se pôs em marcha em nossa direção, seguido de outros veículos, depois de pedestres, enfim, toda a animação da rua”, diz entusiasmado (in TOULET, 2000, p.15).

tecnologias de comunicação que possibilitam experiências de tempos sobrepostos ou simultâneos e exigem, por sua vez, uma postura maleável e fluida diante desses outros ritmos intensos e voláteis e da profusão de imagens produzidas por tais tecnologias. A metrópole contemporânea, ela própria, se tornou imagem. Câmeras ocupam as esquinas como garantia de segurança e de manutenção do fluxo, controlando os deslocamentos, seguindo a todos com seus olhos vigilantes. Como anuncia Paul Virilio,

A metrópole torna-se matéria-prima19 das mais ricas para essa invenção moderna. Nela se materializam os valores propostos pelo projeto moderno, baseado na organização racional e na valorização da tecnologia como motor do progresso industrial capitalista. Tudo na cidade se movimenta, tudo flui. O que nela ocorre não só pode como deve estar no cinema, imagem que reproduz o movimento. A dinamicidade e a aceleração da vida urbana parecem destinadas a figurar nas imagens fílmicas.

Efetivamente, a câmera nos permite hoje assistir, ao vivo ou não, determinados acontecimentos políticos, certos fenômenos óticos, fenômenos de fratura nos quais a Cidade se deixa ver como um todo, fenômeno de difração, também, em que a imagem da Cidade repercute para além da atmosfera, até os confins do espaço, isto tudo no momento em que o endoscópio e o scanner tornam visíveis os confins da vida. (1993, p.14)

Passado mais de um século de sua invenção e/ou formação, tanto o cinema quanto a metrópole adquirem novos significados, colocados em paralelo com um mundo virtual em expansão graças ao desenvolvimento das

Essa cidade se mostra nos filmes humanizada – mas não necessariamente generosa – pelos personagens que nela transitam. Ela aparece como sujeito e objeto de desejos dos mais variadas matizes. Atua como protagonista,

18 Apesar de se mostrar fascinado com a possibilidade de ter a “animação da rua” diante de si, Meliés viu no cinematógrafo a possibilidade de criar um mundo imaginário onde o sonho e a fantasia fossem a sua matéria-prima. 19 Os filmes de atualidades traziam imagens de grandes acontecimentos políticos e sociais que ocorriam nas grandes cidades; assim como os primeiros filmes dos irmãos Lumière.

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lugar único e único lugar onde essas narrativas podem acontecer. O espectador reconhece nessas imagens territórios conhecidos ou imaginados, a eles agrega valores e significados e, finalmente, estabelece relações que identificam não somente o que está sendo representado, mas também o filme como parte de uma cinematografia com características próprias. O que a imagem produz? Entre todas as respostas possíveis, a mais adequada talvez seja proximidade.20 Ela traz para perto o que está distante ou o que está fora de nós. Aproxima o que transcende, o sagrado, o profano, o que se percebe e o que passa despercebido. Flagra e destaca o invisível, tornando-o visível. Nessa operação de visibilidade, recorta e deixa de fora o que não se tornou imagem, mas que ainda assim a constitui, como o que a contorna e a complementa: o infinito. A pintura traz o gesto do pintor, concretiza sua imaginação, a fotografia registra a cena no seu tempo presente, o cinema em sua duração. A televisão pode trazer o presente, o ao vivo. As imagens produzem realidade, prometem, indicam, desviam caminhos, dirigem o olhar e podem enganar. A querela entre iconófilos ou iconólatras e iconoclastas, aparentemente de lados opostos, traz um único imaginário sobre

o significado da imagem. Os primeiros a cultuam, encontrando em seus ícones a figura de Deus. Os iconoclastas a destroem pela mesma razão: ela é perigosa e não pode substituir Deus. O relato bíblico sobre o bezerro de ouro é exemplar. Tendo Moisés demorado a voltar do Monte Sinai, o povo de Israel, se sentindo sem direção, pede a Arão que faça um deus que lhe sirva de guia: o bezerro de ouro. Ao saber dessa obra, Deus, enraivecido, manda Moisés de volta com a missão de destruí-la. O poder atribuído à imagem fica claro nesta narrativa. Guia e fonte de pecados, poderosa a ponto de fazer Deus se contrapor ao povo que havia libertado. Essa imagem é um duplo. O duplo é, efectivamente, essa imagem fundamental do homem, imagem anterior à íntima consciência de si próprio, imagem reconhecida no reflexo ou na sombra, projectada no sonho, na alucinação, assim como na representação pintada ou esculpida, imagem fetichizada e magnificada nas crenças duma outra vida, nos cultos e nas religiões. (MORIN, 1970, p. 34)

A ameaça posta pelo bezerro está nessa sua característica de ser ou querer ser o duplo de Deus. Se não fosse por isto não teria o significado a ele atribuído de mediador entre o homem e o sagrado. Deus recusa a imagem concreta como sua representação,

20 Aqui podemos nos referir livremente tanto à imagem técnica quanto à imagem mental.

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dispensa mediação. Mas, segundo Baudrillard, os adoradores de imagem foram os mais aventureiros e modernos, isto por representarem nas suas imagens não só o nascimento e a existência de Deus, mas também a sua desaparição. “Por trás do barroco das imagens esconde-se a eminência parda da política”, afirma (1991, p.12). Mesmo atribuindo um caráter político a alguns tipos de imagens, sobre as quais são construídos discursos que não raro buscam a manipulação dos incautos, o homem sonha, tem alucinações, se vê em seu reflexo, na sua sombra, nas suas fotografias. Ele constrói imagens que podem ser apaziguadoras ou agressoras do mundo. Morin, recorrendo a Sartre, conclui que “a imagem é uma presença vivida e uma ausência real, uma presença ausência” (1970, p. 32). Por seu caráter subjetivo-objetivo, pode tornar-se mais objetiva do que a própria realidade. Imagem espectro, Hamlet diante do fantasma do pai morto, a fotografia de uma pessoa querida, a lembrança de alguém distante, imagem da morte. Imagens que chegam e que, pela força que carregam, podem substituir a realidade. Tornadas símbolos, elas são alvo de sentimentos dos mais complexos e variados; impregnadas de significados, sobre elas projetam-se imaginários que se ampliam de

modo intenso e muitas vezes passionais.21 Imagem-recordação dos álbuns de família cuidadosamente organizados e narrados; imagem-índice sobre a qual se inscreve uma prova; imagem-reflexo, conflituosa quando desestabiliza a relação que mantenho comigo mesmo, pacificadora quando afirma o desejado. Na luta contra a morte e o esquecimento, a imagem surge como aliada. O corpo embalsamado dos egípcios, a estatuária ainda tão em voga nas sociedades totalitárias, os retratos pintados dos reis e rainhas, a fotografia presidencial. Em qualquer situação o duplo se faz presente e “o mundo das imagens desdobra incessantemente a vida” (MORIN, 1970, p. 40). A invenção da fotografia aprofundou essa relação. Reprodução mecânica, aparentemente dispensava o aparato subjetivo impresso nas pinturas. A riqueza gestual do pintor foi substituída por uma única ação – o clique sobre o obturador – capaz de apreender a realidade de uma forma muito mais fiel e objetiva. O olho e a mão na mesma velocidade, em uma associação íntima e simultânea, não só capturando o mundo, mas reproduzindo-o tecnicamente. Índice e ícone, testemunha da vida e da morte, a fotografia libera a pintura desta tarefa (BAZIN, 1991). No entanto, de objetiva a fotografia não tem nada.

21 O protagonista de O homem que copiava sabe desse seu poder e lida com a imagem de uma forma que ao mesmo tempo em que a utiliza a seu favor, sabe de seu caráter ilusório. Ele reproduz imagens, duplica o que já é duplicação.

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A visão se adianta, deixando os outros sentidos para trás. O olho aponta, alcança, seleciona e exige que o sujeito responda no mesmo ritmo, sem vacilações ou dúvidas. Mas se a mão e a máquina, nesse momento, respondiam ao tempo da visão – já acelerada –, hoje é possível afirmar que a produção de imagens pode ter superado em muito não só a potência do olhar como também a imaginação, quando os meios de comunicação se antecipam e constroem eles mesmos as imagens com que se podia sonhar. Como o camundongo Mickey que, nas palavras de Benjamin, “é uma existência cheia de milagres, que não somente superam os milagres técnicos como zombam deles” (1994b, p. 118). Arlindo Machado, em mapeamento desta polêmica histórica sobre a imagem afirma que se parte considerável do mundo intelectual ainda se encontra petrificada na tradição milenar do iconoclasmo, parte também considerável do mundo artístico, científico e militante vem descobrindo que a cultura, a ciência e a civilização dos séculos XIX e XX são impensáveis sem o papel estrutural e constitutivos nela desempenhado pelas imagens (…). Essa segunda parte da humanidade aprendeu não apenas a conviver com as imagens, mas também a pensar com as imagens e construir com elas uma civilização complexa e instigante. (2001, p. 32)

Com o desenvolvimento das tecnologias, multiplicam-se os cliques digitais transformando luz e sombra em sínteses numéricas, abertas para variações não só de quantidade como também de qualidade, produzindo imagens que muitas vezes nunca serão vistas e/ou que, após inúmeras interferências matemáticas, perderão qualquer elo com o objeto fotografado. Alguns cineastas têm colocado em pauta o papel da visão no processo de produção da imagem. Wim Wenders, em O céu de Lisboa (Lisbon Story, 1994), traz um engenheiro de som em busca do amigo que fazia um filme na cidade. Esse amigo desapareceu, foi à procura da imagem pura, da imagem nunca vista, tomada sem a participação do olhar. Se para o personagem ausente de Wenders a câmera deveria andar pela cidade apreendendo o acaso como resultado de uma atitude, para o engenheiro são os sons que interessam. É a imagem mental composta por eles que dá vida a um filme que ainda não existe. Woody Allen, em Dirigindo no escuro (Hollywood Ending, 2002), testa a possibilidade de fazer um filme mesmo estando cego. E como se não fosse suficiente, seu diretor de fotografia é um chinês que não fala inglês. Confusão de línguas, impossibilidade de denunciar seu estado sob pena de perder o trabalho e, no meio de tudo, a pressão dos produtores, além

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dos acidentes decorrentes de sua cegueira temporária, deixa a situação do protagonista cada vez mais complicada. Neste caso, a visão aparece, em uma primeira conclusão, como indispensável quando o diretor, finalmente curado, comenta que nunca viu nada tão ruim. Crítica e público concordam e o filme é um fracasso. Na França, no entanto, a opinião é outra. Diferentemente dos americanos, os franceses o consideram uma obra-prima.

Nenhuma das nossas cidades analisadas são as cidades reais, mas imagens poéticas resultantes de um olhar cuja intenção é falar sobre elas. Essa imagem material se pode prescindir, na sua feitura, da visão, como ocorre nos filmes de Wenders e Allen, só se realiza de modo completo quando é vista. É a partir desse encontro que existe, quando o olhar deixa de ser somente o que cabe aos que enxergam e se torna um ato humano significativo e complexo.

A polissemia da imagem é algo que lhe é inerente, e sua leitura carrega pesados traços culturais. Estes dois elementos permitem variações de interpretação que colocam em pauta não só a “verdade” de cada uma delas, mas também quais vínculos estabelecem com o mundo real, de modo a se tratar a imagem como algo que, longe de ser pacificado, pode adquirir contornos conflituosos e dissonantes.

É através delas (das imagens) que o olhar se realiza em nós com o que nos vem de fora; da mesma maneira que é através das imagens do espírito que o homem realiza o que está no mundo. As imagens permitem, pois, este duplo movimento: sair de si e trazer o mundo para dentro de si. É nesse movimento, entre olhar e imagem, que está o princípio do pensamento. (...) Com o pensamento, cria-se um mundo imaginário, que, nesse sentido, não é ficção, mas invenção do novo. (NOVAES, 2004, p. 12)

A cena filmada interpõe a presença do signo, deixando de ser um simples transporte da realidade para o suporte fotográfico, passando a ser pensada como uma construção. A imagem é resultado desse processo e, dessa forma, não é fiel à realidade, mas um de seus possíveis recortes e interpretações. Não há nenhuma possibilidade de produção da imagem sem a mediação do sujeito que a constrói e do sujeito que a traduz ou a transcria.

As imagens, encaradas dessa forma, incitam e propõem. Elas revelam22 não no ato de sua captura, mas no momento em que surgem ao olhar, trazendo o que não estava visível ao olho humano – uma marca no rosto, uma folha que cai, um gesto ou um sentimento que não se percebeu. A imagem

22 Esse verbo não está sendo tratado dentro de uma perspectiva iluminista de decifração da verdade da imagem, ou do registro da verdade via imagem, mas no sentido de que a imagem destaca, por registrar, algum elemento do mundo exterior.

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ilusoriamente profunda, quando, na verdade, é lisa e superficial. Seu significado não está nela própria, mas no encontro entre o que mostra e o que é visto por seu espectador.23 No entanto, a velocidade com que são produzidas e exibidas torna esse encontro efêmero como condição de realização, duração necessária para imprimir alguma sensação, mas não necessariamente para fazer pensar. Dentro de uma lógica capitalista, fazem parte de uma engrenagem muito mais preocupada com a lei da oferta e da procura do que com o uso dado pelo sujeito, tornado consumidor, à sua aquisição. Elas não mais provocam, ou, se ainda o fazem, logo são superadas por uma provocação ainda maior, numa competição pela memória de um sujeito absorto e entediado diante das suas possíveis ousadias mas alerta às suas promessas. De qualquer forma, parte-se do pressuposto de que a imagem só se constrói no momento do encontro, entre o que se vê e o que é visto, ainda que esse encontro não seja mais o momento do encontro aurático (BENJAMIN, 1994b). A reprodutibilidade técnica aproxima a distância e, de certa forma, banaliza o encontro que deixa de ser único e definitivo, como o que caracteriza a experiência da aura. Entre o encanto e o desencanto, as imagens se repetem ad

aeternum, como se nada mais de original fosse possível. Auto-referentes, metalingüísticas, o conteúdo de uma acaba sendo apropriado por outra e elas se tornam representação da representação. Segundo Benjamin, com a reprodutibilidade técnica da imagem, tornou-se comum “uma forma de percepção cuja capacidade de captar ‘o semelhante no mundo’ é tão aguda, que graças à reprodução ela consegue captá-lo até no fenômeno único” (1994b, p. 170). Essa afirmação confere ao receptor um papel ativo na medida em que é ele quem estabelece as aproximações entre o que se lhe apresenta. O problema é que as semelhanças são identificadas ou atribuídas de modo tão mais forte que podem ocultar a originalidade do que ainda é único. A perspectiva benjaminiana traz a discussão para o campo da história. Considerando que as alterações de percepção ocorridas dentro desse contexto não estão relacionadas apenas à natureza, ele afirma que, mais do que se fazerem presentes nas características formais da arte, essas mudanças são a expressão de convulsões sociais. O declínio da aura – conseqüência dos novos desejos da sociedade surgidos em função do desenvolvimento das técnicas de reprodução da imagem – atrela-se, segundo ele, a duas circunstâncias principais: a primeira está

23 Espectador aqui está posto como um sujeito ativo, capaz não só de responder, mas também de propor questões.

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relacionada com a vontade das massas de terem as coisas espacialmente mais próximas de si e a segunda tem a ver com a superação, pela reprodutibilidade, do caráter único de todos os fatos (ibid., p. 170). Foram esses os fatores que levaram ao declínio da aura e à autonomia da arte em relação ao culto. “No momento em que o critério da autenticidade deixa de aplicarse à produção artística, toda a função social da arte se transforma. Em vez fundar-se no ritual, ela passa a fundar-se em outra práxis: a política” (ibid., p. 171 e 172). Assim é que a reprodutibilidade técnica não só significou mudanças de percepção, como também permitiu o surgimento de novas formas de arte colocadas dentro de contextos sociais vivos e atuais, expondose, dessa forma, a intervenções de todos os tipos. Esta circunstância levou Benjamin a perguntar como uma obra se situa dentro das relações de produção de uma época. A resposta veio em forma de prescrição sobre a práxis política do autor. Este deveria ser também produtor, e como tal teria como objetivo romper as barreiras entre a força material e a intelectual na produção de sua obra. Esse autor produtor deve ter uma atitude pedagógica, possibilitando que um número cada vez maior de espectadores e

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consumidores tornem-se também produtores (BENJAMIN, 1994b, p. 132). No cinema, a expressividade dada às imagens é um dos modos possíveis de inserção dentro dessa prática, algo que se traduz pela quebra da naturalização da narrativa como uma de suas características, o que faz com que a imagem seja quase um acessório para a história narrada. No caso da imagem expressiva, oposta à naturalizada, é necessário considerar, no entanto, o risco do uso gratuito de procedimentos que podem acabar exacerbando-se e, tornando-se excessivos perdem a dimensão da necessidade estética. Três dos filmes analisados estão inseridos em um tipo de produção que trata a imagem como matéria-prima manipulável a partir dela mesma. Eles não são filmes narrativos clássicos, como os que adotam procedimentos que buscam reforçar a idéia de onipresença e onisciência da imagem cinematográfica capaz de mostrar tudo que a ela se oferece da melhor maneira possível, na medida em que esta melhor maneira é negar-se como imagem. Em O invasor, a montagem linear é interrompida por cenas que ainda irão acontecer num efeito de flicagem que parece quebrar por breves instantes o presente da seqüência

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em desenvolvimento. As imagens vão se transformando na medida em que Ivan se modifica numa relação de simbiose com o que ele sente e vive. Um outro recurso de fotografia está na opção por uma iluminação deficitária, o que provoca efeitos de porosidade e saturação e uma estrutura claramente devedora do videoclipe. Em Amarelo manga, além da liberdade dada à câmera em relação à narrativa, que é deixada freqüentemente de lado em função de uma força atrativa originária na própria cidade, alguns dos personagens se dirigem diretamente ao espectador, integrando-o no diálogo para obter resposta às suas inquietações ou em busca de quem esteja disposto a ouvi-los. Nesses momentos, eles aparecem no centro da cena, como a exigir uma resposta daqueles que os assistem e que, dessa forma, parecem inseridos, mesmo a contragosto, no universo diegético do filme. A quase ausência de linearidade e o hibridismo de O homem que copiava o aproxima da imagem televisiva ou videográfica, exigindo do espectador uma atenção redobrada em relação às suas imagens em busca de acessálas sem se deixar levar simplesmente pela história do protagonista e de seus amigos que buscam a ascensão social.

Dos quatro filmes, O outro lado da rua é o que mais se alia a uma imagem plasticamente pensada como suporte para a narrativa, mas, ainda assim, a montagem passa por momentos de interrupção ou de composição que funcionam como reforço de representação do estado emocional da protagonista, em torno da qual o longa-metragem se organiza. Apesar de a redundância ser um dos elementos fortes nesse tipo de cinema, ela pode provocar algum tipo de estranhamento. Nesses filmes, a metrópole é apreendida como um fenômeno estético, aberto a diferentes tipos de experimentação. No cinema, o tempo pode ser recortado e remontado ou registrado em sua duração. A metrópole muitas vezes propicia uma experiência em que o tempo se sobrepõe ao espaço, este como o que deve ser suprimido e superado o mais rapidamente possível. Nas grandes cidades contemporâneas a velocidade se coloca como modus operandi e as imagens, nesse contexto, não só seguem esse ritmo como também propiciam a experiência da velocidade, assumindo para si tanto a postura de agente como a de paciente, considerandose que é produção e produto. As imagens, no decorrer do século XX, ocuparam um espaço privilegiado na estruturação das relações sociais. A

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convergência das mídias de massa em grupos concentrados de capitalistas de certa forma levou a uma espécie de homogeneização do que passou a ser produzido. Utilizando-se de aparatos cada vez mais sofisticados e caros, a televisão, por exemplo, adotou critérios de qualidade que acabaram funcionando como barreiras para a exibição de imagens produzidas fora de tais parâmetros. Fechadas como pólo de produção e de veiculação de imagens, as mídias de massa se abrem, no entanto, a quantos queiram acessá-las e consumi-las. Entretanto, a partir do momento em que aos indivíduos isoladamente foi possível participar dessa produção – com o uso das tecnologias digitais –, o que se vê é uma postura voraz em busca de ocupar todos os espaços com “a imagem” do dia, da semana ou do mês, atitude que reforça a idéia de espetáculo posta por Guy Debord (1997). Contemporaneamente é necessário considerar esse novo contexto para a comunicação que interrompe, de qualquer forma, a concentração da produção de imagens.24 O fato é que a imagem é o principal produto de uma sociedade globalizada e informatizada e nela se deposita o peso do significado. Apesar de aparentemente banalizada, pode criar e transformar realidades, ser objeto de

calorosos debates, provocar crises políticas e diplomáticas, apresentar-se como símbolo material do poder e do contra-poder, estruturar relações, enfim. Ainda em 1967, Debord cunhou o termo Sociedade do Espetáculo para descrever as relações sociais mediadas por imagens. Para Debord, “quando o mundo real se transforma em simples imagens, as simples imagens tornam-se seres reais e motivações eficientes de um comportamento hipnótico”. “O espetáculo”, diz ainda, “como tendência a fazer ver (por diferentes mediações especializadas) o mundo que já não se pode tocar diretamente, serve-se da visão como sentido privilegiado da pessoa humana” (1997, p.18). As imagens, dessa forma, naturalizamse, deixando-se ver através, como se não fossem resultado de um pensamento, de uma construção intencional. Essa transparência no âmbito da economia política resulta no que Debord denominou de espetáculo como sendo “o capital em tal grau de acumulação que se torna imagem.” (ibid., p. 25). De acordo com ele, a primeira fase de dominação da economia sobre a vida social acarretou, no modo de definir toda realização humana, uma evidente degradação do ser para o ter. A fase atual, em que a vida está totalmente

24 A proliferação de imagens feitas com celulares em situações desfavoráveis coloca um novo regime para o olhar e para a representação da realidade, com a inclusão desses novos produtores que brincam com o interesse da sociedade por imagens bizarras ou chocantes.

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tomada pelos resultados acumulados da economia, leva a um deslizamento generalizado do ter para o parecer, do qual todo “ter” efetivo deve extrair seu prestígio imediato e sua função última. (Ibid., p. 18)

O jogo social, portanto, ocorre no campo da aparência, quando a economia exerce seu domínio sobre os homens e as imagens tornam-se mercadorias. Sua transparência, neste contexto, configura-se como um fato político que precisa ser decifrado. O espetáculo deve ser problematizado e as imagens, por sua vez, devem ser pensadas como produzidas pelo homem, estando, por isso, carregadas de intenções e significados com força para criar novas realidades, mas sem deixarem de ser, em qualquer situação, imagens. É a isto que se propõe o presente trabalho: voltar-se para as imagens fílmicas como pensamento sobre a metrópole. Todos estes filmes trazem um posicionamento claramente definido sobre a vida na cidade grande, ainda que não necessariamente seja este o mote da narrativa. Tematicamente podemos pensar O invasor como um filme sobre a ética, ou a falta desta, a punição dos arrependidos e a recompensa dos resolutos. Amarelo manga trata do cotidiano das classes populares da cidade do Recife, não um cotidiano qualquer, mas aquele carregado de energia, passional e bruto.

É esta a linha de suas histórias. Suas imagens se constroem de um modo extremamente controlado e composto, mas com liberdade para se afastar na narrativa propriamente e se deixar levar pela metrópole como força atratora. O homem que copiava se enquadra, em uma primeira visada, em uma comédia romântica juvenil. No entanto, no decorrer da narrativa, outros elementos vão tomando relevo, como em especial, aqui, a falta de perspectiva para jovens de baixa renda que se sentem presos a esquemas sociais excludentes e encontram como forma de solução para os seus problemas a falsificação de dinheiro, o assalto e o assassinato, para por fim começarem vida nova em outra cidade. O filme O outro lado da rua, se volta para o drama vivido pelos que envelheceram no bairro de Copacabana. A protagonista é uma aposentada que não tem o que fazer e que busca nas ruas da cidade motivação para manter-se viva, sentir-se útil. A metrópole é mais do que um cenário para as ações, ela é também a ferramenta de expressão dos sentimentos da protagonista. Essas imagens (e sons) se realizam no encontro com o espectador, é a ele que se dirigem. O tempo presente do cinema ocorre quando filme e espectador se encontram.

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É para esse sujeito que imagens e sons se dirigem, é para ele, como homem universal ou homem imaginário, que os filmes falam. A idéia de universalidade aproxima o que é comum a todos os homens; o homem criança, curioso, afeito ao jogo, ao divertimento e ao conto; o homem “que em toda parte dispõe de um tronco comum de razão perceptiva, de possibilidade de decifração, de inteligência”. Esse homem, anthropos universal, reage às imagens identificando-se com elas ou projetando-se nelas (MORIN, 1970, p. 44 e 45).

sem obedecer a uma seqüência linear. A montagem cinematográfica organiza esses fragmentos dentro de uma lógica que propõe uma estrutura inteligível, mesmo que isto não signifique, num primeiro momento, adotar a linearidade como parâmetro. O ordenamento das cenas é muito mais de responsabilidade do espectador do que propriamente do filme. E assim se constrói uma espécie de familiaridade entre o espectador cinematográfico e a cidade, a despeito de este nunca ter estado naquele lugar no decorrer de sua vida.

Esses vínculos mais ou menos apaixonados, mais ou menos catárticos, como explicou Benjamin, exercem uma ação terapêutica sobre a massa que pode experimentar tensões e sobressaltos sem necessariamente se deixar influenciar por eles. O estado distraído de recepção do filme se dá em função da passagem do tempo e da montagem. Sem tempo para a contemplação, é exigido do espectador modos de fruição que consigam acompanhar as mudanças contínuas que ocorrem na tela, sem prejuízo à compreensão do que assiste. A distração se alia à atenção e essa postura, montada sobre o que se torna hábito, é a mesma do morador da metrópole.

Múltiplas e ao mesmo tempo singulares, estas imagens de cinema problematizam o modo de ser e estar do sujeito urbano a partir de seus personagens. No final da década de 1960, Glauber Rocha nos dizia, através do protagonista de Terra em transe (1967), que a metrópole, a despeito de tudo que nela havia de fluido, continuava sempre a mesma. A voz over do protagonista, o poeta, jornalista e assessor político Paulo Martins, afirmava a sua incapacidade de ver algo diferente na metrópole: “Quando eu voltei a Eldorado, não sei se antes ou depois, quando revi a paisagem imutável, a natureza, a mesma gente perdida em sua impossível grandeza, eu trazia uma forte amargura dos encontros perdidos e outra vez me perdia no fundo dos meus sentidos…”.

O cinema se aproxima formalmente da cidade na medida em que se constitui de fragmento em fragmento produzidos

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A imagem em contraluz traz uma luminosidade que machuca os olhos e põe em xeque um espaço urbano habitado por uma gente sem identidade, imersa no fluxo da grande cidade, solitária diante das vitrines, destituída de rosto, parte de um lugar que traz a possibilidade concreta de loucura e perdição dos sentidos. O poeta sofre com essa situação, sente-se afogado nesse espaço de multiplicidades que o aflige e o amedronta. Para ele, a cidade grande é uma prisão, onde não há tempo para a contemplação. Em Eldorado, o personagem de Glauber Rocha se vê dentro de jogos de poder, negociatas e orgias das quais não consegue, não pode e talvez não queira se desvencilhar. A cidade grande aqui é um teatro da comédia humana, onde cada um tem um papel sobre o qual não lhe é dado o direito de recusar ou mesmo de modificar. A angústia do poeta revela uma certa incapacidade do homem moderno em dar conta desse universo em mutação. O estado de devir desse espaço é tão essencial que sua conceituação é aberta e de difícil precisão. Diante da imensidão e da complexidade da cidade grande, os filmes estruturam narrativas inspiradas no próprio fluxo da cidade, seja para seguir seu ritmo, seja para contestá-lo, dando concretude a uma

realidade que por vezes passa despercebida aos seus moradores imersos no movimento urbano intensificado por solicitações de uma realidade em que, segundo David Harvey (1992), tempo e espaço se comprimem e exigem novas posturas do sujeito em busca de dar conta da aceleração promovida pela produção capitalista e pelos sistemas de comunicação. Essa realidade volátil e pouco durável, a não ser por seu próprio mecanismo, leva alguns teóricos a afirmar que a partir de agora assistimos (ao vivo ou não) a uma co-produção da realidade sensível na qual as percepções diretas e mediatizadas se confundem para construir uma representação instantânea do espaço, do meio ambiente. (…) A observação direta dos fenômenos visíveis é substituída por uma teleobservação na qual o observador não tem mais contato imediato com a realidade observada. (VIRILIO, 1993, p. 23)

A afirmação de Virilio pode, em alguma medida, explicar a realidade contemporânea, mas deixa de fora um fazer cotidiano que, além ou apesar dessa confusão entre “percepções diretas e mediatizadas”, instaura outras possibilidades de aprendizagem, como o próprio ato de ir ao cinema, resultado da

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decisão de se pôr diante de uma tela durante pelo menos duas horas, deixando-se levar por imagens que constroem continuidade com descontinuidade numa relação que exige a participação do espectador. “A descontinuidade só se transforma em continuidade depois de haver penetrado no espectador” (EPSTEIN, in XAVIER, 1983, p. 288). A metrópole diferencia-se em seus fluxos e em seus usos, se estende por lugares habitados ou desabitados, se transforma em informação. A cidade não existe sem movimento, ela é o próprio movimento, é velocidade, simultaneidade, contigüidade, sobreposição, ordenamento, desordenamento, representação de desejos. Na cidade, “a cada instante existe mais do que a vista alcança, mais do que o ouvido pode ouvir, uma composição ou um cenário à espera de ser analisado” (LYNCH, 1997, p. 11 e 12). Cidade e cinema aproximam-se e, por que não dizer, são equivalentes quando pensados como linguagens cuja base está na montagem. Walter Benjamin sentiu essa proximidade ao tratar da estética do choque, pensando a relação entre espectador e filme como possibilidade de transposição da experiência vivida pelo sujeito no espaço urbano, onde o homem é intimado a responder prontamente aos estímulos, sem que isto signifique que seus

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sentidos devam estar todos comprometidos numa única tarefa. Ele deve exercitar sua multissensorialidade, de modo a reagir quase inconscientemente a essas solicitações, agora mediadas pela técnica que ganha autonomia, tornando-se indiferente às respostas do corpo, este sim devendo adaptar-se ao seu ritmo. “Aquilo que determina o ritmo da produção na esteira rolante está subjacente ao ritmo da receptividade, no filme”, diz Benjamin (1994b, p.125). A experiência do choque é a experiência do presente; assim como o homem não pode vacilar diante da máquina e do sinal de trânsito, também não pode vacilar diante da imagem cinematográfica. Se isso acontece, ele se perde e não mais se encontra diante da catástrofe que, nestes casos, torna-se a impossibilidade de reverter o tempo. Pôr-se diante de um filme e de uma cidade exige atitude e disponibilidade para entrar num jogo de dissolvências estabelecido por tudo que os caracteriza e, ainda assim, não se deixar perder. Uma atitude em busca dos detalhes e das hipérboles como aberturas para considerar que as imagens e os fluxos urbanos são mais do que movimento, são também responsáveis por uma espécie de subjetivação desse espaço/ tempo ocupado por objetos, construções e

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instalações de uso público ou privado. Um jogo com um tempo que escorre, como se descontinuasse o espaço que muitas vezes se virtualiza, atualizando-se quando o ponto final torna-se sua realidade, mesmo que provisória.

não necessariamente apreendendo uma realidade, mas construindo e configurandose, ele próprio, como realidade e como imagem/imaginário.

O movimento, a velocidade e o nomadismo são a própria tradução da metrópole. É através desses elementos que a cidade se faz como território e temporalidade, onde sujeitos não só transitam, mas se identificam, encontram-se e se relacionam. Gilles Deleuze a compara com um jogo, o Go, no qual as peças devem se distribuir num espaço aberto a ser ocupado, mantendo a possibilidade de surgir em qualquer dos seus pontos. Nele, “o movimento já não vai de um ponto a outro, mas torna-se perpétuo, sem alvo nem destino, sem partida nem chegada. Espaço ‘liso’ do GO, contra o espaço estriado do xadrez. Nomos do GO contra o Estado do xadrez, nomos contra polis” (1997, p.14). As imagens do cinema em sua produção são aleatórias, submetidas às intempéries do clima, aos orçamentos, a uma economia que exige uma postura fluida diante do que é inesperado. O filme vai se construindo sem um centro, sem um fim e sem um começo, estrutura que se conforma na montagem dos fotogramas. Ordenado ao ser finalizado, o filme cria um acontecimento,

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A cidade virtual

amarelo manga

o outro lado da rua o invaso

r

o homem que copiava

Capítulo 1

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Filmes em construção O invasor e O homem que copiava, respectivamente segundo e terceiro longasmetragens de Beto Brant e Jorge Furtado, trazem duas metrópoles (São Paulo e Porto Alegre) que se fecham sobre os protagonistas. No primeiro, a sensação é de asfixia, como se a cidade, um ambiente vivo, se voltasse contra o sujeito culpado. É como se o agigantamento da metrópole engolisse o sujeito, reduzido a sua pequenez e pouca importância. No segundo, a cidade aparece como um tabuleiro cujas peças vão sendo montadas à medida dos acontecimentos e em função das solicitações de caráter pragmático do protagonista. A cidade se fragmenta ainda mais pela montagem, como uma coleção organizada de pedaços que se repetem, configurando a idéia de uma rotina da qual parece ser impossível escapar. Em O invasor, São Paulo, dona de uma imensidão impossível de ser imaginada, adquire contornos hostis, cujo peso está associado à incapacidade de reconhecêla com uma cidade única, posta dentro de um mesmo espaço. Essa cidade se abre ao infinito, como se rasgasse o céu e o chão sem saber até onde pode se estender. Para o seu crescimento não há limites. Dentro dela parecem existir várias e diferentes cidades, o que a torna uma figura abstrata, borrada em

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sua materialidade, como se a ela isto fosse prescindível e somente a idéia de metrópole já fosse o suficiente para fazê-la assim. A impossibilidade de apreendê-la como um pedestre parece tê-la entregue ao veículo como única forma de cobrir o seu território. Com isso, ela se esvanece e sufoca, vista através do vidro e das janelas do carro. Em contrapartida a essa imagem que borra o ambiente da urbanidade moderna, com suas torres e grandes avenidas, as ruas estreitas da periferia se mostram bem definidas e preservadas em sua integridade figurativa. Entre esses dois ambientes, não se sabe ao certo se há algum tipo de dominância de um sobre o outro, o que confunde a idéia de quem seria, afinal, o invasor. Se no discurso sobre a cidade (como objeto de pesquisa e lugar de experiência) quase sempre há polarizações que ora a consideram como um lugar privilegiado e aberto a oportunidades, ora como um lugar de hipocrisia, onde ganha o jogo quem for mais esperto e souber lidar melhor com o poder que lhe cabe – o poder do dinheiro ou o da violência, quase sempre –, neste filme ganha a segunda perspectiva e nenhum dos personagens, nem mesmo a mocinha burguesa que namora o assassino dos próprios pais, está livre do estigma da alienação urbana, como um alheamento

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em relação à realidade social da qual todos fazem parte. O que está fora de suas vidas entra como figuras exóticas, índices de um comportamento pouco recomendado socialmente, a partir de uma perspectiva burguesa. O assassino e o cantor de rap são figuras nefastas e ameaçadoras para os engenheiros que se sentem pressionados; para a garota moderna namorar um sujeito da periferia é a comprovação de sua liberdade. Em uma sociedade líquida, nos moldes postos por Bauman, Marina (Mariana Ximenes) é o sujeito que se abre para as oportunidades: Viver num mundo cheio de oportunidades – cada uma mais apetitosa e atraente que a anterior, cada uma compensando a anterior, e preparando terreno para a mudança seguinte – é uma experiência divertida. Nesse mundo, poucas coisas são predeterminadas, e menos ainda irrevogáveis. Poucas derrotas são definitivas, pouquíssimos contratempos, irreversíveis; mas nenhuma vitória é tampouco final. (2001, p. 74)

Neste caso, o desconhecido carrega o envoltório da fantasia e do risco, entretanto não mais como aventura, na medida em que passa a ser completamente viável – basta

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seguir o que lhes aparece como atraente –, mas como um acontecimento corriqueiro que dá sabor e graça a uma vida feita de ligações parciais, sem muito mais mistério, sem muito mais futuro. Uma vida vivida no presente, sem laços duradouros de qualquer tipo, e a metrópole aparece como esse ambiente onde isto é possível.

o cinema, ou melhor, fazê-la parecer com o cinema. (1995, p. 154)

São Paulo e Marina não estranham muito mais o que lhes acontece, isoladas ou absorvidas que estão no meio dos acontecimentos. Ambas se multiplicam em seus papéis. Marina como a garota que se movimenta, com uma aparente naturalidade, entre a pobreza e a riqueza e a cidade que se coloca entre uma metrópole midiática e uma metrópole periférica. Imagens que nos fazem confundir a cidade real com a filmada como diria Comolli:

Uma, a metrópole midiática, pensada como imagem, tratada como imagem, uma cidade sul americana estetizada, espaço de encenação, composta em função de um imaginário e de uma ideologia high tech, traduzida por uma arquitetura espelhada, metálica como a indicar novos espaços de negociação e de realização da vida. A outra, a periférica, com suas calçadas e bueiros a céu aberto, mas também o lugar do pedestre, dos gestos e ações cotidianas que lhe conferem um ritmo e uma apropriação diferenciada. Entre as duas não importa muito a geografia que as afasta, mas sim o fato de se tratar de um único lugar, uma única cidade, traduzida pelas atitudes de seus moradores e pelas imagens que a constroem.

Assim um dia, o sonho da cidade se confundiu com a cidade sonhada pelo cinema, a cidade começou a encenar o filme, sem película nem máquina (…) A partir desse momento, tudo ou quase tudo que se mostra da cidade, ou, sobretudo, da representação que ela nós dá de si mesma, se parece mais com aquilo que desfila na tela de cinema do que com o que se vê da janela de um ônibus de turismo. (…) Filmar a cidade é, no final das contas, filmar o que na cidade se parece com

Nessa cidade, Ivan (Marco Ricca) é o sujeito cindido que sonha com um passado vivido no litoral junto com amigos e com os pais. Apesar de sua nostalgia, ele sabe que esse passado foi o tempo da falência econômica de sua família, mas a força do presente e a angústia que este gera o fazem atenuar a lembrança desagradável. Por intermédio de Ivan e de sua alienação em relação à realidade que o cerca, afirma-se o imaginário da metrópole como um lugar hostil, onde relações sinceras e próximas são impossíveis.

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Essa alienação, discorre André Bueno, leva à idealização do que passou e à crença nas possibilidades do futuro, em detrimento do presente. Ao se confrontar com a estranheza que configura a vida cotidiana e histórica na metrópole capitalista, o sujeito pode tender à nostalgia fácil, ao lirismo ingênuo, que se consola idealizando uma dimensão humana mais próxima, menor, que teria sido capaz de acolher, nutrir e proteger seus membros, unindo-os em comunidades. Mesmo um breve olhar sobre o passado, recente ou distante, indica que se trata, mesmo, de uma idealização compensadora, uma forma de amenizar e de produzir um consolo a partir do profundo malestar vivido no presente. (In LIMA; FERNANDES, 2000, p. 91)

A cidade grande se contrapõe ao interior em todos os sentidos, configurandose principalmente como um espaço de liberdade, onde é possível assumir práticas que não necessariamente serão condenadas, como poderia acontecer em cidades menores em função do conservadorismo e da proximidade das relações sociais. Mas a esse anonimato que possibilita ser, a metrópole pode agregar estados de solidão e de sofrimento provocados pela indiferença e pela ausência de ações compartilhadas entre os sujeitos urbanos. É essa solidão que

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deixa Ivan com um ar desolado, sentindo-se vitima e abandonado, incapaz de reagir e de assumir suas culpas como assim o faz Giba (Alexandre Borges), ao adotar uma postura cínica e sem arrependimentos diante de seus atos, encarados por ele como criminosos sim, mas justificados em função de sua intenção capitalista que não reconhece a força dos impedimentos éticos. No filme de Jorge Furtado, o protagonista também rejeita o presente e a cidade, não em razão de qualquer sentimento nostálgico, mas por conta de uma insatisfação rancorosa em relação ao que vive. André relata seus sonhos frustrados, sua infância, o abandono por parte do pai e a perda da esperança de que um dia este retorne. A correspondência endereçada ao pai e guardada por anos é queimada no início do filme, junto com o dinheiro falso. Assim como as cédulas feitas em xerox, ela não tem valor algum e, como o dinheiro, não passa de “um pedaço de papel que vale porque tudo mundo acredita, senão não vale nada”, diz André em sua voz off. O fogo é o fim da crença, o fim da espera. Porto Alegre, no entanto, faz parte de André, sujeito capaz de decifrá-la e dominá-la segundo suas vontades e interesses. A cidade se molda a essas intenções, um ambiente instrumentalizado que assume a altura do olhar de André, ora vista de cima, aproximada

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e aumentada pelas lentes do binóculo, ora de perto, quase grudada em seu corpo. O espaço se repete nos caminhos que são quase sempre os mesmos: do trabalho para casa, de casa para o trabalho. A dimensão da mudança está na passagem do tempo que não tem força para interromper a sua narrativa em voz off, mas que se mostra pela troca de roupa. No mesmo lugar, fazendo a mesma coisa – andando na rua ou operando a copiadora – é a roupa que afirma o cotidiano repetitivo. Aproximando-os ainda mais está o dinheiro, encarado como a mola propulsora das ações narradas. O longa de Brant focaliza a classe média e suas estratégias de enriquecimento mobilizadas pela ambição e pelo desejo de poder; o de Furtado traz jovens trabalhadores que encontram no dinheiro – que eles não têm, mas que buscam ter – a única saída para uma vida sem perspectivas. Em ambos, a cidade adquire relevância, passando a ser mais do que um cenário. Os filmes entraram em cartaz sobre uma forte cobertura jornalística que buscava identificar nesses dois diretores uma produção com força de continuidade, inquirindo-os sobre suas opções estéticas e temáticas. Para Antonio Paiva Filho, em artigo da revista Mnemocine,1 de 16/05/2002:

Talvez seja exagero dizer que Beto Brant tem uma marca autoral. Mas nós podemos falar assim, sem risco. Desde Os matadores (1997) ele tem uma trajetória interessante no Cinema brasileiro atual: sem abrir mão de um rigoroso e seguro trabalho de direção, seus filmes conseguem manter um diálogo comercial com o público – ainda que, para isso, muitas vezes seja obrigado a diluir algumas questões expressas em seu conteúdo. E dentro desta comunicabilidade, não há como negar a originalidade das tramas. É o que acontece em O invasor.

O crítico e estudioso de cinema Jean Claude Bernadet afirma na revista Época2 que O invasor é dos filmes mais importantes da produção atual. E principalmente porque o símbolo da classe baixa começa como coadjuvante e vai tomando conta da narrativa até adquirir status de personagem principal. Ele vai dirigindo os outros. E é dos raros filmes que se arrisca a falar da classe social de seu diretor.

Para Mario Sergio Conti, da Folha de São Paulo,3 em artigo intitulado “Estilhaços viram um todo multifacetado”, publicado em 05/04/2002, data da estréia em circuito comercial:

1 Disponível em: . Acesso em: 21 mar. 2004. 2 Disponível em: . Acesso

em: 12 dez. 2007. 3 Disponível em: . Acesso em: 12 dez.

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Com O invasor, São Paulo ganha uma existência cinematográfica à altura de sua complexidade protéica. Alguns dos incontáveis mundos paulistanos, que convivem segregadamente e só se interpenetraram sob o signo da brutalidade e do medo, são recriados com brio pelo diretor Beto Brant.

A revista Bravo4 de abril de 2002, em crítica escrita por Almir de Freitas, destaca a opção pela violência, como a retratada pelo filme de Brant, como uma forma de reiterar “o senso comum sobre a realidade caótica brasileira”. A voz do crítico assume um caráter dissonante entre as demais, afirmando a superficialidade e o simplismo da narrativa. Na busca de um suposto realismo, a história vai sendo preenchida, como que por pecinhas de montar, por uma coleção de obviedades extraídas do noticiário: o Estado cartorial e corrupto, a degradação moral das elites, a polícia bandida, a impunidade disseminada, o contraste do centro com a periferia, além, é claro, de sexo, drogas e rap. Nessa soma de esquematismos, ao espectador só resta menear a cabeça, concordando. (…) O resultado disso é que o realismo procurado soa morno, insosso e simplista…

Independentemente de posicionamentos favoráveis ou não, o filme paulista chamou a atenção por ter encarado o desafio de discutir a violência na metrópole como algo que está disseminado na sociedade e não somente em bairros pobres e miseráveis. A imagem da violência em O invasor não se constrói em favelas e lugares depredados da cidade, mas em boates freqüentadas por empresários, nas baladas da juventude rica que se joga na farra sem qualquer limite, nos escritórios, nos canteiros de obra e em frente às academias de ginástica. Como afirma Maria Rita Kehl,5 O invasor “tem o mérito de deslocar o fo-co narrativo, apontando a origem da violência não no submundo de onde o senso comum acredita que ele se origina, mas no campo feroz da concorrência e da ilegalidade entre as elites”. O crítico do jornal O Estado de São Paulo, Luiz Zanin Oricchio, destaca em seu livro Cinema de Novo, a ausência de qualquer “personagem positivo neste retrato agudo da metrópole e do país. Ninguém é herói ou sequer anti-herói. Nenhum personagem se oferece como modelo de identificação viável para o espectador” (2003, p. 180). O longa de Furtado, por sua vez, parecia, pelo menos em uma primeira visada, confirmar

4 Ef. Da Bravo. 5 Disponível em: . Acesso em: 1º. maio

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uma proposta cinematográfica com temáticas urbanas juvenis, a se considerar o seu primeiro filme Houve uma vez dois verões (2002).6 Sobre O homem que copiava, os olhares foram tão incisivos quanto sobre O invasor. A revista Contracampo, uma das mais importantes do campo de discussão de cinema no Brasil, abordou o filme em várias de suas edições. Antes mesmo de sua estréia, Furtado respondia sobre o que o distinguia do seu primeiro longa. Para ele, Houve uma vez… era realista e estruturado com uma narrativa clássica, enquanto O homem que copiava era uma colagem, com muitas fontes de imagem e um fluxo narrativo muito fragmentado. É também uma colagem de gêneros, mistura romance, aventura, comédia, documentário e desenho animado. É um filme quase barroco, onde a narrativa se apoia no fluxo de consciência de um personagem que está no limite da esquizofrenia. O Homem é uma produção de dois milhões e seiscentos (até a primeira cópia), o Dois Verões custou menos de oitocentos mil, incluindo o lançamento. O elenco do Homem é de atores experientes, o de Dois Verões é de atores jovens, iniciantes. Os filmes são muito diferentes.7

A edição de número 51da Contracampo8 reserva uma sessão inteira para discutilo. Nela estão a fala do próprio diretor, artigos sobre o filme e a crítica de Luiz Carlos Oliveira Jr. destacando não faltarem elementos elogiáveis no longa de Furtado, que nesse trabalho afirma sua habilidade como roteirista e “apresenta uma narrativa absolutamente engenhosa e consciente de seus artifícios”. Cléber Eduardo, na mesma edição,9 afirma que Furtado pisa no acelerador para narrar os retalhos de sua narrativa, como se quisesse pôr tudo dentro de um clímax permanente. Estaria repetindo a velocidade alienante e estroboscópica de boa parte do cinema-espetáculo de Hollywood e do cinema independente de muitos lugares? Longe disso. Porque nesse cinema o evento são as pequenas coisas, não os grandes acontecimentos, embora estes também tenham espaço na tela, como em uma cena de assalto e outra de perseguição a pé pelas ruas. Mas a dinâmica de Furtado está de acordo com seu princípio. Num quadro onde o imprevisto é determinante, ele mostra a vida como se o mais banal fosse importantíssimo, capaz de alterar todo um percurso.

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O primeiro filme dirigido por Furtado conta a história de Chico (André Arteche) que pensa ter encontrado em Roza (Ana Maria Mainieri) o seu grande amor. Ela, uma menina cheia de truques e que tem um único sonho: viajar para a Austrália. 7 Disponível em . Acesso 1o. maio 2005. 8 Disponível em . Acesso em 1o. maio 2005. 9 Disponível em . Acesso em 1o. maio 2005. 67

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Na Contracampo10 número 57, o filme retorna em paralelo com Carandiru (Hector Babenco, 2003), considerados por Felipe Furtado “filmes essencialmente voyeuristas, e também filmes que se querem sobre voyeurismo”. Isto porque em Carandiru, segundo o crítico, o cineasta nos coloca diante de um jogo duplo, nos oferece o olhar sobre aquele outro mundo que sacia nossa curiosidade, mas ao mesmo tempo nos obriga a levar junto aquela figura que nos lembra da nossa própria posição. Mais do que um mero exercício voyeurista (o que ele também não deixa de ser), Carandiru acaba se afirmando como um filme sobre o nosso voyeurismo.

O homem que copiava, por sua vez, nos traria personagens voyeurs, vistos de fora pelo espectador que não se envolve com a questão. O filme de Jorge Furtado, ainda de acordo com o crítico, não é um mau filme (da mesma forma que Carandiru esta longe de ser um filme perfeito) Há momentos nele – em especial, algumas cenas entre Lázaro Ramos e Pedro Cardoso – que

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me fazem acreditar (ao crítico) que Furtado ainda fará o grande filme que desde os seus primeiros curtas se espera dele. O problema é justamente o porquê destes belos momentos nunca chegarem a construir um filme mais relevante.

Marcelo Coelho escreveu na Folha de São Paulo11 todo o seu incômodo em relação às aventuras do protagonista, considerando que a narrativa fica em um meio-termo entre o entretenimento e a crítica e que no filme parece haver mais do que “uma apologia da ‘Lei de Gérson’’’. Nele, “o ‘levar vantagem em tudo’ acarreta alguns atos criminosos, com os quais o público, imagino, está longe de se solidarizar”. Ismail Xavier, em texto publicado na revista Novos Estudos – Cebrap,12 de julho de 2006, discute a partir de Cidade de Deus, O homem que copiava e O Redentor, imagens de corrosão social, pragmatismo e ressentimento que, segundo ele, estariam presentes nessas narrativas. Esses filmes, diz, “atravessam um campo de tensões marcado por violência, expansão dos mercados ilícitos, delinqüência empresarial, hegemonia do consumo, crise do Estado-nação e da família”. Na narrativa

Disponível em . Acesso em 1o. maio 2005. Disponível em . Acesso em: 1o. maio 2005. 12 XAVIER, Ismail. Corrosão social, pragmatismo e ressentimento: vozes dissonantes no cinema brasileiro de resultados. Novos estud. - CEBRAP , São Paulo, n. 75, 2006 . Disponível em: . Acesso em: 23 Mar 2007. 68

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de Furtado, “os jovens partem para o crime na adesão sorridente à máquina do consumo. Não há política, não há limites legais”. E tudo se esconde, diria eu, sob a aparência de comédia romântica e do jogo de palavras tão bem trabalhado pelo cineasta gaúcho.

O invasor: a história Gilberto/Giba, Ivan e Estevão (George Freire) são sócios de uma construtora que pretende participar de uma concorrência pública. Nesse processo, eles são procurados por Rangel (Silvio Luiz), que lhes propõe um acordo vantajoso e irregular. Estevão, sócio majoritário, se mostra terminantemente contra, tornando-se um obstáculo para as ambições dos outros dois. Como saída para o impasse, a dupla que teve sua proposta rejeitada resolve contratar um assassino profissional que resolva a questão de modo definitivo, dando um fim à vida de Estevão. Giba é o mais seguro quanto a essa decisão. Ele é dono de uma boate de prostituição localizada no centro da cidade e conhece o mundo da contravenção e da corrupção policial. Na primeira cena do filme, a dupla se encontra com o matador de aluguel em um bar na

periferia da cidade. Na ocasião, eles dão instruções ao assassino e lhe pagam a metade do valor cobrado pelo serviço, prometendo o restante para depois da ação concluída. Giba é o sujeito que toma as rédeas do negócio. Ele é o sujeito cosmopolita, alguém que sabe se comportar em qualquer situação, mesmo as mais adversas, e que se mostra à vontade mesmo em ambientes estranhos e pouco familiares. Ivan, ao contrário, é inseguro, desconfiado e, sem falar uma palavra durante toda a cena, desperta a hostilidade do matador que lhe dirige ameaças. Giba assegura ao criminoso que não há por que duvidar do envolvimento do amigo, que é seu sócio na empreitada. Após o encontro, eles vão a uma boate, onde Ivan é aconselhado a relaxar e se divertir. De volta para casa, Giba informa que é o proprietário do estabelecimento, deixando o amigo surpreso com tal revelação, reação que é imediatamente ridicularizada por sua ingenuidade. O acordo entre o lobista desonesto e a dupla de sócios, ao contrário do que imagina Estevão, foi iniciado por Ivan e não por Giba. Em uma reunião no escritório, enquanto Estevão explica por que se recusa a fazer contrato com o governo, Ivan recebe uma ligação de Rangel, que o trata de modo familiar e adota um tom exaltado ao

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cobrar a efetivação do acordo. Na conversa, Estevão afirma que não quer mais trabalhar com Giba, que vai comprar a parte dele na sociedade e aumentar a participação de Ivan nos negócios. Diante dessa proposta, Ivan procura Giba e diz que desistiu do plano de matar o sócio, informação que é desprezada por seu parceiro, apesar de gerar o primeiro atrito entre os dois. A expectativa do assassinato o deixa tenso e apreensivo, enquanto Giba aparenta uma quase indiferença. No entanto, Ivan não é menos frio. Ao ser chamado pelo pai de Estevão, aflito com o sumiço do filho e da nora que poderiam ter sido vítimas de seqüestro, ele se apresenta solidário e preocupado, disposto a ajudá-lo no que fosse necessário. Na madrugada, a polícia encontra os corpos em um matagal da cidade. Quando os sócios chegam ao local, o carro do IML já está se retirando. Giba finge desespero: chora e grita aparentando estar inconformado com o ocorrido. O outro, silencioso, observa tudo quase sem expressão e sem dizer qualquer palavra. Ainda no dia do enterro, o matador, Anísio – vivido por Paulo Miklos em seu primeiro trabalho para o cinema –, os procura na empresa, surpreendendo a todos com a sua atitude invasiva. Ele passa direto pela portaria, não se identifica e encontra, sem recorrer a nenhum dos empregados, a sala

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de Ivan que, nervoso com a presença do assassino, chama Giba até seu escritório. Eles fazem o pagamento da parte que faltava e se despedem do sujeito que vai embora ameaçando voltar: uma hora o dinheiro acaba, informa. Essa era a deixa que apontava para um possível retorno, fato que se confirma não muito tempo depois. De volta à empresa, Anísio deixa claro que não quer mais dinheiro, e sim fazer parte do mundo dos patrões. Ele próprio arranja para si um posto de trabalho: vai ser o chefe de segurança, cuidar do material, controlar entrada e saída, zelar pela vida dos patrões. Para selar a parceria, o cão vigia do escritório o recebe bem e, graças ao animal, o matador acaba também se aproximando de Marina (Mariana Ximenes), única filha das vítimas. Ela, garota rica e despreocupada, se deixa envolver pelo marginal morador da periferia, para onde ele a leva para um passeio de carro e para comprar (e consumir) drogas. Por sua vez, ela o convida para baladas regadas a ecstasy e sexo grupal. Anísio tem planos para o futuro, deseja entrar para a elite; Marina quer se divertir, afinal o futuro já está garantido: o avô cuida de tudo, ela só precisa ter as suas despesas cobertas. À medida que o envolvimento entre os dois cresce, a angústia de Ivan vai se aprofundando em função do medo de ser também assassinado pelo sócio.

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As diferenças entre Giba e Ivan não estão somente na certeza do primeiro em relação à decisão de pagar pela morte de Estevão, seu amigo de faculdade. Giba tem uma filha e um casamento bem resolvido, enquanto Ivan vive um casamento triste e tedioso, do qual se afasta um pouco a cada dia. Em uma de suas saídas noturnas sem a companhia da mulher, ele conhece Cláudia (Malu Mader), por quem se apaixona, sem desconfiar que ela trabalha para seu sócio e tem como missão espioná-lo. O assassinato do lobista Rangel aumenta as desconfianças de Ivan em relação a Giba, o que faz com que parta para o confronto, acusando seu cúmplice de ser responsável por mais este crime e de estar tramando contra ele, a próxima vitima, como sugere em uma briga na calçada da academia de ginástica. O desespero de Ivan o leva a comprar uma arma, atitude que deixa Cláudia, tornada sua amante, preocupada com o que ele pretende fazer com o revólver. Ivan justifica sua aquisição explicando que precisa se defender e, visivelmente perturbado, afirma que pretende largar tudo e ir embora da cidade, viagem que deseja fazer com ela. Enquanto Ivan se desespera, Anísio continua sua saga como segurança da empresa, descobrindo desvios de matéria-

prima e de materiais que, segundo ele, foram feitos pelo mestre de obras, a quem não hesita em acusar. Giba tenta resolver o conflito que envolve seu funcionário oferecendo dinheiro para Anísio se afastar dali. A proposta é firmemente recusada pelo criminoso que também está namorando Marina com quem passa a morar e a usufruir das benesses propiciadas por sua nova condição social. A virada definitiva da narrativa acontece quando Ivan afinal se percebe sozinho, culpado e sem saída, após saber da ligação de Cláudia – cujo nome verdadeiro é Fernanda – com Giba. A sensação de terror e pânico diante dessa descoberta cresce exponencialmente e ele deixa uma ameaça na casa de Cláudia/Fernanda, que não tarda em alertar Giba sobre o perigo que correm. Enquanto isso, Ivan sai em busca do sócio pela cidade. Enquanto dirige sem destino e completamente desesperado, ele acaba se envolvendo em um acidente de carro. Depois de confrontar-se e ameaçar os proprietários do outro veículo ele sai a pé correndo pela avenida deserta. A corrida noturna pela cidade mal iluminada demonstra a intensidade do seu sofrimento e falta de perspectiva. Em meio a tudo isso, ir a uma delegacia e denunciar o crime parece ser sua única

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saída. Lá ele tenta se justificar, desviando-se de toda responsabilidade sobre o assassinato de Estevão e da mulher, atribuindo a culpa, única e exclusivamente, a Giba. Ivan esqueceu a ligação do sócio com a corrupção policial. Do outro lado, alertado por Cláudia, Gilberto busca mais uma vez por Anísio, que corre o risco de perder tudo o que conquistou caso Ivan denuncie o crime.

ocorrem de modo nada conciliador, mas também a sua posição dentro da cinematografia nacional como um cineasta que dialoga de modo profícuo com a realidade do país. Seus temas trafegam por situações marginais, retratando a vida de matadores na fronteira entre Brasil e Paraguai e situações mal resolvidas como a tortura praticada durante a ditadura militar.

O encontro entre Giba e Anísio não ocorre mais na periferia. O matador agora vive com Marina e vestido com um roupão azul, confortável no novo ambiente, recebe a visita com um copo de uísque. Ele deixou de ser quem executa e se tornou, como Giba, o patrão, aquele que ordena e a quem não cabe mais fazer o serviço sujo. Eles discutem o que fazer com Ivan que não tarda a aparecer preso dentro de um carro policial, algemado e impotente diante do destino que, para ele, está sendo traçado na frente da casa de Marina que dorme tranqüila após uma noite de balada.

Assim como os filmes anteriores, O invasor pode ser pensado como uma narrativa de gênero, um thriller de suspense e, segundo Lucia Nagib13 (2006), com vários atributos da arte expressionista. Apesar de estar próximo de uma representação realista em função do tema, ele se afasta do naturalismo do cinema clássico, quando faz com que a sua estrutura formal adquira características fantasiosas ou fantasmagóricas a partir do estado de espírito de um de seus personagens, um sujeito que se sente imerso em um pesadelo, sensação que se estende para a materialidade do filme.

O grão da imagem O invasor segue um caminho aberto por Beto Brant desde o seu primeiro trabalho, sustentando não só a sua proposta de representar situações-limite, cujas soluções

A situação montada pela narrativa aproxima extremidades sociais da cidade de São Paulo de um modo pouco provável de ocorrer na realidade, uma vez que as formas de isolamento e de autoproteção das classes economicamente mais favorecidas extrapolaram o campo das separações simbólicas, passando a configurar uma

13 Nagib considera também a impossibilidade de trânsito de um sujeito da periferia dentro do universo

burguês dos engenheiros. 72

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cidade dividida em enclaves fortificados14 que passam a funcionar como locais de residência, lazer, trabalho e consumo (CALDEIRA, 2000)

um estranhamento do leitor em relação à história propriamente, tornando visível a presença da forma sobre a qual a intriga está montada.

A despeito desse grau de impossibilidade, o fato é que nessa situação há um certo grau de verossimilhança que a torna admissível. Isto se pensarmos no problema do verossímil apresentado pela poética aristotélica, segundo a qual “a obra do poeta não consiste em contar o que aconteceu, mas sim coisas quais podiam acontecer, possíveis do ponto de vista da verossimilhança ou da necessidade” (ARISTÓTELES; HORÁCIO; LONGINO, 2005, p. 28). Ou ainda, segundo o filósofo, “quando plausível, o impossível se deve preferir a um possível que não convença” (ibid., p. 48).

Em O invasor isto ocorre de modo sutil, através de um desordenamento temporal na apresentação dos acontecimentos, antecipados como flashes que interrompem o fluxo linear da história – essas entradas anunciam um distanciamento do realismo cinematográfico e do naturalismo – e pela imagem que parece se desintegrar dando conta do pânico que se apodera de Ivan.

O invasor se coloca nesse esquema, com um enredo forte, com sua intriga centrada no personagem vivido por Marco Ricca que se vê preso a uma situação detonada por si próprio – e pelo personagem de Alexandre Borges – da qual não consegue se livrar. Uma das características da intriga, segundo a teoria literária,15 é o desordenamento da ordem lógico-temporal da narrativa, o que exige do leitor uma recepção mais ativa posta pela necessidade de remontar mentalmente tal ordenamento. Essa organização provoca

Nos anos 1960, Marshal McLuhan (1999) cunhou a célebre frase de que o meio é a mensagem, trazendo para o debate a natureza do meio, ele próprio modificando a realidade, independentemente de seu uso ou do que traga como conteúdo. As mudanças no ambiente, provocadas pelas tecnologias, não estariam relacionadas com o que se faz com elas, mas com a sua presença carregada de potência. Assim é que o cinema traria como mensagem a transição da sucessão linear para o mundo das estruturas e configurações, passagem possível por conta da mecanização característica ao meio, o que possibilitaria a montagem do tempo e do espaço ordenados a partir do que permite o próprio meio.

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Os anúncios publicitários de condomínios de luxo ou voltados para a classe média na cidade de São Paulo explicitam bem esse momento de autocerceamento, justificado por um discurso social que exclui em nome da segurança e do conforto. 15 Cf. REIS; LOPES, 1988. 73

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Ao se pensar o filme desse modo – como assim o fez (antes de McLuhan) Walter Benjamin, para quem “o filme serve para exercitar o homem nas novas percepções e reações exigidas por um aparelho técnico”16– devolve-se a ele, como tecnologia, um caráter ideológico que estaria, comumente, localizado no conteúdo da sua mensagem. A tecnologia fílmica traz, ela e nela mesma, potencialidades criativas e de manipulação da imagem que ultrapassam a história contada. A organização de um filme aponta apenas para uma de suas formas possíveis, permitindo afirmar que não há um modelo único, que possa ser considerado como apropriado ou definitivo. “A arte é, como todas as linguagens, uma forma de registrar lições de experiência, não para nos fornecer a solução mais aproximada do enigma universal, mas para nos sugerir modos de ação diferenciados”, diz Pierre Francastel (1998, p. 89). A descontinuidade da montagem de O invasor, disposta como instantes breves, prescinde da necessidade de uma remontagem mental por parte do espectador, aparentando-se a um ruído, mas com força para causar desequilíbrios momentâneos. Essas interrupções ocorrem de modos diferentes e com pesos também distintos. A seqüência da boate, por exemplo, é

interrompida três vezes pela mesma cena de Giba empurrando Ivan pelo pescoço enquanto eles entram no local. A primeira interrupção ocorre no momento em que Giba, impaciente, joga Ivan para cima de uma garota de programa; a segunda, quando Ivan é guiado por ela em direção a um dos quartos da boate e a terceira, quando, ainda ameaçando ir embora, ele entra no quarto. A pouca resistência de Ivan diante das intenções de Giba, o sujeito ativo que toma a frente e decide, é reforçada por essas inserções que acentuam tais momentos, dando ênfase a passividade de Ivan, anunciando uma espécie de impotência que será vivida por ele no decorrer da narrativa e a proeminência de Giba em relação ao seu destino. Outra interrupção, ainda nessa seqüência, ocorre quando a moça pede a chave de um dos quartos para o recepcionista. Nesse momento aparece Giba pondo uma chave – a chavinha da alegria – no braço de Ivan, situação vivida também na chegada à boate. Se esses planos se referem a um passado recente, outro vai anunciar um acontecimento futuro: Ivan entrando em um quarto onde a sua mulher dorme, cena que ocorrerá com tempo próprio após ele ter deixado Giba em casa. O que se vê durante todo esse tempo é um sujeito ensimesmado,

16 BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994 b. p, 174.

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deixando-se levar pelos acontecimentos, simulando uma recusa que parece não se afirmar como verdade. Este início de filme traz um ambiente escuro com luz noturna avermelhada compondo uma situação que oscila entre o quente e o frio, tanto pelo aspecto físico da imagem quanto por aquilo que está acontecendo. Giba parece se adequar melhor ao ambiente, enquanto Ivan, contido, atrai para si a luz branca reforçada pela camisa de mesma cor. A câmera se coloca próxima dos personagens, indiscreta diante da recusa pouco firme de Ivan em aceitar a oferta de Giba: o tratamento especial da garota que dança na boate. A iluminação da cena é dada pela luz do lugar, o que faz com que a imagem adquira uma textura granulada, como se estivesse em decomposição. Do salão da boate, onde a luz oscila entre o vermelho, o branco e o azul; passando pelo corredor onde uma luz verde envolve os casais que se abraçam de modo pouco discreto, chegando ao quarto onde predomina o vermelho, a atitude de Ivan reforça uma pseudo-resistência, quando, no espaço coletivo, ele nega que esteja se sentindo bem e no espaço privado do quarto, finalmente, assume a sua potência dirigindo a relação sexual.

Na divisão feita por McLuhan (1999) entre meios quentes e meios frios, o cinema é considerado quente em virtude da alta definição de sua imagem, que não deixaria margem de participação para o espectador. Uma imagem com essas características não solicita da audiência nenhum esforço em direção a uma complementação de qualquer ordem. O meio quente é aquele que prolonga um único de nossos sentidos, diz McLuhan. A imagem cinematográfica, nesse contexto, seria uma imagem que envolve por seu conteúdo, isto é, por sua narrativa. Assim, ainda segundo ele, o cineasta teria como tarefa transportar o receptor para dentro do filme, o que impediria um posicionamento crítico por parte deste. O invasor contradiz essa premissa não só por esses flashes temporais, mas também quando, no decorrer da narrativa, sua imagem perde definição e se decompõe, deixando-se ver porosa, supersaturada, manifestando-se com identidade própria. O cinema, nesse caso, deixa de ser um meio quente para tornar-se frio e inclusivo, solicitando do receptor um olhar direcionado para esse modo de apresentação. McLuhan se referia a um cinema centrado na história, invisível como mediação e como produto, com uma decupagem organizada de modo a construir uma representação naturalista, tornando-se uma espécie de duplo da realidade. O caráter

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fotográfico de sua imagem e a possibilidade de esta pôr-se em movimento a partir de uma engrenagem mecânica que obedece a um registro dado na passagem do tempo, acrescido de uma função narrativa, justificou de algum modo essa afirmação. A interrupção da continuidade ocorre ainda em outras seqüências.17 Em uma delas, Giba está em casa brincando com a filha e com a mulher. Ele se movimenta pela sala usando uma máscara de porco, encenando para ambas a história dos três porquinhos, personagens estes que revelam uma óbvia identificação com os três sócios. Estevão é o porquinho preguiçoso que construiu “uma casa de palha muito malfeita, porque ele queria ir brincar”; Ivan é aquele a quem o preguiçoso pede socorro, e Giba é o mais velho e mais inteligente, que acaba por resolver a situação ao atrair o lobo mal para uma armadilha. O tempo da cena de Giba em casa é interrompido pelo jogo de futebol do qual participa Estevão e pela cena de Ivan em uma boate. Esses cortes ocorrem no exato momento em que Giba se refere a cada um dos porquinhos/sócios ausentes. As interrupções não suspendem a ação pressuposta que segue seu curso no tempo. As imagens dos personagens referidos aparecem como colagem, surgindo em um

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contexto que lhes é estranho originalmente. Essas inserções se apresentam como superpostas à narrativa, sem dela fazerem parte. Há um salto na fala de Giba que é completado por essas imagens. O sentido atribuído às inserções vem de informações anteriores que identificam para o receptor as relações de comparação possíveis entre os tais porquinhos e os três sócios. Dentro de um esquema mais clássico, estão os fragmentos da farra de Marina e Anísio, inseridos na seqüência em que Ivan se desloca de carro pela cidade, tomado pelo medo de ser assassinado. Neste caso, a montagem paralela põe lado a lado o desespero e a derrocada de Ivan, contrapostos à conquista de Anísio do espaço de usufruto das elites de onde o outro está sendo expurgado. O estado de saturação e a filmagem em primeiro plano emprestam a essas imagens um poder que vai além dessa informação, dando à seqüência características plásticas específicas. A câmera parece querer tocar os corpos dos atores transformados em fragmentos entregues à excitação do sexo. Essa proximidade redimensiona esses corpos dando-lhes uma visibilidade física, suada, intensa e misturada quando eles se confundem uns nos outros.

A conversa entre Estevão e Ivan em torno da discordância do primeiro sobre o acordo ilícito com o governo também é mediada por imagens que revelam o estado de espírito de Ivan quanto à consumação do crime. Durante o diálogo, ele imagina as circunstâncias em que Estevão pode ser abordado pelo assassino e reage de modo instintivo, demonstrando uma inquietação imediatamente disfarçada. 76

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Benjamim usa a figura do cirurgião para pensar essa capacidade do cinema de penetrar nos corpos e nos ambientes, aproximando a cena do receptor. Do lado oposto ao cirurgião estaria o mágico comparado com o pintor. O comportamento do mágico, que deposita as mãos sobre um doente para curá-lo, é distinto do comportamento do cirurgião, que realiza uma intervenção em seu corpo. O mágico preserva a distância natural entre ele e o paciente, ou antes, ele a diminui um pouco, graças á sua mão estendida, e a aumenta muito, graças à sua autoridade. O contrário ocorre com o cirurgião. Ele diminui muito sua distância com relação ao paciente, ao penetrar em seu organismo, e a aumenta pouco, devido à cautela com que sua mão se move entre os órgãos. (…) O mágico e o cirurgião estão entre si como o pintor e o cinegrafista. O pintor observa em seu trabalho uma distância natural entre a realidade dada e ele próprio, ao passo que o cinegrafista penetra profundamente as vísceras dessa realidade. (…) A imagem do pintor é total, a do operador é composta de inúmeros fragmentos, que se recompõem segundo novas leis. (1994b, p. 187)

A intensidade da montagem é reforçada pela música que penetra nos ambientes, tornados, a partir dessa sonoridade, uma coisa só.

Há uma imagem central tensionada pela margem em uma disputa sobre quem, afinal, vai restituir o equilíbrio. Se a imagem do centro pode ser pensada como a de Ivan, isto ocorre por conta do rap que parece dialogar diretamente com esse personagem, emprestando-lhe uma espécie de preponderância na estruturação da montagem, como se dela partissem raios em direção ao que vivem Marina e Anísio. O fim desse transe plástico é dado por uma cena quase doméstica, em que Anísio, de roupão e chinelo, recebe Giba na sala de estar da casa de Marina, agora também sua casa. O contraste dessa interrupção é aprofundado por uma seqüência com características realistas, em que o som captura os menores ruídos e a câmera se volta para um diálogo estruturado em campo e contracampo, cujo tema é o destino de Ivan. A imagem, mesmo nesse tipo de cena, no entanto, se mantém dentro dos parâmetros estéticos propostos pelo filme de aproveitar a luz do ambiente e de ter a liberdade de movimentar a câmera em 360 graus. Essa decisão, também de caráter financeiro, levou a níveis de qualidade, em termos de definição, bastante variados e a uma granulação explícita que aumenta à medida do aprofundamento da agonia do personagem de Marco Ricca.

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O processo de produção considerou as possibilidades de criação dada pela HDTV – High Definition Television – como um momento posterior à filmagem em película, com uma câmera super 16 mm, Aaton XTR S16,18 que permitiu usar os limites da sensibilidade do filme de modo a prescindir de refletores e de equipamentos de iluminação que estivessem fora da locação. A tecnologia de TV em alta definição, na fase de pós-produção, permitiu a manipulação da imagem de acordo com o clima exigido pela cena.19 Essa espécie de fisicalidade da imagem se concretizou, neste caso, pelo uso de tecnologias diversas – química na sua gênese, digital no tratamento, e novamente química na sua finalização para projeção –, estabelecendo uma espécie de convergência tecnológica em busca de, a partir de tratamentos e intervenções diversas no material fílmico, uma poética que se realiza tendo em conta as potencialidades expressivas abertas por cada uma dessas tecnologias.

produzidas as cenas iniciais do filme: “O começo de “O invasor” é todo descromatizado. Fizemos isso na telecinagem, que permite um controle de luz e de cor com visões e correções muito maior do que pelo processo óptico.” A descromatização, presente não só nessa seqüência mas em quase todas as que foram rodadas durante o dia, se contrapõe às seqüências noturnas nas quais a densidade das cores e o grão da imagem transformam o filme em uma estrutura porosa que vai cada vez mais se desmanchando, para no final assumir novamente o caráter realista com uma imagem diurna externa que acontece em uma rua tranqüila da cidade de São Paulo, lugar para onde Ivan será levado algemado em uma viatura policial.

Em entrevista para a Revista de Cinema,20 Beto Brant descreve o modo como foram

A câmera super16 é mais leve do que a 35 mm, o que facilitou a filmagem em 360 graus e o uso da câmera na mão acompanhando os personagens de perto. Todas essas informações de ordem técnica foram dadas por Beto Brant e pelo diretor de fotografia Toca Seabra em palestra ocorrida no Centro Cultural Banco do Brasil, dentro do evento Mostra de Filmes e Ciclo de Palestras “A fotografia no cinema brasileiro” 2003, no qual estive presente. 19 Após a finalização em digital, o filme foi transferido para 35 mm. 20 Disponível em:. Acesso em: 02 nov. 2007. 18

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qualquer momento, se fundir aumentando a espessura da imagem.

A imagem granulada, aumentada até seu limite máximo, corre o risco de perda de seus contornos, resultando na dissolução da sua forma. Os excessos no O invasor foram corrigidos por um processo denominado noise reduction, possível após a digitalização da imagem. O contraste entre as cenas diurnas e as noturnas acentua a dramaticidade do filme. As primeiras perdem a cor, incorporando o cinza da metrópole nas cenas de escritório, de ruas, na academia de ginástica e nas construções gerenciadas por Ivan e Giba. As noturnas adquirem uma espécie de volume como se ambientes e personagens pudessem, a

Essa porosidade da imagem, com atributos de massa, está no filme de Antonioni, Blow up: depois daquele beijo (1966), mais precisamente nas fotografias de um parque, feitas pelo protagonista Thomas (David Hemmings); fotos que ao serem ampliadas são capazes de revelar aquilo que o olho não consegue alcançar. No laboratório, à medida que as imagens vão sendo aumentadas, o que elas mostram põe em dúvida a potência da visão em relação à capacidade de apreensão daquilo que a circunda, sem a mediação tecnológica. Sobre esses dois olhares, o natural e o mecânico, Gilda de Mello e Souza discorre explicando que o primeiro “viu a realidade de imediato, globalmente, e viu o idílio (a beleza)”. O segundo, “muito mais potente e eficaz, viu com retardo, decompôs o universo em pedaços do conhecimento e, reorganizando-os, viu o crime (a morte)” (In NOVAES, 1988, p. 406). A ampliação trouxe a imagem de um revólver e de um homem morto e a incerteza para Thomas, que volta ao local em busca de respostas. Ele quer saber se o que a máquina lhe mostra pode ser comprovado pela visão. A tecnologia digital no filme de Brant não está posta na esfera da narrativa como um tema como acontece no filme de Antonioni,

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mas sim na esfera da forma, traduzindo a subjetividade de um personagem, deixando ver a deterioração de suas certezas que se afundam no grão da imagem. De acordo com Edmond Couchot, a busca pelo menor ponto constituinte da imagem ocorreu de diferentes maneiras a partir do uso de técnicas também diferentes: nas artes plásticas, no impressionismo e pósimpressionismo; na produção automatizada na imagem eletrônica, mais especificamente a televisiva que possibilitou que se chegasse a uma espécie de mosaico luminoso, “composto de pontos elementares discretos, vermelhos, verdes e azuis (os luminósforos) que, por uma síntese aditiva, podiam reconstituir qualquer cor do espectro visível” (In PARENTE, 1993, p. 18) Mas, ainda segundo Couchot, não era possível, até o estágio da televisão, interferir de modo controlado sobre um único ponto dessa imagem. Somente com a tecnologia digital isso veio a acontecer. O computador permitia não somente dominar totalmente o ponto da imagem – o pixel – como substituir, ao mesmo tempo, o automatismo analógico das técnicas televisuais pelo automatismo calculado, resultante de um tratamento numérico da informação relativa à imagem. (…) A imagem é,

daí por diante, reduzida a um mosaico de pontos perfeitamente ordenado, um quadro de números, uma matriz. Cada pixel é um permutador minúsculo entre imagens e número, que permite passar da imagem ao número e vice-versa. (In PARENTE, 1993 p. 18 e 19) O tratamento dado à imagem de O invasor recorreu a essas tecnologias de decomposição da imagem, intervindo sobre suas características de modo a alcançar o efeito estético desejado por Beto Brant de compor um estado de putrefação moral e social não só para seus personagens, mas também para o ambiente onde eles vivem. A decisão de construir uma dramaticidade escorada, sobremaneira, na manipulação da imagem só foi possível com o uso dessa tecnologia digital, como destaca Brant: “no telecine temos muito mais facilidade, e até radicalidade, é muito imediato, o resultado do que você quer é instantâneo. Se você seguir tudo na sua ordem de montagem, encontrará caminhos, criará um percurso de luz de acordo com a dramaticidade, com a percepção do personagem”.21 “O interesse antes pelo efeito”, diz McLuhan, “do que pelo significado22 é uma mudança básica de nosso tempo, pois o efeito envolve a situação total e não apenas um plano

21 Entrevista para a Revista de Cinema , disponível em: . Acesso em: 02 nov. 2007. 22 Itálico do autor.

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do movimento da informação” (1999, p. 41e 42). Nas seqüências da zona sul de São Paulo, durante o passeio de Anísio e Marina, as imagens diurnas adquirem uma medida cromática diferente das externas filmadas em outras partes da cidade. As cores das paredes, dos muros, das pichações e dos grafites são bem definidas, compondo uma espécie de cartografia de um ambiente mapeado em seus detalhes a partir de uma visão de dentro do carro, em uma perspectiva documental construída sobre o lugar e sobre as pessoas. À noite, porém, a imagem volta a ser saturada, excessiva. A luz que ilumina a rua vem do comércio e das casas, o que lhes dá uma característica especial, transformando o ambiente e suas partes em peças de um mosaico cromático, em que a pobreza e a falta de infra-estrutura urbana tornam-se belas imagens, levando para a tela a representação de algo que lhe é essencialmente ausente: exatamente esta beleza.

Estruturado sobre a possibilidade de se expressar utilizando como fonte de luz prioritariamente a iluminação das locações, com pequenas intervenções como o uso de gelatinas como acontece, por exemplo, na cena da boate onde Anísio e Marina se divertem, O invasor se apóia nas condições

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urbanas desses ambientes e espaços para compor sua imagem. Nela, estão presentes um cromatismo esmaecido de uma cidade tomada por prédios cinza e pela ambição que exige frieza na execução de seus planos de enriquecimento, contraposto ao cromatismo exacerbado nas cenas noturnas que adquirem tonalidades subjetivadas pelo estado emocional de seus personagens, particularmente o vivido por Marco Ricca.

O coro A música de O invasor funciona como uma voz que completa o sentido das ações, aprofundando e direcionando o significado da narrativa. O rock e o rap foram as formas adotadas para esta fala que assume a força de uma realidade violenta e intolerável. Dura e agressiva, ela se refere a situações também desse mesmo tipo vividas pelas populações marginais dos grandes centros do país. A virulência do New Metal do Tolerância Zero, banda paulista surgida em 1997 em Indaiatuba, abre as atividades do coro,23 servindo como ponte entre o quarto de Giba, quando este recebe o telefonema de Ivan informando sobre o assassinato, o resgate dos corpos, o enterro e a entrada de Anísio no escritório de engenharia. Essa invasão

sonora agrega às seqüências um caráter de ficcionalidade explícito, quando a descoberta do crime e a cerimônia do velório parecem estar servindo como prólogo para a entrada em cena do matador. O encerramento da música é o início da presença, quase uma onipresença, do assassino na vida da dupla e também o início do desassossego de Ivan, a quem a música está se dirigindo. A letra assume um tom premonitório, apontando, de certa forma, para o drama a ser vivido por este personagem a partir daquele momento. Bem vindo… ao pesadelo da realidade/ Você não consegue fugir da estupidez/ Algo grita em sua mente/ Falando daquela puta, vadia/ Grampeada por todos/ Seu corno prega seu olho/ Não tente se esconder do medíocre que é/ É tudo insano, todos são doentes/ Eu, você, a vadia, todos doentes/ Ninguém presta/ Bem-vindo ao pesadelo da realidade…/ Bem-vindo ao pesadelo da realidade/Bem vindo… ao pesadelo da realidade/Bem-vindo… ao pesadelo da realidade/Bem-vindo… ao pesadelo da realidade, playboy/ Eu/ Você/ A vadia/ Ninguém presta… (Ninguém presta, Tolerância Zero)

É fácil relacionar esta música com o que irá acontecer no decorrer da narrativa com Ivan quando conhece Cláudia e quando a sua falta

23 No teatro grego o coro era formado por um grupo de dançarinos ou cantores que, coletivamente,

tavam as ações e os sentimentos dos personagens. 82

comen-

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de estrutura emocional para assumir as suas ações, o leva a um estado desesperador. A letra antecipa os acontecimentos, julga o sujeito por sua insegurança, fragilidade que em nada reduz o peso das suas ações. O pesadelo da realidade é de responsabilidade do playboy, medíocre e doente que é. O jogo começou e Ivan ficou para trás já na primeira jogada. A voz do Tolerância Zero volta à cena quando Ivan vive a sua derrocada final. Ele parece não entender o que lhe aconteceu, sentindo-se totalmente impotente, incapaz de controlar não só a sua própria neurose, como o que o cerca: Giba, Anísio, Cláudia/Fernanda, um casamento fracassado e a cidade que agora para ele se apresenta como uma perfeita desconhecida. Confirmação do que foi anunciado no encontro dos corpos. O azar é o tema desta trilha que reforça e aprofunda esse seu pesadelo urbano, desfocado e confuso. Às vezes não se consegue fugir do azar / Sinto lhe dizer, otário / Às vezes não se pode fugir do azar / Prejuízo tá fudido/ Acredita no dinheiro e na felicidade cuzão? / Cartas na mesa, sua alma em jogo / Já que o dinheiro te faz tão feliz / É melhor não acreditar no azar / Azar / Fim da balada / Cadê a cadela que lhe sorria / Como uma vadia? / Foi vendida se lembra? / Já não existe saída e você pensa / Eu

devia ter matado a vagabunda / Eu podia ter matado a vagabunda / Azar / Me sinto apodrecer de ódio / com o azar gritando em minha cabeça / Azar / Eu devia ter matado a vagabunda / Eu podia ter matado a vagabunda. (Azar, Tolerância Zero)

Se Ninguém presta era a música premonitória, Azar é a conclusiva. Definitiva, descreve um sujeito como fraco e medroso. Características de Ivan desde a primeira cena, quando se apresentou calado diante de Anísio na contratação do serviço. Nesse encontro, inquirido pelo matador, teve que ser defendido por Giba. Todas as suas tentativas de enfrentamento, tanto com Giba quanto com Anísio, foram fracassadas. Ivan parece ter vendido a alma ao diabo sem ter estrutura para cumprir o acordo. O desejo pelo dinheiro, mote do filme, exige, segundo a música, segurança e frieza. “É melhor não acreditar no azar”, nem deixar espaço para o imprevisto. Acabou a festa e não sobrou nada, nem mesmo o amor de Cláudia era verdadeiro. Essa trilha está entre o pesadelo de Ivan, dirigindo possesso pela madrugada, e o prazer de Anísio na casa de Marina. Como aconteceu entre a seqüência policial de resgate dos corpos, o velório e a entrada de Anísio na empresa, o que o Tolerância Zero canta também não respeita os limites do espaço.

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O mesmo ímpeto discursivo da banda de rock está também presente nas letras de rap, trilha preferencial do filme após a entrada em cena de Anísio. Surgido nos Estados Unidos rhythm and poetry (ritmo e poesia), o rap traz a batida jamaicana para letras infindáveis que se estruturam dentro de uma lógica da exaustão, diante da necessidade de tornar visível um estado de coisas que não pode mais não ser visto ou sabido. A voz do rapper, mais do que cantar, anuncia uma atitude, grita sua condição social e, por tabela, a condição social da cidade onde vive. Acessada como comentarista ou como intensificadora das emoções expressas pela situação dramática, traz informações que complementam o significado do que mostram as imagens. Sabotage, rapper paulista, narra o cotidiano difícil de quem vive na zona sul, aqui tratada como o símbolo das regiões periféricas de São Paulo. O que ele canta está em discordância com as imagens que não vão além da visualidade proposta pelo lugar como o que pode ser visto, a encenação de uma realidade tranqüila apesar de precária. Na zona sul cotidiano difícil / mantenha o procedê quem não contê tá fudido / É zona sul maluco cotidiano difícil / mantenha o procedê quem não contêr tá fudido / Eu insisto, persisto não mando recado eu tenho

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algo a dizer não vou ficar calado fatos tumultuado nunca me convenceu mas vale a vida bem-vindo às vilas do meu bairro DEUS / Corre escape tem, 15 no pente chantagem gambezinho faz acerto depois mata na crocodilagem absurdo não me iludo no subúrbio dinheiro sujo, constantemente nos trai no futuro falsos amigo e aliados pensando em ganhá não adianta passá pano, o pano rasga. / Mundo cão decepção constrói transforma a pivetada da quebrada num transporte pra droga. / Zona sul conheço um povo todo inibido, tanta promessa, enrolação acaba nisso, de Vila Olímpia a Rocinha Conde fundão olha lá se liga ai lá esta é o Canão… (Na Zona Sul, Sabotage)

A dificuldade de compreensão do que está sendo dito se mostra não só no uso incorreto da língua, mas, e principalmente, no uso das gírias. O que se entende disso tudo é que existem regras a serem obedecidas, traições, tráfico de drogas, aliciamento de menores. O mundo da periferia é um mundo-cão que não se deixa ver facilmente. A despeito do modo como é tratada no filme, com imagens claras e coloridas, a música acaba por negar o que estas afirmam ao referir-se a uma realidade escondida, atravessada pela violência e acessível a poucos, somente aos que dela fazem parte.

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À noite, o rap – Aracnídeo, de Sabotage e Instituto – quase incompreensível, apoiado em uma estrutura discursiva mais acentuada, trata do uso de drogas de forma mais explícita, aproximando-se da realidade que agora se apresenta como um mundo desconhecido e escuro: “Quem caiu se apressou / No mundo do vício ficou / Pro vício vai mundício / Um vício propício/ Maloca um prepício / Aracnídeo / Jogado sempre no lixo / Escute e pare…”. Sabotage, figura presente em todo o filme através de Paulo Miklos, entra em cena como mais um tipo de pressão sobre Giba e Ivan. Anísio quer dinheiro para financiar o CD do artista. A cena, metaforicamente, leva o escritório para a periferia e provoca uma inversão simbólica dada por quem está no domínio da situação. Surpreendidos pelo visitante negro, a recepção é dura, mas logo contornada pela malandragem de Anísio. Vale a pena reproduzir a estrutura do diálogo: Giba, atônito: “Quem é esse cara?” Anísio, desconsiderando o tom hostil: “Sabotage. Comprimenta os mano aí mano”. Sabotage, meio desconfiado, cumprimenta e diz com seus gestos de onde veio. Ele pega firme nas mãos de Ivan e Giba, bate no peito com as mãos fechadas, faz o sinal de que está tudo bem: “E aí nêgo vei? Firma? Na fé (para

Giba) E aí nêgo veio? Firmão? Forte? (para Ivan) Anísio, controlando a situação: “Tem três gravadoras nas bota do cara aqui ó, mais um negócio que nois vamo investir”. Giba, incrédulo: “Como é que é?” Anísio: “É. Cinco conto pra fazer a gravação. Manda um som aí, Sabotage”.

Nesse encontro, mais uma vez é o rap que dá o tom da cena. Voz e corpos expressam realidades distintas num contato forçado, não só para Giba e Ivan, mas também para Anísio e Sabotagem, que afinal canta acompanhado pela percussão vocal de Anísio. As palavras, nos diz Zumthor, têm espessura, resistem, é preciso atravessá-las. (…) sua existência densa exige, para que elas sejam compreendidas, uma intervenção corporal, sob a forma de uma operação vocal: seja aquela da voz percebida, pronunciada e ouvida ou de uma voz inaudível, de uma articulação interiorizada. É nesse sentido que se diz, de maneira paradoxal, que se pensa sempre com o corpo: o discurso que alguém me faz sobre o mundo (qualquer que seja o aspecto do mundo de que ele me fala) constitui para mim um corpo-a-corpo com o mundo. O mundo me toca, eu sou tocado por ele. Ação dupla, reversível, igualmente válida nos dois sentidos. (2000, p. 89)

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Dois mundos em confronto, com linguagens diferentes, vozes estranhas, falas incompreensíveis, corpos que comunicam histórias diferentes, agenciando sentidos que possibilitam, afinal, a compreensão da cena. A câmera parece se divertir com o que registra, seduzida pelo ritmo da música que o rapper negro, alto, magro e desdentado canta, instigado pelo mano da periferia. O rap é fala do negro, que aqui está em cena. Uma fala que, segundo a psicanalista Maria Rita Kehl, apela “para a consciência de cada um, para mudanças de atitude que só podem partir de escolhas individuais; mas a autovalorização e a dignidade de cada negro, de cada ouvinte do rap, depende da produção de um discurso onde o lugar do negro seja diferente do que a tradição brasileira indica”.24 No filme essa fala trata da condição social dessa população marginalizada, trazendo para a tela o que as imagens não conseguem mostrar. O que Sabotage canta no escritório é a mesma música que encerra a narrativa, e o invasor, do seu ponto de vista, não é Anísio e sim Ivan. Essa informação é repetida no refrão, em um contexto de questionamento sobre as condições de vida na periferia da metrópole, onde esse sujeito que vem de fora

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se torna também um predador, inserido em uma guerra em que só os iniciados conseguem sobreviver, o que não ocorre neste caso. Naum sei que mata mais A FOME O FUZIL OU O EBOLA? Quem sofre mais os presos daqui ou de Angola? O que nos resta é espalhar que Deus existe agora é a hora Por que a paz plantada aqui ira da flor lá fora Corre perigo INVASOR vacilou Presa fácil virou Eu só naum posso me esquecer de lembrar Sei que o que é certo é certo eu me preservo Corre perigo INVASOR vacilou Presa fácil virou Eu só naum posso me esquecer de lembrar Sei que o que é certo é certo eu me preservo (…) Naum sei que mata mais A FOME O FUZIL OU O EBOLA? Quem sofre mais os presos daqui ou de Angola? O que nos resta é espalhar que Deus existe agora é a hora Por que a paz plantada aqui ira da flor lá fora Corre perigo PREDADOR vacilou Presa fácil virou Eu só naum posso me esquecer de lembrar Sei que o que é certo é certo eu me preservo Corre perigo PREDADOR vacilou Presa fácil virou Eu só naum posso me esquecer de lembrar Sei que o que é certo é certo eu me preservo. (Invasor, Sabotage)

KEHL, Maria Rita. Radicais, Raciais, Racionais: a grande fratria do rap na periferia de São Paulo. São Paulo Perspectiva. , São Paulo, v. 13, n. 3, 1999. Disponível em: . Acesso em: 12 nov. 2007. 86

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O rock, por sua vez, se insere mais diretamente no drama pessoal do personagem vivido por Marco Ricca. O Tolerância Zero serve como uma voz interior, uma espécie de grilo falante que imprime em sua fala um discurso punitivo merecido por quem não consegue assumir as conseqüências dos seus próprios atos e se sente vítima ao descobrir o peso de suas ações. A música, no longa-metragem de Beto Brant, debate, discute com as imagens e traz ao receptor um outro modo de ver o que se lhe apresenta. Ela está fora da diegese, com um grau tal de autonomia que consegue se imiscuir não só no clima da cena, mas contradizê-la a partir dela mesma.

A Cidade Em São Paulo, para onde Mário de Andrade traz Macunaíma, o herói sem caráter se defronta com os carros que tomam conta das ruas e em sem saber mais quem é máquina e quem é gente passa “uma semana sem comer nem brincar” tentando desvendar a realidade que se lhe apresenta. Ele fica “só pensando nas máquinas. No sábado à noite o pensamento dele sacou bem claro uma luz. Os homens é que eram máquinas e as máquinas é que eram os homens da cidade”. (2001, p. 43) É essa sua conclusão e a forma que encontra para se apropriar do

lugar. Macunaíma adota as máquinas como mediadoras entre ele e a cidade grande. A tecnologia se desenvolve na cidade e se converte em um de seus mitos. Talvez o mais aterrorizante de todos; capaz de se tornar melhor do que o homem e de tornálo dispensável substituindo sua força de trabalho e de raciocínio. Quem não consegue compreender a cidade e as máquinas que a fazem funcionar (obviamente que acionadas por homens, mesmo quando extremamente complexas que parecem até se movimentarem sozinhas) se angustia nesse espaço ou paga o preço da alienação em relação a si mesmo e ao ambiente onde vive. Essa angústia pode ser encontrada no filme de Beto Brant, personificada na figura de Ivan, um sujeito incapaz de encarar as conseqüências de sua ambição que o levou não só a compactuar com a idéia de um assassinato, como também a fingir surpresa diante do acontecido. O peso da decisão assume proporções tais que a cidade tornase uma espécie de câmara de tortura, a antesala de um fim que tragicamente se anuncia à medida que Ivan vai descobrindo que está preso a uma rede da qual é impossível se livrar. Nem a lei, nem o amor são capazes de resguardá-lo da punição, não em relação aos seus atos criminosos, mas da punição por seu arrependimento.

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A metrópole em O invasor está presente antes mesmo de surgir no quadro. Ela se coloca virtualmente sob a tela preta, e quando aparece em imagens já traz uma situação em desenvolvimento que põe o receptor no meio do conflito. A narrativa expõe situações sensório-motoras explicadas por Deleuze como um encadeamento de ações e percepções, em que personagens vivenciando determinadas situações podem agir, se acharem necessário, de forma violenta, de acordo com o que percebem. “As ações encadeiam-se com percepções, as percepções se prolongam em ações”, discorre o filósofo (1992, p. 68), até que o equilíbrio seja, finalmente, restituído. Esse enredo se desenvolve sobre o paradigma da aceleração como uma das características da vida nas grandes cidades, onde os compromissos de qualquer ordem muitas vezes tornam-se algo maior, armadilhas das quais é impossível se desvencilhar. A engrenagem não é mais mecânica, e o motocontínuo da vida metropolitana não permite a desaceleração. As tensões são absorvidas pela própria metrópole, transformadas em energia propulsora da vida e dos seus enredamentos. A metrópole de O invasor não é só o lugar do conflito, também ela é conflituosa. Desde a sua primeira aparição, apresenta-se como

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esse lugar paradoxal onde a capacidade de enganar torna-se valor universal entre quem, mesmo momentaneamente, tem o poder nas mãos. O início e o fim da narrativa se organizam sob uma mesma justificativa: a resolução de um problema pela adoção da violência como única saída. O lugar da trama, no entanto, adquire características frontalmente opostas. Na primeira seqüência o cenário era um bar de periferia, na última é a rua de um bairro nobre da cidade de São Paulo. Mas não é só o local que muda. O assassino agora é quem pode definir o que vai acontecer e como vai acontecer, o que, na verdade, ele já havia feito quando matou também a mulher de Estevão e entrou na empresa de engenharia civil. Trata-se, portanto de uma aparente inversão na medida em que não houve troca dentro da ordem social, mas somente uma inserção, o que o qualifica a tratar com seus amigos ou parceiros seus antigos contratantes. O marginal que atravessou a fronteira geográfica e que agora faz parte do mundo dos ricos agregou poder à sua força agressiva. Ele passou a freqüentar o espaço daqueles a quem vendia os seus serviços, legitimado pela companhia da garota rica que abre as portas de sua casa e do mundo encantado da diversão eletrônica das boates lisérgicas.

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Essa travessia de Anísio funciona como força de inclusão somente quando se pensa na violência como forma de resolver os problemas do capitalismo. Foi por essa porta que ele entrou, sem que a tenha forçado: ele respondeu a um convite e exerceu seu fascínio sobre a menina sedenta por emoções fortes do tipo que uma de relação como essa parece prometer. Nessa cidade, as barreiras tornam-se fluidas e os limites se estendem. A cidade de São Paulo em O invasor adquire nuances plásticas, narrativas e sociais que a transformam em uma metrópole cujos contrastes se explicitam de modo a se fazerem presentes em todos os momentos. Suas paisagens oscilam entre a fantasmagoria de uma arquitetura que mal se define na escuridão da noite e o realismo das seqüências diurnas. Ela parece cindida, dividida, uma metáfora da questão posta pelo filme sobre quem seria o verdadeiro invasor: as periferias das quais os nãoperiféricos devem se proteger ou os muros dos condomínios fechados que brotam no meio das favelas, de uma hora para outra, prometendo segurança e tranqüilidade, enquanto expulsam seus antigos moradores para lugares cada vez mais distantes? Seriam os invasores os burgueses que vão até o marginal “convidá-lo” ao seu mundo ou o marginal que, recusando sua posição social, encontra nesse “convite” a possibilidade de

mobilidade social? Ou, em outra perspectiva, de cunho estético: quais seriam as imagens da cidade real? Essas diferenças sociais, concretizadas por verdadeiras compartimentizações e segmentações do território das cidades, criam uma situação de desconhecimento entre seus habitantes que extrapola o campo simbólico. Um desconhecimento real do que seja a cidade onde vivem, um lugar estranho e ameaçador na medida em que as diferenças são marcadas não pela possibilidade do diálogo, mas pela presença do medo como elemento comum a todos e que a todos afasta estruturando uma situação em que a separação em busca de proteção acaba, no final das contas, aprofundando o mistério que há em relação ao desconhecido. Não ver, não conhecer, não se expor, não se envolver. Negar talvez seja a opção mais comum, entre todas as possíveis. Ou, mais ainda, em O invasor não haveria cisão, mas uma continuidade que coloca seus habitantes numa situação em que todos são ameaçados e ameaçadores, independentemente de camadas sociais ou do poder aquisitivo. Para Zanin Oricchio, o filme “tenta fotografar a cidade como um todo, fazendo um corte cirúrgico da pirâmide social que a compõe. E que fica sendo uma representação, em escala, da

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sociedade brasileira como um todo” (2003, p. 178). Essa metrópole em continuidade se faz presente através dos longos travellings que atravessam suas avenidas e ruas, deixando ver um ambiente em constante fazer-se, desfazer-se e refazer-se, o que justificaria, de algum modo, os personagens serem engenheiros civis: sujeitos com a potência de destruição e reconstrução, esta quando possível e interessante aos olhos da ordem capitalista.

é a da pintura de rua, linguagem do pixo, cheia de significados ideológicos associando essa forma de expressão a uma urbanidade marginal. Esse sujeito, o invasor, afirma essa palavra, vem da periferia.

Cidade sem limites O invasor começa nos créditos. Desde o aparecimento dos patrocinadores, a banda sonora traz o ruído da cidade: um som abafado de movimento de carros, interrompido por algumas vozes esparsas e por um barulho que parece vir de uma cozinha. Os nomes estão escritos em letras irregulares, com tamanhos variados, misturando caixa alta com caixa baixa. O fundo preto contrasta com a brancura das letras que ocupam o centro da tela. Há uma regularidade nessa apresentação que se mantém até o surgimento do título do filme, também em letras brancas em caixa alta, compondo um desenho que vai crescendo da esquerda para a direita com um movimento ascendente que se inicia no O e termina no R incisivo e definitivo. A grafia

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As primeiras imagens trazem um homem negro de camiseta regata andando na rua. O som em continuidade com o que se ouvia ainda na apresentação dos créditos estabelece a conexão com o que agora se mostra. A ação transcorre em uma região facilmente identificada como parte da periferia da cidade, dada às suas características urbanas e a aparência das pessoas. Um ônibus da SPtrans identifica o lugar como a cidade de São Paulo. O que se vê na cena é mediado por um olhar agressivo e vigilante que parte de um lugar específico localizado atrás de uma grade de ferro. Nele está enquadrado, além da rua, um carro preto que entra em seu campo de visão da esquerda para a direita, de onde saem dois homens em silêncio. Eles parecem tensos, à procura de alguém que

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não conhecem.

A subjetiva constrói o suspense, mantendo o sujeito que olha do lado de fora do quadro. Sua identidade se forja por uma fala25 decidida e carregada de gírias, compondo um tipo de dialeto compreendido por poucos, como se na cidade de São Paulo as línguas fossem várias. A dúvida de Giba sobre estar se dirigindo à pessoa certa é logo dirimida quando Anísio pergunta pelo pagamento. Ele sabe do que se trata. Após estipular o prazo de uma semana para cumprir o contrato – “desossar a fita” –, o matador estranha o silêncio de Ivan, comportamento que perturba o encaminhamento do negócio. “O cara, não fala nada? Que que é? É cana? É ganso? Qual que é?” Impossível entender exatamente ao que ele se refere sem fazer parte do lugar onde essa fala foi gerada.

é dito, ativando a idéia de que “a palavra pronunciada não existe (como faz a palavra escrita) num contexto puramente verbal: ela participa necessariamente de um processo mais amplo, operando sobre uma situação existencial que altera de algum modo e cuja totalidade engaja os corpos dos participantes” (ZUMTHOR, 1993, p. 244) Giba tranqüiliza o assassino ao afirmar que Ivan é seu sócio e que também está pagando pelo serviço. Após o contato com o matador, eles voltam para casa, caminho que é desviado pela intenção de Giba de comemorar o sucesso do encontro. A visibilidade diurna se transforma, e a metrópole noturna passa a ser identificada através de estruturas urbanas difusas que indicam seu poder e sua dimensão. Túneis, viadutos, grandes avenidas, edifícios iluminados e todo o aparato publicitário que a acompanha, servem como elementos que a identificam como um espaço agigantado. São Paulo se define por seus símbolos a avenida Paulista, o bairro da Liberdade ou a avenida 23 de Maio, referidos por elementos indiciais ou por nomeação, como ocorre com esta última, onde se localiza a boate de propriedade de Giba, para onde eles se dirigem.

O contexto, o tom e certamente a gestualidade de quem fala são requeridos para que se chegue ao significado do que 25 As falas de Anísio foram escritas por Sabotage.

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Cada um desses espaços se dá como imagem não somente através da fala dos personagens, mas também por meio de elementos que marcam suas especificidades, transformadas em estruturas comunicativas facilmente reconhecíveis de tão propagadas e acentuadas pelas mídias de massa. A rigor, no filme, pouco se vê da cidade que perde concretude e densidade, fazendo-se presente através do vidro dos carros que a atravessam. O lugar simbólico surge nos espaços urbanos que estão próximos aos grandes centros de decisão econômica, empresarial e administrativa.26 Constituem o lugar da caracterização da imagem global na cidade e seus significados são de ordem comunicativa. Caracterizam-se pelo forte impacto visual que se combina com um código de valores persuasivos prontos para serem consumidos como marcas da proposta mundial para as grandes cidades do mundo. A fidelidade ao código global e a comunicação de uma mensagem unívoca constitui característica dos lugares simbólicos. (FERRARA, 2002, p. 25)

As ruas de O Invasor são o sítio dos carros onde o mais importante é sair e chegar, de preferência sem que nada aconteça nesse intervalo. Os motoristas querem a liberdade propiciada pelo automóvel, mas a exacerbação do uso da máquina acaba por ultrapassar sua 26 Aqui seria interessante incluir também a atividade cultural.

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função originária associada ao transporte, conferindo-lhe qualidades de casa, tornado-a abrigo e proteção, mas também prisão móvel, onde os sujeitos gozam de uma privacidade egoísta expressa pelas ultrapassagens e pelas disputas de lugar no meio do trânsito. O filme se aproxima de um road movie, com veículos trafegando pela cidade de São Paulo, numa viagem sem fim em que a paisagem é grande mas enfadonha, repetitiva e inconsistente. Desde a seqüência inicial, é essa a visão proposta, quando uma câmera no banco de trás do carro se posiciona em contraluz ladeada pelos dois personagens. Ela é um terceiro sujeito que, junto com a dupla, avança livremente pelas grandes avenidas. O que se mostra está na altura dos olhos do motorista e do passageiro, um espaço achatado por uma visão que traz a dimensão de um território sem fim, comprimido entre altos edifícios e equipamentos urbanos. Virtualizada, a metrópole vai se atualizando à medida que surge diante dos motoristas. Seus personagens não andam a pé, parecem ter se transformado em seres de rodas. Eles querem a liberdade que é propiciada pelo automóvel, viver o tempo proposto por essas máquinas, conquistar o espaço vivido como intervalo, uma vez que o que está no meio deixa de ter importância em relação ao ponto de partida e de chegada.

As paradas ocorrem na medida da necessidade de entrar em algum lugar, no escritório, na boate, no motel ou em suas casas. Estacionar para imediatamente entrar, evitar parar, deixar a cidade do lado de fora. Dentro do carro, dentro de casa, o carro também casa, mas uma casa que circula. O corpo sentado, dobrado em três, mecanizado pela engenharia, habituado às solicitações do deslocamento, atento ao que passa do lado, ao que vem de trás e ao que, de um instante para outro, pode interromper seu fluxo ou exigir aumento da velocidade. Na condição de motoristas, “a percepção do espaço passa a ser determinada pela velocidade, inviabilizando o reconhecimento pedestre, típico das configurações locais tradicionais” (PEIXOTO, in NOVAES, 2005, p. 279). Em O invasor, viadutos e túneis surgem essencialmente como estruturas urbanas propiciadoras de circulação, platôs que criam níveis diferenciados para quem as atravessa de carro, possibilitando um aproveitamento do território além da superfície originalmente disponível. Nessa cidade não há limites para o deslocamento; quando não há mais espaço na superfície, criam-se pontes suspensas ou vias subterrâneas. O que importa é liberar o trânsito e deixar os carros passarem e no fim de tudo como um ato de vingança, a cidade se fecha, congelada pelo excesso de carros.

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Os automóveis permitem a experiência da velocidade sobre um espaço concreto. Asfalto quente sobre o qual pés descalços não podem tocar, as ruas definem sua vocação como espaços de circulação de meios de transporte particular – a maioria das vezes com um único ocupante – e coletivo. Neles, as cidades são atravessadas, ligeiramente reconhecidas, ligeiramente decifradas na medida em que essas ações evitam que o sujeito se perca. De pé diante dos prédios, o homem se sente pequeno,27 dentro do carro se faz veloz, capaz de superar o que o olhar não alcança, trazendo a verticalidade para a horizontalidade de uma visão ampliada pelo espaço que surge na frente do carro e que logo se reduz pelo espelho retrovisor.28 As seqüências privilegiam a velocidade e talvez por isso sejam, em sua maioria, noturnas. A ausência de engarrafamentos favorece o deslocamento nesse espaço público tornado uma derivação do movimento. As ruas da cidade, segundo Sennett, adquirem então uma função peculiar: “permitir a movimentação; se elas constrangem demais a movimentação, por meio de semáforos, contramãos etc., os motoristas se zangam ou ficam nervosos” (1988, p. 28) Os estímulos dessa metrópole não são suficientes para diminuir a velocidade.

27 Situação vivida por Ivan, no ápice de sua tensão. 28 Como na seqüência do trajeto em direção à boate.

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O grafite do túnel que liga a avenida Doutor Arnaldo à avenida Paulista adquire vida somente quando tem seu significado estruturado por um conhecimento prévio da região por parte do receptor que completa a informação e o reconhece como tal. Mesmo quando a câmera sai do carro e compõe um plano geral lateral, no momento em que Ivan e Giba finalizam a travessia, o que ainda mostra é uma cidade fantasmagórica, borrada pelo deslocamento do veículo. Essa imagem, no entanto, recupera o contexto urbano, recolocando o automóvel como parte dele e não mais como definidor da realidade. Giba sai do carro, diante dele um portão automático se abre. O sentido das grades aqui é similar ao das que protegiam o bar onde eles encontraram Anísio: separar deixando ver, apartar sem esconder. A diferença está no automatismo, na presença do porteiro e na proporção do corpo do homem que projeta os braços para cima, diminuído pelas colunas de concreto que seguram a construção e abrigam as garagens, de onde se entra ou se sai sem precisar tocar no chão. A natureza e a técnica, o primitivismo e o conforto se unificaram completamente, e aos olhos das pessoas, fatigadas com as complicações infinitas da vida

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diária e que vêem o objetivo da vida apenas como o mais remoto ponto de fuga numa interminável perspectiva de meios, surge uma existência que se basta a si mesma, em cada episódio, do modo mais simples e mais cômodo, e na qual um automóvel não pesa mais que um chapéu de palha, e uma fruta na árvore se arredonda como a gôndola de uma balão”. (BENJAMIN, 1994b, p.119)

inseridos na dinâmica desse mercado, cujas ações prescindem do deslocamento real, substituído pelas redes de comunicação virtual. O fluxo de pessoas nessas áreas acaba por se concentrar em determinados momentos do dia, dividido em função da entrada no trabalho, do intervalo para as refeições e do momento de partida e retorno para casa.

As amplas avenidas e a grandeza arquitetônica exibidas na tela confirmam o mito cuidadosamente criado no país sobre a dimensão da capital paulista, como algo que extrapola a idéia de um referencial concreto possível de ser vivido em sua totalidade por qualquer um de seus habitantes. Essa cidade se espalha, ocupando espaços diferenciados em função da localização e do uso, entre outros elementos que particularizam as microregiões que a compõem.

Os trajetos dos personagens/motoristas por essas regiões são emoldurados por backlights, outdoors, prédios e viadutos de ferro. É como se eles cruzassem uma cidade imaginária, fluorescente, agitada pela publicidade e pelas grandes intervenções urbanas, elementos que a agigantam, compondo um espaço funcional e simbólico. O planoseqüência monta o retrato de sua imensidão, justificando o automóvel como a máquina que avança sobre um território impossível de ser apreendido de outra maneira.

A paisagem ocupada por classes abastadas representa uma situação social construída dentro do que se entende por uma cidade globalizada cuja definição se dá em função da sua inserção no mercado planetário. Nesse contexto, torna-se policêntrica, com centros definidos por suas atividades financeiras, culturais e de desenvolvimento tecnológico, entre outras, todos fazendo parte de uma rede de interesses socioeconômicos,

O que se vê são os vestígios de uma cidade colossal, onde o homem encolheu em relação às escalas de crescimento e de monumentalidade construídas durante décadas, o que acabou por decretar uma quase total incapacidade de ter com ela uma relação mais humana e acolhedora. LéviStrauss descreve esse vigor empreendedor em plena realização na primeira metade do século XX.

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Em 1935, os paulistas vangloriavamse de que construíam em sua cidade, em média, uma casa por hora. Tratava-se, na época, de mansões; garantem-me que o ritmo se manteve igual, mas com edifícios. A cidade desenvolve-se a tal velocidade que é impossível obter seu mapa: a cada semana demandaria uma nova edição. Parece, inclusive, que se formos de táxi a um encontro marcado algumas semanas antes, corremos o risco de chegar com um dia de avanço em relação ao bairro. (1996, p. 92)

A ausência de contato com estranhos no espaço urbano é uma das características dessa metrópole, o que nos remete ao Vampiro de Dusseldorf (Fritz Lang, 1931), posto em contraposição. No filme de Lang, a infância corre perigo ao andar a pé pela cidade, estando sujeita a encontros ameaçadores como contingência do acaso. No filme de Brant, ao contrário do contato como algo ameaçador, é a sua quase impossibilidade que cria a situação de perigo, um perigo imaginário, mas não menos presente. A cidade que para Sennet é “um assentamento humano em que estranhos têm a chance de se encontrar”29, neste caso é frontalmente negada: não há estranhos se encontrando, quase não há olhares que disfarçam ou que se escondem por trás das máscaras de civilidade, como discute o

29 Como na seqüência do trajeto em direção à boate.

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teórico americano. Desconhecidos em espaços vazios causam mal-estar. Avenidas grandes e vazias provocam náuseas. Ivan, acuado por Anísio e arrependido do assassinato, compra um revólver em busca de algum tipo de segurança. Descobrindo-se traído pela amante Luciana (Malu Mader), espiã de Giba, seu estado de desamparo se aprofunda. Após tentar falar com o sócio, ele passa a noite perambulando de carro por São Paulo. Nesse trajeto que leva a lugar nenhum, a montagem alterna seu rosto com a paisagem urbana, transformada em imagens abstratas, pintadas com cores que transitam, predominantemente, entre o amarelo e o verde. Elas aparecem sobrepostas e alucinam o sujeito angustiado. A essas imagens agregam-se outras em primeiríssimo plano, o que dificulta a identificação, num primeiro olhar, de Anísio e Marina. Luzes e concretos frios dão forma ao entorno dos caminhos percorridos por Ivan. A câmera alterna planos subjetivos e objetivos: ora é a própria visão do personagem, ora é quem observa de perto o seu rosto transtornado. Os túneis e as ruas, antes ultrapassados como se não existissem, agora assumem uma espécie de protagonismo ameaçador, desconhecido, tentacular, um abismo onde Ivan mergulha

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como fatalidade, única opção para quem não tem mais para onde ir. Continuar dirigindo é o que lhe resta, como se essa ação pudesse aplacar-lhe a dor e redimi-lo dos seus pecados.

mais os ânimos já exaltados. A câmera acompanha tudo de muito perto. No ombro do cinegrafista ela registra os menores gestos e expressões, montando um campocontracampo tenso e inquieto.

“A cidade é a realização do antigo sonho humano do labirinto”, diz Walter Benjamin (2006, p. 474). Para Ivan, porém, o fio que o liga a realidade não pode ser ignorado. Tomado por um imenso cansaço, ele perde os sentidos e mesmo sem desmaiar deixa de perceber a realidade ao seu redor. Ao atravessar um cruzamento, provoca uma batida. Em plano geral, o que acentua a desertificação da cidade, ele entra em atrito com o motorista e o passageiro do carro envolvido no acidente: dois homens vestidos como cantores de rap, que fazem uma abordagem agressiva. Um deles traja calça e camisa larga, um tênis branco e uma toca na cabeça. “Puta que pariu, mano! Oh mano, estragou todo meu carro, maluco!”, reclama indignado. Ivan responde que se responsabilizará pelo prejuízo.

A resposta ao insulto vem em forma de aproximação física e Ivan, cada vez mais pressionado, saca a arma em sinal de ameaça. Sua expressão é de puro desespero e desamparo, mas o revólver intimida os homens, que se afastam do local. Cruel inversão de papéis, as vítimas do acidente têm tudo para serem os que representam o perigo e a violência. O modo de falar, o tipo de roupa, as gírias e o comportamento, tudo levaria a se pensar que são eles os agressores, mas aqui quem assume essa posição é o patrão capitalista, perdido na avenida larga, fragilizado pela realidade. Ivan contrariou as regras, primeiro mandou matar e agora não parou diante do sinal vermelho. Ele se indispôs com o espaço público e “esse espaço é o lócus da lei” (GOMES, 2002, p. 162).

Como se não tivesse ouvido, o sujeito insiste, acusando Ivan de ser cego e de não ter visto o sinal. O que ele diz soa como provocação e o engenheiro explode impaciente, gritando que se responsabilizará por pagar o prejuízo, chamando o carro do outro de merda, acirrando, com essa postura, ainda

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O risco se coloca de modo explícito. O contato inesperado, mesmo previsto quando se está fora de casa, resulta de um estado de espírito alterado, adquirindo contornos que impossibilitam qualquer prática cordial entre desconhecidos que, no mínimo, deveriam ser respeitosos uns com os outros. De acordo com Sennett, “boas maneiras e intercâmbios rituais com estranhos são considerados, na melhor das hipóteses, como formais e áridos e, na pior, como falsos. A própria pessoa estranha é uma figura ameaçadora e muitos poucos podem sentir um grande prazer nesse mundo de estranhos: a cidade cosmopolita” (1988, p. 16). Sozinho, Ivan expressa sua revolta chutando o veículo. Ele abandona seu abrigo móvel e, desse modo, finalmente se depara com a rua, espaço que lhe é desconhecido e distante, onde painéis de propaganda disputam com barracos um lugar na cidade. Correndo com a arma na mão, sem saber o que fazer, é a pura expressão de um homem agoniado por suas ações e por ter perdido o poder de decisão sobre sua própria vida. O plano geral demonstra o estado de solidão e de impotência em que se encontra. O lugar, completamente deserto, parece amplificar essa situação. Após esse primeiro impulso, Ivan esconde a arma na cintura sob a camisa e passa a

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caminhar. Por alguns momentos, o planoseqüência que o acompanha abre-se para o cenário, reafirmando a sensação de solidão e abandono desse sujeito diante da metrópole maltrapilha; por outros, transforma-se na própria face do desespero deixando-se ocupar pelo rosto indeciso. Esse rosto se torna superfície, arauto do que se passa com o ele. O rosto assume o primeiro plano, toca a superfície da tela, avança por sobre o espectador. Ele se faz através de suas marcas, da respiração entrecortada, do nariz e da boca que se abrem e se fecham em busca do ar que lhe como o que pode lhe dar forças para continuar correndo e seguir em frente. O rosto, nos dizem Deleuze e Guattari, são traços, linhas, rugas do rosto, rosto comprido, quadrado, triangular; o rosto é um mapa, mesmo se aplicado sobre um volume, envolvendo-o, mesmo se cercando e margeando cavidades que não existem mais senão como buracos (1996, p. 35).

Esses traços e linhas se acentuam, expondo a fragilidade de Ivan, perdido na cidade, sem saber o que fazer, sem ter para onde ir, sem referência alguma. As imagens supersaturadas granulam o entorno e o corpo do homem, como se o ambiente e o personagem estivessem em decomposição, num verde embolorado e malcheiroso.

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A respiração entrecortada e a falta de direcionamento aprofundam a idéia de desespero. É impossível desviar o olhar do que se passa na tela. O rap do grupo Tolerância Zero incita e aprofunda o problema, narrando as imagens com o refrão “a bomba vai explodir, ninguém vai te acudir, sociedade destrói sua vida, capitalismo por aqui suicida”. E esse é o máximo de contato que o sujeito burguês consegue estabelecer com a cidade, uma relação inútil da qual nada mais é possível esperar. Após o silenciar da música, Ivan, põe-se a correr, já exaurido, quase se arrastando pela rua. Segundo o geógrafo Yi-Fu Tuan, é de uma profunda ironia que freqüentemente a cidade possa parecer um lugar assustador. Construída para corrigir a aparente confusão e o caos da natureza, a cidade em si mesma se transforma em um meio ambiente físico desorientador, no qual os prédios de apartamentos desabam sobre seus habitantes, ocorrem incêndios e o trânsito ameaça a vida e mutila as pessoas. Apesar de cada rua e prédio (…) serem sem dúvida os produtos de planejamento e reflexão, o resultado final pode ser um imenso labirinto desordenado” (2005, p. 233 e 234).

A seqüência é interrompida por um primeiríssimo plano frontal de Ivan falando sobre o crime. Ele parece confessar seus

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pecados a espectadores desconfiados e sabedores do que é verdadeiro ou falso em tudo o que está sendo dito. Em pânico, deixa claro que se sente perseguido, que foi envolvido por Giba no assassinato do sócio e que agora pode ser, ele, a próxima vítima. Esse depoimento é interrompido por uma seqüência externa de um sujeito que sai de um carro. Dentro dele ficou Ivan, algemado, esperando diante da casa de Marina, onde estão Giba e Anísio. Dessa vez o automóvel não é mais abrigo. Novamente o lugar da ação é a rua, e o centro do drama está no olhar do personagem de Marco Ricca, literalmente preso dentro de um carro, exposto aos interesses de Anísio e Giba.

Nas quebrada Em contraposição ao modo como a cidade moderna, ampla e publicitária é apresentada, a periferia – local para onde Anísio leva Marina – se mostra fragmentada, cortada em planos curtos unidos através do rap que estrutura a narrativa e dá sentido a uma seqüência em que dois estranhos compartilham o mesmo espaço que, se não favorece o diálogo, também não o impossibilita. O carro, neste caso, pode ser pensado como

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um assento onde duas pessoas podem se sentar uma ao lado da outra e olhar a mesma paisagem, a mesma vista. E, inclusive, se as duas permanecerem em silêncio, não significa que estejam mal. Pode-se convidar alguém a sentarse no seu carro sem que você seja obrigado a ser ou a se tornar seu amigo. E, em certo momento, essa pessoa desce e vai embora… Por isso digo que o carro oferece um assento ideal” (KIAROSTAMI apud BERNARDET, 2004, p. 41)

O automóvel descortina a região, através de uma câmera agitada que olha para a frente, para os lados ou se aproxima em zoom, tentando mostrar o máximo possível. Um panorama de grandes edifícios e torres de energia é substituído por imagens de um bairro pobre. Apesar da montagem mais recortada, o tempo parece se estender através da quietude das pessoas que num dia de sol caminham ou andam de bicicleta num ritmo que destoa da velocidade da metrópole globalizada. As pessoas, capturadas pela câmera, se deixam ficar diante dela, surpresos com a possibilidade de se tornarem imagem. Elas não se aproximam nem fazem qualquer gesto em direção à câmera, somente se deixam ver, retribuindo o olhar sem nenhuma ansiedade. A seqüência dura quase um minuto e meio, composta como um documentário que flagra o dia-a-dia do lugar.

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O passeio é interrompido por Anísio, que leva Marina para um salão de beleza popular onde a cabeleireira se nega a atendê-la com a justificativa de excesso de trabalho. Anísio se mostra magoado com a recusa e sai ameaçando não voltar. Marina assiste ao debate, divertindo-se com a situação como se estivesse diante de um espetáculo exótico. No final da tarde, eles ainda estão no carro. As luzes estão acesas, as lojas começam a fechar e Anísio cumprimenta alguns conhecidos. A estrutura de montagem é semelhante à anterior: fragmentada, construída em relação aos que estão no carro, de onde se estendem seus olhares. O espaço recortado é ilustrativo e a imagem, excessiva. Diante do que se vê, é possível afirmar: isto não é a periferia de São Paulo, isto são imagens da periferia de São Paulo. Assim é que Marina simula naturalidade em relação ao que vê e Anísio não se integra, ainda que tente demonstrar alguma intimidade com os moradores do lugar. Em um boteco, o casal é recebido com cordialidade. Anísio cumprimenta o dono do bar e faz o pedido: “O seguinte, pra ela uma Maria Mole, pra mim o de sempre”. Os que o servem sabem do que ele gosta. Marina, a que vem de fora, adota uma postura que tenta reproduzir os códigos do lugar, mas, pouco à vontade, ela evita olhar para as pessoas. Sua gestualidade é uma imitação imperfeita dos gestos que ela pressupõe serem os correntes ali.

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A sensação de deslocamento se afirma ainda mais pelo diálogo entre ela e Anísio: “Que pico, hein!”, diz para Anísio. “Tudo em casa”, ele responde. “Muito louco!”, é a réplica da moça. “Tudo nosso!”, conclui Anísio saindo em busca do vendedor de cocaína. Conversa paradigmática, estereotipando um diálogo marginal quase sem conteúdo. Uma câmera no ombro atenta à situação registra os cumprimentos se colocando em torno do grupo, mas ela também não está à vontade. Zhumtor,30 referindo-se ao que compõe o ato locutório, para ele performático, distingue três elementos que fazem do que é enunciado uma comunicação. – a “situação” imediata, prendendo-se ao fato de que se fala; e mediata, tendo em conta o envolvimento discursivo, às outras palavras precedentes, seguindo ou acompanhando aquilo que se enuncia; – a “região”, pela qual é preciso entender os três espaços – geográfico, cultural ou social – em que os signos feitos obra são conhecidos e empregados; – o “contexto”, que abarca toda a realidade ambiente, considerada como o fisicamente presente na enunciação: a própria língua pano de fundo da palavra; o campo discursivo, próximo, longínquo, temático, em que ela se enraíza; o conjunto não lingüístico, natural e empírico, histórico e mental, entre cujos elementos se situa. (1993, p. 251)

O diálogo minimalista parece não considerar o primeiro elemento. As palavras não se estruturam no tempo da composição formal da comunicação, formal não no aspecto protocolar, mas no sentido de uma construção que se dá em relação ao que se disse antes e a ao que vai ser dito depois, estrutura mínima necessária para a comunicação verbal, seja ela oral ou escrita. A tentativa de Marina de se apropriar da língua do lugar se evidencia por sua aproximação com o que considera características da cultura da região. Assim ela parece estar dialogando muito mais com o ambiente, ou com o que acredita ser este ambiente, do que com o próprio Anísio, ainda que para ela Anísio seja tudo isso. A periferia para Marina é uma comunidade imaginada (ANDERSON, 2005) Essa seqüência pode ser encarada como um paradoxo: algo que apesar de não ter visibilidade não pode deixar de ser visto. E, desse modo, a periferia invade a tela violentando a câmera. Esses espaços podem ser considerados como vazios, segundo nomenclatura de Jerzy Kociatkiwicz e Mônica Kostera citados por Bauman. Lugares vazios são aqueles a quem não se atribui nenhum significado. Mesmo sem limitações físicas como cercas ou barreiras, mesmo não sendo proibidos,

30 Zhumtor recorre ao livro Traditionen des Sprechens, de B. Schlieben Lange, para desenvolver essa discussão

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esses espaços vazios são inacessíveis por serem invisíveis (apud BAUMAN, 2001, p. 120). Na estrutura de O invasor ocorre uma inversão. Não são as zonas marginalizadas e empobrecidas os lugares vazios, mas a metrópole globalizada transformada em espaço de fluxo. Sem afeto, sem memória, invisível, afogada por uma experiência sensorial que não a inclui, fechada cada vez mais aos estímulos externos, reduzida a espaços a serem transpostos destituídos de identidade e de significado, ela enfraquece, deixando de ser um lugar habitado para tornar-se um lugar vazio. A porosidade e a indefinição de suas imagens parecem não exigir contestação, até que a periferia, como o que não pode mais deixar de ser visto, se apresenta deixando clara essa ausência.

de aparente abandono cotidiano. O diachuvoso31 acentua esse estado. À medida que o carro entra, vai se avistando os detalhes: ruelas, casas coloridas com portões de grades de ferro, restos de construções nunca terminadas, esgoto a céu aberto, lixo, calçadas largas, campo de futebol de terra batida, carros nas garagens e gente nas ruas – gente de braços cruzados, gente andando, gente conversando. Nessa periferia os carros não ocuparam o lugar das pessoas e a idéia de abandono é um préconceito, em absoluto verdadeiro, montado sobre uma diversidade pouco harmoniosa.

Grafias urbanas

Se nesta metrópole se torna difícil definir o que é centro, quando este há muito deixou de ser um único, assim nomeado por sua força de atração em função da oferta de trabalho e dos equipamentos culturais, o mesmo pode ser dito sobre a periferia, quando se considera apenas a sua localização geográfica distante do centro histórico tomado como referência.

Da zona sul da cidade, para onde vão Marina e Anísio, a primeira imagem é dada por um plano geral capaz de vislumbrar ao fundo casas apinhadas numa progressão vertical, como se uma estivesse sutilmente posta sobre a outra, em uma situação de difícil equilíbrio. O ambiente é sujo, malajambrado e envelhecido por um estado

Estar na periferia deixou de ser problema quando as tecnologias de segurança e de vigilância se tornaram uma realidade para empreendimentos imobiliários de médio e alto padrão. A periferia passa a ser definida não mais por sua localização, mas por suas características arquitetônicas e de infraestrutura urbana, com traços de precariedade

31 As

imagens parecem ter sido feitas em dias variados, o que configura a possibilidade de uma paisagem diferenciada ainda que seja a mesma. 103

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bastante acentuados, principalmente se comparados aos seus vizinhos, e por uma cultura com um linguajar e uma gestualidade própria que identifica, já à primeira vista, o sujeito que dela faz parte. Configurações de centro e periferia, que sempre dependem do estabelecimento de uma certa perspectiva, estão sujeitas a substantivações32 de diversas ordens, tais como territórios físicos delimitados (bairros, regiões, países, continentes etc.), redes de sociabilidade (“manos”, “boys”, “galera da zona leste” etc.), enunciados e práticas culturais (raps, sambas, vídeos, programas de rádio, revistas, livros, assim como manifestos do crime organizado ou construções midiáticas veiculadas em TV, jornal, cinema etc.) e políticas públicas (o Estado com seus equipamentos e políticas, as ONGs e demais configurações da sociedade civil organizada) (Editorial da revista Sexta Feira n. 8. São Paulo, Ed. 34, 2006).

Anísio é a representação de tudo isso. É ele quem traz a fala periférica para o filme, dirigindo um jeep cherokee, e quem leva a garota burguesa, rica e loira para passear na sua “quebrada”. As marcas externas do lugar periférico estão nas ruas, nas pessoas, nos portões das casas, mas também nas paredes e nos muros utilizados como suportes 32 Itálico do autor.

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para imagens variadas, tipográficas em sua maioria, compondo uma estampa urbana diversa e colorida. Esse aparato comunicacional anuncia a autonomia da região, capaz de prover seus habitantes com produtos e serviços dos mais diferentes tipos. Quase nada nesse ambiente assume grandes proporções – um supermercado e um posto de gasolina são os maiores estabelecimentos. O restante são quitandas, bares, oficinas e barracas que atendem aos moradores do local e que falam diretamente com eles. As pequenas placas e os textos escritos nas paredes informam de modo direto e objetivo aquilo que vendem. Essas inscrições têm como objetivo primordial responder a uma demanda de comunicação dirigida, muitas vezes estabelecendo uma relação de proximidade entre o proprietário e o consumidor, como a escola de cabeleireiros Lia e a venda de doces e balas Zu.

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tipografia que contrasta com o cuidado empregado na feitura do nome. Este parece ter sido feito por um pintor letrista, enquanto os demais escritos por alguém sem nenhuma técnica, ainda que a disposição da informação obedeça a uma intenção explícita dada pelo modo como as palavras foram distribuídas. Na escola técnica de cabeleireiros Lia, o texto, alinhado à direita, deixa a palavra Lia em destaque, com mais espaço e em tamanho superior às demais. O anúncio escrito com uma tipografia vermelha mistura caixa alta com caixa baixa, trazendo embaixo a assinatura do letrista e ao lado a pintura de um rosto de mulher. A destreza que se encontra no desenho não está no texto, dada a irregularidade da escolha tipográfica.

Nesta última, o nome do estabelecimento – pintado em azul, em letras maiúsculas sombreadas – ocupa uma parte pequena da parte inferior da parede branca. Acima do nome o desenho em preto de duas crianças e a indicação do que se vende ali: salgado, refrigerante, doce, balas, palito, massa numa

Essas grafias, como as demais, que transformam a superfície das paredes e muros, dão conta daquilo que Michel de Certeau denominou de tática, como maneiras de fazer – “as mil práticas pelas quais usuários se reapropriam do espaço organizado pelas técnicas de produção sócio-cultural” (CERTEAU, 1994, p. 41) – que, neste caso, inserem os habitantes deste bairro não só no circuito do comércio e da publicidade, mas também no circuito da expressão visual das pichações e das pinturas murais.

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A produção de um tipo específico de comunicação visual com características populares, como a que se encontra nesta seqüência, indica modos de apropriação de uma dada realidade e condição social que exigem posicionamentos explícitos sobre como sobreviver estando à margem. “Essas práticas colocam em jogo uma ratio ‘popular’, uma maneira de pensar investida numa maneira de agir, uma arte de combinar indissociável de uma arte de utilizar” (ibid., p. 42). A oficina de bicicletas é exemplar neste contexto. A parede e o portão estão ocupados por informações sobre os serviços prestados. Ali encontra-se o melhor preço da região, vendem-se “bikes” novas, é tudo mais barato. Os valores cobrados também estão anunciados: a “montain bike” custa 100 reais, a cross 80 e a caiçara teve seu preço coberto, restando somente a palavra reais. Com tudo isso, ainda sobra espaço para anunciar a venda de um apartamento, detalhadamente descrito, por 15 mil reais. Aparentemente sem nenhuma preocupação com a estrutura gráfica, essa mensagem volta-se para o seu conteúdo e para o seu propósito comunicativo, mas chama atenção também por sua forma. O espaço está completamente ocupado por um texto em caixa alta, irregular no tamanho das

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letras e na distribuição, mas com algumas letras estilizadas no trecho que anuncia a oficina e suas ofertas, o que lhe confere uma certa identidade, mesmo que esta seja quase caótica. Provavelmente o texto foi escrito pelo proprietário, o que o torna ainda mais artesanal do que se tivesse sido produzido por um pintor letrista. O aproveitamento da parede e do portão como suporte comunicacional redimensiona o sentido original dessas estruturas, na medida em que esse ato, assim como o anúncio, traz uma ação cuja operacionalidade depende unicamente de uma decisão que considera as possibilidades dadas pelo que lhes está disponível. “Essas táticas manifestam igualmente a que ponto a inteligência é indissociável dos combates e dos prazeres cotidianos que articula”, destaca Certeau (1994, p. 47). Em contraposição a espontaneidade expressiva da oficina de bicicletas, a maioria dos muros está tomada por números e nomes de políticos, escritos em letras grandes e coloridas, onde nem o que se lê e nem a forma como estão compostos atrai um olhar mais demorado. Informações desse tipo se tornaram quase nada, na medida em que ficam nos muros por anos a fio, cobertas por musgos, envelhecidas pelo tempo, esperando por novas eleições

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que trarão outros nomes e a mesma postura negligente com a cidade. Completando esse palimpsesto urbano, há ainda os cartazes lambe-lambe, as pichações e as pinturas, algumas grafites. Estas saltam do cinza dos muros desbotados, ocupando também as portas de ferro transformadas em grandes painéis coloridos, cuja função parece ser a de preservar o espaço evitando a ação dos pichadores, informando uma ética que envolve o respeito pela imagem do outro. Os grafites, que em sua versão poética ou política remetem a um ato expressivo que interrompe com as visualidades legalizadas permitidas à metrópole, aqui assumem uma feição mais cotidiana, mas não menos conflituosa, quando, do mesmo modo, trafegam entre o embelezamento e a denúncia das ruínas urbanas. As pichações trazidas pelo filme não estão associadas ao risco de alcançar lugares de difícil acesso ou de marcar monumentos ou edificações de importância histórica. Isto porque não há nenhum deles pela região. O que esta pichação provoca, ao contrário dos grafites, é um aprofundamento das ranhuras que caracterizam o lugar, expondo de forma mais explícita o estado de desamparo em relação à ausência de políticas públicas.

Os traços distintivos entre esta periferia e as regiões mais nobres da cidade mostradas no filme apontam para produções culturais com traços próprios, mesmo que em aparência possam receber a mesma nomeação. As pichações, a identificação dos estabelecimentos comerciais e as demais marcas visuais que enfeitam ou enfeiam a cidade adquirem valores completamente diferentes em função de realidades específicas e da estruturação de uma ação cotidiana plural. A produção cultural pensada a partir do que distingue remete a idéia proposta por Appadurai de que se deve pensar a cultura como “um subconjunto de diferencias que fueron seleccionadas y movilizadas con el objetivo de articular las fronteras de la diferencia” (apud CANCLINI, 2006, p. 39). Desse modo, a cultura passa a ser pensada como o cultural ainda que, segundo Canclini, o conceito sócio-semiótico continue sendo um dos mais úteis por pensar a cultura como “procesos de produción, circulación y consumo de la significación em la vida social” (ibid.). No filme, o abandono das ruas nas áreas mais nobres da cidade, em contraposição à sua ocupação na periferia, é o que há de mais distinto entre os dois ambientes. Na metrópole globalizada, estar dentro do

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carro adquire um sentido de afastamento da cidade, idéia reforçada pela indefinição das imagens que o contornam, remetendo a processos de virtualização tanto do espaço quanto do corpo. Na periferia, por sua vez, apesar do número de carros nas garagens, ainda é o deslocarse a pé ou de bicicleta que permite o contato direto com o ambiente urbano e a troca de olhares. Nesse espaço, a câmera que olha de dentro do carro ainda encontra objetos que justifiquem a direção desse olhar. Mas, ao fazer isso, explicita um posicionamento de quem não consegue mais perceber diferenças no espaço que lhe é habitual. Assim o filme não consegue encontrar nada que lhe chame atenção nas cenas que envolvem Giba e Ivan, na mesma medida em que se torna um estrangeiro, ou talvez fosse melhor dizer, um invasor quando dirige seu olhar para um lugar que lhe é desconhecido.

Segredos públicos Nas ruas da cidade de O invasor quase não existem pedestres. O mesmo não pode ser dito sobre os automóveis. A ausência de gente nas calçadas é diretamente proporcional ao número de automóveis que tomam conta

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das vias urbanas. Na frente da academia de ginástica onde Gilberto treina, a calçada, um equipamento urbano originalmente pensado como espaço para o deslocamento de pessoas, é tomada por carros estacionados que tiram do possível transeunte que se aventure a passar por ali, o direito a um deslocamento seguro no espaço público da metrópole. Talvez a inversão do uso originário da calçada possa ser justificada por seu abandono ou talvez o seu abandono encontre justificativa nessa ocupação, um anel de Moebius que não permite, afinal, que se identifique o que é causa e o que é efeito. O fato é que a calçada como contraponto ao sistema automobilístico, como o que dá vida à cidade (YAZIGI, 2000), no filme de Brant não se coloca. Nele, a cidade é dos carros. Para Sennett, essa configuração urbana de declínio do uso do espaço público levou o habitante da metrópole a um estado de ansiedade tal que as ruas, consideradas em determinado momento da história ocidental como o espaço da movimentação livre, em uma sociedade regida pela presença do automóvel se tornou mais um espaço de coerção social. Atualmente, experimentamos uma facilidade de movimentação desconhecida de qualquer civilização urbana anterior à nossa, e no entanto a movimentação se

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tornou a atividade diária mais carregada de ansiedade. A ansiedade provém do fato de que consideramos a movimentação sem restrições do indivíduo como um direito absoluto. O automóvel particular é o instrumento lógico para o exercício desse direito, e o efeito que isso provoca no espaço público, especialmente no espaço da rua urbana, é que o espaço se torna sem sentido, até mesmo endoidecedor, a não ser que possa ser subordinado ao movimento livre. A tecnologia da movimentação moderna substitui o fato de estar na rua por um desejo de eliminar as coerções da geografia. (SENNET, 1988, p. 28 e 29)

O ordenamento do fluxo de carros e a ocupação de todos os espaços urbanos pelos automóveis retiram do pedestre o direito à circulação livre. Sendo assim o pedestre também tem que participar da ordem determinada pelo código de trânsito e ainda lidar com a ocupação dos espaços destinados originalmente a ele. A expansão territorial vivida pela metrópole é outro fator de esvaziamento das ruas. O território urbano se estende tanto horizontal quanto verticalmente. Em uma metrópole como São Paulo, não há limites para a exploração do mercado imobiliário. A toda hora novos projetos são propostos, alterando as características das regiões onde se instalam, exigindo do Estado investimentos

em infra-estrutura urbana e expulsando as camadas mais pobres para regiões ainda mais distantes. De outro modo, esses projetos residenciais ou comerciais, verdadeiros “enclaves desconectados do antigo traçado urbano”, como assim os denomina Brissac Peixoto, provocam “uma completa remontagem da geografia urbana da área, cujo sentido só pode ser entendido em grande escala. Espaços mais distantes tornam-se mais próximos, porque mais acessíveis. Outros mais próximos tornam-se mais distantes, porque inacessíveis”. Com isso, “os antigos espaços públicos, agora inacessíveis, perdem toda a significação e uso, transformandose em terra de ninguém” (in NOVAES, 2005, p. 279) ou, no máximo, passam a ser utilizados como zona de passagem. A disseminação do automóvel como forma preferencial de deslocamento deixa sem ninguém não só esses antigos espaços públicos, mas também as ruas dos bairros residenciais. Não há uma relação de vizinhança possível entre moradores da mesma rua, afinal o encontro entre estranhos deixou de ser uma possibilidade. A concentração dos lugares de compras em grandes shoppings, aliada à eterna falta de tempo do homem metropolitano, tiram o poder de atração exercido pela padaria e

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pelo mercadinho vizinhos, freqüentados somente em situações emergenciais. No filme, a desertificação desses espaços se afirma, sobretudo, quando os conflitos de cunho privado dos dois principais personagens são discutidos e acirrados no espaço público. Sem multidão e sem transeuntes, estes se tornaram o lugar apropriado para o segredo e para a cumplicidade. Se neles não há mais ninguém, não há o risco de testemunhas. É este abandono que lhes permite discutir, na rua, questões altamente comprometedoras, como a morte de um homem, como ocorre em frente à academia de ginástica. Essa seqüência, no entanto, encontra um interlocutor imprevisto que testemunha muito mais a filmagem do que propriamente a discussão: trata-se de um motociclista, provavelmente um motoboy, como tantos outros que se deslocam pela cidade. A presença desse sujeito não importa para a narrativa, mas é ele quem acaba por lhe conferir – associado ao ruído – um efeito de realidade (AUMONT, 2004). Esse efeito, muitas vezes, é dado por algo que está fora da imagem central ou por algo que se expõe como um detalhe perdido numa primeira visada. Este motoqueiro confere realidade à cena, muito mais do que quaisquer elementos de seu entorno, que parecem se perder na

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invisibilidade atribuída a uma cidade que não revela, em nenhum momento, a direção do seu olhar. Segundo Aumont, na cena, fatores como quantidade e variedade de elementos, são outros dos aspectos desse efeito, além da qualidade da imagem. Na primeira situação a diversidade desafia o receptor a buscar, a cada vez que assistir ao filme, um detalhe que lhe havia escapado. O segundo aspecto traz o vento, o balançar de uma folha, uma sombra, um reflexo, efeitos que por instantes parecem se sobrepor à ação (AUMONT, 2004, p. 33). Na situação prsenciada pelo motociclista, os dois amigos brigam motivados pelas desconfianças de Ivan em relação a Giba. Após ler no jornal a notícia sobre um assalto em que o lobista com quem eles haviam feito o acordo teria sido assassinado, Ivan procura Giba na academia e o acusa do crime. A relação entre os dois está francamente deteriorada. A desconfiança é mútua. Ivan suspeita das intenções de Giba, enquanto este se preocupa com o estado emocional do outro e no que isto pode ameaçá-lo. A acusação é feita no salão de ginástica, sem nenhuma hesitação. Giba, irritado, propõe que conversem do lado de fora. A academia, espaço privado de uso coletivo,

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cheio de gente, não é um bom lugar para esse tipo de discussão. E eles se dirigem à rua. Em plano de conjunto frontal, os dois saem com ar de pouco amigos para uma calçada ocupada por carros estacionados mas sem nenhum pedestre. É dia. Na rua, caminhões, automóveis e motos continuam passando, trazendo para a seqüência uma sonoridade abafada posta ao fundo. Enquadrados em primeiro plano, a imagem se avoluma seguindo o tom da discussão. Ivan quer saber se Giba mandou Anísio fazer mais esse serviço e pergunta, gritando, se vai ser ele o próximo. Giba nega, afirmando que não é assassino e que Ivan precisa se tratar. A discussão se acirra, chegando ao ponto da agressão física. Eles se exaltam sem nenhum cuidado ou medo de serem interpelados. Se ainda no início do século XX já se podia falar do quanto era arriscado sair de casa, os motivos, no entanto, eram outros, completamente distintos dos que afligem as grandes cidades dos nossos dias. Naquele momento o processo de urbanização e a velocidade propiciada por meios de transportes como trens, bondes e veículos automotores provocavam acidentes de todos os tipos que eram amplamente noticiados pela imprensa sensacionalista (SINGER in CHARNEY; SCHWARTZ, 2001).

As ruas, ao mesmo tempo em que eram zona de perigo e refúgio dos criminosos, também traziam a possibilidade de encontros, mesmo que fugidios e efêmeros. Nesse espaço estava o caminhante se dirigindo a um destino anteriormente definido ou apenas flanando, compondo um trajeto que o aproximava daquele que se encontra à deriva em mar aberto. Concorrendo com a força e com o ritmo de suas pernas estavam as patas dos cavalos e as rodas das carruagens, os bondes e os primeiros veículos a combustão. Singer descreve essas experiências radicais e definitivas através da leitura panorâmica de revistas cômicas e de jornais sensacionalistas, tidos como relatos textuais e imagéticos33 sobre o estado de assombro que tomava conta da população quando da formação das metrópoles. As notícias contavam dos acidentes e, em suas entrelinhas, afirmavam que as pessoas continuavam a sair, na medida em que estes continuavam acontecendo. A indiferença metropolitana do ser blasé que garantia o anonimato dos que ocupavam avenidas e bulevares das grandes cidades, atribuindo-lhes um caráter democrático e igualitário, hoje está longe de existir. O espaço público transformou-se em território da insegurança, lugar onde o medo cotidiano se materializa traduzido pela ameaça dos miseráveis excluídos do processo de

33 “Diversas ilustrações trataram especificamente da transformação pungente da experiência de um estado

pré-moderno de equilíbrio e estabilidade para uma crise moderna de descompostura e choque”. (In CHARNEY; SCHWARTZ, 2001, p. 122). 111

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produção capitalista. O medo cotidiano precisou se tornar imagem sem referente, explicado pela banalização da morte violenta – como a de Estévão – amplamente difundida pelos meios de comunicação de massa, para que o imaginário urbano fosse, finalmente, contaminado pela impossibilidade do passeio pedestre. “O espectro arrepiante e apavorante das ‘ruas inseguras’ mantém as pessoas longe dos espaços públicos e as afasta da busca da arte e das habilidades necessárias para compartilhar a vida pública” (BAUMAN, 2001, p. 110). A metrópole, como a Paris registrada pela máquina fotográfica de Atget, perdeu seu fascínio. Segundo Walter Benjamin, Atget “foi um ator que retirou a máscara, descontente com sua profissão, e tentou, igualmente, desmascarar a realidade”. Suas imagens buscavam “as coisas perdidas e transviadas, e, por isso, tais imagens se voltam contra a ressonância exótica, majestosa, romântica, dos nomes de cidades; elas sugam a aura da reali-dade como uma bomba suga a água de um navio que afunda” (1994b, p. 100 e 101). Nessas imagens não há mais o rosto, são as vitrines e seus reflexos, prédios inteiros ou fragmentados que se tornam os

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protagonistas das ruas. “A contemplação livre não lhes é adequada. Elas inquietam o observador, que pressente que deve seguir um caminho definido para se aproximar delas” (ibid., p. 174-175). A cidade, ela própria, independentemente de quem a anima, é envolvida por um mistério a ser descoberto. Enigmáticas, as fotos de Atget convidam a reconstituir o todo de modo a reintegrar o fragmento, devolvendo-o ao seu lugar. O sentido de comunidade dado pela ocupação das ruas, aos poucos vai deixando de existir. As fotos de Atget talvez já anunciassem esse momento de abandono das ruas e, como por conseqüência, o abandono dos homens e mulheres que habitam a metrópole. Sennett considera que são três os sentidos para o termo isolamento como o vivido na grande cidade. O primeiro é da ordem populacional: “os habitantes ou trabalhadores de uma estrutura urbana de alta densidade são inibidos ao sentirem qualquer relacionamento com o meio no qual está colocada essa estrutura”; o segundo, da ordem da perda de significado: “assim como alguém pode se isolar em um automóvel particular para ter liberdade de movimento, também deixa de acreditar que o que o circunda tenha qualquer significado além de ser um meio para chegar à finalidade da própria locomoção”; o último se refere ao isolamento social em lugares públicos, “um isolamento produzido

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diretamente pela nossa visibilidade para os outros” (1988, p. 29). Neste último item, Sennett parece dialogar com Jane Jacobs, que, em Morte e Vida de Grandes Cidades, livro publicado em 1961, identifica nas ruas um ritual estruturado sobre o reconhecimento que incorpora a todos os que freqüentam um determinado lugar. Para ela, mesmo os que não moram ou trabalham na área, mas que passam regularmente por lá, são familiares, o que permite a identificação imediata de estranhos, garantindo, dessa forma, uma situação de segurança e conforto (JACOBS, 2000). Para alguns críticos do livro de Jacobs, como David Harvey, essa visão é tão opressiva quanto qualquer prática autoritária, estabelecendo uma vigilância comunitária que exclui e fragmenta as cidades, na medida em que atua como prática de reconhecimento e de seleção (HARVEY, 2004). Essa presença comunitária, se assim pode ser descrita, é encontrada em outra das seqüências de enfrentamento entre Ivan e Giba, provavelmente já incorporados à vizinhança como engenheiros respeitáveis e responsáveis pela construção de mais um edifício na cidade. Cheio de dúvidas sobre a morte encomendada para o sócio Estévão, Ivan chega a um dos canteiros de obras para dizer que desistiu do

plano. Antes, porém, quando Giba vem ao seu encontro, o que se vê é a placa da empresa – “Araújo Associados” –, tema inicial da conversa, cinicamente direcionada por Giba que relembra as disputas sobre qual nome deveria anteceder aos outros. A discordância se evidencia quando Ivan diz que o nome do terceiro sócio deve permanecer na placa e que não haverá mais assassinato. Nesse momento, Giba deixa de sorrir e, assumindo uma postura cuidadosa, olha para os lados, vigilante, enquanto carrega Ivan pelo braço em direção ao outro lado da rua. A câmera os acompanha de perto e registra uma paisagem urbana enrugada de uma cidade tomada por prédios e algumas casas que ainda resistem entre os espigões em construção. Não há nada de belo ali, fios se espalham numa teia aérea escurecida pela poluição, as calçadas estreitas e os postes sujos compõem o retrato de uma metrópole onde as elites, protegidas dentro de muros altos e paredes brancas como os da casa de Marina, se vêem inseridas em um ambiente pesado e pouco amigável. Os que ainda circulam por esses espaços têm de enfrentar a subida da ladeira andando pelo meio da rua ou se espremendo entre postes e carros estacionados. O filme assume uma linguagem documental, com a câmera diretamente inserida no espaço urbano.

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Quase dá para sentir sua presença de tão paciente e cuidadosa com o que registra. O enquadramento é similar ao utilizado na cena da frente da academia, porém aqui fazem parte dela os transeuntes que passam no momento da discussão. Essa inclusão reforça o realismo da situação, quando Giba, consciente da presença de estranhos no lugar, indica que tem vida no entorno, ao demonstrar cuidado em verificar se foi ouvido após uma fala mais exaltada. No entanto, nenhum dos passantes parece se interessar pela conversa. Carros e motos trafegam indiferentes, um grupo de trabalhadores sobe a ladeira e nenhum indício de qualquer contato. O efeito realidade é dado por uma babá que passa perto deles – impedida por um poste de continuar a empurrar o carrinho de bebê, ela é obrigada a descer da calçada – e flerta com Giba, que corresponde sorrindo, posicionandose como um sujeito simpático e integrado ao ambiente. Diferentemente do motociclista da outra seqüência, esses passantes estão sob controle, fazem parte da cena e estão ali com a função explícita de emprestar realidade à situação. São os figurantes. Essas pessoas entram no quadro, invadem sua continuidade, estabelecem níveis de interlocução – quando

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simulam não prestar atenção na tensão que envolve os dois homens que discutem na calçada – com os personagens sem a necessidade de qualquer corte. No início do século XX, a possibilidade de o efeito realidade ser dado por uma imagem capturada na rua sem aviso prévio, como um verdadeiro flagrante, como acontece com o motociclista, era mais comum, chegando a ser tematizada pelo próprio cinema. Une erreur tragique (1913) de Louis Feuillade, segundo Tom Cunning (In CHARNEY; SCHWARTZ, 2001), é um dos filmes que se preocupou com a questão da evidência da imagem como prova incontestável do real. A história narra a descoberta por parte do marido da traição de sua esposa, que aparece andando na rua de braços dados com um homem desconhecido. Para investigar melhor o que vê, ele compra uma cópia do filme e o examina frenética e detidamente. “Embora seja o corpo de sua mulher (e sua possível desobediência) que esteja em questão aqui, o marido (…) realiza sua investigação somente no corpo do filme” (CUNNING in CHARNEY; SCHWARTZ, 2001, p. 72). Não encontrando explicações, o sujeito acaba por punir a mulher, para somente depois ser apresentado ao irmão e descobrir o engano.

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Cunning discute a impressão de realidade da imagem fixa e sua capacidade de registro dessa mesma realidade como elemento de prova de culpa, à medida em que ela poderia ser considerada verdadeira. Ao trazer o filme para o debate, informa que a imagem em movimento apresenta a mesma propriedade da fotografia, exigindo cuidado na sua leitura, de modo a não considerá-la erroneamente como testemunha da verdade. Diante do valor das imagens baseadas na analogia construída tecnicamente, os fotografados suspeitos de crimes tentavam driblar a perfeição do registro com caretas e expressões que dificultassem ao máximo o seu reconhecimento. Eles se prevaleciam Do baixo desenvolvimento tecnológico das máquinas nesses primeiros momentos, criando situações que borrassem as imagens e evitassem seu reconhecimento. A insistência da polícia de identificação acabou por repartir o corpo em pequenas unidades de modo a reconstituí-lo e evitar enganos. A verdade do corpo, sua confissão de culpa, não mais reside apenas na “indiscrição” de se permitir ser fotografado, mas em seu processamento por especialistas e autoridades. O corpo individual aparece agora simplesmente como a percepção de um número limitado de tipos mensuráveis. Essa sistematização traz

ordem e controle ao caso de corpos em circulação, domesticados pela circulação de informações (CUNNING in CHARNEY; SCHWARTZ, 2001, p. 63).

O corpo controlado é o que se faz presente nas cenas externas dos filmes, com figurantes obedientes, repetindo inúmeras vezes o que foi definido pelo diretor e sua equipe. Agindo de acordo com o exigido, eles substituem o acaso que possibilitava a qualquer um dos transeuntes ou habitantes de uma cidade se tornar imagens fílmicas, como assim propunha Vertov, para quem o cinema era a revelação do que a percepção não conseguia apreender. Nas ruas do filme de Brant, poucos figurantes estão presentes e a idéia de que “o espetáculo da rua é a circulação, o pilgrim’s progress, movimento de progressão, de procissão, simultaneamente viagem e aperfeiçoamento, marcha equiparada ao progresso rumo a alguma coisa melhor, peregrinação que inundou a Idade Média” ou de que “a rua é como um novo litoral; o domicílio, um porto do transporte de onde pode-se medir a importância do fluxo social, prever seus transbordamentos”34 é frontalmente negada por seu esvaziamento, ou melhor, pela supressão do caminhante em função do veículo, modo de deslocamento utilizado pelos personagens do filme.

34 VIRILIO, Paul. Velocidade e política. Estação Liberdade, 1996a. p. 22 e 23.

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Nas metrópoles, o que define as obras infra-estruturais do espaço urbano não é o deslocamento de pessoas, mas a fluidez do trânsito ou os locais onde veículos podem ou não estacionar. Nesse contexto, as calçadas perdem sua função originária de permitir o encontro com o outro e tornam-se somente uma ponte entre a entrada das casas e a porta dos carros. Levar cenas importantes para o espaço externo agrega ao filme um caráter documental, como se a câmera tivesse flagrado um acontecimento real e por isso sujeito ao acaso e a solicitações que podem interromper momentaneamente seu curso.35 No entanto, a leitura de uma representação como realista, afirma Pierre Sorlin, se dá muito mais pela disponibilidade do espectador de atribuir esse valor às imagens do que propriamente ao seu conteúdo. Todas las épocas, en una época todos los grupos, tienen sus reglas para organizar el mundo exterior – mundo de los objetos y de las relaciones sociales – de manera que encuentren

allí una coherencia y puedan aplicar sus reglas de conducta; poseen, en particular, categorías de análisis por medio de las cuales tal manera de designar verbal o iconográficamente los objetos es considerada estilizada, falsa, caricaturesca, humorística o fiel a la realidad. (SORLIN, 1977, p. 157)

Tal afirmação vale tanto para a produção ficcional quanto para a documental, sendo necessário, em qualquer das situações, que o espectador estabeleça um tipo de contrato que atribua ao filme características de realidade. O invasor encontra essa realidade ou essa referência em São Paulo no que a metrópole exibe como características suas: agigantamento, ocupação de seus espaços por carros, amplas avenidas, mas também e talvez possa ser dito que essa referência está principalmente no que foge ao controle, como o desordenamento de uma cidade que não pára de se mostrar em construção, provisória e mal-acabada, um mal acabamento que contrasta sobretudo

35 “Obviamente que o caráter documental não se resume a esta decisão. Procedimentos como uma câmera

disponível e curiosa, utilização de equipamentos leves, luz natural, tecnologia para captura de som direto são algumas de suas características. O gênero documentário apresenta dois estilos diferentes: o cinema direto e o cinema verdade. O direto surge nos Estados Unidos, com a proposta de registrar a realidade com o mínimo de interferência possível. A equipe e os equipamentos devem se comportar de modo discreto, como se fossem dotados de invisibilidade. No mesmo período, anos 1960, na Europa, mais especificamente na França, o cinema-verdade assume uma postura contrária à americana. Para o cinema verdade, a presença da equipe deve se fazer notar, é imprescindível que o documentário deixe claro que se trata de um filme e que por isso traz um ponto de vista. A verdade desse estilo é a verdade da filmagem. 116

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com a limpeza dos bairros nobres, onde fica a casa de Marina, contraposta à sujeira e ao descaso do Estado em relação às zonas de sua periferia ou aos bairros de classe média.

na máquina, pedaços de papel borrados, sobras de informação. Seu quarto é o retrato desse universo múltiplo e recortado; imagens forram as paredes, transformando o ambiente em uma grande colagem.

Homem que copiava: a história

A máquina de fotocópia colorida pode ser a saída para essa prisão social, econômica e afetiva, e ele então decide falsificar dinheiro: notas de cinqüenta reais. Fazer isso é um risco, o medo de ser pego é grande, mas o sucesso também é possível. Nem que seja para conseguir a quantia necessária para comprar uma camisola na loja de Sílvia. São 38 reais e ele não tem esse dinheiro.

São dois os personagens principais: André (Lázaro Ramos) e Sílvia (Leandra Leal) Ambos são de camada social baixa, trabalhadores do comércio. Ele é operador de fotocopiadora em uma papelaria, ela é vendedora em uma loja de roupas. São vizinhos, mas nunca se viram. André, depois de economizar durante um ano, consegue comprar um binóculo. Com ele, passa a observar o entorno, as pessoas e a cidade. É através desse olhar voyeur que ele descobre Sílvia e por ela se apaixona. Olhar não custa nada, e, para um sujeito que não tem dinheiro, tentar adivinhar coisas sobre a cidade e sobre as pessoas pode ser um bom passatempo. André precisa de dinheiro para conquistar Sílvia e para mudar de vida, deixar de trabalhar como operador de fotocopiadora e se tornar o ilustrador que sonha ser um dia. A máquina xerox traz um mundo de fragmentos para ele, pistas sobre uma vida mais rica do que a que vive. Imagens e palavras que apontam para uma realidade que lhe parece inacessível. André coleciona restos deixados

André imprime a nota e consegue trocar em uma agência lotérica. O troco lhe permite voltar à loja para comprar o chambre e mais uma vez conversar com Sílvia. Os encontros passam a acontecer como coincidências e a aproximação vai se dando aos poucos. Tendo convites para a inauguração de um bar, André pergunta para a Marinês (Luana Piovani), sua companheira de trabalho, se ela quer ir com ele. Cada ingresso dá direito a duas cervejas. Ela aceita, mas pergunta se pode levar um amigo. André, decepcionado, diz que sim e sai em busca de Sílvia para convidá-la para o programa. Tímido e inseguro, o máximo que consegue fazer é perguntar se ela gosta de cerveja.

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O amigo de Marinês é Cardoso (Pedro Cardoso), com quem André vai estabelecer uma relação de cumplicidade quanto às falsificações, troca das notas e outras ações em busca de dinheiro, como o assalto a um carro-forte. Mais algumas notas falsas permitem que ele compre uma cortina japonesa de presente para sua amada e um porta-jóias na loja de antiguidades onde trabalha Cardoso. Nota falsa, caixa falsa, e assim André conta sobre as falsificações para seu novo amigo. As coisas se complicam quando André, para fazer um assalto, compra com o dinheiro copiado uma arma de um amigo traficante. O sujeito vai preso quando tenta usar as notas. Ao sair da cadeia chantageia André que, para se livrar da ameaça, acaba por levá-lo a uma armadilha disposta pela própria cidade – estacas de madeira cobertas com areia sob uma ponte de onde eles costumavam brincar se jogando do alto – lugar onde o traficante acaba morrendo literalmente estrepado. O motivo do assalto é a descoberta, em um de seus momentos de vouyerismo, de que o pai de Sílvia – Antunes (Carlos Cunha Filho) – é um tarado que observa a filha pelo buraco da fechadura. A necessidade de dinheiro para tentar livrar a namorada daquele pai incestuoso justifica a radicalidade da ação; esta ocorre em meio a trapalhadas que

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resultam no ferimento do pai de Sílvia – segurança do carro-forte – e na fuga de ônibus dos cúmplices (André e Cardoso), cuja passagem é paga com o dinheiro roubado. A sorte é outra possibilidade de salvação e André insiste em jogar na loteria apostando sempre nos mesmos números: 1, 2, 3, 4, 5 e 6. A notícia de que estes foram sorteados está na mesma página do jornal onde foi publicado um retrato falado do assaltante – completamente diferente de André – e a informação da prisão do amigo traficante de quem havia comprado a arma. A compreensão do que está acontecendo via mídia vai se dando aos poucos, como camadas de sentido que vão se sobrepondo, mudando o significado da realidade. Para desviar a atenção da imprensa, André entrega o bilhete premiado para Marinês. O dinheiro do assalto não é utilizado e eles gastam o da loteria. Depois de tantos acontecimentos, a reviravolta final ocorre quando Sílvia conta para André que desde o início sabia que ele a vigiava. A revelação ocorre depois do jantar em que André pede a mão de Sílvia em casamento ao pai da jovem e este o reconhece como o assaltante do carro-forte. Sem nenhum pudor, o homem ameaça entregá-lo à polícia caso não receba uma parte do dinheiro.

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Em casa, mais uma vez observando Sílvia, André se depara com o fato de que ela sabe que está sendo espionada. Diante da janela, a jovem se deixa ver com um caderno onde escreve que sabe de tudo e que tem urgência em conversar com ele. No encontro, relata que o pai lhe contou sobre o assalto e que André não deve ceder à chantagem. Ela diz que prefere matar o segurança e que suspeita que ele não seja seu pai verdadeiro. Para Sílvia, seu pai é um outro homem por quem a sua mãe foi apaixonada, um homem lindo, um artista. Sílvia convence André da validade do assassinato e propõe que, concluída a ação, eles viajem para o Rio de Janeiro. O idílio amoroso encontra seu clímax quando André diz a Sílvia que é operador de fotocopiadora e ela responde que sempre sonhou em casar com um operador de fotocopiadora. O assassinato acontece com a explosão do apartamento onde morava Antunes. Uma carta escrita por Sílvia para o pai ideal (Paulo José) atualiza o espectador sobre a perspectiva narrativa construída por ela. O que foi escrito adquire voz e dá conta do momento em que ela se percebe espionada pelo vizinho e do modo como lida com a situação. Sílvia passou a se mostrar para André de um modo planejado, não deixando que este percebesse que ela sabia o que estava acontecendo. Ela descobre onde

o rapaz trabalha, testa suas ações, confirma seu interesse e, simulando uma falta de correspondência, estimula a aproximação. A narrativa, neste momento, se reconstrói sob a voz over de Sílvia que se apropria de acontecimentos reais, mas que também cria uma nova realidade explicando o modo como André ganhou dinheiro – arrumou um bom emprego – e eles puderam casar e ir para o Rio de Janeiro. O filme é recontado a partir desta fala que revela o quanto os acontecimentos foram por ela direcionados. Do Rio de Janeiro, André também escreve para sua mãe dizendo estar na Holanda. Sob o Cristo Redentor estão os dois casais – André e Sílvia, Cardoso e Marinês –, livres de qualquer punição e sem nenhum sentimento de culpa. Eles esperam o homem que Sílvia crê ser seu pai verdadeiro. Paulo José, aqui também nomeado Paulo, cria mais uma camada de significados para a narrativa. Seria ele um personagem ou estaria ali como o ator que todos nós conhecemos? Esclarecer esta questão não é a intenção do filme e de nenhum deles. Os quatro estão pouco preocupados com isto. A justificativa para tudo está na busca da felicidade que todos merecem e que só alguns conquistam.

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Sobre a voz polifônica O segundo longa-metragem de Jorge Furtado36 trouxe uma estrutura narrativa que comprovou a expertise do cineasta gaúcho em compor filmes a partir de fragmentos aparentemente aleatórios, dispostos sem qualquer ordem temporal, mas perfeitamente encadeados como peças de um quebra-cabeça cuidadosamente construído. Passado e presente se misturam sem nenhuma cerimônia, mas com a intenção de acompanhar os pensamentos de André, um rapaz de vinte anos que sonha em conquistar a vizinha que mora com o pai em um apartamento em frente ao seu. A exemplo do curta-metragem Ilha das Flores (1989), a voz é o elemento que justifica a ordem das imagens, o que, de alguma maneira, o transforma em um filme ditado pela oralidade expressa através da fala do protagonista.37 O mesmo ritmo, a mesma

atenção aos detalhes do cotidiano, a mesma ironia compondo um estranho humor e uma colagem de fragmentos aproximam os dois filmes, colocando O homem que copiava como uma extensão do modelo proposto por Ilha das Flores.38 Furtado sabe lidar com as palavras muito bem, tendo sido roteirista de mais de vinte filmes entre curtas e longas-metragens e outros tantos programas para a TV. A palavra parece ser sua matéria-prima preferencial, burilada a ponto de encadear idéias distintas com uma naturalidade tal que torna quase impossível que se desafie a ordem proposta. Ele sabe o que fazer com o texto, sabe a força do que é dito. Em entrevista a Revista de Cinema,39 afirma que o roteirista/diretor é o principal autor do filme. Em outra matéria, publicada pela revista Contracampo número 48,40 ele se posiciona em relação ao modo como encara a feitura de um filme:

36 Depois de O homem que copiava, Furtado dirigiu mais dois longas: Meu tio matou um cara (2005) e Sanea-

mento básico, o filme (2007).) 37 Em Ilha das Flores, a voz off confere ao filme um caráter documental, assim como a linguagem expressiva

escolhida para compor o filme. coincidências se farão presentes no decorrer da análise. Em Ilha das Flores, a linguagem do documentário também é tomada de empréstimo, num autêntico exercício de simulação de procedimentos e estruturação fílmica. Sobre isto, Furtado afirma que, apesar de a encenação no filme ser falsa, a situação não era e o que denunciava realmente acontecia. Disponível em . Acesso em 10 nov. 2007. 39 Disponível em . Acesso em 10 nov. 2007. 40 Disponível em . Acesso em 10 nov. 2007. 38 Mais

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O filme nasce de um desejo pessoal, particular, de compartilhar sensações, impressões do mundo, ou medos, ou prazeres, ou ainda idéias sobre a linguagem. A pretensão é que esta “visão de mundo” possa interessar a alguém ou, utopicamente, a todo mundo. O primeiro desafio é o roteiro, ainda um trabalho pessoal. A segunda etapa, da produção, já envolve muita gente. As idéias passam a lutar contra a tirania da realidade, onde cada imagem tem um preço e prazo de execução. (Paulo José diz que o roteiro é a tese, as condições de produção são a antítese e o filme é a síntese). Pronto, o filme ganha vida própria e enfrenta outra batalha: ser visto.

Como autor, Jorge Furtado vem afirmando sua opção pelas narrativas juvenis como em seu primeiro longa, Houve uma vez dois verões (2002) e nos dois seguintes: O homem que copiava (2002) e Meu tio matou um cara (2005) Seu último trabalho para o cinema, Saneamento básico, o filme (2007), mantémse dentro da matriz cômica que caracteriza O homem e Meu tio, mas com um elenco adulto. Essa preferência pelo humor surge como uma opção predominante, mas não única.

Em O homem que copiava, Furtado põe em xeque a relação entre o dito e o visto. A narrativa, centrada em grande parte na fala do protagonista constrói, junto ao espectador, um tipo de cumplicidade que acaba por desculpar ou suavizar seus atos, nada justificáveis, em direção à superação de suas dificuldades e à realização de seus sonhos. Aparentado com o que em televisão é denominado nota coberta – voz off41 e imagens ilustrando/comprovando o que está sendo dito –, o procedimento de Furtado se aproxima, no entanto, muito mais de um exercício de sofisma, entendido como uma prática eloqüente voltada para o convencimento independentemente da justeza dos fatos, e, diferentemente da voz off, o que se tem aqui é um narrador autodiegético42 que se expressa através da voz over. A voz over coloca as falas dentro do enquadramento, permitindo o reconhecimento de quem a está proferindo, mesmo que esta seja a expressão de um pensamento. A possibilidade de retomada do gesto da fala como ação presente no quadro é o que a diferencia da voz off, posta de fora, dita por uma narrador poderoso e controlador, a quem não é possível tomar-lhe o lugar.

41 A voz off

foi bastante utilizada nos documentários a partir dos anos 1930, como uma voz que sabe tudo sobre o que está nas imagens. Essa voz confere a um narrador externo o poder de indicar o significado das imagens. Como uma “narração desencarnada onisciente e onipresente, que tudo vê e tudo sabe a respeito dos personagens”. (LINS, Consuelo, O ensaio documentário e a questão da narração em off. Disponível em ). Acesso em 10 out. 2007. 42 “Quando o narrador da história relata as suas próprias experiências como personagem central dessa história”. (REIS; LOPES, 1988, p. 118).). 121

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Está claro desde o início que se trata do pensamento de André compondo uma espécie de monólogo interior em busca de dar conta do que ele sente, de como se vê e de como vê o mundo. O monólogo interior assume uma estrutura flexível de acordo com o fluxo de consciência do personagem, liberando-se de uma ordem temporal cronológica linear e de uma organização lógica e racional. Nele, “o presente da atividade mental do eupersonagem é o único ponto de ancoragem. (Há uma oscilação) entre a rememoração e o projeto, o real e o imaginário, na agitação gratuita de um discurso interior que se situa à margem de qualquer projeto comunicativo” (REIS; LOPES, 1988, p. 267). A montagem visual e sonora traz esse monólogo para dentro de uma estrutura de discurso indireto livre, como “um discurso híbrido, onde a voz da personagem penetra a estrutura formal do discurso do narrador, como se ambos falassem em uníssono fazendo emergir uma voz “dual” (ibid, p. 277). Essa dualidade está na voz de André em um primeiro momento e na de Sílvia, quando o filme começa a ser concluído. Uma dualidade criada pelas vozes dos dois personagens acrescida da voz do próprio narrador fílmico que, ao mesmo tempo que delega àqueles o direcionamento da história, se faz presente como capaz de mostrar essa história acontecendo, expressando seu

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posicionamento em relação ao que pensam e a como agem estes personagens. É esta voz over a responsável pelas justificativas, pelas explicações e pelo sentimento que perpassam as ações de André. Ela carrega uma intenção persuasiva, ainda que não se apresente claramente dessa forma. Paul Zumthor em A letra e a voz, apesar de ter como objetivo discutir mais precisamente o poder da voz na literatura medieval, traz uma série de elementos que podem ser pensados no contexto desta discussão sobre a voz de André. Primeiro que a voz humana é histórica e social, segundo que no fenômeno da voz humana estão também determinações de ordem física e psíquica (1993, p.18). Essas características levam Zumthor a propor o conceito de vocalidade em vez de oralidade (como a capacidade de se expressar oralmente), considerando que vocalidade “é a historicidade de uma voz: seu uso”. (ibid., p. 21). A apresentação de André como protagonista fílmico é toda centrada na sua expressão vocal que às vezes concorda com o que as imagens mostram, confirmando a impressão de realidade criada por seus pensamentos; outras vezes põe em dúvida a referência, quando o tom de sua voz constrói um sujeito que não condiz com sua expressão corporal. Em quase vinte minutos de filme, André

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situa o receptor dentro de sua vida, conta sua história, vocaliza seus desejos, suas fantasias, expõe seus valores. Por algumas vezes esse pensamento é interrompido por um acontecimento qualquer que estabelece uma situação de diálogo com o mundo do qual faz parte. Sem maior destaque, essa espécie de interrupção, no entanto, confirma a perspectiva entediada do protagonista diante do que se lhe apresenta como realidade possível em razão de sua condição de vida. Ele mora com a mãe em um apartamento modesto. O pai foi embora quando André era pequeno e o jovem sofre ainda hoje por este abandono. A dimensão desse sofrimento, porém, não o paralisa, ainda que o entristeça.43 O que se ouve, o posicionamento do corpo de André ao proferir suas palavras via monólogo interior, permite pensar também na idéia de performance,44 se considerarmos que a comunicação de André está sendo dirigida para um receptor cinematográfico no tempo único da exibição fílmica e que esse tempo está sempre no presente. A voz é o que revela sua situação histórica e social, quando, apesar de pobre, ele não está posto entre as figuras, quase clássicas do cinema brasileiro, de favelados miseráveis, que

trazem nos seus corpos, nos seus gestos e nas suas falas as marcas dessa origem. André adota uma estratégia de autocomiseração para justificar suas escolhas, mas o que faz nega esse estado, afirmando um sujeito capaz de agir e de decidir quais caminhos tomar, sem que nenhuma dúvida, que porventura surja, o afaste dos seus propósitos. A retórica das imagens e das vozes adquire uma fluidez cuja base está na busca em construir um discurso coerente ainda que fantasioso. A voz e o gesto são pares indissociáveis na situação de performance pensada por Zumthor, para quem “a palavra pronunciada não existe (como o faz a palavra escrita) num contexto puramente verbal: ela participa necessariamente de um processo mais amplo, operando sobre uma situação existencial que altera de algum modo e cuja totalidade engaja os corpos dos participantes” (2000, p. 244). A voz de André concorre com seus gestos. O corpo recolhido não condiz com o que ele pensa, a inteligência de suas ações está em conflito explícito com a imagem que ele constrói para si como visualidade física estruturada sobre seus gestos contidos, cuja firmeza se esconde sob um aspecto aparentemente humilde e frágil.

43 A

história dessa partida vem à memória de André mediada pela animação Família Trapo que ele assistia quando o pai foi embora pedindo que ele guarde a correspondência. A passagem do tempo e a espera pela volta se mostra por outro personagem de desenho animado, um urso que se posta diante da caixa de correio por dias e noites a fio. André cumpriu o que prometera até se tornar adulto: as caixas com as cartas se acumularam e o pai não voltou. 44 Performance está associada ao presente como transmissão oral, ocorrendo quando comunicação e recepção e às vezes produção coincidem no tempo (ZUMTHOR, 1995). 123

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romance, aventura, drama e comédia para, através das aberturas criativas possibilitadas por tecnologias e linguagens diversas, enriquecer sua narrativa e montar seu quebra-cabeça em busca da simpatia do espectador.

Retomando a idéia dos sofistas, estes eram mestres que viajavam pela Grécia antiga ensinando tudo que a eles era demandado em relação ao uso do discurso como ferramenta de debate e de convencimento. A retórica era não só seu instrumento de trabalho como também seu objeto. A política, como principal atividade das polis, lhes conferia um campo de atuação cuja extensão era definida pelo valor dado à arte de manipular a palavra com fins persuasivos. A verdade para eles não era um problema, mas sim o jogo de argumentos que permitia construir complicadas redes de significação que transformavam mesmo o improvável em algo fora de qualquer questionamento.

A colagem de gêneros45 é uma das marcas mais fortes no trabalho do cineasta gaúcho, a partir da atualização do modo como estes (os gêneros) se estruturam originalmente, permitindo que se mantenham vivos e renovados como categoria de organização e expressão cinematográfica, ainda que devam à teoria literária suas bases de modelização e caracterização.

O que Jorge Furtado faz guarda semelhança com essa prática. Ele cria uma camada de significado posta sobre o filme, como um filtro que desafia o espectador a ultrapassálo ou, de outro modo, o deixa satisfeito com a comicidade encontrada e com o que isto traz de diversão. Essa estratégia está não só na voz que indica os direcionamentos e as reviravoltas do protagonista, mas também na estrutura formal do filme que mistura

A idéia de gênero está apoiada na possibilidade de identificar regras, normas e convenções que marcariam de modo essencial as diversas formas de expressão no campo literário. Aristóteles em A poética clássica (2005) propunha caracterizar os tipos de poesia a partir de um elemento comum: a imitação. Essas imitações se distinguiriam a partir de três pontos: por o fazerem por meios diferentes; por imitarem objetos

45 Altman identifica quatro pontos que facilitam a mistura de géneros: “a) la concepción popular del géne-

ro gira principalmente en torno a uno o dos elementos característicos y fácilmente identificables, lo cual permite evocar ele género con un material mínimo; b) una película no debe seguir necesariamente la lógica de un solo género a lo largo de todo su desarrollo para que sea identificada con ese género; c) puesto que se basan en elementos diversos (material narrativo, temas, imágenes, estilo, tono etc.), géneros distintos pueden combinar-se con un mínimo de interferencias entre si; d) ciertas escenas o motivos (por ejemplo, la apoteosis final dela amor triunfante), al ser comunes a varios géneros (ele western, el musical, ele weepie, la comedia romántica, etc.) tienen la capacidad de reforzar la percepción de varios géneros distintos por parte del público” (2000, p.181). 124

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diferentes ou por imitarem de maneiras diferentes. Debruçando-se sobre a tragédia, ele afirma que esta teria desenvolvido elementos “que se revelavam próprios dela e, após muitas mudanças, estabilizou-se quando atingiu a natureza própria” (2005, p. 23). Essa natureza própria estável inclui o objeto imitado: na tragédia, seres superiores; na comédia, seres inferiores. No entanto esta natureza própria se demonstrou instável e as regras fluidas, o que acabou por romper a fixidez dos limites das poéticas literárias propostas pelo filósofo grego46 e dos gêneros como organização fechada dos tipos de escrita. Assim é que Williams afirma que “a teoria dos gêneros, em suas formas abstratas mais familiares, foi substituída por teorias de criatividade individual, de gênio inovador e de movimento da imaginação individual além das formas restritas e limitadores do passado” (1980, p. 180). Silvia Borelli, em seu livro Ação, suspense, emoção: literatura e cultura de massa no Brasil, adota a designação gêneros ficcionais como uma categoria analítica capaz de “articular alternativas e possibilidades para formas literárias, orais, visuais e audiovisuais” (1996, p. 173). Segundo ela, é necessário considerar a força do gênero como um modelo universal que, a despeito das

alterações que vem sofrendo no decorrer da história, consegue preservar, restaurar ou restituir suas características originárias. Dentro da discussão sobre gênero no cinema, Rick Altman destaca a complexidade do termo que poderia ser pensado segundo quatro possibilidades: el género como esquema básico o formula que precede, programa y configura la producción de la industria; el género como estructura o entramado formal sobre el que se construyen las películas; el género como etiqueta o nombre de una categoría fundamental para las decisiones y comunicados de distribuidores y exhibidores; el género como contrato o posición espectatorial que toda película de género exige a su público (ALTMAN, 2000, p. 35).

O homem que copiava se utiliza desses postulados conceituais, com maior ou menor ênfase em cada um deles. O primeiro, a despeito de no Brasil não se poder falar em uma indústria do cinema, pode ser referendado pela produção americana como uma indústria capaz de montar esquemas narrativos claramente categorizados como filmes de gênero que extrapolam qualquer limite de fronteiras, tornadas porosas quando se pensa em influência cultural. Outro elemento que

46 A diferenciação entre o objeto imitado, seres superiores e inferiores em Aristóteles não permitiria jamais se

confundir a tragédia com a comédia. 125

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merece destaque, ainda se tratando deste aspecto, é o relativo à televisão brasileira, com destaque para a Rede Globo seu poder comunicativo e de produção intensa de programas de caráter ficcional. Aqui se pode também pensar em como Jorge Furtado já havia exercitado sua veia humorística neste canal, tendo atuado como roteirista e/ou diretor de programas como Brasil legal, Comédias da vida privada e A invenção do Brasil. Os dois últimos itens descritos por Altman se apresentam claramente na estratégia de nomeação do filme – uma comédia romântica –, o que lhe dá uma classificação dentro do mercado cinematográfico nacional, definindo estratégias de distribuição, divulgação e exibição, além de incluí-lo na programação de TV como um filme leve e engraçado, influenciando também o modo como pode vir a ser recebido pelo público espectador, tanto na sala de cinema quanto na sala de estar. A categorização de filmes por gênero alcançou o seu ápice na primeira metade do século XX em Hollywood, como estratégia dos grandes estúdios em busca de uma comunicação mais direta com seu espectador, anunciando antecipadamente o que este encontraria na sala de cinema. Essa ação de mercado dialoga diretamente com a

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concepção de gênero como matriz cultural ou, mais ainda, a partir de uma perspectiva antropológica através da qual se pode considerar que os gêneros ficcionais se revelam como elementos de constituição do imaginário contemporâneo e de construção da mitologia moderna: reposição arquetípica, aclimatação do padrão originário a uma nova ordem e instrumento de mediação das projeções e identificações nas relações como público receptor (1996, p. 180).

Essa ponte que aproxima filme de receptor se estrutura no campo da produção cinematográfica, capaz de montar narrativas utilizando códigos estritamente organizados para serem lidos a partir de um reconhecimento das características do público, de modo a devolver-lhe suas emoções e seus sonhos como se o filme fosse capaz de promover o reencantamento do mundo. O cinema americano, desde o momento que atribuiu às imagens em movimento uma organização narrativa – domesticando a força de espetáculo popular que estas traziam, exigindo um receptor educado, entregue, mas contido em mínimos gestos expressivos de seu envolvimento –, demonstrou a sua força persuasiva ao propor como legítimo o imaginário burguês, tornado modelo para o homem de massa que constituía, até então, o público dos filmes, um entre

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tantos espetáculos de vaudeville, atração circense para onde se dirigiam as massas trabalhadoras em busca de diversão. O gênero torna-se, nesse contexto, uma ferramenta educacional, propagadora de valores que na origem não pertenciam às massas que o consumiam. Na sua conformação adota elementos que permitem a identificação entre os demasiadamente diferentes, aproximando-os de tal modo que o receptor se sente na pele do herói injustiçado, da heroína chorosa mas corajosa e capaz de realizar seus sonhos, todos justificados pela felicidade que a recompensará no fim de tudo. A indistinção entre o ator e o personagem era um desses mecanismos de identificação, construída sobre um procedimento fílmico capaz de levar o receptor para dentro da alma do personagem: o uso do primeiro plano, imagem cúmplice carregada de afetuosa intimidade com o personagem/ator. MartínBarbero explica que, dessa forma, o cinema produziu a “transposição da fascinação onírica, na sala de cinema, para a idealização de valores e comportamentos fora da sala, na vida cotidiana” (1997, p. 199). A multiplicidade de gêneros inclusos no filme de Furtado e o jogo entre voz e imagem conferem-lhe uma maleabilidade que relativiza, muito mais do que problematiza,

possíveis saídas para situações da narrativa, à primeira vista, insolúveis. Em cada momento-chave do filme um desses gêneros se sobressai, como a indicar caminhos para o enfrentamento das dificuldades vividas pelos personagens, na medida em que funcionam, neste caso, como uma espécie de licença poética. Os desfechos para cada uma das situações vividas por André se aproveitam de sua história de vida e de sua condição social para se justificarem e ocorrerem de modo feliz, sem nenhuma conseqüência mais grave, como se ele devesse ser recompensado por seus sofrimentos e infortúnios, todos colocados no campo da fatalidade. A ação a ele proposta e o que lhe resta como única opção é a reversão desse estado de coisas, transformando uma vida medíocre, reduzida a gestos mecânicos e a uma condição econômica sofrível, em uma vida de aventura, apoiada em ações reais como o assalto ao carro-forte, mas também em sonhos populares de ser um ganhador do prêmio da loteria ou de se tornar um jogador famoso. É daí que surge a possibilidade de conquistar a simpatia do receptor. Mas que fique claro que esse posicionamento é pura e exclusivamente de responsabilidade deste. É esta a engenhosidade do filme. Apesar da aparente sintonia entre as narrativas orais – de André e de Sílvia – e as imagens, elas,

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em essência, se contradizem na medida em que a fala parece ter como objetivo desviar a atenção da gravidade dos atos praticados pelos personagens, funcionando como pista falsa plantada por alguém que se recusa peremptoriamente a qualquer julgamento, mas que se preocupa em contrapor o pensamento do sujeito ao que ele realmente faz. Apesar da aparente leveza do filme, os temas tratados são relativos a valores éticos e às delicadas relações como as que existem entre pais e filhos. Em nenhum momento há qualquer indicação de que se esteja defendendo ou acusando qualquer um dos seus personagens. Não há aqui julgamento de qualquer espécie e nem sentimento de culpa por conta dos atos praticados. Essa voz, portanto, não interfere nas imagens e vice-versa, mas no modo como o espectador pode fazer significar a relação entre as duas. Isto fica claro na última seqüência do filme: o encontro entre o pai desejado por Sílvia e o grupo de amigos diante do Cristo Redentor, um happy end aceito sem nenhuma discussão sobre sua validade. Ao seguir o pensamento de André, a montagem se estrutura atendendo as solicitações do narrador. As imagens se repetem, se ampliam, se reduzem e se completam de acordo com tais solicitações e se afirmam nesse monólogo interior tanto

em relação ao que é expresso verbalmente quanto no que respeita à modulação do que é dito, assumindo uma entonação e um ritmo que apontam para um estado de espírito entediado e insatisfeito. Estabelece-se um tempo visível desordenado,47 porém perfeitamente organizado de modo a não trazer nenhum problema em relação à sua compreensão e ao papel de cada um dos personagens. A despeito dos saltos em direção ao passado ou ao futuro em uma ordem aparentemente confusa, a liberdade de novamente recorrer a esses fragmentos permite que eles sejam contextualizados em outros momentos do filme e que novos significados lhes sejam agregados na medida em que sobre um mesmo fenômeno concorrem forças que até então não haviam se mostrado. Essa sobreposição de pontos de vista torna-se clara a partir do momento em que Sílvia revela que sabe de tudo o que acontece e que muito do que André acreditava ter sido de responsabilidade unicamente sua estava sendo, sutilmente, proposto por ela através de pistas e estímulos, como o cartãopostal do Rio de Janeiro que cai nas mãos de André logo no início. O filme aceita o desafio dado pelas aparências, propondo categorizações que jogam com a idéia de que nem tudo é como se mostra e que a primeira impressão talvez

47 A camiseta é um dos índices dessa mudança, servindo como elemento que marca a passagem de tempo ou

a recorrência do mesmo. 128

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seja a que realmente fica, dependendo do modo como se quer olhar para aquilo que se mostra. A fragmentação da montagem e a inserção de linguagens múltiplas vindas de outras formas de expressão visual o posicionam seguramente dentro do que se convencionou chamar de uma estética pósmoderna como uma prática em que as regras foram deixadas de lado e a colagem se tornou a sua principal forma de expressão. Mas o controle e o ordenamento discursivo linear orientados para um fim, como um objetivo teleológico, desmente essa impressão. A descontinuidade temporal da montagem das imagens e o hibridismo de O homem que copiava, o aproximam da imagem televisiva ou videográfica, exigindo do espectador uma atenção redobrada em relação às suas imagens a fim de acessá-las sem se deixar levar simplesmente pela história de André e de seus amigos em busca de ascensão social.

O filme se abre como se fizesse cruzar dois olhares que vêm de direções contrárias, como o de André diante do quarto de Sílvia. Esse olhar ingênuo, no sentido de que aquilo que via era algo dado a ver sem reservas por não se saber vigiando, é posteriormente res-

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significado pela consciência de que ela sabia que estava sendo observada. Significados se agregam então ao que se entendia como o olhar de André que passa a ser também aquilo que Sílvia gostaria que fosse visto. Sobre os dois personagens está o olhar do narrador fílmico propriamente, aquele que vê tudo o que acontece e que encara tanto André como Sílvia de uma posição superior, capaz de se dirigir a ambos com uma objetividade tal que dispensa a expressão subjetiva dos personagens, estando estes colocados como sujeitos em estado de observação constante, num exercício de voyeurismo que se estrutura em camadas: André vigia Sílvia que vigia André e ambos são vigiados por um olhar onipresente capaz de não só mostrar o que eles fazem como de penetrar no pensamento de André. Esse narrador fílmico se confunde com a figura do autor. Essa estrutura aproxima o filme de Jorge Furtado do que Bakhtin denomina na literatura de romance polifônico, organização que ele encontra na obra de Dostoiévski. No romance polifônico os personagens assumem um grau de autonomia tal que parecem se libertar dos ditames do autor. Essa independência, no entanto, integra o plano do autor. “Esse plano como que determina de antemão a personagem para a liberdade (relativa, evidentemente) e a introduz como

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tal no plano rigoroso e calculado do todo” (BAKHTIN, 2005, p. 11). A multiplicidade de vozes e olhares e os gêneros que se cruzam como recurso narrativo em O homem que copiava instauram uma situação polifônica em que nem sempre o que se vê confirma o que se ouve e vice-versa, e o que se anuncia como uma comédia romântica nem sempre se mantém assim, desviando-se para o drama ou para a aventura sem nenhuma cerimônia. O que se coloca aqui é a experiência como algo que não tem uma regra única e que a vida pode sim assumir características distintas de acordo com o contexto e com os indivíduos envolvidos. Isso se confirma pelo subtítulo do filme: “A vida é original, o resto é cópia”. O roteirista/diretor (autor) conforma o filme de modo controlado, permitindo que, dessa forma, tenhamos acesso às vozes de seus personagens e ao mundo com o qual se relacionam ou dialogam. Seres que têm nas próprias mãos instrumentos para mudar os seus destinos, capazes de agir motivados por interesses individuais justificados por uma realidade que parece ser também particular, na medida em que se apresenta atravessada pelo modo como os personagens lhe conferem sentido. O autor acompanha tudo o que acontece, mantendo

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um certo distanciamento, imbuído de uma neutralidade que se desmente exatamente quando pode penetrar no pensamento de André ou no que escreve Sílvia. E, de modo nada condescendente com o receptor, acaba por transformá-lo em cúmplice dos crimes praticados pelos personagens. Cumplicidade conformada através do riso e da sensação de irrealidade que caracteriza o filme desde que se compõe de fragmentos de imagens e de sons que o transformam em um tipo de palimpsesto montado sobre pedaços de realidade da vida de André, sobre os quais se escrevem novos sentidos dados pelo modo como ele explica esta mesma vida.

A cidade Em O homem que copiava a narrativa se apropria da cidade como se esta fosse um de seus personagens, cujo papel é contracenar com o protagonista André que constantemente a ela recorre em busca de complementação para o seu diálogo com o mundo. Aqui, os equipamentos urbanos, as vitrines e seus produtos são utilitariamente dispostos em busca dessa interação, partes de um discurso construído num jogo entre palavras e imagens. Porto Alegre, cidadepersonagem, aparece com falas próprias em

planos de detalhes que se destacam em closes, assumindo um papel ativo na construção do sentido da narrativa. A cidade se apresenta como um espaço limitado às possibilidades de uma classe social sem perspectivas de ascensão de qualquer nível. Empobrecidas são as paisagens por onde André se desloca, não a pobreza miserável da favela, mas a pobreza de bairros onde basicamente se trabalha para sobreviver e fazer cálculos que irão revelar se o dinheiro será suficiente para pagar as contas no final do mês. Nas ruas pouca gente, carros estacionados e raros motivos para sair de casa, a não ser aqueles obrigatórios, como ir à farmácia ou ao supermercado. Nesse contexto social, a cidade é também o espaço do encontro amoroso, das coincidências nem tão coincidentes assim, das armadilhas mortais, dos lugares para os acordos ilegais e essencialmente onde a vida se faz como uma aventura cômica romântica. Na rua, o olhar se esconde e se disfarça dirigido para o chão; das janelas, espiona o entorno e, altivo, tece comentários sobre a sua história e sobre os seus habitantes, aqueles que dali são vistos sem suspeitarem de nada, entregues sem nenhum pudor ao poder de aproximação do binóculo, máquina de extensão da visão.

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Porto Alegre, aparentemente invisível, aparentemente inodora e sem cor, surge mediada por um olhar aparentemente distraído, mas que aos poucos se mostra atento e consciente do que esta lhe oferece. Este olhar que não é um só, mas no mínimo dois – o de André e o do narrador fílmico

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–, captura os detalhes dessa cidade, conferelhe significados e a toma de assalto de acordo com seus interesses. O primeiro a instrumentaliza, o segundo a transforma em discurso, e a cidade fala.

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A personificação do espaço urbano Na primeira cena de O homem que copiava, André se vê em apuros por não ter dinheiro suficiente para pagar as compras feitas no supermercado. Diante do caixa, ele negocia o que vai levar para casa: a carne ou o fósforo. Sobra a carne que deve ser retirada da conta. Esse imbróglio inicial apresenta ao espectador um sujeito com atitudes educadas, humildes, mas determinado. Mesmo retardando o atendimento e sendo veladamente censurado – pela moça do caixa, pelo gerente e por aqueles que esperam impacientemente na fila –, ele insiste em sua decisão. A cena seguinte explicaria a necessidade do fósforo. Com ele, queimaria notas de cinqüenta reais. Notas falsas certamente, como afirma o título do filme que surge em letras garrafais sobre a fogueira de papel. Os créditos se completam, enquanto as notas viram cinza. E aí se inicia o monólogo interior de André. Ele começa se apresentando: “Meu nome é André, era o nome de meu pai. Foi ele quem escolheu o meu. Minha mãe me chamava de Zinho, ele não gostava; só me chamava de André. Depois ele desistiu e começou a me chamar de Zinho também”. De um modo ordenado, ele continua: “Eu moro em Porto Alegre, uma cidade do Sul do Brasil. Moro na Presidente Roosevelt,

que é essa rua. Fica no quarto distrito”. As imagens trazem André no trabalho. Um primeiro plano, que mostra seu rosto sendo iluminado por uma luz que vem de baixo, vai se abrindo aos saltos de modo a situar que tipo de trabalho é este e onde ocorre.

André é responsável pelo serviço de fotocópia em uma papelaria de balcões azuis. A luz que o iluminava era da máquina. Do lado de fora, uma placa horizontal branca com letras também azuis identifica o lugar para quem atravessa a rua. Para os que vêm pela calçada duas outras – agora com o fundo azul e letras brancas – procuram informar que ali funciona a papelaria J. Gomide. Na fachada está o nome do estabelecimento, o que vende (material escolar, material de escritório), os serviços que presta (encadernação, cópias) e o número do telefone acompanhado pelo símbolo de um aparelho.

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A repetição de dados estabelece uma situação de redundância como um mecanismo de redução das possibilidades de ruído ou de incompreensão da mensagem, através do reforço do que está sendo comunicado, mas também como representação formal dentro dos parâmetros da comunicação vi-sual, em que o conteúdo deixa de ser texto unicamente como linguagem verbal para ser também linguagem visual. Nessa perspectiva, as palavras tornam-se imagem tipográfica, onde cores, formas e direções passam a ter um tratamento específico de acordo com a intenção comunicativa. Neste caso, essas letras se baseiam unicamente no critério legibilidade. A repetição exaustiva de uma única informação reforça a necessidade de visibilidade satisfeita através do uso das placas. Nas vitrines da papelaria, adesivos de cartões de crédito quase as transformam em paredes opacas, desvirtuando o sentido do vidro como transparência reveladora do que é possível adquirir no estabelecimento. Tudo isso ainda tem que competir com cartazes lambe-lambe colados nas paredes. O número de placas e a quantidade de informações, mesmo que repetidas, parecem ter como intenção não deixar o transeunte escapar. Além de todo esse aparato comunicativo e um cavalete com a palavra “carimbos” ocupando parte da calçada, há ainda uma faixa horizontal em

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tecido branco anunciando uma promoção – “tudo em 3x s/juros; ent/30/60D- cheque pré; parcela min. R$ 30”. O texto cifrado é facilmente compreendido como um vocabulário comum a todos. O que completa o sentido da frase é a consciência de que nessa mensagem não há nada de novo, e a sua presença pela cidade facilita a sua compreensão sem que necessariamente tenha de ser pensada, bastando, para isto, recorrer a uma memória previamente construída que aproxima esse tipo de mensagem com conteúdo e forma semelhantes a milhares de outras. Essa semelhança entre soluções de comunicação se espalha pelo espaço urbano e, de certo modo, acaba por identificálo como tal, independentemente de sua categorização como metropolitano ou não. A livraria aqui funciona como um símbolo,48 capaz de identificar onde André mora e trabalha. Seu enquadramento, ocupando toda a extensão da tela, só se justifica em função desta possibilidade. Essa é a primeira das manifestações de uma cidade que adquire visibilidade ao ser acessada pelo protagonista. Esta aparente submissão, no entanto, se revela uma falsa impressão. A cidade está lá, sempre esteve. Ela é capaz não só de localizar no espaço e no tempo as ações da narrativa como também, e sobretudo, de se apresentar em potência como um espaço

virtual, disponível e disposto a significar a partir de si mesmo, mas transformado pela relação que estabelece com o protagonista do filme. O olhar de André, que atravessa Porto Alegre, se estrutura dentro de um universo construído por seus deslocamentos, por suas intenções e por seus desejos. Um olhar aprendido dentro de uma câmera objetiva capaz de flagrar de modo quase material as linhas que o definem, dando, de alguma maneira, ao que vê e ao que é visto um mesmo grau de importância. A cidade gira em torno dos personagens como um espaço aberto a significações de variados tons. Aí está sua independência e sua riqueza como significante, materialidade porosa capaz de estabelecer relações individuais e diferentes com cada um dos que por ela passam. Uma dessas situações ocorre logo depois de André copiar um livro de Keith Haring. Enquanto faz isso ele pensa: “Uma vez eu li que um cara que desenhava bonecos na parede ficou muito rico, só que morreu logo”. As imagens de Haring, coloridas ou em pretoe-branco, ocupam a tela, reproduzidas pelo poder da máquina fotocopiadora. André pega uma delas furtivamente. A voz dá continuidade à fala, mas a situação espaço/ temporal é outra. Agora ele está na rua, com um fone de ouvido, mochila nas costas, jeito

48 Reforçado pela voz que nomeia o lugar.

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meio irritado. “O cara se rala trabalhando a vida inteira para deixar a grana pra sei lá quem, que nem filho o sujeito teve tempo de fazer…” Nessa seqüência, André passa diante de uma loja onde estão penduradas camisetas com a estampa de bebê feita por Haring e reproduções baratas de pinturas de artistas plásticos. Entre elas um auto-retrato de Van Gogh. O quadro e a camiseta – que podem ser uma plataforma de exibição de mensagens visuais, tendo o corpo como suporte móvel – servem como elementos reforçadores do discurso de André e do modo como ele vai se constituindo no filme: um sujeito tímido, quase invisível, porém decidido a ficar rico. A estampa de Haring e a figura de Van Gogh funcionam como dispositivos midiáticos que enfatizam a idéia espetacularizada sobre a vida desses artistas. O primeiro, um artista urbano, ícone da cultura pop, que tomou conta do metrô de Nova York e de galerias de várias partes do mundo com sua arte grafite, e que morreu jovem, aos 31 anos de idade, em decorrência da AIDS. O segundo, tão intenso em suas decisões que chegou a se mutilar decepando a própria orelha, tendo se suicidado aos 37 anos após um surto psicótico.

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A associação entre o que pensa André e as imagens que remetem a esses artistas pode ser explicada pelo mecanismo de construção do espetáculo segundo o modo entendido por Marc Augé, a espetacularização do mundo é, primeiramente, o fato da proliferação de imagens que se impõe cada vez mais aos cidadãos-espectadores. O ‘conhecimento’ do Planeta, que hoje quase qualquer um de seus habitantes pode ter, passa evidentemente pelas imagens dele que a televisão, principalmente, lhe mostra. Mas a imagem não vem isolada: a história do dia-a-dia é apresentada pelo conjunto

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da mídia como que se desenvolvendo em um certo número de cenas (1997, p. 104).

A associação entre a fala de André e as reproduções aponta para uma composição intertextual que expande os sentidos a serem construídos de modo ativo pelo leitor/ receptor. Como virtualidade, a cidade pode ser pensada como um não-lugar, podendo ser deixada de lado como se deixam esses espaços instrumentais com os quais as relações não vão além da preocupação com o seu funcionamento otimizado. Nesse caso, Porto Alegre se faria então presente na medida necessária para caracterizar uma narrativa urbana. O conceito de não-lugar49 criado por Marc Augé se constrói em paralelo com o de lugar antropológico que se define como identitário, relacional e histórico. Ao ser qualificado como antropológico é entendido como “construção concreta e simbólica do espaço que não poderia dar conta, somente por ela, das vicissitudes e contradições da vida social, mas à qual se referem todos aqueles a quem ela designa um lugar, por mais humilde e modesto que seja” (1994, p. 51). Num único lugar antropológico duas pessoas não podem estar ao mesmo tempo.

Ser concreto e simbólico ao mesmo tempo permite que o lugar não seja um qualquer, mas aquele onde se estruturam identidades, onde se estabelecem vínculos de pertencimento e de partilhamento de uma história construída diariamente, sem que se tenha, necessariamente, consciência do que está acontecendo. “O habitante do lugar antropológico não faz história, vive na história” (AUGÉ, 1994, p. 53). Para Michel de Certeau (2005, p. 202), o lugar é a ordem, onde se distribuem e se desenvolvem as relações de coexistência e de compartilhamento, em situações de estabilidade. O lugar se define, se indica. Sou daquele lugar, nele está minha história, mesmo que nele eu não esteja mais, sou dele e ele é meu. O não-lugar, por sua vez, é um conceito que se estrutura pela negação, não podendo ser identitário, relacional ou histórico, como é o lugar. Ele se apresenta como “instalações necessárias à circulação acelerada das pessoas e bens (vias expressas, trevos rodoviários, aeroportos) quanto os próprios meios de transporte ou os grandes centros comerciais, ou ainda os campos de trânsito prolongado onde são estacionados os refugiados do planeta”. (AUGÈ, 1994, p. 36).

49 Augé propõe o termo como uma das características do que ele denominou Supermodernidade, como um

momento em que o excesso é a sua principal característica: excesso de tempo “sobrecarregado de acontecimentos”; excesso de espaço como “correlativo ao encolhimento do planeta” e excesso do indivíduo (AUGÉ, 1994).

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As relações entre lugar e não-lugar vão além dessa oposição, incluindo também a possibilidade de simbolização, o que permite que o primeiro esteja contido virtualmente no segundo de modo que, ao se estabelecer ligações afetivas com o não-lugar, este possa se tornar um lugar.50 Do corredor, por onde se passa indiferente a tudo, o não-lugar pode se tornar um lugar de trabalho, de encontro, de lazer, portanto, capaz de conter as características do lugar antropológico, posto aqui em estado virtual. Ambos estão contidos um no outro como o virtual e o atual, num movimento de devir em mão dupla e nunca igual. Assim é que a cidade vai se atualizando, adquirindo sentido na medida do surgimento dos problemas de André. Sua limitação em termos de possibilidades de deslocamento pela cidade é uma das causas da virtualização de Porto Alegre em O homem que copiava. O trajeto de André é sempre o mesmo e medido segundo sua potência física para conseguir conquistar novos territórios, o que praticamente não acontece, uma vez que a narrativa se concentra nas regiões onde ele e Sílvia trabalham e moram, no máximo se estendendo até onde o binóculo pode alcançar. Este mundo que se autocomprime vai se ampliando, como se escondesse potencialidades que o transformam a partir de dentro. 50 Movimento contrário também é possível. 51 Além de passar o tempo, quando não está

André e Porto Alegre, nesse contexto, são indissociáveis e crescem no filme desde o momento em que se encontram, como ocorre quando em um ponto de ônibus se vê um anúncio luminoso da feira de livro da cidade. Nele está a fotografia de um sujeito algemado dentro de um carro lendo Crime e castigo de Dostoiévski. O livro ocupa o centro do luminoso cobrindo o rosto do leitor. As letras do título estão em caixa alta, com uma cor que se destaca em relação à cor da capa. A imagem, acompanhada pela frase “você é o que você lê”, abre mais de uma camada de sentido para a narrativa. Um primeiro, mais óbvio, é de que André gosta de ler.51 Um outro, mais sofisticado, aproxima André de Raskolnikov, protagonista do romance russo, como sujeitos que, dadas as circunstâncias da vida, acabam tomando decisões arriscadas e violentas em busca de resolver os seus problemas. Ambos se colocam acima da lei.

trabalhando, lendo revista na papelaria ou pescando os fragmentos do que copia, ele, logo depois que ganha na loteria, é visto em uma grande livraria da cidade na sessão de livros de arte.

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Na cidade, a mídia exterior institui um ambiente urbano que se estende para além de suas características puramente arquitetônicas – planejadas ou não –, urbanísticas e ambientais, transformando-a em cenário e suporte de um discurso dirigido a segmentos reconhecidos, segundo as motivações que os levam às ruas, em função das relações que desenvolvem com o que é oferecido pela metrópole em termos de ocupação, serviços e consumo. A ausência de iluminação pública nas metrópoles muitas vezes é suprida por backlights e frontlights emissores de uma luz difusa mediada pelos textos e pelas imagens das mensagens. O uso desse tipo de mobiliário urbano – ponto de ônibus, por exemplo – pela publicidade aproveita algumas de suas propriedades, como a presença de um público cativo que se afirma em sua rotina e/ou se multiplica em sua variedade – lugar de encontro e de espera – e sua localização privilegiada em vias de fluxo intenso, permitindo a extensão de sua potência comunicativa para além dos usuários do transporte coletivo, muitas vezes considerados como alvo secundário. O que o qualifica como plataforma midiática é a relação construída entre essa sua localização e o perfil dos que por ali transitam em qualquer circunstância de movimento, a pé, de ônibus ou de automóvel. Indivíduos discriminados por seu poder de consumo.

As visualidades urbanas são justificadas no filme quando afirmam interesses ou marcas do caráter do protagonista, como, por exemplo, a placa da loja onde a namorada de André trabalha que traz o nome Sílvia em letras brancas e fundo vermelho e a lotérica Gato Preto onde ele faz a primeira troca de nota falsa. Todo o resto, que não possibilita esse diálogo, se esconde na invisibilidade de um modelo de cidade onde as ruas comerciais se enchem de placas, luminosos e sinalizações de fácil entendimento e que por isso mesmo exigem muito pouca atenção. “Os olhos que se extasiam ante a cidade perdem paulatinamente sua avidez na medida em que se embaçam pelo hábito de ver-a-cidade na repetição do cotidiano que oscila entre a ação automática e a experiência existencial” (FERRARA, 2002, p. 120). A essa perda de avidez corresponde uma perda de intenção propositiva sobre o que se coloca por trás das decisões relativas ao uso da cidade, seja pela iniciativa privada, seja pela iniciativa pública. O que ocorre no âmbito dessas visualidades não necessariamente resulta em visibilidade na medida do risco que é a naturalização do modo como este se apresenta, caso tipificado pelo filme do Jorge Furtado.

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A síndrome do pânico A cidade se fecha sobre André e se mostra a partir das relações que este estabelece com o seu entorno. O mundo de André é limitado pelo que a sua condição social lhe permite. Na rua, deixa escapar seu estado de espírito quando, encolhido e cabisbaixo, exterioriza seus pensamentos: “existem pessoas que não saem nas ruas, nunca! Chama-se síndrome do pânico. Acho que era um trabalho de faculdade. Elas ficam em casa porque não conseguem sair na rua. O problema é que tu acaba ficando velho”. Essa seqüência, iniciada no momento em que ele sai de casa, se estrutura em pequenos pedaços de imagens produzidas por uma câmera no ombro. A preocupação com a velhice, associada à necessidade de estar nas ruas, adquire um significado diferenciado com a repetição da cena no exato instante em que André cruza com um homem velho que se locomove com o auxílio de um andador. A aproximação entre os dois ocorre em ritmo normal. O homem vem em direção a André que se volta para ele discretamente com um leve girar de cabeça. O encontro quebra o tempo da ação e, imediatamente, em câmera lenta, a cena é repetida em um ângulo lateral, levemente diferente do anterior. Duas vezes o encontro, duas imagens, dois ritmos, pontos de vista ligeiramente modificados.

A repetição, somente no âmbito da imagem, não interrompe o fluxo do pensamento. Ela está ali para intensificar a força do narrador que apenas aparentemente se associa à voz de André. É este narrador fílmico que define como necessária essa reiteração do destino do homem, fadado à decrepitude e à finitude do corpo. Um novo corte retoma o ritmo anterior e André conclui: “Melhor enfrentar a rua”. A câmera lenta52 é um dos recursos do cinema para interromper o fluxo do tempo. No cinema, o tempo adquire o ritmo exigido pela proposta estética do autor, podendo se estender ou se comprimir, na medida do necessário. No limite, o próprio fragmento de um filme é um recorte de tempo/espaço cuja continuidade se dá pela invisibilidade do espaço negro inserido entre os fotogramas. Todo corpo, todo gesto, todo lugar, toda efusão, em resumo, toda continuidade e toda unidade filmada são (impiedosamente) cortadas em fragmentos descontínuos (os fotogramas) separados por fitas negras, intervalos cegos (…) não vetores do visível, mas que não deixam de ser partículas de tempo, de duração do sensível (COMOLLI, 1995, p. 151).

A decisão anunciada, de enfrentamento, apresenta a rua como um lugar pouco

52 Outro momento de repetição em câmera lenta mostra Sílvia passando seminua diante da janela do quarto,

deixando-se ver por André que a espiona. 140

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acolhedor. É explícito o mal-estar, e o protagonista se protege do mundo criando uma redoma em torno de si, resguardandose com um fone de ouvido transformado em prótese orgânica, capaz de criar um ambiente privado e inviolável. André não demonstra nenhuma disponibilidade para a troca e aparentemente nada do que acontece ao seu redor lhe interessa. Enfrentar a rua torna-se necessário não como possibilidade, mas como fatalidade, assim como quase tudo o que faz. Sua passividade esconde práticas e posicionamentos nada compatíveis com a vida em sociedade. André engana, agride, assalta e mata como se estivesse vivendo em uma história em quadrinhos, sem sofrer nenhum tipo de punição. Se contra ele, supostamente, nada poderia pesar, sobre a cidade também não. Ela adquiriu vida própria, indiferente à sua população que, em troca, retribui na mesma moeda. A esfera pública como esfera da liberdade aqui transcende qualquer prática de civilidade, tendo se transformado em um espaço para indivíduos anônimos sem vínculos ou ação política de qualquer espécie e quiçá sem nenhuma vida social. Hannah Arendt, ao discutir o homem como animal social ou político, reconstrói a trajetória desses conceitos no mundo

ocidental, apontando para o fato de que a vida humana ativa sempre vai estar relacionada com outros homens ou com coisas feitas por eles. As coisas e os homens constituem o ambiente de cada uma das atividades humanas, que não teriam sentido sem tal localização; e, no entanto, este ambiente, o mundo ao qual viemos, não existiria sem a atividade humana que o produziu (…) Nenhuma vida humana, nem mesmo a vida do eremita em meio à natureza selvagem, é possível sem um mundo que, direta ou indiretamente, testemunhe a presença de outros seres humanos. (ARENDT, 1997, p. 31)

André pode ser pensado como alegoria de uma vida social empobrecida, como um eremita do centro urbano, inserido no mecanismo de consumo capitalista – ainda que isto lhe seja proibido –, destituído do seu poder de produção, afastado das esferas de decisão. O espaço público, para ele, pouco significa; as ruas não são o lugar da rebelião (VIRILIO, 1996a) ou da expressão. A ação política não faz parte de seu imaginário e a cidade onde vive pode ser substituída por outra a qualquer momento. A distinção entre família e polis na cidadeestado, onde a primeira estava diretamente associada às necessidades e carências que levavam os homens a viverem juntos, e a

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segunda ao espaço da liberdade onde todos eram iguais, situações possíveis pela condição social do homem grego, de acordo com Arendt, aqui não encontra vez. Não somente porque “a privatividade53 moderna, em sua função mais relevante – proteger aquilo que é intimo – foi descoberta não como o oposto da espera política” e sim da esfera social (1997, p. 48), como destaca Arendt, mas também porque a ação na esfera pública se transformou, quase exclusivamente, no direito ao consumo como significado de participação. André está alijado dessa possibilidade, o que ganha no trabalho não lhe dá direito nem mesmo de assumir uma posição social. Operador de fotocopiadora, o jovem se apresenta como desenhista de história em quadrinhos, afinal “que guria namoraria um operador de fotocopiadora?”, ele se pergunta. Ainda no prólogo do filme, fica clara a sua insatisfação com a mecanização de seu trabalho e com o que ele significa simbolicamente. “Grande merda” ser operador de fotocopiadora, afirma em pensamentos. Mas é o que ele diz para as garotas por quem se interessa. Mas só se elas perguntam. Em um dos fragmentos do filme, uma voz feminina vinda de fora do quadro anuncia o diálogo que ele acabara de comentar. A 53 “O

imagem ainda é a de André na papelaria e a moça já lhe pergunta: “E o que que tu fazes?” “Eu, eu sou operador de fotocopiadora”, responde André. “E o que que é isso?” “Eu opero uma máquina de fotocópia”. “Tipo xerox?” “É, mas só que de outra marca”. “Ah, tu trabalha numa xerox de uma firma”. “Não, não, numa loja”. “Legal!”, é a resposta dela. A conversa acaba assim. A moça não sabe mais o que dizer e André, humilhado, se retrai. De volta à papelaria, ele questiona o esforço intelectual para desenvolver sua tarefa e conclui: “É uma merda!”. Fala que se realiza no tempo e no espaço do encontro com a menina, imagem que retorna ao quadro. “É só pra ganhar uma grana. Eu, na verdade, trabalho com ilustrações, mandei até um material pra uma revista”, diz com um ar mais animado, logo substituído pelo reconhecimento de que sua explicação não modificou a impressão que causava naquele momento. A voz over encerra a questão: “Material… acho que ela não caiu nessa. Gurias são espertas”. A câmera, na lateral, se fecha sobre eles destacando a decepção da garota e a tristeza de André. André não convence, e nem poderia, uma vez que nem ele mesmo está convencido disto. Goffman (2007) explica que a expressividade de um indivíduo, como sua capacidade de impressionar, envolve

que hoje chamamos de privado é um círculo de intimidade cujos primórdios podemos encontrar nos últimos períodos da civilização romana…” (ARENDT, 1997, p. 48). 142

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a expressão que ele transmite baseada nos símbolos verbais ou seus substitutos e a expressão que ele emite que se apóia em ações que não estariam estritamente relacionadas com a informação, mas com os seus gestos e seu comportamento como uma expressão de “tipo mais teatral e contextual”. O cenário do encontro – uma calçada de um prédio em ruínas construído quase na beira do rio que aparece ao fundo –, o corpo pouco à vontade, a expressão facial e a fala parecem negar o que diz, desvalorizando a informação. Esses elementos, somados, negam de toda forma a imagem que ele desejaria transmitir para a garota. Ainda, segundo Goffman, em presença dos outros, o indivíduo geralmente inclui em suas atividades sinais que acentuam e configuram de modo impressionante fatos confirmatórios que, sem isso, poderiam permanecer despercebidos ou obscuros. Pois se a atividade do indivíduo tem de tornar-se significativa para outros, ele precisa mobilizá-la de modo tal que expresse, durante a interação,54 o que ele precisa transmitir (2007, p. 36 e 37).

O tom de desculpas e de justificativa afirmando a atividade de operador de fotocopiadora como provisória acaba por tirar da informação, que para ele seria a

mais importante – o fato de trabalhar com ilustrações –, qualquer possibilidade de ser encarada como verdadeira. André desenha e se refere ao seu desenho como algo que não serve para nada. “É divertido porque não serve pra nada! Só pra dizer pras gurias. Mas não tem dado muito certo. Gurias são muito espertas. Gurias reconhecem um operador de fotocopiadora em poucos segundos. Gurias não sonham em passar a vida do lado de um operador de fotocopiadora. Viajar pelo mundo com um operador de fotocopiadora. Ter filhos de um operador de fotocopiadora. Pelo menos, eu, até agora não encontrei nenhuma guria que sonhasse isso”. Todorov, em seu livro A vida em comum (1996), ao tratar das relações humanas a partir do reconhecimento mútuo, recorre à Teoria dos sentimentos morais de Adam Smith, destacando que, para este autor, a atenção do outro é fundamental para a construção da identidade. “A descrição de Smith de nossa dependência dos outros está impregnada de termos visuais: mostrar, dissimular, notar, fitar, observar, ignorar, consideração, vista, olhos, atenção, olhar…”, diz Todorov, completando que para o filósofo escocês, “as riquezas materiais não são um fim em si mesmas, mas um meio de nos assegurar a consideração dos outros” (1996, p.

54 Itálico do autor.

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29). André não tem o que mostrar, não vê perspectiva nenhuma em deixar de ser operador de fotocopiadora ou se tornar um ilustrador. Um dos seus sonhos era ser jogador de futebol: querido pelas mulheres, adorado pela torcida e famoso. Mas desse sonho já desistira havia muito tempo. O protagonista de O homem que copiava não vislumbra nenhuma possibilidade de ascensão social por via coletiva. Nem ele, nem nenhum dos outros personagens do filme. A ação individual se sobrepõe e o que se vê é um esforço em resolver problemas através de saídas que beneficiam somente a eles próprios, através de atitudes antiéticas ou propiciadas pelo acaso ou pela sorte, confirmando o que Bauman descreve como uma inversão no campo da prática social: O auto-engrandecimento está tomando o lugar do aperfeiçoamento socialmente patrocinado e a auto-afirmação ocupa o lugar da responsabilidade coletiva pela exclusão de classe. Agora, são a sagacidade e a força muscular individual que devem ser estirados no esforço diário pela sobrevivência e aperfeiçoamento. (BAUMAN, 1998, p. 54)

Quando ele cita a necessidade de enfrentar as ruas é possível pressupor que essa fala esteja se referindo a um lugar perigoso, mas

não é o que acontece e nenhuma seqüência confirma essa constatação. Nenhuma sirene, nenhum acontecimento fora da ordem, nada que altere a normalidade, exceto as ações do próprio André que, apesar de violentas, não chegam a modificar a rotina da cidade ou a ele próprio, como se acontecessem em um mundo paralelo com uma lógica própria e independente da vida real. A atmosfera que envolve algumas dessas ações, como a do assalto, é exemplar em relação a isto. No dia marcado, André espera a chegada do carro-forte em uma locadora de vídeo. Lá encontra um dos vizinhos55 que ele espionava de sua janela. Curioso, se aproxima e pergunta que tipo de música o sujeito gosta. A resposta vem meio antipática, mas enfática: rock. Banda preferida: Creedence. Era essa a deixa para o clima do assalto se apresentar como uma aventura quase cômica, algo que mesmo na dimensão com que se apresenta não altera o caminhar da vida. Não há nenhuma tensão, nenhuma expectativa que dê a dimensão do ato que André irá cometer dentro de instantes. A ação de André vai ser neutralizada pelo prêmio da loteria, que o deixa em uma situação confortável, livrando-o da necessidade de usar o dinheiro do assalto.

55 Com um fone de ouvido, o sujeito dança até ser abordado por André.

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Cuanto más “aventurera” es una aventura, es decir, cuanto más puramente responde a su concepto, más “soñada” resulta para nuestro recuerdo (…) La aventura, por contra, en su sentido específico, es independiente del antes y del después; sus límites se determinan sin referencia a éstos. Justo cuando la continuidad con la vida es rechazada tan por principio, o cuando no necesita siquiera ser rechazada porque existe de antemano una extrañeza, una alteridad, un estaral-margen, es cuando hablamos de aventura. (…) Es como una isla en la vida, cuyo comienzo y final viene determinados por sus propias fuerzas configuradoras (…) (SIMMEL, 1988, p. 12 e 13).

E é ao som56 da banda americana que o assalto se desenrola. O carro chega, os planos se multiplicam em ângulos e pontos de vista diversos. A cidade que até então era vista como um espaço fechado se abre para a ação, como se quisesse finalmente compor o entorno, localizando personagem e receptor em um lugar identificável. O jogo de quebra de eixo confunde a percepção do movimento que leva André em direção ao carro. A câmera mais captura em pedaços o que acontece do que acompanha propriamente. Ela mantém uma distância segura, porém atenta, chegando a dar uma virada brusca em direção ao veículo, quando André, que

parecia ter desistido ao passar direto, se volta e confirma o assalto. Tudo acontece como um rompante, um sobressalto. A voz de André quase some, coberta pela música, e nada dá errado até o momento em que, ao pegar a sacola de dinheiro no chão, ele é desmascarado pelo pai de Sílvia, segurança do banco. Assustado, atira no pé do homem, deixa a arma cair e sai correndo com a sacola na mão. A cidade aparece borrada. Ninguém se volta para ele, ninguém liga para o que está acontecendo. André entra em uma galeria escura que o leva para outra rua. Tira o casaco e cobre com ele a sacola. Do outro lado encontra Cardoso com quem tinha combinado fugir de carro, mas este parou em lugar proibido e um guarda de trânsito está próximo. A saída é pegar um ônibus. André e Cardoso, sem dinheiro para a passagem, são obrigados, ali mesmo dentro do ônibus, a abrir a sacola com o dinheiro roubado. Eles tiram uma nota de cem reais que é recusada pelo cobrador. Mais uma vez têm de recorrer à sacola de onde tiram cinqüenta reais para fazer o pagamento. Nenhum dos passageiros estranha o que acontece na catraca. O ônibus cruza o quarteirão e passa em frente ao local do assalto. Lá estão alguns transeuntes socorrendo o segurança ferido. Entre eles, o

56 Travelin’ Band, de Creedence Clearwater Revival.

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vizinho que gosta do Creedence. Ele e André se reconhecem. Momento ímpar no filme. A ausência de relacionamentos no espaço urbano, neste caso, aparece como uma ferramenta de segurança. O assalto se deu na esquina da casa de André. O prédio do banco pode ser visto da janela de seu apartamento. Enquanto ele corre com o dinheiro, a gôndola que fica em frente à sua janela é vista do alto. Esse estado de não-relacionamento entre pessoas que habitam um mesmo bairro, uma mesma rua, pode levar a se pensar em sujeitos urbanos como os descritos por Richard Senett: (...) sobreviventes e autômatos da metrópole de quem são solicitados uma postura de isolamento e de individualidade, os habitantes ou os trabalhadores de uma estrutura urbana de alta densidade são inibidos ao sentirem qualquer relacionamento com o meio no qual está colocada essa estrutura (…); assim como alguém pode se isolar em um automóvel particular para ter liberdade de movimento, também deixa de acreditar que o que o circunda tenha qualquer significado além de ser um meio para chegar à finalidade da própria locomoção. (1988, p. 29)

Para André, as calçadas são para serem transpostas como um corredor que liga sua

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casa ao trabalho ou o leva até Sílvia. Prédios e equipamentos urbanos só ganham sentido quando associados ao uso imediato ou quando, na falta do que fazer, são transformados em objetos de entretenimento, como ocorre com o Clube Gondoleiros e com os vizinhos que são observados todas as noites por André através de seu binóculo, fruto da economia de um ano. “Onze horas eu pego o binóculo. Ainda tem muita gente acordada. Uma coisa que eu descobri olhando os vizinhos é que gordos dormem tarde. Eu não sei por quê. Deve ter uma estatística. Entre os últimos caras a dormir sempre têm pelo menos um gordo (…) Outra coisa importante que eu descobri, além do fato dos gordos dormirem tarde, é que se tu quer ver uma coisa de binóculo não adianta ficar pulando de uma janela pra outra atrás de ação. Tu tem que se fixar numa janela e esperar. É como pescar”. Essa postura carrega então uma técnica sobre como se apropriar da vida dos outros, traz um olhar paciente se deixando capturar pelo que lhe aparece à frente. Obviamente como uma decisão de voltar-se para fora estando dentro, uma prática vouyerística justificada em função da falta de opção, dada pela falta de possibilidades financeiras, sobretudo, que lhe permitam uma vida mais participativa. Olhar é o que resta a André e esse olhar não pode ser reconhecido como existente. Daí as pessoas serem espionadas à noite. A luz

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tênue da noite é mais facilmente controlada do que a luz diurna. Com Sílvia, no entanto, ele fugiu a essa regra. André se apaixonou em uma espiada diurna. O binóculo não esperou pacientemente como na pescaria. Ao contrário, parecia estar procurando algo, tal seu movimento desordenado. Ela tomava café na sacada do prédio, vestida com um pijama de flanela.

Não há culpados, somente esquecidos ou distraídos.57 Walter Benjamin, em 1935/ 1936, ao discutir a obra de arte na era da reprodutibilidade técnica, traz para o debate

A cidade também é capturada pelas lentes do binóculo: “Daqui dá pra ver a ponte, todo dia ela sobe pra passar algum navio. É divertido ficar bem de longe e ver uma pessoa bem de perto”. Ele cria estratégias para ver sem ser visto; mantém a cidade distante, ainda que tenha plena consciência daquilo que a conforma. Nada, aparentemente, faz diferença. André é parte de tudo, mas também não é, como um sujeito que se coloca como espectador, mantendo-se no limite da participação. Cidadão e cidade necessitam um do outro, porém a ambos é dado o direito ao esquecimento de que essa relação é indissociável e ninguém assume a responsabilidade sobre o processo.

57 “A

distração e o recolhimento representam um contraste que pode ser assim formulado: quem se recolhe diante de uma obra de arte mergulha dentro dela e nela se dissolve, como ocorreu com um pintor chinês, segundo a lenda ao terminar seu quadro. A massa distraída, pelo contrário, faz a obra de arte mergulhar em si, envolve-a com o ritmo de suas vagas, absorve-a em seu fluxo. O exemplo mais evidente é a arquitetura. Desde o início, a arquitetura foi o protótipo de uma obra de arte cuja recepção se dá coletivamente, segundo o critério da dispersão” (BENJAMIN, 1994b, p. 193). 147

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um homem que se defronta com um tipo de arte pública e coletiva cuja recepção está baseada no “critério da dispersão”, em substituição ao recolhimento exigido diante de uma obra de arte. Trata-se da arquitetura, diante da qual é impossível recolher-se e ou entregar-se sob o risco de não dar conta dos estímulos por ela propiciados ou, mais concretamente, sob o risco de ser atropelado pelo fluxo de pedestres ou de veículos. Se a recepção da pintura exige concentração e contemplação baseada na percepção ótica, a arquitetura requer uma recepção que se dá de modo duplo: pelo uso e pela percepção. O uso está relacionado com a percepção tátil que, segundo Benjamin, está associada muito mais ao hábito do que à atenção. O protagonista de O homem que copiava representa esse sujeito distraído que anda pelas ruas, espaço habitual que dispensa foco ou consideração no processamento de suas atividades diárias. Ele é o caminhante que chama atenção da câmera, apagando as marcas da cidade, cenário transitório destituído de história. Excessivamente pacificada e tranqüila, nela não há ruídos ou movimentos que valham a pena serem notados ou anotados pelo filme. Música e voz off cobrem seus sons, a câmera centrada nos personagens constrói uma imagem

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limpa justificada em função do que lhe acontece. Mas como se trata de um filme em camadas, aos poucos ele deixa ver que nem tudo é o que parece ser. O protagonista que aparenta indiferença não é tão indiferente assim e o que a cidade lhe oferece é aceito de forma generosa e inteligente. A cidade como um não-lugar se atualiza através das ações de André, e se mostra não somente como o seu lugar – onde ele nasceu, cresceu e mora – mas também como espaço, segundo definição de Michel de Certeau: “espaço é efeito produzido pelas operações que o orientam, o circunstanciam, o temporalizam e o levam a funcionar em unidade polivalente de programas conflituais ou de proximidades contratuais” (2005, p. 202). O espaço é o lugar das práticas que, invariavelmente, ultrapassam o previsto, o ordenado, o significado fixado pela organização racional. É nele que está toda a potencialidade criativa do sujeito e da própria cidade. O deslocamento a pé acaba funcionando para André como uma forma de inclusão e de participação na cidade. Se como lugar talvez esta o expulse ou seja rejeitada, como espaço o aceita como alguém capaz de assumir para si as decisões sobre a sua própria vida. Espaço e sujeito se aproximam pela capacidade de serem descritos através

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do que provocam ou permitem como ação. Assim é que, a despeito dos rumos que as metrópoles tomam, com a busca pela otimização do tempo via tecnologia e racionalidade, gerando uma espécie de ansiedade pelo imediato onde a duração se transforma em obstáculo, para Certeau “a linguagem do imaginário multiplica-se. Ela circula por todas as nossas cidades. Fala à multidão e ela a fala” (1994, p. 41). No contexto de formação das metrópoles, quando as multidões tomavam as suas ruas, Benjamim encontrou na poesia de Baudelaire a expressão desse imaginário tensionado pela profusão de estímulos que ali se originavam e que exigiam do sujeito urbano novos posicionamentos em busca de saber-se parte dessa realidade. No texto “Sobre alguns temas em Baudelaire”, o filósofo está especialmente preocupado com o que diferencia os conceitos de experiência e vivência. Recorrendo a Bérgson, que em Matéria e memória teria definido experiência como “matéria de tradição tanto na vida privada quanto na coletiva” que “forma-se menos com dados isolados e rigorosamente fixados na memória, do que com dados acumulados, e com freqüência inconscientes, que afluem

na memória”, Benjamin discute o modo como essa experiência impregna os corpos adormecidos pelo esquecimento, cujo despertar ocorre sem nenhuma intenção voluntária58 (1994a, p. 105). Nesse jogo entre memória voluntária, memória involuntária, vivência e experiência, a correspondência se dá em pares. A memória voluntária estará associada à vivência, a involuntária à experiência. Assim, é que diante de surpresas e choques a consciência reagiria com o intuito de servir de proteção contra tais estímulos. Essa situação marcaria muito pouco à memória, conformando, dessa forma, a vivência.59 Em termos proustianos, afirma Benjamin, “somente pode tornar-se parte integrante da memoire involontaire aquilo que não foi vivido expressa e conscientemente, em suma aquilo que não foi vivência”. (1994a, p. 38) A experiência se realiza de modo inconsciente, algo que marca sem deixar vestígios aparentes, sem se constituir como choque. Quanto maior é a participação do fator choque em cada uma das impressões, tanto mais constante deve ser a presença do consciente no interesse em proteger contra os estímulos; quanto maior for o êxito com que ele

58 Segundo Walter Benjamin, a memória pura em Bergson, como um “recurso à presentificação intuitiva do

fluxo da vida” (1994a, p. 106) tido como uma escolha consciente que atualiza o passado, em Proust torna-se memória involuntária, aquela que surge sem nenhum controle, despertando e atualizando o passado. 59 Benjamin recorre a Freud, em Além do princípio do prazer, para discutir esta questão. 149

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operar, tanto menos essas impressões serão incorporadas à experiência, e tanto mais corresponderão ao conceito de vivência (BENJAMIN, 1994a, p. 111).

O indivíduo reage às surpresas ao se conscientizar das ameaças que estas podem carregar. Isso ocorre quando ainda não foi instrumentalizado pela experiência que acolhe as impressões e que privilegia o inconsciente como o lugar da memória involuntária. É através desta que ele pode se mostrar como capaz de enfrentar os choques, sem que isso se torne a causa de um problema. A consciência é um fator contrário à permanência da memória, cujos resíduos mnemônicos são “freqüentemente mais intensos e duradouros, se o processo que os imprime jamais chegue ao inconsciente”, destaca Benjamin, citando Freud (1994a, p. 108). Dentro contexto dessa discussão, André aparece como esse sujeito experiente, marcado pela metrópole, a quem recorre como se a trouxesse registrada em sua memória.60 Ele conhece a rotina da lotérica onde troca a primeira cédula falsificada – “aqui o dinheiro vai pra um caixa único, onde misturam todo

o dinheiro, tá todo mundo com pressa e nenhuma prova de que fui eu que entreguei aquela nota. Posso fazer um jogo de 9 reais e levar 41 de troco. Dinheiro de verdade”. Esse é o seu pensamento, enquanto, com o ar sério, entra no lugar e preenche o jogo. “Vou perguntar alguma coisa pra ela na hora de entregar o dinheiro, alguma coisa pra distrair a atenção dela”. Enquanto testa perguntas mentais, chega a sua vez de ser atendido e, de modo repentino, ele indaga: “Tu entende de anjo?”. Essa decisão foi puramente reativa, e André mostra o anjo que tinha na mão sem ter planejado utilizálo como isca capaz de distrair a atendente. A funcionária, surpreendida pela pergunta, em choque pode-se afirmar, dá atenção à conversa e aceita o dinheiro falso. Essa familiaridade com a cidade e seus mecanismos, insuspeita até então, se mostra em diversas outras ocasiões. Ao ter de se livrar das ameaças de Feitosa (Júlio Andrade) que havia sido preso com o dinheiro falso pago pela arma usada no assalto, André recorre à sua memória sobre o funcionamento da ponte e sobre as características do seu entorno. Ele e Feitosa costumavam brincar na área, jogando-se do alto. Era lá que André

60 Torna-se aqui necessário destacar que André vai constituindo essa memória por fragmentos e pedaços dos

textos que copia na sua máquina xerox ou através da leitura de revistas. Merecem atenção os livros que passam por sua máquina: O impulso duplicador, de Daniel Boorstyn; A vida: modo de usar, de George Perec, Sonetos de Shakespeare, livros sobre Andy Wahrol e Keith Haring. Todos são acessados em algum outro momento da narrativa, seja como assunto, seja como imagens res-significadas por um outro contexto da ação. Uma experiência de memória involuntária ocorre quando André, tirando cópia de um livro com imagens incas, lembra de Cardoso, por causa da gravata que trazia os mesmos motivos na sua estampa. 150

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namorava Sílvia, e em um desses encontros ele vê um homem retirando areia do local, deixando estacas apontando para cima. Em nenhuma dessas ocasiões não havia qualquer indicação de que essas informações lhe seriam úteis em algum momento. Em seu quarto, pensando na chantagem e em como poderia livrar-se dela, ele desenha um triângulo preenchido por linhas verticais. Na manhã seguinte, na hora marcada, anda pela ponte com a sacola do assalto na mão, hipoteticamente cheia de dinheiro. Feitosa aguarda sentado na mureta. Após entregála ao chantagista, André, que havia chegado atrasado, sai correndo, tendo Feitosa no seu encalço, enfurecido por ter sido enganado – em vez de dinheiro, havia papel branco dentro na sacola. Durante a fuga, André se aproveita do momento em que a ponte sobe para se distanciar do seu perseguidor. Ele havia calculado exatamente o momento desse movimento de forma a utilizá-lo em seu favor.

sobre as varas pontudas de madeira. A cena da perseguição termina em um plano geral de André se afastando do lugar e pensando: “Cagalhão eu até posso ser, mas otário eu não sou. Eu disse que era perigoso pular, ele pulou porque quis”. A cena da morte de Feitosa é substituída pelo desenho do triângulo que André havia feito na noite anterior. Esta imagem, ocupando toda a superfície da tela, vai se modificando com a entrada em cena do corpo, também desenhado, de um boneco se estrepando.61 As imagens são forte e dão a exata noção do que aconteceu, apesar de criar uma espécie de escape diante do horror da perfuração do corpo orgânico.

Ainda apostando na sua experiência, André chega ao pontilhão lugar da brincadeira de alguns dias antes e de lá Feitosa mais uma vez se joga chamando o ex-amigo de “cagalhão”, modo como o tratava costumeiramente. A queda acaba

61 Em

todos os momentos mais arriscados para o protagonista, o filme insere algum elemento que desvia a atenção da gravidade do que está sendo narrado. No assalto, o vizinho gordo e o estacionamento em lugar proibido; no assassinato de Feitosa, o desenho animado; na notícia do jornal sobre a prisão de Feitosa, o prêmio na loteria; no assassinato do pai de Sílvia, a galinha que virou notícia em vez do morto. Furtado parece confirmar, nessas ocasiões, a intenção de evitar o julgamento, desviando a atenção para situações que beiram o nonsense ou vão em direção a um humor negro. 151

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situação de conhecimento do lugar e do espaço, mais especificamente, como algo forte o suficiente para ser rememorado sem necessidade nenhuma de qualquer tipo de comprovação prévia. O corpo de André se confundiu com o da cidade, ambos cúmplices de uma situação, impregnados por sensações, cheios de potência, a despeito da qualidade de tudo isso.

Dinheiro A cidade no seu sentido completo, segundo Lewis Mumford, “é um plexo geográfico, uma organização econômica, um processo institucional, um teatro de ação social e um símbolo estético de unidade coletiva” (1961, p. 494). Qualquer um desses elementos pode se configurar como ponto de partida para aproximações analíticas da metrópole, mas nenhum deles sozinho dá conta da sua complexidade, uma vez que estamos tratando de um espaço que se constitui como significante e também como símbolo. Apesar de tudo muito bem calculado, todo o planejamento da ação foi feito com base na memória de André sobre a cidade. Em nenhum momento ele foi até o lugar para testar ou confirmar suas impressões. A experiência vivida na cidade, o modo como esta, afinal, o marca configura uma

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Isto quer dizer que a referência dada por sua estrutura geográfica, econômica, institucional, social e estética adquire características ou qualificativos que extrapolam a esfera da realidade concreta e do seu significado coletivo, assumindo

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também significados particulares para cada um dos seus habitantes. Esses significados dão forma às cidades, tornando-as singulares, preenchidas de representações imaginárias superpostas como camadas distintas de um mesmo lugar. O discurso monetário que atravessa o longa de Jorge Furtado encontra na cidade signos capazes de se transformarem em símbolos de uma vida objetiva e empobrecida, ao mesmo tempo que apontam para saídas transformadoras dessa realidade vivida. As vitrines assumem esse papel em determinadas ocasiões, extrapolando sua função primeira de veículo de exposição. No filme, elas podem ser pensadas como signos de um posicionamento social em que o consumo torna-se um valor universal a explicar o comportamento do protagonista destituído deste direito. Consumir, como ação mesma, é resultado de uma prática individual, ainda que suas motivações e conseqüências possam ser pensadas como construção simbólica social voltada não só para a sobrevivência, mas também para a exposição ou diferenciação no espaço público. Os produtos consumidos podem ser tomados como diretamente relacionados à construção de uma identidade entre as várias possíveis, de modo que a cada objeto e a cada tipo de uso está associado um tipo de apresentação

para e na sociedade. “Quando selecionamos os bens e nos apropriamos deles, definimos o que consideramos publicamente valioso, bem como os modos com que nos integramos e nos distinguimos na sociedade, com que combinamos o pragmático e o aprazível”, afirma Canclini (1997, p. 21). Nesse sentido, o ato do consumo torna-se uma intervenção pública mediada por um desejo de exibição e de afirmação individual, algo extremamente valioso no espaço de indiferenciação que é a grande cidade. Ao falarem de si, as vitrines se tornam interlocutoras privilegiadas. Pares de tênis expostos em uma delas parametrizam o salário de André e seu poder aquisitivo. “Eu ganho dois salários mínimos, são 302 reais por mês, com os descontos 290, o preço de um tênis…”. A disposição dos produtos segue um modelo simples de organização, com os sapatos voltados para fora, sem nenhum apelo a não ser o significado das marcas e o preço que, neste caso, funciona como o grande atrativo – não por ser barato, mas pela supervalorização do produto que há muito deixou de ser apenas um calçado para tornar-se um fetiche. A transparência do vidro favorece a apresentação e as comparações possíveis entre marcas, valores e modelos. Como um filtro, deixa à mostra não só o que a loja oferece,

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mas toda a pobreza de André, a quem é impossível romper com a barreira que o separa dos sapatos. No início dessa fala, ele estava no quarto desenhando o número 302; quando cita o tênis surge imediatamente a vitrine, enquadrada de frente, construindo um discurso que salta pelo vidro da loja capaz de sintetizar a idéia da exploração capitalista. A voz continua: “Não gasto em transporte, vou a pé pra loja, não saio nunca…”. André surge num plano de conjunto, andando em uma rua arborizada e com pouco movimento. Ir ao trabalho a pé significa não gastar o dinheiro do ônibus que deverá ter outro uso mais importante, como comprar comida, por exemplo. Suas opções são quase sempre pela necessidade. A seqüência de abertura é bem significativa para o todo do filme, quando teve que escolher entre a carne ou o fósforo nas compras que fazia no supermercado. Sua renda, apesar de sua competência no trabalho, é insuficiente não só para comprar um tênis, mas também para suprir o que seria imprescindível à sua própria subsistência, colo-cando em pauta a afirmação de Karl Marx de que com a valorização do mundo das coisas aumenta em proporção directa a desvalorização do mundo dos homens. O trabalho não produz apenas mercadorias; produz-se também a si mesmo e ao trabalhador como uma

mercadoria, e justamente na mesma proporção com que produz bens. (…) A realização do trabalho surge de tal modo como desrealização que o trabalhador se invalida até a morte pela fome. A objectivação revela-se de tal maneira como perda do objecto que o trabalhador fica privado dos objectos mais necessários, não só à vida, mas também ao trabalho. (1993, p. 159)

A seqüência continua: “Minha mãe paga o ‘super’ com a pensão dela…” – desenho com características infantis de mulher pondo uma conta na geladeira –, “…eu pago a metade do aluguel…” – André tira a conta do geladeira enquanto pega um copo de suco – , “…dois quartos com dependência de empregada, isso se a gente tivesse empregada e ela conseguisse dormir em pé…”. Aqui ele desenha a planta da casa com seus moradores e a empregada sentada encolhida na dependência. “Sala, banheiro, cozinha…” – André na mesa do quarto, câmera baixa mostra os pés da mãe62 indo dormir – “… tudo isso por apenas 380 reais…” – plano de detalhe do documento de pagamento do aluguel. André volta para o quarto com copo de suco na mão, senta à escrivaninha –, “…tudo isso incluindo condomínio. Sobram 100”. O trecho, montado sem unidade de tempo ou de espaço, leva André para dentro de um ônibus, onde luta para passar na roleta

62 A mãe de André é praticamente invisível. Sempre que aparece está sentada diante da TV e é vista de costas.

Uma única vez ela se mostra, quando André anuncia que vai viajar para a Holanda. Aí ele chama por ela, que o atende com um sorriso. 154

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com uma caixa de televisão enquanto tira o dinheiro da passagem. Estas imagens complementam seu depoimento financeiro. “Pago a metade da prestação da TV, 14 polegadas, controle remoto. 64 reais, 32 a minha parte. Sobram 68. Gasto com umas bobagens…” – no bar tomando uma cerveja – “…uma revista, uma cerveja, uma caneta, roupas. Pra comprar o meu binóculo…” – plano de detalhe do binóculo sendo retirado da embalagem. André no quarto, sem camisa, olha pela janela – “… eu precisei economizar um ano…” Esse lamento que associa a vida ao poder de compra do dinheiro atravessa o filme, transformando seu protagonista em um homem que calcula e as ruas em espaço de deslocamento e de exposição de produtos. Lefebvre (1999), ao contrapor posições a favor ou contra a rua, destaca que entre os que lhes são contrários, a associação entre esse espaço e a mercadoria é tão fortemente colocada que praticamente tornam-se sinônimos. A rua converteu-se em rede organizada pelo/para o consumo. A velocidade da circulação de pedestres, ainda tolerada, é aí determinada e demarcada pela possibilidade de perceber as vitrinas, de comprar os objetos expostos. (…) A rua, série de vitrinas, exposição de objetos à venda, mostra como a lógica da mercadoria é acompanhada de uma

contemplação (passiva) que adquire o aspecto e a importância de uma estética e de uma ética. (LEFEBVRE, 1999, p. 31)

O caminhante, e mais especificamente aquele que toma a rua como um espaço de produção estética, com vitrines – entre outros atrativos – que clamam por atenção; o sujeito que busca usufruir prazerosamente desse jogo de sedução sente desejo de consumir, desejo muitas vezes irrealizável, principalmente se for considerado o aprofundamento das diferenças sociais propiciadas pela globalização da economia. Se na esfera política o sujeito não encontra espaço para se manifestar e exercer seus direitos de cidadão e entre as camadas mais desfavorecidas nem mesmo os direitos a uma vida digna são garantidos, o consumo, que para muitos pode ser considerado como espetáculo, assume uma dimensão que vai além do ato da compra como atividade econômica. Essa atividade adquire proporções políticas, segundo Canclini, que chama atenção para o fato de que se essa esfera pode ser vista como uma esfera de exercício do direito do cidadão, com a globalização mais uma vez a maioria é excluída, sendo destituída do seu direito de “decidir como são produzidos, distribuídos e utilizados esses bens” (1997, p. 30).

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Outro aspecto considerado por Canclini é a necessidade de olhar para o consumo como algo que simboliza muito mais do que o estado de saúde financeira de uma economia. (...) quando se reconhece que ao consumir também se pensa, se escolhe e reelabora o sentido social, é preciso se analisar como esta área de apropriação de bens e signos intervém em formas mais ativas de participação do que aquelas que habitualmente recebem o rótulo de consumo. (1997, p. 30 e 31)

André encontra nesse ato a possibilidade de se aproximar da garota por quem está interessado – nada mais natural, já que ela trabalha de vendedora em uma loja de roupas femininas –, e ao ganhar na loteria a primeira coisa que compra é um telescópio em substituição ao binóculo. Suas atitudes nesse campo, mesmo a partir do crescimento exponencial de seu poder aquisitivo, não podem ser pensadas como deslumbradas, e, se o fossem, ainda assim, dentro da perspectiva posta por Canclini, significariam mais do que a inserção, pura e simples, de um sujeito no mercado. Este sentido último, dado pela motivação, pelo ato da compra em si e pelo significado que envolve tudo isto, é, afinal, o que interessa.

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Beatriz Sarlo (2000) compara o consumidor à figura do colecionador, só que de um tipo às avessas, aquele que entra nas lojas em busca do prazer que significa a aquisição do objeto. Se o colecionador constrói um tesouro com suas aquisições, o consumidor sabe que imediatamente depois de sua posse o objeto perde seu brilho e deixa de ser interessante tanto do ponto de vista simbólico quanto do ponto de vista econômico. Para este consumidor, a cada objeto adquirido, surgem outros mais significativos e desejantes solicitando atenção e apropriação. O colecionador às avessas “em vez de colecionar objetos, coleciona atos de aquisição de objetos” (2000, p. 26). Outro tipo de consumidor seria, segundo Sarlo, o excluído do mercado, para quem o valor de uso assume características definidoras no momento da escolha. Entre estes, os que ainda sonham consumos imaginários e os que reduzem esses sonhos ao mínimo necessário para a manutenção da vida. Para esse sujeito, o objeto se esgota no seu uso e não no ato da aquisição como acontece entre os colecionadores às avessas. O que unifica o colecionador às avessas e o excluído do mercado, de acordo com a autora, é a constituição de uma identidade transitória dada pelo consumo. “Ambos pensam que o objeto lhes dá (ou daria) algo

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de que precisam, não no nível da posse, mas no da identidade. Assim os objetos nos63 significam: eles têm o poder de outorgarnos alguns sentidos, e nós estamos dispostos a aceitá-los” (SARLO, 2000, p. 22-28). Cardoso, tendo ficado rico após André ganhar na loteria, compra um Mercedes conversível. Durante a negociação, o vendedor faz questão de destacar as qualidades do veículo, entre elas o fato de o limpador de pára-brisas ser automático: basta começar a chover para que este seja imediatamente acionado. Diante dessa informação, a decisão de compra se efetiva. Cardoso concorda que esse é o diferencial, uma vez que o motorista deixa de se preocupar com a chuva e pode se distrair com seus outros devaneios enquanto dirige. Ele quer o conforto e a o status dado por um produto que o solicita cada vez menos, dentro do qual pode desfilar e provar que é dono de uma sofisticação própria a quem está acostumado a um consumo de alta qualidade. O que estes personagens buscam é sua inserção em outro nível de representação social, utilizando o dinheiro ganho na loteria como força capaz de tornar isto possível. O carro no mundo ocidental capitalista é um símbolo de poder social, político econômico, ultrapassando em muito o significado a ele inerente de possibilitar a mobilidade, transformando-se não só em uma segunda

casa, mas também em uma narrativa capaz de provocar, de desafiar e de expor estilos de vida. O carro fala, ocupa o espaço público, traz o sujeito dentro colocando-o de fora, isolado do espaço urbano, com o qual toma contato através da mediação da máquina, esta muitas vezes mais importante simbolicamente do que necessariamente útil, muito mais indispensável neste sentido do que em função daquilo a que foi planejado: aproximar distância em tempo reduzido. A escolha feita por Cardoso, impossível até alguns dias antes, é desvalorizada pela reação de Marinês: “Por que essa merda não é preta?”. É o que ela diz quando vê o namorado dirigindo o carro. Os objetos, discorre Beatriz Sarlo, São os nossos ícones, quando os outros ícones, que representavam alguma divindade, demonstram sua impotência simbólica; são os nosso ícones porque podem criar uma comunidade imaginária (a dos consumidores, cujo livro sagrado é o advertising, e cujo ritual é o shopping spree, e cujo templo é o shopping, sendo a moda seu código civil) (2000, p. 28).

Os pontos de vista de Canclini e Sarlo, apesar de diferentes, aproximam-se por tratarem o consumo como um ato produtor de sentido, uma ação que ultrapassa a aquisição de

63 Itálico da autora.

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mercadorias, adquirindo significados que escapam à lógica ditada pelo mercado. Consumir, para ambos, assume proporções sociais, políticas e estéticas, tornando-se uma ação reveladora da cultura. Para André, as vitrines, mais do que ilustração da sua fala, são mensagens que explicitam sua condição social e suas intenções. Em um primeiro momento, representam o que lhe falta, e o tênis – em comparação – torna-se moeda corrente. Em outro, passam a simbolizar não mais a falta, mas o que ele pode vir a ter. Na rua, André caminha refletindo sobre o valor do dinheiro e sobre o custo de ganhá-lo. A continuidade do discurso associada à descontinuidade do tempo atribuem a essa preocupação uma permanência que ultrapassa a idéia de um simples comentário. “…o negócio é ficar rico logo, o mais rápido possível, e se mandar”. Seu rosto, que estava em plano médio visto por dentro da loja, nesse momento assume a posição de comando e uma subjetiva lhe devolve o papel de sujeito desejante, posto diante da vitrine onde estão dispostos brinquedos que representam seus sonhos – carros, casa com piscina, cofres, motocicleta, máquina fotográfica, binóculo, jogos como banco imobiliário e shopping (este traz como subtítulo: “Venha comprar e se divertir.”). Ao final da seqüência, diante

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da imagem de um revólver de plástico, ele se pergunta: “O problema é como”. A resposta estava nesta imagem, a arma enquadrada indica as possibilidades de ação. E ele assalta o carro-forte.

André revela uma tendência à manipulação e controle das situações nas quais se envolve, postura que substitui, gradativamente, o comportamento ingênuo da primeira parte do filme. Suas atitudes passam a ser pensadas e planejadas a partir de pistas coletadas na cidade. Elas serão utilizadas com inteligência na consecução dos fins a que se propõe: conquistar Sílvia, ficar rico e sair de Porto Alegre, não necessariamente nesta ordem. Ele planeja, projeta suas ações, esquematiza seus passos, falsifica dinheiro, assalta um carro-forte, mata um amigo e o pai da namorada, e vai para o Rio de Janeiro depois de ganhar na loteria. A mente do homem moderno, segundo Simmel, “tornou-se mais

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e mais um espírito contábil. (…) Somente a economia monetária preencheu os dias de tantas pessoas com comparações, cálculos, determinações numéricas, reduções de valores qualitativos a quantitativos” (2005, p. 580).

que não há nada, marca a viragem decisiva” (BAUDRILLARD, 1991, p. 14). A galinha, nesse caso, dissimula a morte de um homem que, no final das contas, se tornou nada. É a essa morte que o animal se refere e a ela que acaba por esconder.

O homem que copiava se baseia na crença de que na metrópole o que importa é o mais absolutamente fútil, tese demonstrada e referendada por uma galinha presa dentro de um armário de cozinha no momento da explosão criminosa do apartamento de Sílvia. Esse estratagema provoca o efeito esperado e na manhã seguinte a ave torna-se manchete nos jornais locais em detrimento do homem – pai de Sílvia – assassinado. A sociedade do espetáculo, considerada por Debord (1997), está sintetizada nesta ação. A galinha desvia a atenção, sua presença mascara o que deveria ser revelado: aconteceu um crime.

O jornalismo, transformado em plataforma de exibição dos acontecimentos do mundo, com sua linguagem sintética e pretensamente objetiva se resguarda o direito a noticiar simplesmente, deixando de lado causas e conseqüências. A demanda de investigação torna-se obsoleta diante da rapidez com que corre a vida nas grandes cidades. O caráter de novidade da informação a submete a um compromisso com a aceleração, exigindo uma economia de esforços e que sua explicação deva estar contida nela mesma.

A imagem da ave nos jornais institui um outro fórum de realidade, aquele imaginário onde o mundo concreto é suprimido por uma representação alargada pela liberdade de estabelecer conexões aparentemente impossíveis, ou, como diria Baudrillard, o referente deixa de existir simulado por imagens que não representam nada. “A passagem dos signos que dissimulam alguma coisa aos signos que dissimulam

Ao simulacro da galinha, manchete no jornal diário, o espaço público se contrapõe como uma tentativa de emprestar certo ar de realidade para uma história que beira o fantástico de tão absurda. As cenas externas, por trazerem um ambiente supostamente fora do controle, teriam a capacidade de remeter a imagens realistas. No entanto, no filme de Furtado essa presença não se assume com força suficiente a ponto de conferir a narrativa um caráter de realidade. Nada acontece com nenhum dos personagens.

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O espírito da cidade é o mesmo de André: o de alguém que esconde e se esconde sob uma aparente apatia. Diante de ambos torna-se necessário, como fez Marco Polo, se liberar das imagens que anunciam as coisas que se procura para, só assim, ser capaz de entender a linguagem de Ipásia, em que “os símbolos formam uma língua, mas não aquela que você imagina conhecer” (CALVINO, 1990b, p. 48). Aí está o que surpreende na cidade. Porto Alegre aparece apaziguada por sua invisibilidade, pela ausência de qualquer símbolo arquitetônico ou natural que a identifique como a capital gaúcha. O que acontece no decorrer da história mostra uma cidade cujo significado é dado pela vida cotidiana de pessoas comuns, aqueles caminhantes ordinários (CERTEAU, 1994), responsáveis, em última instância, pelo que faz a cidade ser, com suas particularidades, seus sotaques, suas velocidades e idiossincrasias. Um espaço/ tempo vivo onde homem e metrópole se fazem diariamente.

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A cidade virtual O homem que copiava e O invasor, mais do que contemporâneos, são filmes que tratam a cidade de modo parecido como forma de apresentá-la e torná-la o lugar de suas narrativas. Suas ações não poderiam acontecer em outro lugar, não só por suas temáticas, mas também pelo modo como a cidade é pensada conceitualmente por cada um deles. Ambos tratam da vida cotidiana na metrópole e do modo como os afetos se constroem não só dentro desse ambiente mas também, e principalmente, em relação a ele. A cidade significa, afeta, desperta sentimentos, provoca, acolhe, expulsa, é familiar e também estrangeira. Os que por ela passam ou nela vivem, da mesma maneira, constroem sentidos, significam, afetam, despertam sentimentos, provocam, desafiam, acolhem, rechaçam e se fazem deixando-se impregnar e sendo impregnados pela metrópole. Nesses filmes, não é possível pensar a cidade sem a mediação de seus personagens – mais particularmente de seus protagonistas. Do mesmo modo também é impossível pensar nesses sujeitos sem ter em conta a cidade e como ela deixa neles suas marcas.

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No final do século XIX, as impressões causadas pelo processo de metropolização provocavam reações apaixonadas. Para Hegel, em relato feito por Walter Benjamin (1989), há uma semelhança assustadora entre os moradores das cidades grandes. Estar em Paris ou em Berlim não faz mais a menor diferença quando todos se vestem da mesma maneira e os rostos são mais ou menos os mesmos. A diferença estaria não na qualidade mas na quantidade, quando na capital francesa a massa é mais populosa (1994a, p. 115). Engels, ao contrário de Hegel, descreve a multidão através das sensações que esta lhe causa o que faz com seu relato adquira contornos qualitativos e emocionais. Ele sente uma espécie de nojo diante da indiferença com que as pessoas tratam umas às outras. O relato, apesar de se referir a metrópole em formação, guarda elementos que podem ser, tranquilamente, atribuídos às cidades contemporâneas. Estas centenas de milhares de pessoas, de todos os estados e de todas as classes, que se apressam e se empurram, não serão todos seres humanos possuindo as mesmas qualidades e capacidades e os mesmos interesses na procura da felicidade? E não deverão, enfim, procurar a felicidade com os mesmos

métodos e processos? E, contudo, estas pessoas cruzam-se a correr, como se nada tivessem em comum, nada a realizar juntas, e a única convenção que existe entre elas é o acordo tácito pelo qual cada um ocupa a sua direita no passeio, a fim de que as duas correntes da multidão que se cruzam não se constituam mutuamente obstáculo; e, contudo, não vem ao espírito de ninguém a idéia de conceder a outrem um olhar sequer. Esta indiferença brutal, este isolamento insensível de cada indivíduos no seio dos seus interesses particulares, são tanto mais repugnantes e chocantes, quanto é maior o número destes indivíduos confinados neste reduzido espaço. E mesmo quando sabemos que este isolamento do indivíduo, este egoísmo mesquinho, é em toda parte o princípio fundamental da sociedade atual, em parte alguma ele se manifesta com uma impudência, uma segurança tão completa como aqui, precisamente, na confusão da grande cidade, A desagregação da humanidade em células, das quais cada uma tem um princípio de vida próprio e um objetivo particular, esta atomização do mundo, é aqui levada ao extremo (ENGELS, 1975. p. 56 e 57).

O sobressalto de Engels revela um estado de desconforto e de recusa das ruas tomadas, segundo ele, por uma massa anônima, onde

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cada um assume o ritmo da multidão sem nem mesmo se dar conta do quanto isto significa em termos de apagamento de suas próprias subjetividades. O olhar se esconde, recusando sua realização, resumindo-se a se precaver das ameaças das ruas. Daí os acordos tácitos, o comportamento automatizado. Todos estariam unidos pelas configurações sociais e pelas exigências decorrentes da formação das grandes metrópoles, ainda que isso não signifique que compartilhem objetivos comuns. Nesse contexto, os sentidos passam a ser exigidos de outra maneira, quase de modo especializado, uns se apuram em detrimento de outros de acordo com o momento vivido e dentro de um esquema em que interesses são disfarçados ou explicitados. Nesse exercício de traquejo social, em que atitudes curiosas tornam-se condenáveis, a visão não é somente o sentido mais solicitado, mas também aquele que deve bastar ao sujeito metropolitano, pouco afeito a conversas com desconhecidos. Adotar esse tipo de comportamento é assumir o uso da máscara como convenção para a manutenção da vida nesse espaço. A antipatia é a sua face, “antagonismo latente e estágio prévio do antagonismo prático, ela realiza as

distâncias e os afastamentos, sem o que esse tipo de vida não se poderia realizar. (…) o que aparece aqui imediatamente como dissociação é na verdade apenas uma de suas formas elementares de socialização”, explica Georg Simmel no ensaio “As grandes cidades e a vida do espírito”64 (2005, p. 583). A convivência nas grandes cidades exige, portanto, que o sujeito recolha sua espontaneidade, revestindo-se de um véu que o proteja da exposição diante de seus companheiros metropolitanos. A socialização torna-se um trabalho demorado e cuidadoso de modo a garantir um mínimo de segurança e de tranqüilidade aos envolvidos. Dentro da multidão, o sentimento é de solidão, “pois aqui, como sempre, não é de modo algum necessário que a liberdade do ser humano se reflita em sua vida sentimental como um sentir-se bem” (SIMMEL, 2005, p. 585). A cidade é esta zona de tensão, paisagem aparentemente inócua, onde seres transitam e/ou ficam, bem ou mal integrados ao seu ambiente, mas conscientes dessa condição. Simmel propõe o conceito de blasé como qualificativo desse novo homem, cada vez mais reservado e protegido por mecanismos

64 Isse texto ficou conhecido no Brasil através de sua tradução do inglês “The Metropolis and Mental Life”,

parte da coletânea intitulada “O fenômeno urbano”, organizada por Otávio Velho e publicada no começo dos anos 1970. Esta tradução foi feita por Leopoldo Waizbort. SIMMEL, Georg. As grandes cidades e a vida do espírito (1903) Mana, Rio de Janeiro, v. 11, n. 2, 2005. Disponível em: . Acesso em: 2 nov. 2007. 162

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que o isolam em seu próprio mundo interior. Essas alterações encontraram no espaço público das ruas a sua força motriz. O ensaio estabelece um paralelo entre a cidade pequena e a grande a partir de características físicas, sociais e psicológicas que particularizam esses ambientes e seus habitantes. As grandes avenidas, o dinheiro, o relógio de ponto, o tamanho da área geográfica, o número de pessoas que a ocupam, a tecnologia, a arquitetura, a burocracia, a competitividade, a indiferença, o consumo, a busca pelo prazer, entre outros, são, ao mesmo tempo, causa e efeito de um novo estilo de vida cujo resultado é uma pessoa que, a despeito dessas forças, resiste tentando preservar sua autonomia e a peculiaridade de sua existência frente às superioridades da sociedade, da herança histórica, da cultura exterior e da técnica da vida — a última reconfiguração da luta com a natureza que o homem primitivo levou a cabo em favor de sua existência corporal (ibid., p. 577).

A rotina metropolitana tem como base pontualidade, calculabilidade e exatidão, elementos que, segundo Simmel, extrapolam o espaço das relações pautadas pelo dinheiro ou pela intelectualidade – qualidades

fundadoras do sujeito urbano –, estando também presentes em outras esferas da vida de modo a “facilitar a exclusão daqueles traços essenciais e impulsos irracionais, instintivos e soberanos, que pretendem determinar a partir de si a forma da vida, em vez de recebê-la de fora como uma forma universal, definida esquematicamente” (ibid., p. 580 e 581). Os possíveis arroubos irracionais ou emocionais, no entanto e apesar de tudo, são possíveis, mesmo sendo considerados opostos a esse modo de vida. São todos esses fatores que levam à constituição do ser blasé, fenômeno psíquico caracterizado pela mais alta impessoalidade em contraste com uma subjetividade altamente pessoal. O comportamento blasé é um modo de preservação necessária à vida nas grandes cidades, afirma Simmel tratando da cidade moderna, na qual o sujeito resiste “a ser nivelado e consumido em um mecanismo técnico-social” (2005, p. 577). Apesar de estar se referindo às condições de vida do início do século XX, a força desse pensamento se atualiza quando, em um tempo sobreposto e simultâneo experimentado por cada um dos habitantes da metrópole contemporânea, o peso das relações que nela se constituem se potencializa com a velocidade de produção e de fluxo da informação, exigindo desse ser

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blasé que cada vez mais seja reforçada sua postura distanciada e seletiva. Que fique claro, no entanto, que isto não ocorre de modo tranqüilo, assim como não ocorria no século passado, quando, entre muitos que parecem iguais, cosmopolitas e indiferentes, o sujeito ainda resiste a ser apenas um entre tantos que se deslocam pelas ruas das grandes cidades ou pelas infovias da Web. Paul Virilio (1993; 1996a; 1996b) se apresenta como um dos críticos mais agressivos dessa sociedade onde a cidade se virtualiza e substitui todos os modos de organização e de entendimento com que operava antes do advento da informática. O espaço perde sua dimensão e a cidade, segundo ele, “desaparece então na heterogeneidade do regime de temporalidade das tecnologias avançadas” (1993, p. 11). O autor é incisivo em suas afirmações e seu diagnóstico parece ser impossível de ser refutado, dado a quantidade de informações e o tom veloz com que o constrói. Com a interface da tela (dos computadores, da televisão etc.) diz Virilio, o espaço construído participa de uma topologia eletrônica na qual o enquadramento do ponto de vista e a trama da imagem digital renovam a noção de setor urbano. À antiga ocultação público/privado e à diferenciação da moradia

e da circulação sucede-se uma superexposição onde termina a separação entre o “próximo” e o “distante”… (1993, p. 10).

As grandes cidades mudaram, adquiriram novos significados construídos em um mundo virtual em expansão onde o contato face-a-aface deixa de ser uma condição do conhecimento e a máscara eletrônica assume e substitui o corpo, tornando-o onipresente, mas destituído de espessura, raso como a membrana da interface, profundo como um buraco negro. Se a partir de então pode-se não somente agir, mas ainda “teleagir” – ver, ouvir, falar, tocar ou ainda sentir à distância – surge a possibilidade inaudita de um brusco desdobramento da personalidade do sujeito que não saberá deixar intacta por muito tempo “a imagem do corpo”, ou seja, a propriocepção do individuo (1993, p. 96).

O desenvolvimento das tecnologias de comunicação extrapolou as fronteiras físicas, configurando um mapa geopolítico e cultural móvel e competitivo cujo caráter volátil e aberto é uma de suas principais propriedades.65 Essa realidade virtualizada se faz presente como um espaço expandido, mais um campo de ação do e para o sujeito dentro do qual ele disputa um lugar de exposição.

65 No campo da economia e das aplicações financeiras, estas

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encontram sua melhor representação.

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O sentido da visão, como anunciado por Simmel em 1903, adquire potência máxima quando a realidade, em grande parte, se tornou imagem, inaugurando um novo regime de visualidades e visibilidades que partem de um terminal de computador, objeto privado de caráter público, quando se oferece à manipulação indiscriminada. Esse espaço de experiência virtual, no entanto, ainda não pode ser pensado como tendo substituído a que se vive no espaço da cidade, onde, afinal, todos estão ou de onde todos são. Simmel apontava para a necessidade de se pensar o sujeito em relação a essa exterioridade. Para ele, Onde os produtos da vida especificamente moderna são indagados acerca de sua interioridade; onde por assim dizer o corpo da cultura é indagado acerca de sua alma — como me parece ser atualmente o caso no que diz respeito às nossas grandes cidades —, a resposta precisa ser buscada na equalização promovida por tais formações entre os conteúdos individuais e supra-individuais da vida, nas adaptações da personalidade, mediante as quais ela se conforma com as potências que lhe são exteriores. (2005, p. 277)

A exterioridade da cidade em relação ao sujeito teria então a mesma ordem de grandeza da exterioridade do sujeito em relação à cidade. Entre eles um devir, um tornar-se outro se mantendo o mesmo. O

que há de desconhecido e de habitual entre os dois que se transforma e os transforma mutuamente? Nos filmes analisados aqui, essa relação se apresenta no decorrer das ações e das emoções vividas pelos protagonistas, compondo um trajeto que no decorrer da narrativa (linearizada pela voz, no caso de O homem que copiava, ou, em O invasor, por uma montagem que se deixa vazar, mas que se mantém firme em sua intenção discursiva) se mostra cheio de bifurcações e buracos, entremeado por aberturas e fechamentos. Neles, portas entreabertas indiciais deixam ver pedaços do que pode estar por trás, muros que interrompem o passeio exigem uma ação de superação dada pela força de sua destruição, pelo desvio ou por sua escalada de modo a se descobrir o que há do outro lado. Em todos os momentos estão em jogo sensibilidades e escolhas dos personagens e as promessas e penas infligidas aos que arriscam se perder na metrópole. A força que envolve sujeito e cidade permite que se trabalhem as relações entre ambos, mediadas pelo que existe de potência como algo inerente ao que é vivo. Dessa forma, deixa-se de pensar em virtual como o que é possibilitado pelas mídias, mais particularmente pelas redes de teleinformática, e passa-se a pensá-lo a partir do processo de transformação que lhe é intrínseco.

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Pierre Levy atualizou esse conceito dentro do contexto da informática, tratando das implicações socioprodutivas e políticas engendradas pelo ciberespaço, que geram uma espécie de desterritorialização, liberando o sujeito da ordem espacial física e do tempo contado pelo relógio ou pelo calendário. “A sincronização substitui a unidade de lugar, e a interconexão, a unidade de tempo” 66 (1996, p. 21). A virtualização estaria nessa potência de liberação dada pelas tecnologias. O virtual, segundo ele, não se opõe ao real, mas ao atual. Levy considera que o virtual é como um “nó de tendências ou de forças que acompanha uma situação, um acontecimento, um objeto ou uma entidade qualquer, e que chama um processo de resolução: a atualização” (1996, p. 16) A atualização, desse modo, ocorre como um vir a ser de algo que não está contido na situação como previamente esperado. Este devir se processa por combinações e invenções originais produzindo qualidades novas que levam novamente ao virtual que, por sua vez, chama por uma nova atualização. No virtual há algo que existe em potência e não como ato. “O atual em nada se assemelha ao virtual: respondelhe” (LEVY, 1996, p. 17).

Na filosofia aristotélica esse conceito de potência está relacionado com os conceitos de matéria e de forma. Matéria é uma das três substâncias da sua metafísica, aquela que é desprovida de propriedades ou atributos, a matéria pura. As outras duas são a forma pura – cujas qualidades são eternas e imutáveis – e a substância indeterminada que se constitui de matéria e forma, os seres do mundo sensível. Destas substâncias a mais imperfeita é a matéria (aquilo de que a coisa é feita) e a mais perfeita é a forma (determinada e material) (CHAUí, 1994, p. 281). A forma é o ato ou atualidade, é o real; a matéria é potência ou potencialidade, é o que vem a ser. O devir é o movimento (qualitativo, quantitativo) de passagem do possível ao real, e a cada momento, um real contém novas possibilidades que deverão ser atualizadas. (…) O devir existe; o devir é necessário; o devir é racional; o devir é inteligível; o devir pode ser conhecido. O devir é realização (tornar-se real); é formação (receber formas); é atuação (tornar-se ato) (ibid., p. 285).

De acordo com Abbagnano, potência é o princípio ou a possibilidade de uma mudança qualquer, segundo a definição de

66 Essa substituição, no entanto, não é absoluta, destaca o autor, uma vez que as tecnologias de comunicação, de algum modo, provocam situações que estendem os corpos no tempo e no espaço, mas estes continuam tendo o seu próprio tempo e lugar. Ele dá como exemplo a ligação telefônica como desdobramento desse corpo. “O telefone separa a voz (ou corpo sonoro) do corpo tangível e a transmite à distância. Meu corpo tangível está aqui, meu corpo sonoro, desdobrado está aqui e lá” (LEVY, 1996, p. 29).

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Aristóteles. O filósofo teria encontrado para este significado geral mais quatro significados específicos. São estes, de acordo com a descrição de Abbagnano: a) capacidade de realizar mudança em outra coisa ou em si mesmo, que é a potência ativa; b) capacidade de sofrer mudança, causada por outra coisa ou por si mesmo, que é a potência passiva; c) capacidade de mudar ou ser mudado para melhor e não para pior e d) capacidade de resistir a qualquer mudança ( 2007, p. 915).

mesmo modo, os protagonistas também são problemas que exigem uma solução. Tanto um quanto o outro (metrópole e sujeito) estão passando de uma forma à outra num vir a ser cuja potência está posta nesse devir, nessa capacidade de transformar-se.

O conceito de potência posto por Aristóteles e assim com o posto por Levy, em uma perspectiva mais contemporânea, está associado à idéia de passagem, transformação de uma forma em outra. Essa passagem, no entanto, ocorre sempre de modo não previsível, como tensões que se resolvem através de soluções criativas, capazes de estabelecer situações novas para os envolvidos no processo. O virtual seria o mesmo que o potencial.

Em nenhum deles, nem na cidade nem no sujeito isoladamente, está essa potência, mas no que os aproxima e/ou distancia como exterioridades que se relacionam e que afinal apontam para a interioridade própria a cada um. Não há cidade sem sujeito e não há sujeito sem cidade e a potência ou a força de atualização de ambos está na relação que os envolve. No filme de Jorge Furtado, a metrópole e André – o protagonista – se revelam ligados de tal modo que um ou outro permitem a um ou ao outro uma espécie de movimento ascendente dentro da narrativa, na medida em que detalhes e idiossincrasias tomam o primeiro plano, justamente se mostrando como devires atualizados, segundo o que a eles foi posto como problema.

Ao se tomar a metrópole como virtual em O homem que copiava e em O invasor, estáse propondo que Porto Alegre e São Paulo, respectivamente, sejam pensadas como esse nó de tendências, esse problema que se atualiza quando se transformam elas também em personagens da narrativa. Do

André deve vencer sua timidez e superar os obstáculos que se colocam entre ele e seus desejos. Sem ter a quem recorrer, a cidade torna-se sua grande aliada. É nela que encontra saída para a sua miséria e é sobre ele que mais explicitamente a cidade deixa suas marcas. De um voyeur acanhado, pelo

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menos em aparência, que vê a cidade através do binóculo, André se transforma de modo gradual em um falsário, assaltante, assassino e milionário. O modo como isto ocorre, porém, pelo caráter dos atos que ele pratica, levaria facilmente a se pensar em Porto Alegre como uma cidade violenta e hostil e nele como um sujeito frio e perigoso. No entanto, o modo como ambos se atualizam nega qualquer prognóstico com essas características. André é um sujeito sensível e honesto, e Porto Alegre é tranqüila e segura, tão segura que o assaltante tem certeza que não será reconhecido mesmo que o assalto ocorra na esquina de sua própria casa. No longa de Beto Brant, São Paulo se apresenta, em um primeiro momento, como uma cidade-fantasma, imagem desfocada, diluída pela luz noturna que a destitui de definição. Esse modo de representá-la está posto por uma intenção discursiva que traz o sujeito metropolitano para um espaço que perde, a cada dia, seus contornos, transformado de tal maneira em uma cidade genérica, sem identidade, sem passado e sem futuro entregue às ambições capitalistas que tentam, de todas as formas, destituí-la de sua história. A cidade virtual se atualiza como o que incomoda e causa estranhamento ao sujeito que a desconhecia.

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Distantes, homem e metrópole se relacionam mediados pelo automóvel que cruza suas vias. A cidade aparece enquadrada pelas janelas e vidros do carro, refletida nos retrovisores, redimensionada por uma perspectiva horizontal de um sujeito que a atravessa sentado, afastado e preservado da realidade que o cerca. No decorrer dos acontecimentos, esse estado se modifica e a cidade virtual se atualiza como um ambiente estranho – tanto no sentido do que não é conhecido, quanto na descoberta de que sua pseudo-uniformidade de metrópole genérica esta longe de ser real. A passagem desse estado de quase ausência para uma presença excêntrica – como fora dos padrões e distante do centro –, esse vir a ser se coloca, explicitamente, dentro de um enquadramento de caráter ideológico que mostra a periferia configurada em seu espaço, com uma temporalidade própria que a preserva da urgência característica das grandes cidades. Na cidade sem identidade, a força de sua liquidez (BAUMAN, 2001) se transforma em pesadelo para um sujeito que descobre tardiamente o quanto a sua incapacidade de sentir-se como pertencendo a um lugar, preferencialmente ao lugar onde vive, o fragiliza e fragiliza a metrópole como um espaço que significa. E eles entram em conflito, transfigurados pela insegurança de estarem diante um do outro sem a menor

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garantia de que serão preservados em suas especificidades. Assim é que conceitualmente os filmes se aproximam em sua concepção de metrópole e de sujeito urbano. Não há nenhuma possibilidade de um estar desvinculado do outro, de tal maneira que ao se referir a um, faz-se também referência ao outro. Ivan (Marco Ricca), de O invasor, descobrese corrompido, mas também capaz de corromper. Aparentemente protegido pela grande cidade, ele se perde nessa consciência de sujeito corrupto e a metrópole deixa de ser anônima para se tornar não só o lugar de sua angústia e desespero, mas também a sua tradução quando, fluida, penetra no homem desesperado que não a reconhece mais. André, por sua vez, se descobre capaz, com força para resolver seus problemas, quando encontra na cidade uma aliada. É a ela que recorre, como um lugar “prenhe de significações ilimitadas, no desenvolvimento da existência anímica” (SIMMEL, 2005, p. 289) Essa cumplicidade se constrói de modo retroativo como um encontro impossível de ser previsto. Isto ocorre quando a cidade é atualizada pelas necessidades de André e quando ele próprio é exigido em sua potência intelectual e física.

modo de construção da narrativa como uma impressão geral do que está sendo representado, mas também no modo de manipulação das imagens, tomando como objeto de estudo a relação que se estabelece entre os personagens, mais particularmente os protagonistas, e a cidade que, aos poucos, vai se apresentando como um ambiente fundamental para o desenrolar do universo diegético.

Esse devir da metrópole nos filmes analisados neste capítulo está presente no

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A cidade à (ou na) deriva

amarelo manga

o outro lado da rua o invaso

r

o homem que copiava

Capítulo 2

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Um filme disruptivo O Recife é uma cidade passional em Amarelo manga, passional e em ruínas. Talvez uma seja conseqüência da outra: a paixão não se preocupa com o amanhã, não tem projeto. É intensa e urgente e arruína a si mesma seguindo em direção à morte ou transfigurando-se em outro, sempre deixando de ser. A dor dessa passagem pode ser tão intensa que a ela não sobram palavras e o silêncio se instaura. A representação fílmica desta metrópole se coloca, da mesma maneira, em uma situação de passagem entre o ficcional e o documental. As cenas documentais são dadas por um enquadramento frontal, quase um retrato posado. É importante considerar que o cinema documentário é dotado de regras e princípios que resultam em uma narrativa particular sobre a realidade apreendida, mesmo que esta narrativa seja montada sobre a intenção de se conseguir o menor grau de intervenção possível ou, quando se entende a impossibilidade desta empreitada e deixa-se claro no próprio filme esta impossibilidade. Ana Luiza Carvalho da Rocha, refletindo especificamente sobre o filme etnográfico afirma que este

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comporta um ato de remontar o tempo da ação que obedece a natureza dos juízos estéticos do autor em seu esforço de fazer operar, através dos recursos estruturas da narrativa, o relato etnográfico. (In ECKERT; MONTE-MÓR (Orgs.). 1999, p.62)

No filme de Cláudio Assis, esses quadros documentais ou que assumem esta linguagem – talvez fosse melhor dizer – e que se apresentam com uma duração mínima indispensável para se perceber e identificar o que acontece são a sua base de sustentação, tanto pelo aspecto da montagem em si quanto pela estruturação de um discurso sobre a cidade que se vale de uma câmera à deriva para adquirir materialidade. A ausência de relação entre os personagens que formam os dois principais focos dramáticos encontra nessa ligação (ficção/ documentário) uma maneira de ir de uma situação a outra sem prejuízo narrativo ou estético. Dentro desse esquema, o documental contextualiza e dá força ao ficcional que se apresenta como disrupção de uma pseudopassividade que toma conta dos moradores da cidade. Outro ponto a justificar, de alguma forma, a presença dessas imagens vem da crença de que “la verdade es el pueblo, las gentes comunes”, como dito por Pierre Sorlin.1

O realismo de Amarelo manga se coloca, fundamentalmente, apoiado naquilo que ele traz das ruas, conferindo um peso maior à diegese, composta de modo coerente e verossímil, ainda que não totalmente naturalista. A teatralidade de sua estrutura dramática provoca, de certa forma, um ruído nessa “espontaneidade”. Em entrevista à revista Cinemais, Assis relata que cada um de seus dramas foi inspirado em fatos reais, alguns vividos por ele próprio, outros tirados de notícias de jornais. A circularidade do filme, baseado na repetição do mesmo a cada manhã, também deve a sua estrutura a esses encontros do cineasta com a realidade. A seqüência do adultério e seu flagrante foi notícia publicada em um jornal do interior da Bahia, mas havia acontecido com um homem que a equipe encontrou em pesquisa de locação e que, coincidentemente, trabalhava em um açougue como Wellington canibal (Chico Diaz). Outra marca de realidade, também relatada por Assis,2 se refere à cena de Chico Diaz na Igreja evangélica. “A gente entrou filmando lá sem pedir autorização. Ele vinha vindo pela calçada e fomos entrando filmando. Não estava previsto não. Aconteceu de improviso. Aquela reação no templo, com o povo gritando ‘sai satanás, fora capeta’, aconteceu de verdade”. O quanto um filme tem de realista é algo que se define, segundo Sorlin, muito mais

1 Sorlin está direcionando seu olhar para Obsessão, filme de 1942, dirigido por Luchino Visconti. 2 Disponível em: . Acesso em: 20 jun.

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pela disposição dos espectadores em crer nas imagens do que naquilo que elas trazem. Todas las épocas, en una época todos los grupos, tienen sus reglas para organizar el mundo exterior – mundo de los objetos y de las relaciones sociales – de manera que encuentren alli uma coherencia y puedan aplicar sus reglas de conducta; poseen, en particular, categorias de análisis por medio de las cuales tal manera de designar verbal o iconográficamente los objetos es considerada estilizada, falsa, caricaturesta, humorística o fiel a la realidad. (1977, p. 157)

Está, portanto, nesse diálogo entre filme e recepção o índice de realidade, ainda que haja uma tendência reconhecida pela crítica cinematográfica, representada particularmente por André Bazin, de que um filme realista deva privilegiar a filmagem de externas, os temas sociais e interferir o menos possível no processo de construção da imagem.3 Bazin era um entusiasta da objetividade da câmera e do neo-realismo italiano. Para ele, era fundamental poder afirmar que a matéria-prima do filme era autêntica, a despeito de ser cinema. Se o que se vê na tela é também o que está em nossa imaginação, dizia Bazin, “é preciso que o imaginário tenha na tela a densidade espacial do real” (1991, p. 60). Essas

“marcas de realidade” postas no filme podem ser produzidas em estúdio, e de modo algum estão livre das convenções estéticas, o que relativiza esse seu caráter realista. O realismo de Amarelo manga está construído sobre a idéia de que o Nordeste brasileiro vive uma pobreza infinita, concepção compartilhada e amplamente difundida pelos meios de comunicação de massa e pelo próprio cinema,4 onde o sofrimento dos moradores da região assume traços de fatalidade como uma força quase mítica. No entanto, como foi dito por Sorlin, a aceitação desse discurso como realista depende muito mais da disposição de recebê-las como tal – tanto as imagens fílmicas quanto as dos noticiários. O que vai ao encontro de nossas crenças é aceito muito mais facilmente do que o que a coloca em xeque. Faz parte de um processo de afirmação social e psicológica a nos tranqüilizar. Segundo Francastel, “em qualquer imagem, há simultaneamente o encontro e os vestígios de um fenômeno e de uma consciência; ora mesmo o fenômeno só existe ligado ao que o precede, ao que vem depois e ao que o rodeia” (1998, p. 99). Esse conteúdo e o modo agressivo como foi posto em cena gerou debates calorosos nos circuitos de discussão de cinema e nos

3 BAZIN, 1991. 4 Abril despedaçado, 2001 (Walter Salles), Eu, tu, eles, 2000 (Andrucha Wanddigton), seriam alguns desses

filmes que afirmam essa posição. 175

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cadernos de cultura dos jornais diários. Para Maria do Rosário Caetano,5 da Revista de Cinema, Amarelo manga é um filme corajoso. Mostra, sem censura, a vida de um grupo de personagens marginalizados de alguma forma, inclusive no amor, na periferia de Recife. Assis é uma das maiores surpresas no cinema brasileiro, um diretor que está chegando cheio de projetos e que promete tomar parte no cenário dos cineastas com sua performance de contestador. 6

José Geraldo Couto, na Folha de S. Paulo,7 o descreve como “um filme de uma vitalidade à flor da tela. Sua característica mais marcante é a sensualidade – no sentido mais amplo da palavra, que implica a abertura dos sentidos para tudo o que é vivo. (…) Alguns dos achados estilísticos do curta [Texas Hotel8], como a câmera que esquadrinha (e acentua) a solidão dos personagens, enxergando-os a partir do teto, estão presentes de novo. Não há como separar o poético do sórdido. Ao

entrar para ver ‘Amarelo Manga’, comprase o pacote todo. É pegar ou largar.” Para a jornalista Luciana Veras, em resenha escrita no Diário de Pernambuco9 sob o título “Amarelo manga é a cor dos excluídos”, o filme, ambientado no Recife, “é uma crônica contundente e impactante sobre a periferia e seus personagens”. Em todas essas falas há algo em comum, o tom de exaltação sobre a sua radicalidade, seu caráter vibrante e autoral expresso pela ousadia de trazer para as telas personagens marginalizados e periféricos. De certa forma, estas falas se aliaram à do próprio Assis em entrevista à revista Contracampo10 quando informou que o seu projeto é fazer filmes nos quais acredita: Quero ser verdadeiro. Tenho de acreditar em meus filmes. Mas tenho uma tendência a tratar as questões de frente, de cara, mostrar como a vida é, de preferência com questões ligadas ao povo, com as minhas idéias. Esse é

5 Jornalista e pesquisadora do cinema. Autora dos livros Cinema latino-americano – entrevistas e filmes e Alguma

solidão e muitas histórias: A trajetória de um cineasta brasileiro, sobre João Batista de Andrade e Cangaço – o nordestern no cinema brasileiro. 6 Disponível em: . Acesso em: 20 jun. 2005. 7 Disponível em: . Acesso em: 20 jun. 2005. 8 Curta-metragem dirigido por Cláudio Assis em 1999 a partir de uma temática semelhante à de Amarelo manga. 9 Disponível em: . Acesso em: 20 jun. 2005. 10 Disponível em: . Acesso em: 20 jun. 2005. 176

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meu universo, o meu caminho, isso é que bate na minha cabeça, sem visões românticas e idealizadas. Isso dá samba, dá maracatu, dá festa.

De outro lado, a presença desse povo e dessa intenção radical de mostrar o que não se vê no cinema nacional contemporâneo levantou questões sobre o que afinal choca no filme e como o povo está representado. Eduardo Valente, na mesma revista Contracampo,11 aponta o modo distanciado como ocorre essa representação do povo que, afinal, se mantém sem “o direito a uma existência individual fora dos limites da dramaturgia teatral e distante” que dá o tom à encenação. Sobre o que causa impacto, ele encontra na seqüência da morte do boi o “grande momento de choque”, uma vez que, ainda segundo o crítico, o uso de palavrão, os tiros em um cadáver ou o primeiro plano de uma vagina são imagens que há muito se tornaram comuns na cinematografia não só nacional como na de autores como Todd Solondz e Larry Clark. Também sobre a representação do povo, Pedro Butcher, em seu artigo “Assis faz quase-grande filme”, publicado na edição de 15/8/2003 do caderno Ilustrada da Folha de S. Paulo, chama atenção para o retrato fetichizado construído pelo

diretor pernambucano, o que, segundo ele, não permite que se pense no filme como revolucionário. O debate deu visibilidade ao filme e ao cineasta agregando a ambos um tipo de interpretação e de recepção construída em grande parte sobre o que foi dito pela imprensa e pela crítica. “Las reacciones inmediatas al estreno del filme case siempre tienen gran importancia; prejuzgan las interpretaciones ulteriores y se integran a la historia del filme”, nos diz Sorlin. Em 2007, Assis lançou seu segundo longametragem, Baixio das bestas, mantendo a mesma chave realista do primeiro, mas agora encontrando seus personagens no interior de Pernambuco. Amarelo manga estreou em agosto de 2003 em circuito comercial, um ano após ter se apresentado no festival de cinema Rio BR em 2002. Um filme de baixo orçamento,12 realizado fora do eixo de concentração de produção do país – Rio de Janeiro e São Paulo –, com uma temática suja, baseada em um realismo cru, conseguiu levar em torno de 130 mil pessoas aos cinemas no Brasil inteiro, depois dos vinte prêmios recebidos em festivais nacionais e internacionais. No filme estão personagens, espaços e tempos representados a partir de escolhas

11

Disponível em: . Acesso em: 20 jun. 2005. 12 Segundo Assis, foi gasto na produção de Amarelo manga cerca de 800 mil reais. 177

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resultantes de uma prática cultural, ou melhor, da tradução por parte do cineasta daquilo que o afeta, na medida do que é exigido pela narrativa e pelas condições de produção. Assim, buscar uma locação real pode ser mais apropriado do que construir um cenário. Neste caso, a cidade estará apresentada a partir da de si mesma como algo que se tornou imagem. Essa tendência no Brasil se apresentou de modo radical naquilo que se denominou cinema marginal: uma produção caracterizada por decisões estéticas que buscavam essencialmente a liberdade em relação a todas as regras da gramática clássica, adotando procedimentos originados das condições de filmagem. Segundo Rogério Saganzerla, nessas condições não há o “‘ângulo absoluto’ impossível na vida real”, mas a busca do “‘melhor ângulo possível dentro de uma situação dada.’… não há a idealização da realidade, mas uma integração com o real” (2001, p. 18). Essa integração é descrita por ele como uma “busca do concreto”, com filmagens em espaços reais, dentro de condições possíveis e não ideais. Cláudio Assis em Amarelo manga explicitamente se coloca partidário dessa proposta não só por eleger a cidade do Recife – como uma cidade que fascina a câmera e se transforma por ela mesma em imagem, com

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toda a força que se origina da vida que a anima – mas também por exagerar no modo como a apresenta, seja nas seqüências ficcionais seja nas documentais, quebrando qualquer possibilidade de construção de qualquer tipo de identificação com o espectador. No filme há uma espécie de artificialização das encenações provocadas por um trânsito entre uma dramaturgia verborrágica – como a do padre que aparece como uma espécie de comentador – e um exagero no modo como constrói um cotidiano promíscuo e quase fétido para os moradores das periferias e do centro velho da cidade, particularmente para os que vivem no Texas Hotel. Esse procedimento reforça a narrativa de Amarelo manga que está construída sobre uma idéia original de pobreza infinita.

Amarelo manga: as histórias O primeiro longa-metragem do pernambucano Cláudio Assis traz em seus noventa minutos de duração diferentes histórias que se ligam como encontros fortuitos, que tanto podem mudar a vida dos sujeitos envolvidos quanto podem ser esquecidos após a virada na primeira esquina. Tudo acontece em um único dia, em uma circularidade que embaralha o passado, o presente e o futuro sem que isto esteja

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claramente posto pela montagem. O filme parece narrar um cotidiano que se repete num giro infinito, mas esse giro é interrompido em sua trajetória pelo caminhar retilíneo de Kika (Dira Paes), que entra num salão de beleza de periferia decidida a mudar a cor dos cabelos e quem sabe a vida. Lígia, personagem vivida por Leona Cavalli, é a dona do bar Avenida e, também, de uma insatisfação existencial que a torna uma pessoa triste e solitária. Isaac (Jonas Bloch) é um sujeito que mora no Texas Hotel, proprietário de um velho Mercedes amarelo (amarelo cor de manga, como diversos outros objetos que aparecem ao longo do filme) que tem fetiche por defuntos e se interessa por Lígia. Dunga (Matheus Nachtergaele) é empregado do Texas Hotel e apaixonado por Wellington canibal, açougueiro casado com Kika e amante de Dayse (Magdale Alves) Em torno desses personagens estão o seu Bianor (Cosme Soares), dono do hotel; o padre (Jones Melo), filósofo da decrepitude moral e social do ser humano; dona Aurora (Conceição Camarotti), moradora do hotel, mulher melancólica e asmática; índios e caboclos que ocupam os ambientes do hotel com suas pequenas tarefas. A narrativa encontra em Wellington, Kika e Dunga seu principal foco dramático. O casal, sem filhos, mora em uma favela. Ela é

dona de casa e evangélica, cheia de pudores e de poderes para julgar o comportamento de outras pessoas. Kika não perdoa os traidores, não fala palavrão, se veste de modo recatado e não usa maquiagem de qualquer tipo. Só sai de casa para o culto ou para resolver algum problema doméstico. Na rua, assume uma postura distanciada e parece não ter amigos na vizinhança. Wellington é o macho latino, forte e sexualmente poderoso. Com Kika, mantém uma relação séria e respeitosa. No frigorífico, todo sujo de sangue, esquartejando um boi, se diz capaz de matar um homem, coisa que já teria feito e o que justificaria seu apelido. “Entre todas as espécies que habitam o mundo, o homem é o bicho que mais merece morrer”, afirma antes de revelar o feito, que possivelmente não passa de bravata, dado o tom com que é anunciado. Kika, segundo ele, é a “única coisa” que não seria capaz de matar. “Não é a mulher mais bonita do mundo não. Mas é a melhor porque é crente. Que Deus a conserve daquele jeito sim. Por Deus eu lhe digo, eu acredito mais em Kika que em mim. Ela diz cada coisa bonita! Eita!” Essa idolatria não o impede de ter um caso extraconjugal com Dayse, que é o exato oposto de Kika, numa equação comum de um pensamento machista, em que o recato é necessário e indispensável ao casamento

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enquanto a ousadia, a falta de pudor e a independência financeira são requisitos da amante. Esta sim é gostosa, uma mulher fogosa, quente, que supre as carências de um casamento sem graça e virginal. Mas é o K de Kika que ele leva esculpido na cabeça de cabelos curtos. O clima amoroso, no entanto, está ameaçado pela insistência de Dayse em querer que Wellington se separe de Kika. Ela está se sentindo desprestigiada, sendo chamada de vagabunda pelo próprio pai. Em uma discussão, ela acusa Kika de ser sonsa. Wellington, irritado, nega que sua mulher tenha esse caráter. “Kika é crente. Kika não é do tipo que…” Dayse rebate, dizendo que “as crentes são as mais safadas”. Seu ar é insolente, o corpo se movimenta desafiador, e Wellington não pensa duas vezes antes de empurrá-la. Diante da insistência de Dayse em afirmar sua opinião sobre Kika, ele a ameaça com uma tapa. Ela, que não é mulher de se intimidar, se mantém firme – apesar de humilhada – diante das ameaças. Dunga, ao saber da intenção de Dayse (sua amiga) de pôr um fim no relacionamento com Wellington, encontra na situação a possibilidade concreta de separá-lo também da esposa. Ardiloso, escreve uma carta em que relata o caso e informa sobre o encontro dos amantes no campinho do Euclides. Dunga insiste em acusar Wellington de

traição e na necessidade de desmascarar alguém que se comporta dessa maneira. Ele age como demiurgo, entrelaçando os destinos de Wellington, Kika e Dayse em prol de si mesmo e de sua paixão, poder que ele afirma com a máxima “bicha quer, bicha faz”. O flagrante acontece. Wellington, sem saber que estava sendo espionado, tenta evitar a separação. Esta será a última vez, é o argumento que usa diante da mulher pouco resistente. À medida que o encontro se torna mais íntimo, Kika, descontrolada, se aproxima do casal, agredindo-os fisicamente. No confronto, Dayse tem um pedaço de orelha arrancado. A cena é repetida três vezes seguidamente e em primeiro plano, o que aumenta o seu peso dramático. Enquanto a amante grita de dor, Kika tira o pedaço de orelha da boca e comenta em tom de desprezo: “Bijuteria, sua puta!”. Após a agressão, Kika caminha com ar sério e determinado. Isaac pára o carro ao seu lado e a convida para entrar. Ao ser questionada sobre a mancha de sangue na blusa, ela conta, rindo nervosamente, que arrancou a orelha da amante do marido. Kika também anuncia seu renascimento, afirmando que era uma mulher morta por dentro. Esse dito aumenta o interesse de Isaac, atiçando seu fetiche necrófilo.13

13 Isaac costuma comprar cadáveres para exercitar tiro ao alvo.

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Imagens da metrópole no cinema brasileiro

Eles vão a um motel, onde Kika se mostra uma mulher forte e voluntariosa em seus desejos e fantasias, livre da repressão sexual que tanto a tolhia. Ela precisou saber-se traída para também saber-se morta e, dessa forma, renascer. O desânimo arrogante e rancoroso que a caracterizava é substituído por uma postura ativa, mas ainda arrogante e rancorosa expressa de modo violento desde a briga, passando pela aventura sexual e pelas mudanças que ela provoca em si. Não basta que estas tenham acontecido somente em seu interior ou dentro de quatro paredes, é necessário anunciá-las no seu corpo, no modo como este se apresenta, escolha esta que encontra eco nas palavras de Todorov:

efeito esperado, o de revelar a mulher que existia de modo latente e que se escondia por trás do recato e de uma religiosidade exacerbada.

o homem vive talvez inicialmente em sua pele, mas começa a existir apenas a partir do olhar dos outros; portanto, sem existência, a própria vida se extingue. Cada um de nós nasce duas vezes: na natureza e na sociedade, para a vida e para a existência; tanto uma como outra são frágeis, mas os perigos que as ameaçam não são os mesmos. (1996, p. 67)

A traição de quem lhe trazia o peso de tal referência é algo imperdoável para ela, que já havia informado sua intolerância em relação a isto. “Uma coisa... por sinal, a única coisa que eu não tolero é a traição. Assassinato, violência, roubo... tudo eu perdôo. Menos a traição. A adúltera é repugnante. O adúltero também. Quem com ferro feriu, com ferro será ferido! Não quero nem pensar!” O confronto físico, que afinal é uma ameaça à natureza do homem, significou o começo de sua existência e o fim da sujeição ao marido e à religião.

As opções de Kika por uma vida recatada mas infeliz são substituídas agora pela exibição de um novo estilo, expresso fundamentalmente na aparência. Ela manda cortar os cabelos e pintá-los de amarelo manga. Essa decisão talvez seja a que nesse momento provoque o

Kika era vista como uma mulher pudica, a esposa de Wellington canibal, reconhecimento que a desagradava. A queixa vem em tom amargo: “Kika canibal! Wellington, pelo amor de Deus, que história é essa? Faço de tudo para não me meter em intriga, não faço mal a seu ninguém... Não dou trela, e o que eu ganho? Kika canibal!” Ao desempenhar esse papel de esposa dedicada, crente respeitável, quase nada lhe sobrava na sua existência, a não ser esse reconhecimento pejorativo.

Após o flagrante, Wellington procura por Dunga no Texas Hotel. Ele sofre com o sumiço da mulher.14 Dunga tenta consolá-

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lo, oferecendo abrigo e conforto em seu quarto, proposta que é aceita. Na passagem pelo hall do hotel onde está acontecendo o velório de seu Bianor, Wellington volta atrás e recusa a oferta, afirmando que não dorme com morto por perto, e vai embora deixando Dunga sozinho. No bar de Lígia, os acontecimentos são tão intensos e passionais quanto os vividos pelo quarteto Dunga, Kika, Wellington e Dayse, ainda que ela anuncie logo pela manhã, enquanto arruma o estabelecimento, que, mesmo com tudo isso, o ciclo é repetitivo e substancialmente nada parece se alterar: “Às vezes eu fico imaginando de que forma que as coisas acontecem. Primeiro vem um dia, e tudo acontece naquele dia até chegar a noite, que é a melhor parte. Mas logo depois vem o dia outra vez... e vai, vai, vai... é sem parar!”. Lígia é a narradora nostálgica dessa realidade que não cessa de ser reiterada. A vida dessa mulher jovem e independente não é das mais fáceis, sujeita que está aos abusos dos clientes bêbados freqüentadores do bar. Ao predizer a mesmice cotidiana, ela parece apontar para o absurdo da vida e do quanto nela têm lugar situações também absurdas, que, no final das contas, emergem repentinamente, facilitadas pelo caráter animalesco do ser humano. Dado o grau de recorrência desses fatos, eles parecem ter se tornado normais. 14 À amante ele se refere com descaso.

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A escolha de locações depredadas, caóticas, abandonadas pelo poder público, ou o matadouro com todo o sangue que escorre dos animais mortos, reforçam essa idéia ao ressaltar a condição exacerbada da natureza humana. Seu posicionamento não é educativo, nem mesmo solidário com os seus personagens ou com o ambiente onde ocorrem. O filme cria estratégias para comprovar suas afirmações ao se apropriar da linguagem documental, recurso que funciona como um testemunho irrefutável de uma condição humana que nem mesmo a sociedade e a cultura conseguiram abafar.

A uma distância segura Espreitar a cidade, se pôr diante dela de modo objetivo, evitar envolvimento, buscando apreendê-la em seu registro mais duro. Essa é a intenção primeira do filme, que, muito mais do que buscar apresentar a realidade, traz uma concepção sobre o que é essa realidade. Os signos figurativos, afirma Francastel, “surgem não para descrever o real, mas como testemunho de sistemas mentais”. Esses signos, completa, “surgem no espírito através do espaço-tempo e estão dialeticamente situados entre o real, o apreendido e o imaginário”. (1998, p. 104).

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O que ele mostra traz consigo o peso de intempestivas emoções, permeadas por uma passividade aparente, o que empresta ao conteúdo fílmico variações de intensidade entre o que explode e o que se contém. A operação é delicada, na medida em que as explosões não só estão virtualmente postas como acontecem, porém sem força suficiente para contaminar a câmera, exceto em duas únicas ocasiões: no quase transe de Wellington canibal no culto evangélico e no confronto entre Kika e Dayse. O narrador onipresente se arvora o poder de penetrar como um voyeur – com toda a morbidez que caracteriza esse comportamento – a vida das pessoas dessa cidade. Algumas são vítimas fáceis desse olhar invasor, outras nem tanto. Estas oferecem uma espécie de resistência que não deixa ver além do que trazem na superfície, sentimentos represados, colocados por trás de uma máscara de indiferença ou de uma recusa em expressar-se. A justaposição, entretanto, entre os que se escondem e os que marcam a tela com suas ações, relativiza essa pseudo-indiferença, conferindo-lhe um sentido de encenação cotidiana,15 reforçada e aceita a partir de uma imagem pregressa sobre o que caracteriza esse tipo de gente, seja ou não esta impressão

o reforço de um estereótipo. Nesse jogo entre desconhecidos, nos diz Goffman, os observadores podem obter, a partir de sua conduta e aparência, indicações que lhes permitam utilizar a experiência anterior que tenham tido com indivíduos aproximadamente parecidos com este que está diante deles ou, o que é mais importante, aplicarlhes estereótipos não comprovados. (2007, p. 11)

Essas são as bases iniciais de um contato interpessoal, que podem tanto aproximar quanto distanciar os que estão nele envolvidos. O cenário social onde ocorre é outro dos elementos que influenciam o modo como esses sujeitos são vistos. Em Amarelo manga cada um desses requisitos – acrescidos, obviamente, dos procedimentos de câmera, iluminação, sonorização, enquadramento e montagem – é pensado cuidadosamente de modo a levar adiante um discurso social construído sobre a realidade. A frieza em relação àquilo que o filme mostra expressa um distanciamento quase asséptico a qualificar um observador acostumado com as misérias do mundo e, por isso mesmo, a elas pouco solidário. Sua estrutura obedece a uma organização muito bem definida, estando dividida em três partes: uma

15 E encenação fílmica. Em nenhum momento as pessoas que são “flagradas” na cidade em sua rotina

manifestam qualquer estranheza em relação à câmera. A participação de Wellington no ritual protestante é a exceção. Nele mais de uma pessoa indica a presença da câmera, olhando diretamente para ela. Aqui é possível falar no efeito de realidade discutido por Jacques Aumont (2004).). 183

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primeira de apresentação dos personagens, dos ambientes onde vivem e/ou circulam e das suas relações; uma segunda que se inicia com a explosão de Lígia no bar Avenida, primeiro momento de tensão explícita – a partir daqui vão se delineando de forma mais clara os desejos, medos e idiossincrasias de cada um dos personagens. A terceira e última parte começa com a carta que conta sobre a traição de Wellington e se encerra com a mudança de Kika após a comprovação do adultério. Em meio a tudo isso, o dia é pautado pela rotina da cidade e pelas derivas do filme. A objetividade como intenção narrativa em Amarelo manga deve em muito ao modo como a câmera se comporta, fixa ou seguindo os personagens pelo espaço da ação, assumindo uma horizontalidade que põe em foco o homem em seu ambiente. Poucos cortes, movimentos leves e o plano-seqüência como escolha de inscrição do espaço-tempo. O plano fixo é comumente associado à idéia de teatro filmado, procedimento comum nos primeiros anos do cinema. Nele a ação ocorre em um espaço circunscrito, caracterizado como um cenário montado onde os atores desenvolvem as suas performances. É o que ocorre, por exemplo, na apresentação de Dunga. Ele aparece varrendo o salão de entrada do Texas Hotel, como dona Aurora sentada no velho sofá ao fundo, seu

Bianor no balcão de atendimento e alguns moradores que se movimentam em ambiente contíguo. No centro, Dunga se movimenta chamando a atenção para si, circulando no espaço e entrando em contato com os demais que respondem aos seus estímulos. A câmera permanece fixa até dona Aurora se levantar e passar por ele saindo do quadro. Nesse momento, a câmera esboça um leve movimento que traz Dunga para o primeiro plano e aproxima o espectador da cena. O plano fixo se repete também em cenas externas, porém, nelas esse efeito teatro é esmaecido. As cenas externas, neste caso, trazem para si um caráter realista, como um recorte do espaço que se amplia indefinidamente para fora do quadro, um espaço virtual que as contextualiza dentro da metrópole. A relação entre esses fragmentos do cotidiano da cidade se dá através da recorrência de elementos como os que remetem à pobreza, à falta de infra-estrutura urbana, à bebida, à religião e à violência, compondo um universo imaginário sobre o que caracteriza a população de uma grande cidade brasileira.16 O enquadramento privilegia um posicionamento frontal, sempre a pôr a ação no centro em uma composição simétrica e equilibrada, de modo a garantir que esta seja compreendida de forma integral e

16 Segundo o censo de 2007, a população do Recife é de cerca de 1.533.580 habitantes.

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denotativa. É o enquadramento, nos diz Aumont, que “estabelece uma superfície de contato imaginário entre essas duas zonas, a do filmado, a do que filma” (2004, p. 39). A frontalidade traz o acontecimento para a superfície como um achatamento da ilusão de profundidade que, apesar de na maioria das vezes manter os demais objetos em foco, raramente aponta para algo de interesse que ultrapasse essa zona de desenvolvimento dramático. Aqui se está falando sobre um propósito discursivo que pretende se afirmar como um registro preciso de uma dada realidade. A intenção denotativa trata a imagem como uma mensagem sem código, segundo Barthes, por serem estas reproduções analógicas da realidade. Ele cita o desenho, a pintura, o cinema, a fotografia e o teatro como algumas de suas expressões. Porém, cada uma delas traz outra mensagem que lhe é suplementar e que se constrói de acordo com o estilo da representação proposto: esta outra mensagem é a sua conotação. “Tratase de um sentido segundo, cujo significante é um certo ‘tratamento’ da imagem sob a ação de seu criador e cujo significado – estético ou ideológico – remete a uma certa ‘cultura’ da sociedade que recebe a imagem’, explica Barthes. (1990, p. 13) Esse estilo se refere ao modo como o tema é abordado, ao modo como a história se transforma em filme.17

Referenciar-se à realidade é um pressuposto básico a esse tipo de mensagem, o que deixa a fotografia e o cinema em uma posição privilegiada, por se tratarem de imagens que devem à luz a sua gênese. André Bazin (1991) considera que este é o fundamento da imagem fotográfica, a sua ontologia. E se a fotografia é o instante da captura, o cinema é uma linguagem, cujo mito é a “recriação do mundo à sua imagem”, o “mito do realismo integral”, que, segundo ele, não ficaria a dever em nada à liberdade do artista e à irreversibilidade do tempo (BAZIN, 1991, p. 30). A denotação em Amarelo manga esbarra então nesse segundo sentido que se apresenta no significante das suas imagens – na composição plástica do campo, no enquadramento e na sua montagem, tanto como justaposição dos planos quanto como ordenação do que está dentro do quadro, incluindo o papel da música. O centro da imagem como espaço eleito para a encenação dramática exige pouco do olhar que encontra exatamente a sua frente o núcleo da ação. Com isso, o espaço se fecha sempre que duas ou mais pessoas estão em cena. As linhas de convergência do plano seguem em direção a um ponto de fuga central, sem descuidar das entradas no quadro e do entorno que, por sua vez, estabelece uma relação virtual com o que está fora, rompendo os seus limites, o que evita a sensação de asfixia.

17 Aqui entram as condições técnicas e de filmagem, o suporte financeiro e o quanto este tem de fôlego

para o desenrolar da produção, da divulgação e da distribuição. 185

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Dessa maneira, a representação da realidade posta pelo filme prescinde de efeitos especiais e de uma montagem mais rebuscada, tendo à sua frente exatamente o que lhe interessa. Esse planejamento converge em direção ao realismo proposto por Bazin, que considera que a construção de uma imagem integral é possível desde que se respeite o que se põe diante do filme – mesmo que isto seja um truque, tem que existir na realidade antes de existir no filme, defende. “O cinema narrativo de ficção promete uma linguagem que fala da realidade com os próprios meios, tipos, expressões, gestos, textos e cenários da realidade”, explica Rogério Luz (2002, p.108). O quadro adquire redundância quando se mostra através de uma janela que funciona como uma moldura, um quadro dentro do quadro a frear os ímpetos libidinosos de Dunga em relação a Wellington canibal. O desejo represado busca no espectador a afirmação de um objetivo carregado de rancor e mágoa dirigidos às duas mulheres de Wellington. São quase dois minutos de um monólogo em tom exaltado, ainda que contido em sua potência sonora. Ele confessa suas intenções, joga na cara de todos a sua força e ameaça a posição de distanciamento adotada na narrativa fílmica. Dunga, como Lígia na primeira seqüência, é o sujeito que anuncia um fora de campo.

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O campo, como porção tridimensional da imagem aprisionada pelo quadro, se amplia quebrando o limite imposto ao personagem. Segundo Noel Burch (2006), existem seis modos de entrar ou sair do quadro: quatro deles estão relacionados com as demarcações da tela: esquerda, direita, em cima e embaixo. O quinto modo se define como um “atrás da câmera” e o sexto como um atrás do cenário. Esses fora de quadro ou fora de campo, mesmo ausentes da imagem, dela fazem parte como projeções que podem ampliar o espaço que lhe cabe. A teatralidade de sua estrutura dramática dada pelo tom das falas, principalmente a do padre, e o comportamento de Dunga e Lígia são dispositivos de quebra de contrato entre o receptor e o filme que, se construído dentro de uma base naturalista cuja gramática tem como convenção utilizar procedimentos que disfarcem o máximo possível a artificialidade da estrutura compositiva do filme, jamais deveria permitir a interposição de qualquer conduta que o distanciasse dessa intenção. É possível estabelecer como chave de leitura para esses momentos o conceito de estranhamento posto por Brecht, como um procedimento que busca quebrar com o hábito que, ao viciar o olhar, impossibilita que este encontre em situações familiares qualquer indício de diferenciação em relação a experiências anteriores.

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O familiar ou habitual, diz Fredric Jameson, é identificado como o natural, “e seu estranhamento desvela aquela aparência, que sugere o imutável e o eterno, e mostra que o objeto é histórico” (JAMESON, 1999, p. 65). Essas quebras no filme de Assis afirmam esses dramas periféricos dentro de uma matriz individual e íntima como uma marca da natureza de sujeitos embrutecidos, que encontram na exposição de seus medos um elo que lhes restitua a humanidade, ainda que de modo intolerante, como a fala de Lígia reclamando da sua prisão pessoal, que afinal é também a de todos os que freqüentam o seu bar, ou de modo insolente, como o de Dunga, que destila todo o seu preconceito contra Kika, Dayse e, sobretudo, contra a homossexualidade, elemento que o define como sujeito.

O que marca esse estranhamento é a direção do olhar a ultrapassar a câmera que, ao ser descoberta e destituída de seu poder de vigilância, é imediatamente transformada em transparência, o que permite estar dentro e fora. O olhar trespassando uma fronteira que não poderia ser aberta, sem forças para evitar o contato com o que está por trás, não mais um fora de campo virtual, mas a concretização do espaço imaginário, ocupado pelo espectador. Esse olhar é ativo, em busca talvez de cumplicidade ou se não, pelo menos de reconhecimento. Ele parte do centro e se espalha limitado somente por sua capacidade de cobertura do espaço fora do campo, invertendo a relação com o espectador que, nesse momento, passa a ser o sujeito objeto do olhar.

Mas não é o que eles dizem ou como dizem que configura esse estranhamento. Para esses sujeitos não há os limites das máscaras civilizatórias exigidas pelas regras da boa conduta burguesa. Lígia manda todo mundo “tomar no cu” já na primeira seqüência, incluindo aqueles que a escutam; Dunga garante que não está de brincadeira e que consegue o que está se propondo: “pegar canibal na virada”. As cenas obedecem ao procedimento adotado em quase todo o filme: o centro ocupado pelo acontecimento ou pelo ator e uma câmera que se desloca sutilmente em direção ao primeiro plano.

Se o enquadramento organiza o espaço e estabelece um ponto de vista, é necessário que se recorra ao imaginário, para lhe conferir realidade e profundidade e tornálo infinito. O olhar que parte da imagem,

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por sua vez, se espalha apreendendo a todos sem distinção. “Não basta seguir estas linhas [do ponto de vista em direção à imagem] no sentido inverso, da imagem em direção ao ponto de vista, para verificar que elas nos devolvem nosso olhar, mas desta vez como artifício18 sujeito ele mesmo à ilusão19 que elas fixam?”, pergunta Comolli. Essa quebra da “apresentação” da realidade – pretensão do filme – funciona como uma interrupção que ilumina a artificialidade do discurso construído. Benjamin, em texto escrito em 1934 – O autor como produtor –, encontra no teatro épico de Brecht essa força esclarecedora, que aqui é materializada pela direção do olhar de Lígia e Dunga. A entrada de dona Aurora no palco de Dunga o restitui à narrativa. A potência desse olhar não se amplia para os rostos que encerram o filme. Estes não expressam, apenas imprimem suas faces entristecidas, devolvendo ao espectador seu lugar de voyeur urbano, um sujeito que toma a cidade como um espaço privado sobre o qual não é aconselhável intervir sob pena de um comprometimento penoso, ou no mínimo ingênuo quando isso significa a descoberta daquele que espia, a sua denúncia. Cercados estão todos, os que vigiam e os que são vigiados. O tempo de cada um é um flash no rosto que se projeta junto com o pedaço do espaço que lhes cabe, dentro dele suas 18 Itálicos do autor. 19 Ilusão de profundidade em uma superfície plana.

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ferramentas. E o filme se transforma em fotografia, o instante da identificação e do congelamento, destituído de sua duração, um anticinema, conduzindo a todos em direção ao matadouro onde afinal os bois são mortos, privados de sua força, encurralados e submetidos, como o sujeito que os sacrifica.

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Aqui, como analogia, se recorre à morte do boi em um matadouro da cidade. Seqüência documental, exibida em um primeiro plano impassível, organizado como os demais. A imagem principal no centro do quadro é subdividida em dois quadros menores, num superenquadramento dado pelas barras de ferro presas na parede a garantir a proximidade do animal, sem risco para o seu matador. Aos golpes do magarefe, ele estrebrucha indefeso. Morto é arrastado pelo chão, acompanhado por um plano-seqüência em câmera alta, mas próxima. Massa inerte, transformado em forma volumosa, dispensa o espaço que o cerca. Esse movimento pesado resulta em um close pegajoso da cara do boi que ocupa a tela, agigantado e monstruoso.

O close-up é o plano do detalhe, da textura da pele tornada superfície da tela. Com ele, afirma lindamente Jean Epstein, “não olhamos a vida, nós a penetramos. (…) É o milagre da presença real, a vida manifesta, aberta como uma bela granada, liberta da sua capa, assimilável, bárbara” (In XAVIER, 1983, p. 270) Nada há de belo nessa imagem, mas muito há de bárbaro, de feroz e grosseiro. Uma imagem impiedosa alagada em sangue, repetida em ângulos diferentes, aprofundada, em seu paroxismo, pela música e pelo som do corpo do animal contra o chão e depois pela faca que corta a sua carne. Uma tentativa de resgate da narrativa é dada pela passagem do som – música, ruído e diálogo – para a cozinha de Kika, onde ela lava a louça do almoço. Uma das prerrogativas da representação realista possível ao cinema, o uso do planoseqüência, em Amarelo manga adquire contornos agressivos quando em grande parte se constitui a partir de uma câmera alta em ação de esquadrinhamento. Seu lugar preferencial é esse, potente, atravessando os espaços sem nada que impeça a sua expressão de domínio. Sua primeira incursão ocorre no bar/casa de Lígia; a segunda, com contornos mais intensos, na apresentação de Wellington. O frigorífico onde ele trabalha aparece enquadrado também por uma câmera alta posicionada

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com uma ligeira inclinação, dificultando por alguns instantes a identificação do lugar que se assemelha aos quadros de Bosch, dada a profusão de formas e de cores que lembram as pinturas mais diabólicas do artista holandês. O encarnado, vermelhosangue, aqui não é nenhuma metáfora. O que vai lentamente preenchendo o quadro são animais mortos enfileirados um ao lado do outro, esquartejados por homens também sujos de sangue. Eles retiram suas vísceras e repartem suas carcaças, num espetáculo violento de preparação das refeições. A ubiqüidade do plano-seqüência de Amarelo manga e a sua opção pelo que desagrada o olhar se afirmam na trajetória lenta sobre a cama da mulher que aparece com os olhos arregalados, em agonia causada pela falta de ar. O movimento é circular, como se acariciasse aquele corpo envelhecido, como uma massa de carne que se deforma e avoluma com a proximidade da câmera.20 Ela sofre e com um aparelho de inalação respiratória tenta resgatar o ar que lhe escapa. O vestido preto florido e enfeitado por pérolas não dá conta de cobrir seu corpo, e a câmera, aproveitando-se da ausência de proibições, vai ficando, mostrando o que deveria se interdito, dado o grau de intimidade do sexo solitário. Dona Aurora se masturba com o inalador, ela se abre para o ar que o aparelho emite. A imagem é feia, grotesca, mas afirma 20 Teria alguma relação com o boi morto?

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uma posição: finalmente a câmera de Cláudio Assis se coloca dentro da cena e parece ter perdido qualquer pudor, articulando uma subjetividade que, afinal, diz a que veio. Para ele, não há mais fronteira, o dentro e o fora se confundem, e ambos são muito feios.

A cidade Em Amarelo manga, a cidade parece estar em uma situação de instabilidade criada pelo entre: entre a calma e a explosão, como um vulcão próximo da erupção, uma metrópole impetuosa, ainda que esse estado se mantenha latente sob a aparência do não-acontecimento e da invisibilidade. Uma paisagem feia e enrugada, cujo movimento mostra os subterrâneos da metrópole, concorre com pessoas indecifráveis em sua insignificância, anônimas e abandonadas, deixadas de lado como os lugares envelhecidos ou malcuidados nos quais circulam ou habitam. Lugares e pessoas escondidos, não se sabe se por opção ou por falta de um olhar que lhes dê visibilidade, um olhar que se defina por sua intencionalidade, “a dimensão propriamente humana da visão” (AUMONT, 2001, p. 59). O olhar é ativo, procura, pensa sobre o que vê, ultrapassa o poder do olho como órgão e

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sente. O olho tem o mundo à sua frente, mas é o olhar que seleciona e lhe confere existência. De certa forma, a exacerbação do olhar gerou essa concorrência contemporânea pela visibilidade mediada, uma vez que esta mediação permite, de algum modo, que o objeto exposto dispute diante de uma platéia numerosa por um reconhecimento, mesmo que este seja efêmero. Esta disputa pelo olhar não está em busca simplesmente de aceitação ou de concordância. O que interessa, neste processo, adquire o status de necessidade, algo vital comprobatório de uma existência. A invisibilidade daquele que não consegue atrair para si um olhar adquire contornos insuportáveis, como relata Dostoiévski em Memórias do subsolo, escrito em 1864, e Peter Handke em A ausência, publicado na Áustria em 1987. Eu estava em pé junto à mesa de bilhar, estorvava a passagem por inadvertência, e ele precisou (um oficial) precisou passar; tomou-me então pelos ombros e, silenciosamente, sem qualquer aviso prévio ou explicação, tirou-me do lugar em que estava, colocou-me em outro e passou por ali, como se nem sequer me notasse. Até pancadas eu teria perdoado, mas de modo nenhum poderia perdoar que ele me mudasse de lugar e, positivamente, não me notasse. (DOSTOIÉVSKI, 2000, p. 62 e 63)

(…) Para os seus camaradas você não existe; ninguém ao seu redor olha para você; quando sai pela porta, quando muito se percebe devido ao rumo da maçaneta; sua continência é ignorada; e quando perguntamos por você, seu nome não significou nada pra ninguém (…) E no restaurante você ainda é aquele cujo pedido a garçonete esqueceu, nas bilheterias aquele a quem os que vieram depois ultrapassam como alguém que só estorva. Você pode ser o único na sala, destacado por um holofote e um pódio, e ainda assim não o veriam. (HANDKE, 1989, p. 19 e 20)

O mapeamento dessa metrópole toma a forma de um resgate do que aparentemente não chamaria atenção, forçando o encontro com os olhares receptores ou no mínimo espectadores, confortavelmente sentados nas salas de cinema ou nos sofás de suas salas. O fortuito e sem importância deixa o seu lugar como algo que é regularmente desprezado, para se tornar o tema do filme, a sua matriz, tanto pelo viés da narrativa quanto pelo que se transforma em imagem. Neste filme, a cidade parece estar em decomposição com suas paredes sujas e carcomidas, marcas de um tempo histórico a ser superado, como ruínas vivas que ainda resistem à sua desaparição, um jogo de forças entre o espírito e a natureza, se considerarmos a arquitetura, de acordo

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com o proposto por Simmel (1988), como a mais sublime vitória do espírito sobre a natureza, vitória que, neste caso, começa a ser posta em xeque. Mas, não é só a sua arquitetura que está vivendo este conflito entre espírito e natureza, também os seus personagens, incluindo os seus habitantes anônimos. Todos estão qualificados a partir de características que buscam identificar neles – e também nos figurantes – uma espécie de animalidade dada por um nível de civilidade pouco cultivado, o que leva, no ápice da provocação estética, a uma cena de masturbação vivida por uma mulher velha, gorda e asmática, que utiliza, para isso, o seu inalador ou a cena cruel e sangrenta da morte de um boi. Os espaços da vida marginalizada, vivida no centro decadente ou na favela sem saneamento, aqui também são postos em relevo como descobertas nada ao acaso. Recife aparece mediado por um olhar direcionado que propõe/impõe ver o que nele há de decadente, de modo a estruturar um retrato do abandono de uma cidade que parece ter perdido seus encantos. Nenhuma imagem do Recife “agradável” (ou mesmo turística) é oferecida, nenhuma referência às suas praias ou a qualquer situação que se

distancie da intenção de apresentá-la como um quebra-cabeça sujo e deteriorado. O conteúdo do filme se qualifica segundo os níveis de intensidade das sensações que a cidade provoca – tanto para as seqüências ficcionais quanto para as documentais, o que a aproxima de uma experiência de deriva –, todas relacionadas a um ambiente que se mostra falsamente inerte. As ruas da metrópole são esse espaço ora sereno e lento, ora febril e cheio de gente, mas nunca sem vida, mesmo que esta vida seja pobre e idiossincrática e falsamente monótona. Cada gesto, cada movimento, cada escolha de cada um desses indivíduos vem carregada de suas histórias, de suas crenças, de seus hábitos, do que eles escondem e do que gostariam de mostrar. A última seqüência21 documental assume a forma de um painel urbano, onde cada quadro traz um pouco do que acontece nesse espaço de ocupação e uso público, pelo menos em sua essência: um trem avança sobre os trilhos, carros, caminhões lhe conferem um certo tipo de movimento, tem gente vendendo, dormindo, cozinhando, varrendo a rua, regando a planta, comendo, bebendo, carregando um bebê no colo, arrumando frutas em um balcão, esperando.

21 “O que gerou a seqüência dos rostos, no final, é a impotência e um chamado. É como se aqueles rostos

dissessem: ‘Olhem para mim, eu sou esse tipo na miséria, tenho algo a dizer, quero comer, tenho tesão, quero me divertir’. É um grito em silêncio para chamar atenção,” afirma o diretor na revista Contracampo. Disponível em . Acesso em: 20 jun. 2005. 192

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A dinâmica é intensa, no entanto a música parece tecer um comentário sobre o que se vê como se fosse necessário desconfiar dessa força criativa. O fato de essas imagens virem após a repetição do monólogo exausto de Lígia sobre a imutabilidade da vida parece enfatizar a tese de que, a despeito desses esforços, tudo se mantém na mesma. Um primeiro plano, que se fecha sobre rostos impassíveis localizados no centro, mostra a face da paralisia e do silêncio, como se estes sujeitos tivessem, afinal, perdido a voz e a capacidade de expressão. Eles parecem cientes de sua impotência para modificar o estado de coisas que os aflige a todos como sujeitos coletivos. Resta a cerveja com os amigos; o jogo do bicho; o rádio que ajuda a passar o tempo na quitanda; as cadeiras na calçada onde velhas senhoras descansam; a grade do portão da varanda estendendo a casa para a rua; a crença de que “Deus é amor” ou de que “Deus é fiel”, e o protesto de Nelson Lima (um nome sem dono, quem será Nelson Lima?) que assina a frase escrita na madeira que sustenta a parede da casa: “o buraco da gente”.

Essa gente age de forma microscópica, como os excluídos da história (PERROT, 1988) Este é um registro de uma existência pautada pela falta de esperanças e pela consciência da perda que toma conta de todos, como a dor que faz Dunga gritar diante da morte do seu Bianor e lamentar sua incapacidade de conquistar Wellington que chora o casamento desfeito. Isaac, novamente sozinho, olha pela janela uma cidade que mais uma vez amanhece enquanto Lígia recomeça sua luta sem forças para romper o círculo que a mantém presa. As imagens de Amarelo manga, a despeito da sua crueza e do quanto podem desagradar o receptor, trazem a marca do trabalho de Walter Carvalho, diretor de fotografia reconhecido pelo esmero com que compõe seus quadros. Assim, o feio torna-se belo quando pensado a partir da estruturação de seus enquadramentos, de sua iluminação, das opções cromáticas e do controle dos processos em busca de soluções estéticas que concorram, em termos de qualidade, com o que se vê. O belo disputa lugar com o feio. O filme, nas palavras de Cláudio Assis, “trata da miséria humana. Se não buscarmos uma elegância no movimento de câmera, no enquadramento, no desenho das cenas, fica um negócio feio e podre. Uma das minhas preocupações era fazer com que as coisas não ficassem restritas. A gente se preocupou

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ao máximo para haver prazer em se ver o filme. Isso interfere em todo o processo”.22 Difícil concordar com essa afirmação, quando o significado da palavra prazer traz a idéia de contentamento e de satisfação, ainda que não seja um contentamento qualquer e facilmente dissipável. A força da beleza formal dada pela fotografia do filme em nada reduz a dureza de suas imagens e a sensação de incômodo que elas estão, propositadamente, dispostas a provocar.

O lar Avenida A cidade do Recife amanhece silenciosa e lenta no pequeno quarto de Lígia. O ritmo de seu levantar indica um tempo arrastado sem nenhuma urgência, mas no seu rosto é possível identificar uma expressão próxima da intolerância ou do tédio. Esta é a primeira imagem de Amarelo manga. O lugar é pequeno, cabendo uma cama de casal apertada entre duas paredes, um armário, um abajur, uma penteadeira com um espelho oval, um ventilador, um pequeno tapete, um chinelo branco e engradados de cerveja, o que o transforma em um misto de dormitório e depósito. A cena é vista de cima, Lígia calça uma sandália, veste um vestido jeans sobre o corpo nu, passa batom, se perfuma e arruma

rapidamente o cabelo. Com esse ritmo compassado, vai conquistando o espaço composto por mais dois ambientes: uma cozinha e o salão do bar. A primeira coisa que faz ao chegar à cozinha é pôr um galho (provavelmente de arruda) na orelha. Esse ato indica que a “santa mal comida”, como a ela se refere a música cantada por Fred 04, acha que precisa de proteção para mais um dia de trabalho. Enquanto Lígia cruza o espaço interno, um bar vai se mostrando. A largura das paredes e o sistema de travas que seguram as portas falam de uma época em que as construções eram feitas para enfrentar a passagem do tempo, mantendo-se firmes em sua solidez. O chão gasto, o fogão velho e os móveis apontam para uma freguesia potencial. Um homem dorme diante da primeira porta que se abre; na segunda e na terceira, sacos de plástico cheios de água estão pendurados no alto, engenho usado para espantar os mosquitos do ambiente. Em cada parede cartazes escritos à mão informando preços e promoções concorrem com uma decoração quase barroca de um ambiente popular, um lugar de encontro, ainda que para Lígia não seja bem isto. Para ela, não há encontros e sua desesperança se traduz no automatismo de suas ações e na fala em off queixosa e exasperada. Gerenciar/

22 Disponível em . Acesso em: 20 jun.

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trabalhar e morar em um bar freqüentado por pessoas que parecem não ter muito mais o que fazer, está longe de ser tranqüilo. Espaço privado coletivo, o bar é um lugar de transição entre o trabalho e a casa. Antes de dormir ou ter com a família, se deixar ficar em um bar é viver um intervalo para desafogar as mágoas, encontrar os amigos e contar as novidades. Os espaços coletivos, segundo Manuel de Solà-Morales, são “a riqueza civil e arquitetônica, urbanística e morfológica de uma cidade (…) todos os lugares onde a vida coletiva se desenvolve, representa e recorda”. Esses espaços não são nem privado nem públicos, explica. “São espaços públicos absorvidos por usos particulares, ou espaços privados que adquiriram uma utilização coletiva” (In HUET, 2001, p. 104). Ainda cedo, Lígia é assediada por um freguês que passa a mão no seu corpo, ato que tem como resposta um banho de água fria e a sua expulsão do estabelecimento. O bar, como descreve Bourdieu, não é mais o lugar onde a piada “atinge sua plena realização” traduzida na “arte de levar tudo na brincadeira” (2007, p. 173). A familiaridade, que permite que as provocações e as injúrias não sejam levadas a sério, mas sejam tomadas como “maneiras de valorizar sob a aparência de denegrir”, no

Avenida não é tolerada, não nesse dia em que Lígia se mostra tão melancólica e cansada. No entanto, algo em sua aparência e em seu comportamento abre precedentes para essas ousadias. Rabecão, o motorista do carro do IML, assíduo freqüentador, a descreve como “A loba do Avenida, meu irmão. Essa mulher é muito doida. Parece puta, mas ninguém aqui comeu ela”. O corpo de Lígia é a marca da interdição para esses homens. E é esse corpo que ela exibe, quando é desafiada por Isaac que pergunta se os seus cabelos são todos dessa cor (amarelo) ou se ela só tem dinheiro para pintar os da cabeça. Em resposta, ela sobe na mesa, levanta a saia e deixa que ele tire as suas próprias conclusões. À paralisia de Isaac, surpreendido por essa reação, se contrapõe a excitação da clientela, que aplaude o espetáculo.23 Ao exibir seu corpo publicamente, Lígia está na verdade afirmando o seu poder. Se ela não tem domínio sobre os que freqüentam o local, o mesmo não pode ser dito sobre si mesma. O limite da liberdade permitida a esses sujeitos está no limite desse corpo, mas também nas possibilidades que o ambiente social empresta a ele, o que o qualifica para esse tipo de performance. A relação é de mão dupla, quando os processos que exercem essa influência são moldados “em

23 Essa é a única subjetiva do filme inteiro.

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formas complexas mais bem organizadas” e o corpo assume-se a partir de sua abertura para o mundo, como “uma ‘coisa’ relacional que é criada, delimitada, sustentada e em última análise dissolvida num fluxo espaçotemporal de múltiplos processos”, como o descreve David Harvey (2004, p. 137) O corpo sofre a influência do que lhe é externo, recebe as marcas do tempo como o que lhe constitui do mesmo modo que, num processo dialético, volta-se sobre o que o rodeia. O corpo morto entre o sapiens de Neandertal, dizia Edgar Morin, no Enigma do Homem (1979), já recebia um cuidado que apontava para a existência de uma consciência do tempo, materializada pelos ritos que passam a cercar o fato. “A cidade dos mortos antecede a cidade dos vivos”, afirma Lewis Mumford ( 2004, p. 13). Era para o lugar onde os mortos estavam enterrados que os vivos voltavam: cavernas transformadas em túmulos coletivos, identificados por montes de pedras, tornadas santuários em torno dos quais se localizaram os primeiros indícios da vida cívica. Voltar para visitar seus mortos tornou-se um ritual de apaziguamento desses sujeitos nômades. Ainda de acordo com o historiador norte-americano, as cavernas podem ser consideradas a primeira concepção desse homem pré-histórico do que seria um espaço arquitetônico.

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O corpo deixa de ter uma dimensão puramete objetiva, como um dado da natureza. A consciência objetiva reconhece a sua mortalidade enquanto a consciência subjetiva lhe confere um significado que vai além do fim, como algo que afeta a vida de modo trágico. Esta consciência subjetiva se traduz em uma força que rejeita a finitude e que encontra formas de vencê-la através do rito e da magia, explica Morin. Essas duas consciências, mais do que coexistentes, se unem “numa dupla consciência (…) e tudo se passa como se o homem fosse um simulador sincero com respeito a si próprio, um histérico segundo a antiga definição clínica, transformando em sintomas objetivos aquilo que provém de sua perturbação subjetiva” (MORIN, 1979, p. 104). O comportamento de Lígia se coloca claramente na fronteira entre a consciência objetiva desse corpo humano feminino, cujo sexo não passa de órgãos genitais, e a consciência subjetiva que o transforma em instrumento de poder, pondo em xeque o universo masculino diante do qual se exibe. Ela, ao mesmo tempo que encontra na objetividade uma espécie de garantia para a sua integridade física, sabe que o desafio se insere no campo do imaginário e no quanto de fantasia seu corpo pode provocar.

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O modo de agir de Lígia é um desafio ao poder masculino de sujeitá-la aos seus desejos. “Porque eu sou mulher, mas até macho tem medo de mim” é o que grita, afirmando sua independência. A agressividade, nos diz Todorov, se especifica segundo a posição do ser agredido em relação ao sujeito agressivo. A situação mais freqüentemente evocada implica uma certa semelhança entre agressor e agredido: somos rivais na obtenção de um mesmo objeto, de um mesmo favor, e agrido o outro para ser o primeiro (o único) a ocupar o lugar cobiçado. A agressão não passa aqui de um meio a serviço da busca do reconhecimento: é uma eliminação dos rivais. (1996, p. 62)

O homem, com a sua ousadia, está em busca do reconhecimento dos seus pares. Ele quer o privilégio de ter feito algo que ninguém mais conseguiu fazer. É o que demonstra buscando a cumplicidade de seu companheiro de mesa. A mulher agredida, por sua vez, briga pela manutenção da ordem por ela instituída, o que justifica a intensidade de sua reação. Lígia expressa uma raiva que se estende a todos os presentes, intimando-os a irem trabalhar.

com um discurso político sobre riqueza e culpa. Lígia, que apostava no jogo do bicho, demonstrando insatisfação e impaciência, refere-se a eles de forma pejorativa. “Vai começar o show (…) Eita, vidinha mais ou menos, visse!” Ela se sente mal em ter de servir gente desse tipo. Lígia é orgulhosa e auto-suficiente. E por isso ninguém nem nada a satisfaz. Porém, o tom de desqualificação anunciado por sua fala se faz presente também na do freguês que se dirige a ela com uma falsa intimidade: “Bonitinha, não vai trazer um negócio pro nosso desjejum não, é? Traz uma cerveja”. Esse desprezo mútuo torna a agressão e a reação dos envolvidos ainda mais complexas do que uma simples resposta a um insulto. O confronto é a manifestação de uma intolerância que parece se voltar para uma imagem refletida. A falta de respeito de um em relação ao outro traduz uma espécie de desvalorização dos papéis que eles exercem na sociedade. Ser a proprietária de um bar que é freqüentado por esse tipo de gente só a torna menos merecedora de consideração. Do mesmo modo, para eles, freqüentar tal lugar é também estar inserido num circuito de exceção, o que permite que as regras sejam desconsideradas, como se ali a norma fosse exatamente a ausência delas.

Esses homens são os mesmos que quando chegaram ao bar encheram o ambiente

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Há uma dependência de Lígia em relação à freguesia, mas uma desvalorização dessa condição, justificada por sua insatisfação em se saber igual a eles, o que lhe confere o direito de agredir ou de tratá-los com indiferença. Lígia deseja se livrar da realidade que vive, tentando convencer-se de que merece uma vida melhor. Ela faz isso se afirmando como uma mulher forte que não se intimida diante de homem nenhum. A freguesia, de maneira semelhante, expressa por ela também um sentimento de desprezo ao atribuir-lhe traços de vulgaridade, o que a torna exposta a avanços proibitivos. Há um jogo de poder entre estes iguais que recusam tal condição atribuindo a si mesmos qualificativos que os façam sentirem-se diferentes. O que se vê, no entanto, é uma aproximação, ou uma equivalência social que, à primeira vista, não justificaria esse estado de animosidade e intolerância. Neste caso, a manutenção ou afirmação das identidades se dá à custa da destruição da identidade do outro. O comportamento indica uma pretensão disseminada em busca de um poder que se manifesta em gestos que ofendem e ultrapassam os limites do convívio social. Esse reconhecimento obtido pela força, segundo Todorov (1996, p. 106), caracteriza o poder do soberano, daquele que não busca a admiração ou amor, mas a submissão do outro.

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O bar é palco e território de Lígia, o lugar onde as regras são definidas por ela. Ao sentir-se ameaçada, a agressividade é seu único instrumento de defesa e talvez a única forma que pessoas como ela têm para resolver seus conflitos e obter reconhecimento. Lígia se debate entre a necessidade de ser olhada e a qualidade do olhar que atrai e que não lhe satisfaz. Ela então reage esfregando, num primeiro plano obsceno e público, sua nudez na cara do homem que a desafia. O reconhecimento, diz Todorov, se dá em duas etapas: “o que pedimos aos outros é, em primeiro lugar, que reconheçam nossa existência (é o reconhecimento ao pé da letra) e, em segundo lugar, que confirmem nosso valor (denominemos essa parte do processo de confirmação)” (ibid., p. 94). E aqui está a explicação para o seu comportamento. Lígia se sente reconhecida, mas não do modo como deseja, ela quer alguém que a mereça. Sem encontrar ela conclui: “Só se ama errado”. Esse ambiente carregado de questionamentos, o Avenida, é um pedaço da metrópole para onde se dirigem tipos urbanos em busca de alento para suas vidas miseráveis, situação gerada pela pobreza material, na maioria das vezes, ou por um estado de inutilidade social que faz com que um homem velho fique por ali bebendo o dia inteiro. “O hedonismo que, no dia-a-dia, leva a tomar as raras satisfações – ‘os bons momentos’

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– do presente imediato é a única filosofia concebível para aqueles que, segundo se diz, não tendo futuro, só podem acalentar, de qualquer modo, escassas expectativas a seu respeito” (BOURDIEU, 2007, p. 173). Essa presença constante permite que se estabeleça entre esse sujeito e a dona do bar uma relação de confiança que ultrapassa as possibilidades dadas pela bebida. Os freqüentadores procuram o lugar não só por pertencerem a uma camada social que tira seu sustento da ilegalidade, como o traficante Isaac ou o vendedor de jogo do bicho, mas também por fazerem parte de um universo social cuja identificação se dá através de seus modos e desejos. Entretanto, não há entre eles qualquer laço de solidariedade. Discriminação e desrespeito emprestam ao lugar um caráter beligerante, como uma guerra que pode se materializar a qualquer momento, bastando para isso um comentário mal empregado ou uma gracinha qualquer, provocações constantes naquele ambiente, ações violentas que parecem funcionar como a única forma dessas pessoas ser fazerem ver umas pelas outras. Se o reconhecimento não vem de forma espontânea, será tomado pela força (TODOROV, 1996). Parece que sobre cada indivíduo há um estigma que só pode ser repudiado se cada um deles manifestar algum tipo de superioridade, mesmo que nela não acreditem. Uma superioridade entre

miseráveis, dada por um poder momentâneo que se instaura entre sujeitos que, todavia, não têm muito a perder e nem muito a ganhar.

Os párias somos nós que vivemos em ruínas… A primeira imagem do Texas Hotel são os pés de Dunga, que varre o salão de entrada, enquanto canta “amarelou, mangou de mim, não vai ficar de graça, dentro dessa caixa um corpo indigente, um corpo que não fala, um corpo que não sente”. A composição do músico pernambucano Otto pode ser tomada como descrição do lugar e dos seus moradores: uma caixa entregue aos efeitos do tempo, ruínas habitadas por pessoas que passam grande parte do dia sem fazer nada, corpos autistas, voltados para si mesmos, indiferentes ao que lhes rodeia. Extrapolando os limites do hotel, essa mesma descrição pode se estender para aqueles que ocupam a cidade e que aparecem sem nomeação, transfigurados pela força da natureza, vagabundos ou improvisadores de formas de sobrevivência. A metrópole é como o hotel, uma caixa ocupada por uma gente que não fala e, se sente, não revela. Esta foi a opção de representação encontrada por Cláudio Assis para ocupar a sua cidade do Recife: encontrar

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uma gente sem voz nas ruas e becos da cidade. Essa gente, se considerarmos a fala do diretor, representa o povo brasileiro. No entanto, essa presença adquire uma feição simplificada que pretende associá-lo às camadas empobrecidas (no campo do documental) e a modos de agir violentos (no campo do ficcional) Sobre essa violência inerente aos personagens, Assis afirma: “Todo mundo quer acabar com todo mundo. A burguesia quer acabar com os pobres. E os pobres, por sua vez, querem acabar com a burguesia. Então, eu não sou paternalista. E detesto quem vê o povo como coisa ‘folclórica.”24

Em seguida, um homem com aparência miserável (Flávio Migliaccio) se sobrepõe à cena e se apresenta como o verdadeiro povo em contraposição àquele que seria o representante legitimado pelos núcleos de representação política. Como discute Ismail Xavier, “fora da representação política o povo ‘verdadeiro’ só pode ser nomeado pela condição de miséria” (1993, p. 49). O mesmo ocorre em Amarelo manga, onde esse povo, assim nomeado por Assis, se mostra a partir de uma espécie de indigência, como o que sobra e não consegue fazer parte da organização social produtiva, restando, para ele, a informalidade e as sombras como espaço de atuação.

A presença do povo no cinema brasileiro é um assunto polêmico.25 Uma das imagens mais marcantes dessa presença está em Terra em transe, filme de 1968, dirigido por Glauber Rocha, quando Paulo Martins, personagem vivido por Jardel Filho, tapa a boca de Jerônimo, o líder sindical identificado como representante do povo. Ao fazer isto, Martins olha diretamente para a câmera e, desafiando quem o assiste, pergunta: “Está vendo quem é o povo? Um analfabeto, um imbecil, um despolitizado”.

O conceito de povo, por sua generalidade e amplo espectro, parece afinal dar conta de tudo e de nada ao mesmo tempo, na medida em que pode ser um conjunto de pessoas que falam a mesma língua, compartilham os mesmos costumes e tradições, ocupam o mesmo território ou, de outra forma, estão submetidas às mesmas leis, com direito a se expressar nas eleições etc. etc. O povo é o povo e dele emana o poder, mas a ele também se ignora ou a ele se direcionam medidas repressoras que visam por um fim ao que não se conhece e não se confia.

24 Disponível em . acesso em:

20 jun 2006. 25 Esse é um tema caro para cineastas, estudiosos e críticos do cinema brasileiro, estando muito fortemente presente nas discussões do cinema produzido na década de 1960. Algumas dessas referências são: XAVIER Ismail. Sertão Mar: Glauber Rocha e a estética da fome. São Paulo: Brasiliense, 1983; BERNARDET, JeanClaude. Cineastas e Imagens do Povo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003; XAVIER Ismail. Alegorias do subdesenvolvimento. São Paulo: Brasiliense, 1993. Cinema de Novo: um balanço crítico da retomada. ORICCHIO, Luiz Zanin. São Paulo: Estação Liberdade, 2003, entre outros. 200

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Mais que sujeito de um movimento histórico, mais que ator social, o “povo” designa no discurso ilustrado aquela generalidade que é a condição de possibilidade de uma verdadeira sociedade. (…) A racionalidade que inaugura o pensamento ilustrado se condensa inteira nesse circuito e na contradição que encobre: está contra a tirania em nome da vontade popular mas está contra o povo em nome da razão. (MARTÍN-BARBERO, 1997, p. 24)

sério de representação e legitimação do poder, quando era desse mesmo povo que este poder emanava.27 Então como desqualificar aquele que, mesmo sendo a fonte de tudo o que é obscuro é também quem legitima os governos civis? Era esse o dilema dos Ilustrados, pôr-se contra a tirania representando o desejo popular, mas também estar em posição de alerta diante do povo que deveria se render à ciência e ao conhecimento racional.

Ao discutir a afirmação e negação do povo como sujeito, Jesús Martín-Barbero (1997) considera que a origem do debate está localizada em dois grandes movimentos26 que tratam o povo a partir de dois campos distintos: o da política e o da cultura. Os Ilustrados, no primeiro campo, consideravam que no povo estava tudo o que deveria ser combatido – a superstição, a ignorância e a desordem – em nome da constituição de um mundo estruturado sobre a razão como valor universal. Esse banimento, no entanto, resvalava em um problema

No segundo campo estavam os Românticos, para quem o povo adquire uma outra dimensão a partir de três eixos principais. O primeiro deles relacionado com a sua essência coletiva que o torna capaz de, heroicamente, se contrapor às forças do mal; o segundo que o considera com a alma de uma nação e o terceiro, divergindo mais diretamente dos Ilustrados, se coloca em termos políticos e estéticos como uma “reação política contra a fé racionalista e o utilitarismo burguês que em nome do progresso têm convertido o presente em um caos, em uma sociedade desorganizada. (…) rebelião

26 Ambos aconteceram na segunda metade do século XVIII. 27 “A nova Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (de 1794) apresentou-se então como sendo

feita diretamente em nome do ‘povo francês’, e não de seus representantes (como a de 1789).) O artigo 25 proclamava, incisivamente: ‘A soberania reside no povo; ela é una e indivisível, imprescritível e inalienável’. E o artigo 7 do ‘Ato Constitucional’ esclarecia: ‘O povo soberano é a universalidade dos cidadãos franceses’. ‘Ele nomeia imediatamente seus deputados’ (art. 8); ‘delega a eleitores a escolha dos administradores,árbitros públicos, juízes criminais e de cassação’ (art. 9); e, sobretudo, ‘delibera sobre as leis’ (art. 10).)”. COMPARATO, Fábio Konder. Variações sobre o conceito de povo no regime democrático. Estudos Avançados, São Paulo, v. 11, n. 31, 1997. Disponível em: . Acesso em: 13 jan. 2008. 201

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estética,28 contra a arte real e o classicista princípio de autoridade, revalorizando o sentimento e a experiência do espontâneo como espaço de emergência e subjetividade”, diz Martín-Barbero, concluindo que, dessa forma, pela primeira vez na história, o que vem do povo passa a ser considerado cultura. (1997, p. 26 e 27)29 Em Amarelo manga o “povo” se tornou refugo humano, mais próximo do que Marx e Engels nomearem no Manifesto Comunista de lupem-proletariado, “produto passivo da putrefação das camadas mais baixas da velha sociedade”30 (p. 10). Seu sustento é retirado da natureza – eles comercializam frutas, verduras e caranguejos –, da indústria de bugigangas de materiais descartáveis – provavelmente de origem asiática como as que ocupam as bancas de camelôs de todo o país – e da venda de comida. Todos vivem em uma situação de precariedade, um tipo de instabilidade que se tornou estável, quando não mais existem possibilidades reais de que possam sair dessa condição, a não ser, talvez, para outra ainda mais difícil.

28 Itálicos do autor. 29 Ainda é desse debate

A fala de Isaac para descrever a apatia dos moradores do Texas Hotel, quando os encontra pela manhã apertados no sofá assistindo a um programa na TV – “O que mais pode se esperar da vida” –, pode estar se referindo a todos que compartilham dessa paralisia, incluindo os que não estão ali. Eles parecem aprisionados dentro de um mundo próprio e indecifrável, que não traz nenhum indício que explique por que vivem no mesmo lugar e na mesma situação índios e caboclos empobrecidos e sem perspectiva.

Como se não tivessem nem passado nem futuro, só um presente vivido de uma forma arranjada, eles se assemelham a párias sociais por quem ninguém se interessa. Se essa

sobre o povo que, de acordo com Martín-Barbero, surgem dois outros conceitos, o de classe social e o de massa. O primeiro define-se a partir dos papéis desempenhados dentro do ciclo de produção da mercadoria, onde, numa perspectiva marxista, o povo trabalhador vai se tornar o proletariado. A massa, por sua vez, é um termo que nomeia aqueles que trabalhavam na indústrias e que tomavam conta das ruas das metrópoles. Uma gente desconhecida, sem nome próprio, perigosa e que colocava em pauta o valor cobrado pelo progresso. O mesmo sujeito, o trabalhador, definido de modos completamente diferentes, um pelo reconhecimento, outro pelo desconhecimento. 30 Disponível em < http://www.vermelho.org.br/img/obras/manifesto.doc>. Acesso em: 19 nov. 2007. 202

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é a visão do povo trazida pelo filme, ela é estereotipada e preconceituosa. Assis na sua vontade de se distanciar do que ele denomina de uma visão folclórica do nordeste opta pelo contraponto radical, assumindo todas as excrescências da humanidade, atribuindoas aos seus personagens e aos moradores do Recife representados no filme. Um paria,31 na sociedade hindu, explica Zygmunt Bauman, é uma pessoa impura que por esta condição está fora do sistema de castas, o que o torna um intocável. Como na modernidade nada poderia ser mantido dessa forma, foi preciso uma nova ordem que os incluísse de alguma maneira. A saída encontrada teria sido deixar de ser pária e passar a arrivista, tornando-se, dessa forma, um sujeito nômade, “alguém já no lugar, mas não inteiramente do32 lugar, um aspirante a residente sem permissão de residência”. O arrivista, por não fazer parte de nenhum lugar e por não contar com a proteção de ninguém se torna a nova feição do pária. “De fato a quintessência da existência de um pária era não poder contar com proteção” (BAUMAN, 1998, p. 100). Os párias não participam, e, se insistem, ninguém os ouve. Os arrivistas ou os párias/ arrivistas se expressam, mas como vão embora podem ser esquecidos, levando a

inquietação que possam ter provocado. As pessoas que moram no hotel de seu Bianor vivem como párias, exilados dentro de seu próprio país. O momento do velório do dono do hotel é também um dos únicos de aproximação desses rostos que parecem ilhados, distantes da sua infância, de um lugar de origem, definitivamente perdidos, sem memória, sem nada que valha um relato. A situação se agrava ainda mais quando se considera que nem o compartilhamento da língua os aproxima. Nas duas únicas tentativas de expressão são, peremptoriamente, rechaçados por seus interlocutores. Uma brincadeira com Isaac é imediatamente respondida com um insulto; a intenção de aliviar o sofrimento de Dunga pela morte de seu Bianor é também repudiada como um peso a mais. O homem explica o que é necessário para o enterro, enumerando o que deve ser feito. Seu tom é paciente e solidário, contudo, Dunga não reconhece a intenção. Edward Said identifica quatro formas de uma pessoa estar fora de casa impedida de retornar. Seriam elas: por exílio, refúgio, expatriação ou por emigração. O exílio está relacionado com o banimento, portanto, com a expulsão. É o sujeito que foi posto para fora. O exilado, por essa condição, leva

31 Em Estabelecidos e Outsiders (2000), de Norbert Elias, é possível encontrar uma descrição do processo de

estigmatização ocorrida na Índia e de estruturação do sistema de castas. 32 Itálicos do autor.

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uma vida anômala e infeliz, estigmatizado como forasteiro. Os refugiados são uma criação do século passado, uma palavra que caracteriza pessoas que precisam de ajuda internacional em caráter de urgência. Os expatriados se mudam, por vontade própria, e podem compartilhar o mesmo sentimento do exilado, mas não são proibidos de retornar. Por último, os emigrados, que tecnicamente são aqueles que emigram. Estar fora de casa, nestes casos, é estar fora de seu país (SAID, 2003, p. 54). Estar fora de casa, mesmo estando dentro, sem poder voltar ao seu lugar de origem, não por ter sido banido por alguém, mas por ter vislumbrado uma vida melhor na cidade grande, muitas vezes a única possibilidade de fugir da fome e da morte é a condição de um outro sujeito: o retirante. Essa gente é expulsa pelas intempéries climáticas que tornam suas vidas impossíveis e, quase invariavelmente, são esmagados pela e na metrópole que os excluiu sem a menor dor ou piedade, sentimentos que eles, na verdade, não precisam. Em artigo publicado no jornal O Povo de Fortaleza em 3/12/2005, o pesquisador Gilmar de Carvalho chama atenção para o modo como os moradores das capitais (Fortaleza mais especificamente) receberam os retirantes das secas de 1932, 1942 e

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1958 e do período entre 1979 e 1983. Os sertanejos, diz, trouxeram seus valores, suas visões de mundo, suas expectativas e seus sonhos. Deixaram sítios, fazendas e pequenas cidades pela ilusão da metrópole e a maioria terminou favelizada, ainda mais excluída, e com muitos de seus valores (Inclusive éticos) esgarçados pelas tensões, pela violência (simbólica ou não) e pela perda de referenciais sem ter tempo nem condições para a elaboração de outros. Não tivemos sensibilidade para ouvi-los, não soubemos respeitar o que eles trouxeram na bagagem, imediatamente tratamos de substituir folguedos, relatos e festas pelas “bugingangas” que pressupomos índices civilizatórios.

A expressão de tristeza e vazio que os anônimos de Amarelo manga trazem no rosto talvez seja a feição desse processo de exclusão, dessa ausência de reconhecimento social que o poeta sertanejo Patativa do Assaré cantava tão tristemente em sua poesia lamento A triste partida (1986, p. 89-90): Meu Deus, meu Deus Mas nada de chuva Tá tudo sem jeito Lhe foge do peito O resto da fé Ai, ai, ai, ai

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Agora pensando Ele segue outra tria Chamando a famia Começa a dizer Meu Deus, meu Deus Eu vendo meu burro Meu jegue e o cavalo Nóis vamo a São Paulo Viver ou morrer (…) Chegaram em São Paulo Sem cobre quebrado E o pobre acanhado Percura um patrão Meu Deus, meu Deus Só vê cara estranha De estranha gente Tudo é diferente Do caro torrão Ai, ai, ai, ai Trabaia dois ano, Três ano e mais ano E sempre nos prano De um dia vortar Meu Deus, meu Deus Mas nunca ele pode Só vive devendo E assim vai sofrendo É sofrer sem parar

O quadro descrito por Patativa e musicado por Luiz Gonzaga é o retrato desse retirante, seja ele qual for, de onde venha ou para onde vá; uma categoria social engendrada na região Nordeste do Brasil para um sujeito que deixou a sua terra, os seus amigos e a sua miséria, mas que, sem poder se livrar de verdade de

tudo isso e sem conseguir conquistar outra realidade, carrega com ele, para a vida inteira, essas marcas que, se depender dos cosmopolitas moradores das grandes cidades e dos seus preconceitos, nunca o deixarão. Segundo Oliveira Jr. (In CARVALHO, 2003), quando a palavra retirante aparece pela primeira na imprensa durante a seca de 187733 já vinha carregada de uma carga semântica de conotação sinistra, um sentido que se faz presente no imaginário popular e na indústria cultural. De acordo com ele, Uma ambigüidade marca essencialmente a construção histórica e, sim, política da figura do retirante. Caráter que emana, é certo, do modo como o retirante se vê a si mesmo e é visto por aquele com quem se defronta na retirada, mas que não se perfaz só aí. Apropriados, reelaborado por acréscimos, supressões, reduções, ampliações, essa figura pode ser instrumentalizada para fins e por motivações os mais diversos: do econômico ao religioso, do político ao científico, do artístico ao humanitário. (…) O padrão repete-se ao infinito, impõe-se como presença teimosa, reitera-se, até que, absolutizado, seja tomado como ícone do que representa. (OLIVEIRA JR. in CARVALHO, 2003, p. 296)

33 O

autor considera que as raízes da palavra devam ser mais antigas do que esta, supondo que tenha surgido para nomear “levas esquálidas, por vezes violentas, vindas do sertão”, como uma referência dada pelos próprios envolvidos no encontro nem sempre pacífico (In CARVALHO, 2003, p.296). 205

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O que autoriza Isaac a se manifestar em relação a essas pessoas em tom depreciativo é algo a ser considerado, na medida em que ele também é um pária social, um sujeito marginal sem identidade e sem futuro tanto quanto elas. Estabelecidos e outsiders (2000), livro de Norbert Elias publicado pela primeira vez em 1965, traz a descrição das relações entre moradores de uma região situada na periferia de uma cidade industrial inglesa, permeadas por um estado de animosidade que não se explica por nenhum elemento facilmente identificável por um observador menos atento. As condições materiais são as mesmas: tipo de moradia, ocupação, renda, nível educacional. Todos são trabalhadores, vivendo a mesma situação, e nada, aparentemente, justificaria a discriminação de um grupo em relação ao outro. No entanto, ela existe e Elias encontra explicação para o preconceito em uma disputa de legitimidade imposta pelos moradores mais antigos,34 que atribuíam ao grupo cuja ocupação da área era mais recente um “valor humano inferior” (2000, p.24). O que explicava a discriminação era o fato de um grupo ter chegado à região antes do outro e um sentido de coesão entre estes moradores mais antigos, o que lhes conferia o poder de considerar os que não faziam parte do grupo original como outsiders, sujeitos inferiores a serem

mantidos no seu lugar, tanto geográfico quanto social. A fala de Isaac, referindo-se à imobilidade daqueles que no filme seriam representantes do “povo brasileiro”, traz o peso do julgamento em relação a essas pessoas que, dentro da narrativa, são apresentadas como símbolo de uma passividade mórbida a disfarçar suas intenções e segredos, como o seu Bianor, que guarda o dinheiro entre os genitais, ou dona Aurora, que se masturba com o inalador. Como alguém que se afirma por suas ações, ainda que marginais, proprietário do único automóvel do filme, podendo, dessa forma, transitar pela cidade com certa liberdade, o que lhe confere uma visão privilegiada dessa realidade, Isaac é esse sujeito que tem o poder – em bases extremamente frágeis, mas o que não é frágil em Amarelo manga? –, como aquele que observa, de expor a sua opinião sobre seus companheiros de moradia. Todos habitam ruínas, uma espécie de cortiço localizado no centro antigo da cidade do Recife, um lugar que se recusa a olhar para a frente, não por teimosia, mas por ter ainda alguma utilidade no presente, ou melhor, por ser necessário a esse presente. Onde estaria Isaac e as demais pessoas sem o Texas Hotel? Do que eles se escondem, o que eles recusam ou o que não conseguem mais ter de volta?

34 “O grupo estabelecido tende a atribuir ao conjunto do grupo outsider as características ‘ruins’ de sua

porção ‘pior’ – de sua minoria anômica. Em contraste, a auto-imagem do grupo estabelecido tende a se modelar em seu setor exemplar…” (ELIAS; SCOTSON, 2000, p. 23). 206

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O homem que tenta se esconder vive numa grande cidade. Num quarto de hotel, sem amigos, sem ninguém. Completamente anônimo (… ). Concentrando todos aqueles que foram arruinados, as vítimas de um sonho irrealizado, os perdidos, a cidade se converte numa selva, onde vale tudo e cada um está por si. (PEIXOTO, 1987, p. 37)

Em algum momento da história desses homens e dessas mulheres a possibilidade de escolha entre ir ou ficar, como esperança e situação transitória, se transformou em ficar como espera e situação fixa. A metrópole que um dia deve ter se apresentado como promessa de liberdade se tornou, no final de tudo, um cativeiro do qual eles não conseguem ou não querem mais se livrar. Toda ruína, segundo Simmel, em texto escrito em 1919, está envolta “en las sombras de la melancolia” (1988, p. 117) Melancolia que não está somente nas paredes desgastadas e nos corredores estreitos, mas também nas pessoas. Está no marasmo do final da tarde após a descoberta da morte de seu Bianor, quando o cotidiano do lugar toma forma sob o som da música tocada tristemente pelo morador sanfoneiro sentado em uma área descoberta do hotel, acompanhado por outro homem que tamborila levemente sobre a coxa. Em outro cômodo uma mulher

estende roupas em um varal, enquanto um velho lê Nietzsche sentado ao lado de uma cabra presa pelo pescoço. Nos banheiros, um homem folheia uma revista de nu feminino enquanto outro se equilibra sobre o vaso sanitário para, através da meia-parede, espionar a mulher que toma banho sem se saber observada. Há uma lentidão no testemunho da câmera e tudo, aparentemente, é um pouco do mesmo. Dona Aurora, que se recusa a acompanhar o velório de seu Bianor, chora o medo de ficar sozinha enquanto manipula fotos da juventude. Vestida de preto, com os cabelos arrumados, ela rememora o tempo em que vivia em uma casa cheia de gente. “Imaginem que minha casa já foi de festa... Oxe! Era gente, viu? Agora... Só essa falta de ar”. A sensação de abandono e de solidão se reforça com essa fala. Como diz ainda Simmel, o desassossego que as ruínas trazem está ligado ao que há de trágico no processo em que a natureza reafirma a sua força sobre o que foi produzido pelo homem. Ao fazer isso, a natureza exercita um “derecho al que, si cabe decirlo así, nunca renuncio”. O homem em ruína, no entanto, é “más triste que trágico y carece de esse sosiego metafísico que se adueña de la decadencia de la obra material como precedente de um profundo a priori” (1988,

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p. 121). É esse desassossego metafísico que sofre dona Aurora com seu choro interior e sua recusa em descer para ver o amigo morto. Para ela, segundo sua própria conclusão: “não sobrou nem fantasmas”, ausência que parece rondar o Texas Hotel. Junto com essas fotos antigas, a cidade em ruínas é o que sobrou do passado, marcas da devastação de um tempo histórico que por ser histórico não é eterno. Uma cidade alegórica, com o sentido de alegoria proposto por Walter Benjamin, “uma reabilitação da temporalidade e da historicidade em oposição ao ideal de eternidade que o símbolo encarna”, em explicação de JeanneMarie Gagnebin (1999, p. 30). Para chegar a esse conceito, Benjamin, em seu ensaio sobre a Origem do drama barroco alemão, escrito em 1925, dialoga com Goethe, Schopenhauer, Schiller e tantos outros filósofos e artistas. Em Friedrich Creuzer35 ele encontra a diferença entre símbolo e alegoria a partir da sua manifestação no tempo. O símbolo tem um caráter momentâneo enquanto a alegoria existe em progressão. Ao que Benjamim conclui que no símbolo, a transfiguração do declínio ocorre num instante, enquanto, na alegoria, essa mesma transfiguração ocorre em contínuo desenvolvimento, portanto, dentro da história. 35 Symbolik und Mythologie der alten Völker, 1810.

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A história em tudo o que nela desde o início é prematuro, sofrido e malogrado, se exprime num rosto – não, numa caveira. (…) essa figura, de todas a mais sujeita à natureza, exprime, não somente a existência humana em geral, mas, de modo altamente expressivo, e sob a forma de um enigma, a história biográfica de um indivíduo. Nisso consiste o cerne da visão alegórica: a exposição barroca, mundana, da história como história mundial do sofrimento, significativa apenas nos episódios de declínio. (1984, p. 188)

As ruínas são o declínio, a história se manifestando, avançando lenta, mas ininterruptamente sobre o homem e suas criações. Em Amarelo manga, homens, mulheres e cidade estão sob o efeito dessa passagem, eles são os fragmentos que compõem o grande patchwork da vida, que só aparentemente parece não mudar, sutil como é o efeito do tempo em sua ação quase imperceptível, movimento que, quando identificado, já se instalou. No homem, a consciência dessa transformação se dá pela razão que não consegue aceitar a ação da natureza como um direito que a ela assiste (SIMMEL, 1988). A relação que Benjamin estabelece entre natureza/caveira e história/morte se

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aproxima da que Simmel estabelece entre arquitetura e natureza, na medida em que ambas estão expostas aos efeitos do tempo. Para Simmel, a arquitetura, por algum tempo, consegue dominar a natureza que passivamente resiste ao espírito do homem. No entanto, esse equilíbrio se quebra quando o edifício desmorona. A natureza traz a força da passagem do tempo, e aqui ela é história, revelando-se em sua falsa passividade e gerando a ruína. Como ruína, nos diz Benjamin, “a história se fundiu sensorialmente com o cenário. Sob essa forma, a história não constitui um processo de vida eterna, mas de inevitável declínio. Com isso, a alegoria reconhece estar além do belo. As alegorias são no reino dos pensamentos o que são as ruínas no reino das coisas” (BENJAMIN, 1984, p. 200). Se levarmos em frente o diálogo, o pensamento alegórico, como as ruínas das coisas, é dominado pelos impulsos da natureza, esta, livre de regras, faz surgir uma nova forma que, da perspectiva da natureza, “está plena de sentido” (SIMMEL, 1988, p. 120).

que se imprime a imagem do fluxo histórico”, insiste Benjamin, para quem a obra de arte só se torna uma obra com conteúdo de verdade, se os conteúdos factuais, de caráter histórico, se transformarem em conteúdos de verdade. Isto provoca o declínio de uma obra e o seu renascimento, “no qual toda beleza efêmera desaparece, e a obra se afirma enquanto ruína” (1984, p. 204). Ainda com utilidade, o pardieiro do centro da cidade é um registro do efeito dessa história sobre um presente que se transforma a cada dia em uma caveira, feição descarnada da realidade exposta às intempéries e à força da natureza (SIMMEL, 1988) ou da história (BENJAMIN,1984), abandonada pelo humano entregue, ele também, ao poder da progressão do tempo, uma entrega, no entanto, que ainda traz um elemento de desequilíbrio traduzido numa tristeza que se expressa em rostos deformados pelo sofrimento silencioso.

Nas ruas da deriva anônima A marca da história ou o efeito da natureza se instaura no fragmento, na parede caída, na tintura descascada, na janela quebrada, detalhes que materializam o fluxo histórico do Texas Hotel e da cidade decadente. A natureza que há na ruína é “a natureza em

As ruas adquirem sentido através do modo como são apropriadas, seja como um espaço a ser transposto simplesmente, seja como um lugar estranho, perigoso ou, por vezes, acolhedor. Esses sentidos se constroem

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dentro da estrutura fílmica – narrativa e representação sonora e visual – num ritmo composto por associações montadas e desmontadas na medida do que essa estrutura propõe, exigindo do espectador uma postura que alie distração com atenção de modo a dar conta do que se projeta na tela. Essas imagens mostram, produzem realidade, são uma abertura para o que, pela força do hábito, se tornou invisível. “Elas nos permitem ir além daquilo que é imediatamente visível”, como afirma Sylvia Caiuby Novaes na introdução do livro Escritura da Imagem (2004) À melancolia de Lígia se contrapõe a engrenagem de um motor em primeiro plano. Dirigindo seu velho Mercedes amarelo, Isaac aparece como alguém que abre as portas da cidade para o espectador fílmico. Nos primeiros momentos da seqüência, nenhum prédio interrompe a linha do horizonte, e quando eles surgem, ainda assim, deixam que o céu se revele. Isaac é o sujeito que se desloca pela cidade, o único que tem carro. E com ele Recife se descortina, mostrando-se nessas primeiras imagens como uma cidade ampla e clara, com um sol que ofusca a visão e esquenta a paisagem. As favelas, as pontes que a atravessam, o rio, as construções em estilo colonial, os edifícios modernos, as pessoas e os veículos que transitam pelas ruas trazem

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uma cidade marcada por sua história e por seus problemas: as notícias difundidas pelo o rádio dão a dimensão desse cotidiano, chamando atenção para o “risco que é sair de casa e pegar o transporte coletivo”. O locutor assume um tom irônico para afirmar que “nem tudo é ruim na cidade do Recife. Pegar Kombi, minha senhora, por exemplo, é uma coisa muito fácil. Ser pego por uma Kombi também, mais fácil ainda”. O barulho das ruas, aos poucos, vai se tornando audível. O movimento é intenso, o começo de mais uma jornada de trabalho que encontra no espaço público seu lugar de realização. Atividades formais se misturam ao mercado informal e o som direto se insere de maneira discreta como se a realidade quisesse, tímida mas insistentemente, se sobrepor à fala do radialista inconveniente. Essas pessoas assumem o protagonismo da seqüência e, à medida que o tempo passa, o espaço se transforma a partir de suas ações. Elas se antecipam às solicitações do dia, preparando o que é necessário para que este corra bem, como todos os dias que já passaram e todos os que virão. Por alguns minutos o que se vê são portas de ferro sendo levantadas, vendedores pondo suas placas promocionais na calçada, ambulantes carregando grandes bichos de pelúcia, homens ensacando frutas ou

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cortando cana. A infra-estrutura para essas atividades se resume a uma adequação funcional, utilizando-se do mínimo necessário: homens trabalham sem camisa sentados no chão ou em pequenos bancos, uma bicicleta carrega inúmeras caixas de plásticos empilhadas umas sobre as outras, uma Kombi se transforma em lanchonete.

A placa que ocupa o espaço da calçada apoiada na parede da loja é pensada como algo que se atualiza de acordo com a necessidade dos proprietários do estabelecimento. Nela se reserva um espaço para a escrita em giz dos produtos em oferta. Letras pretas pintadas à mão sobre fundo branco anunciam o que se vende: parafusos e ferramentas. Em vermelho, sobre fundo laranja, a palavra promoção aparece com um desenho sombreado em uma trajetória sinuosa. Essa escrita e o uso das cores vermelho, preto, branco e amarelo/ laranja são os elementos mais comuns na gráfica urbana padronizada, segundo pesquisa feita pela secretaria de cultura do estado de São Paulo (OHTAKE, 1982). O suporte – em madeira ou fórmica – é também um dos mais utilizados nas regiões de comércio popular dos centros urbanos. Neste Recife, as paredes se transformam em base para adesivos e cartazes e num volume tal que estes parecem uma segunda pele, conferindo ao espaço uma característica suja e depredada, acentuando a idéia de degradação da vida urbana. A opção por essas imagens reforça o que pensa Maria Rita Khel sobre o longa-metragem de Cláudio Assis. Para ela, a violência fundamental nesse filme é irredutível a qualquer contemporização; ela está na pobreza dos cenários, na sujeira grudada em todas as paredes

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velhas, na pasmaceira da vida, na expressão vazia dos índios que comem bolachas diante da televisão na saleta imunda do Texas Hotel.36

A cidade se esconde por trás dessa sujeira que transforma o ambiente urbano em uma textura multicolorida e confusa. A utilização exacerbada de mensagens espalhadas pela cidade se faz presente mais fortemente em uma seqüência em particular, protagonizada por Kika e pelo diretor do filme, Cláudio Assis.37 Durante esses momentos de captura da rotina da metrópole, quando a câmera declara a sua independência em relação aos personagens, o ambiente parece ser atravessado por uma energia muda, com sujeitos calados mas atuantes, o que o qualifica como um espaço produtivo, construído em torno de um saber recíproco sobre a necessidade de sobrevivência e sobre a importância do trabalho como ferramenta capaz de suprila. Alguns desses cenários são transitórios, posto que são reconstruídos a cada manhã, e são também perenes, por sua cotidianidade. Esses são também os momentos em que o filme se abre para a experiência da deriva, quando a cidade é lida em planos na medida quase exata dos corpos, construindo um contexto espacial que se monta através de um exercício que relaciona esses corpos por tema 36

e atividade: a agitação dos trabalhadores, a hora do almoço, os moradores da favela, os ambulantes do meio da tarde e os camelôs do início da noite e, novamente, o reinício. O dia é demarcado dessa forma, por esses momentos de errância, como um exercício que busca apontar para aspectos que dão consistência à cidade. Muitas vezes parece haver uma espécie de fadiga, e o filme se torna, ele também, vagaroso, quase exausto. A música que acompanha essas cenas acentua nas imagens esse estado de letargia, como uma preguiçosa expectativa que, apesar de não se traduzir em uma espera imobilizada, se mostra como um fazer apático e rotineiro, mas, ainda assim, capaz de explosões inesperadas. O almoço na rua é um bom momento para perceber o estado de ânimo dessas pessoas anônimas. Essa seqüência é antecipada por um plano geral do rio, que permite vislumbrar ao fundo a cidade construída, tendo à frente poucos e pequenos barcos que se balançam na sua correnteza aparentemente calma. A esse plano, substitui um outro, fechado sobre uma cozinha, onde um homem e uma mulher trabalham. O prato-feito, servido em primeiríssimo plano, perde o foco ao entrar no quadro como objeto principal.

Disponível em: < http://www.mariaritakehl.psc.br/PDF/imagensdaviolencia.pdf>. Acesso em: 03 jul. 2006. 37 O estranho que sussurra ao seu ouvido. 212

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A montagem é semelhante à da seqüência do início da manhã, como um ensaio fotográfico sobre um mesmo tema ou subtema – o tema seria a metrópole – com a câmera parada e o assunto principal no centro da imagem. A comida, feita em panelas amassadas e envelhecidas pelo uso, é fartamente servida a pessoas que não deixam sobrar nenhuma migalha e que não estão nem um pouco interessadas em regras de etiqueta. Elas comem sozinhas e, quando acompanhadas, não conversam, concentradas que estão naquilo que fazem. Todos aparecem em primeiro plano, flagrados, sem maquiagem, verdadeiros. A maioria é formada por velhos, o que acentua, de certa forma, a impressão de abandono e de solidão que perpassa o ambiente. Se a seqüência do início do dia parecia anunciar um recomeço como um esforço de manter a vida, nesta, a fadiga parece estar se sobrepondo e almoçar é somente um intervalo para matar a fome. Ao fim deste subtema, que começou ainda na casa de Kika e Wellington, os hóspedes do Texas Hotel aparecem em um grande banquete onde comer e falar ao mesmo tempo tornou-se um hábito, um burburinho ruidoso38 que se contrapõe agressivamente ao silêncio do almoço público.

Em cada uma das situações, o comportamento dos que comem traz aspectos que os ligam a uma classe social específica, identificada aqui por seus hábitos de alimentação e de higiene. O alimentar-se é uma marca de distinção que não pode ser vista separada da relação do homem com o mundo, com as outras pessoas e com o próprio corpo, defende Bourdieu (2007). Wellington Canibal, enquanto ouve a pregação moralista da mulher que o acompanha à mesa, não deixa em momento algum de mexer no prato com o garfo e a faca e utilizar a colher para carregar o alimento. Ao contrário de Kika, ele come sem parar, num ritmo incessante que o faz suar e enxugar-se com o guardanapo de tecido que havia caído no chão. O homem das classes populares, diz Bourdieu (2007), em seu estudo sobre a distinção, deve “comer e comer bem”, repetindo o prato que é servido com abundância, e que deve ser consumido até o final. À mulher é destinada a função de preparar e servir, ocupando a mesa com todos os pratos postos de uma única vez. Isso evita que tenha que se levantar durante a refeição. Ela já trabalhou demais cozinhando e limpando a casa, coisa que a Kika faz todos os dias. A mulher também é a que come menos.

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O diálogo que ocorre no Texas Hotel, onde seu Bianor pergunta ao padre quais as capitais de diversos países, se antecipa à imagem e cobre o almoço popular das ruas do Recife. 213

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A atenção voltada para o comer em todos esses fragmentos de imagem – os da casa do casal ou os que acontecem na rua – põe em destaque corpos concentrados nessa ação, devoradores do que lhes oferece o prato. O refestelar-se diante do frango em grandes pedaços, do prato de macarrão, do pastel gorduroso e do arroz com feijão, mexido continuamente antes de ser mastigado traz a imagem de um banquete diário que prima pela quantidade do que se come e pela voracidade com que cada um se dedica a essa tarefa. Comer é suprir as energias, deixar de sentir fome. Aqui o que interessa é a substância e não a forma de apresentação do que está posto no prato ou na vitrine da lanchonete. Nos quiosques públicos, as mesas estão cobertas por plásticos azuis, dispostas sob toldos que as protegem contra o sol, como uma tentativa de possibilitar algum tipo de conforto aos comensais. Acompanhando a comida, pimenta, refresco e farinha, iguarias quase que imprescindíveis nas refeições nordestinas. Sobre essas imagens, um diálogo se projeta. Ninguém da cena faz parte do que ouvimos: um teste de conhecimento sobre as capitais de diversos países. Estamos agora diante da grande mesa do Texas Hotel, onde cerca de dez pessoas se agitam em torno de pratos que são constantemente deslocados em direção a quem os solicita. Há um quê de grotesco na

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agitação da cena, principalmente quando dona Aurora se engasga e começa a tossir na mesa, sendo socorrida pelo padre que aproveita para apalpar seus grandes seios. O banquete nos diz Bakhtin, é um dos momentos de realização do grotesco, quando o corpo se abre para o mundo e interage com ele. É no comer que essas particularidades se manifestam da maneira mais tangível e concreta: o corpo escapa às suas fronteiras, ele engole, devora, despedaça o mundo, fá-lo entrar dentro de si, enriquece-se e cresce às suas custas. (…) O homem degusta o mundo, sente o gosto do mundo, o introduz no seu corpo, faz dele uma parte de si. (BAKHTIN, 1993b, p. 245).

Esse corpo referido por Bakhtin é o corpo do sujeito que vive e produz a cultura popular, o sujeito que se posiciona alegremente diante do banquete. O comer, descrito pelo autor é alegre e triunfante. O homem engolia o mundo “em vez de ser engolido por ele; a fronteira entre o homem e o mundo apagavase num sentido que lhe era favorável (ibid., p. 245). Em hipótese alguma, durante um banquete, haveria lugar para tristeza e desânimo, uma imagem oposta a que se vê filme onde, apesar a voracidade com que comem, esse ato parece extremamente triste e desalentador. Talvez aqui seja possível afirmar, ainda dialogando com Bakhtin,

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que o mundo devorou o corpo obrigado a alimentar-se para manter-se vivo.

transformada em textura, um emaranhado de casas que vai até onde a vista alcança.

Depois do almoço, à tarde quando Dunga sai em direção à casa de Wellington, as ruas estão calmas. Homens e mulheres conversam na calçada. O ritmo do pedestre que cobre o território da metrópole configura uma cidade onde o espaço urbano ainda não foi descartado como espaço de convivência e de trocas sociais, mesmo que apáticas. Neste percurso, a imagem de Dunga é logo substituída por caranguejos espalhados em uma calçada. Os bichos estão vivos no chão, esperando para serem amarrados em cordas (as cordas de caranguejo) pelo vendedor. A área parece ser de preparação, bastidor de uma atividade que se espalha pela cidade. Enquanto alguns trabalham, outros fumam recostados nas paredes ou sentados no chão. Um painel da cidade se monta com atividades banais de um dia sem muito movimento: uma mulher sentada em um banquinho com um bebê de colo conversa com um sujeito sem camisa que chupa um caroço de manga. Ele acomoda-se sobre um engradado de refrigerante que lhe serve de banco. No quintal de uma casa, mulher vestindo short, camiseta e boné lava suas roupas, esfregandoas cuidadosamente dentro de uma bacia de sabão De lá, é possível avistar a paisagem

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Na favela não há saneamento, o mato cresce nas ruas, as calçadas são estreitas e ocupadas por restos. Um poço público aglutina pessoas, adultos e crianças que se revezam na coleta de água. Por todos os lados varais se espalham com roupas postas para secar. O lugar parece um beco cercado por casas de todos os lados. Todos estão do lado de fora, a maioria conversando. A pobreza se revela por essas atividades, pela ausência de qualquer tipo de infra-estrutura urbana e por uma arquitetura improvisada, compondo uma estrutura labiríntica, cheia de altos e baixos, onde, muitas vezes, só é possível o deslocamento a pé, e somente aos que conhecem o local.

parece estar lá, submersa nas águas tenebrosas da luta diária pela sobrevivência. Seguindo a linearidade da narrativa, a passagem de tempo entre a espera de Kika no campinho do Euclides e o flagrante ao marido traidor é preenchida por um passeio pela metrópole, o último de um dia intenso. Nesse momento, um dos pressupostos do realismo no cinema, o plano-seqüencia, quebra com o modo de representação até então utilizado nas imagens documentais – a montagem de fragmentos – e traz o tempo impresso respeitando a unidade de espaço, procedimento que, para Bazin, traz a “densidade espacial do real” (1991, p. 60)

Desse modo, as favelas tornam-se também enclaves (CALDEIRA, 2000) – como os condomínios fechados – em uma cidade grande, lugares isolados da dinâmica do espaço urbano posta, simbolicamente, fora de seus limites. Ao final desta seqüência, a cidade retorna através de imagens relacionadas com aquelas pelo fio da pobreza. De novo, uma imagem desfocada, de lixo e gente, mediada pelo deslocamento de Isaac.

Em um travelling lateral e compassado, a câmera traz o anoitecer da cidade. A imagem é escura e densa, mas também delicada, serena e pacificada.Nãohánenhumaurgência,nenhuma ansiedade. A música apazigua os ânimos, e a rua mais parece um lugar de encontro ou de uma espera sem medo, rotineira, onde todos os dias estranhos se esbarram, não mais tão estranhos, e mesmo sem nunca terem trocado uma palavra sabem um do outro, intuem suas histórias e, certamente, sentem falta quando um deles se ausenta.

Se à câmera é dado o direito da deriva, aos habitantes dessa cidade isto não é possível. As ruas da metrópole, ao se transformarem em imagens, parecem querer mostrar uma cidade profunda (ou afundada), e Recife, comumente chamada de “Veneza Brasileira”,

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A cidade irradiada Confortável no espaço interno do veículo, o ponto de vista de Isaac é a metáfora, por seu distanciamento, de um filme estruturado sobre um olhar também distanciado, espectador das ações dos seus personagens e de uma metrópole marginal que atribui aos pobres uma humanidade muito mais próxima do que há de natureza no homem do que este tem de cultura. Desse ponto de vista, é possível vislumbrar a aridez da miséria de barracos montados com sobras, pedaços e restos, monturos habitacionais e muito lixo na área. Os moradores são catadores, a julgar pelas carroças de coleta que completam o cenário de insalubridade onde crianças e cães parecem integrados. A contraluz dá a essa imagem uma aparência fantasmagórica como o que não tem peso, nem forma, como uma espécie de ilusão urbana, uma moldura desagradável posta em torno da metrópole que logo adquire materialidade através de uma imagem perfeitamente definida.

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Resultado: amante no hospital, ferida e a corna… Ninguém sabe, ninguém viu”.

O cenário moderno da cidade aparece como pano de fundo para uma arquitetura antiga, colonial, que emoldura o deslocamento, deixando ver ruas estreitas e curtas, e as edificações “históricas”, baixas e coloridas, com seus arcos e paredes grossas, registros de uma época em que se construía sem fundações, e as paredes acumulavam a função de sustentar e estruturar os edifícios. No meio, alguns terrenos transformados em estacionamentos têm seu muros camuflados por grafites, pichações e cartazes lambe-lambe, agregando cores à cidade, transformando-a, prioritariamente, em superfície comunicativa. Durante o trajeto um locutor de rádio localiza o tempo e o espaço: 16 de junho, no Recife. Após cumprimentar alguns ouvintes, começam as notícias matinais. “Dona de casa muito respeitável encontrou seu marido com amante, aí a coisa ficou preta. Ela, uma evangélica, partiu para cima da fulana e foi um tal de Deus nos acuda.

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Essa notícia, com características de fait divers, não teria nenhuma importância para a narrativa se não fosse exatamente o que iria acontecer (ou teria acontecido) com Kika. O O fait divers é uma categoria de notícia ou informação limitada a si mesma, algo sui generis, cujas explicações estão contidas nela própria. Sensacional, não exige esforço para ser entendida nem solicita qualquer contextualização. Seu valor de uso se esgota no ato do consumo que ocorre naturalmente e de forma imediata (BARTHES, 1982). Roland Barthes a descreve a partir de duas relações que lhe são imanentes e que, segundo ele, devem ser pensadas para que assim se apanhe seu “sentido humano”. A primeira delas é a de casualidade, a segunda a de coincidência. Na primeira, a relação entre causa e efeito tem que ser necessariamente aberrante e provocar espanto por não confirmar aquilo que se espera como causa. Quando isto não ocorre e a causa identificada é a esperada, transfere-se o foco do interesse para os sujeitos que vivem o drama, o dramatis personae, que reforçam os estereótipos. Em nota de rodapé, Barthes diz que “cada vez mais, nos fait divers estereotipados (o crime passional, por exemplo), a narrativa põe em relevo as circunstâncias aberrantes (‘Morta por uma gargalhada: seu marido estava atrás

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da porta; quando ele a ouviu, desceu ao porão e pegou seu revólver… ’)” (1982, p. 60). A relação de coincidência se baseia em dois princípios, explica Barthes: o da repetição e o da aproximação de “dois termos (dois conteúdos) qualitativamente distantes”. A repetição, neste caso, significa muito mais do que uma simples recorrência, podendo ser tomada como um signo, um aviso, algo que remete ao sobrenatural ou no mínimo ao que é curioso ou notável, quando o fato incide mais de uma vez sobre as mesmas pessoas. Encarar a repetição como um sinal do inexplicável é tirar a força do aleatório, quando este, por sua própria essência, depende do que é imprevisto. O segundo princípio, de aproximação, se estrutura como uma antítese por trazer acontecimentos que interrompem uma ordem lógica esperada. Barthes enumera algumas situações: mulher põe em fuga quatro gângsteres; ladrões soltam cão policial contra o guarda-noturno; assaltantes surpreendidos e assustados por outros assaltantes. Nesses acontecimentos, ele identifica aquilo que na tragédia clássica se denomina o cúmulo. O cúmulo do azar ou da sorte, possibilitando que se aproximem conteúdos distantes. A mulher e uma força que não lhe seria inerente pondo os bandidos para correr; o cão policial se voltando contra aquele que

deveria ajudar. “Assim como a repetição limita, de certa forma, a natureza anárquica – ou inocente – do aleatório, assim a sorte e o azar não são acasos neutros, chamam invencivelmente uma certa significação – e logo que um acaso significa, não é mais um acaso…”. (BARTHES, 1982, p. 65) O fait divers, diz Barthes, “é uma arte de massa: seu papel é, ao que parece, preservar no seio da sociedade contemporânea a ambigüidade do racional e do irracional, do inteligível e do insondável” (ibid., p. 67). O que o locutor da rádio narra assume características inesperadas ou inusitadas por pelo menos dois motivos. O primeiro é relativo aos envolvidos: estaria ele se referindo a Kika, a traída, Dayse, a amante, e a Wellington Canibal, o marido? O segundo motivo estaria relacionado com os próprios fatos, na medida da coincidência entre o que é relatado e o que ocorreu (ou ocorrerá) com o trio. Isto porque a notícia é dada antes do enfrentamento resultante do flagrante. A notícia destaca o fato de a mulher traída ser uma dona de casa evangélica e respeitável. Essa frase vem carregada de informações sobre o estado emocional de tal mulher, tomada por uma força histérica com poder para ultrapassar os limites da religião e da respeitabilidade. Vítima, ela não conseguiu se controlar, tendo reagido de forma

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inesperada. O grau de agressividade posto no flagrante adquire forma através da expressão “foi um Deus nos acuda”, como algo que não precisa ser descrito, na medida em que é a intensidade da ação que interessa. Com um fait divers, essa notícia se estrutura a partir da relação de casualidade, mas não em razão conta de uma causa inesperada em relação ao fato,39 mas por causa da construção dramática da narrativa radiofônica que se volta para a evangélica como protagonista de um drama, a dramatis personae. A despeito de ter sido a agressora, ela é a mulher traída, a humilhada, que reagiu tomada por uma dor insuportável. Ela é o centro das atenções, ainda mais por ser evangélica e muito respeitável. Ao ouvinte é solicitado um posicionamento de cumplicidade e compreensão em relação ao que ela fez. Muito mais que após o confronto, a mulher agora “corna” sumiu no mundo sem deixar rastros. A amante, denominada fulana, sem profissão, sem religião, sem nada que a caracterize além de sua posição no conflito, é facilmente descartada ferida no hospital. Para o marido, nenhuma palavra a não ser o fato de ser o objeto da pendenga. O programa traz essa notícia sem nomear os envolvidos, o que a torna genérica, uma referência a situações e pessoas também genéricas. Sobre o segundo motivo que torna

essa notícia inusitada – estar falando de algo que na narrativa só ocorreria na última parte do filme –, de novo parece servir para reforçar a idéia de que a repetição desses acontecimentos torna-os insignificantes e cotidianos. Nessa discussão, Barthes propõe que se distinga entre informação e notícia. À primeira corresponderia um contexto, e ela não se bastaria por si mesma; a segunda, ao contrário seria auto-suficiente e geral: Eis um assassinato: se é político, é uma informação, se não o é, é uma notícia. Por quê? Poder-se-ia acreditar que a diferença é aqui a do particular e do geral ou, mais exatamente, a do nomeado e do inominado: a notícia geral (…) procederia de uma classificação do inclassificável, seria o refugo desorganizado das notícias informes; sua essência seria privativa, só começaria a existir onde o mundo deixa de ser nomeado, submetido a um catálogo conhecido (política, economia, guerra, espetáculo, ciências etc.); numa só palavra, seria uma informação monstruosa, análoga a todos os fatos excepcionais ou insignificantes, em suma inomináveis… (1982, p. 50 e 51)

Esta é uma das primeiras seqüências de um filme cuja estrutura não se dá em flashback, o que permite pensar que o jogo proposto através deste radialista e pela fala de Lígia

39 Se se trata de Kika, ela, em outro momento, havia demonstrado a sua posição em relação à traição, ato

que considera imperdoável. 220

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não necessariamente tem a ver com o futuro, mas com o passado, ainda que a locução ocorra no começo do dia que será narrado pelo filme. A cada um dos personagens cabem pequenos dramas, apresentados como pérolas de um mundo que deixou a razão para o campo do discurso apenas. Sujeitos inseridos no universo das paixões fetichizantes e grosseiras, consideradas aqui como características das massas anônimas e inertes. Durante o percurso de Isaac, o locutor continua com as notícias do mundo cão, transformadas em um canto de sereia que perdeu seu poder de fascínio, tornadas pano de fundo, apagadas, desgastadas pelas semelhanças que guardam em relação a milhares de outros acontecimentos exaustivamente narrados em tons dramáticos. Esta fala, narrativa do cotidiano, ao acompanhar a entrada na cidade, a ela empresta elementos que não são visíveis na cena, mas que a estruturam tanto quanto o que se vê. Esses elementos ainda atualizam o receptor sobre o universo diegético do filme. O cineasta, testemunha privilegiada do mundo, parece se arvorar um poder profético sobre o destino desses sujeitos, condenandoos, através da fala do radialista, a uma vida miserável e cheia de reveses. No entanto, ao se desprender do carro e voltar-se para a

agitação do entorno, o que é dito se coloca em franca contradição com as imagens que mostram homens e mulheres montando pacificamente seu cenário de trabalho. Os ambientes são improvisados, as edificações envelhecidas ou malconservadas e as ruas se tornam zona de comércio e não somente de deslocamento para carros ou pedestres. Mas, ao contrário do que anuncia o radialista, nesta cena não há indícios de sofrimento ou de caos, e o trabalho, apesar de silencioso, é um elemento de humanização dos indivíduos descritos por essa fala.

Ao rés do chão As ruas desse Recife amarelo-manga também servem de panorama para alguns dos personagens da ação, pedestres em sua maioria. Kika Canibal é a primeira a cruzar esse espaço. Ela surge do lado esquerdo de uma rua estreita e arborizada, onde as portas das casas dão diretamente para as calçadas. O plano aberto permite que se veja um caminhão parado ao fundo e pessoas que se deslocam calmamente pelo lugar. Homens adultos conversam nas calçadas em um dia de sol. Kika não cumprimenta nenhuma dessas pessoas, ela anda olhando para baixo,

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como inibida pelo ambiente. Traja saia jeans, blusa de mangas e uma sandália baixa. Os cabelos presos, a contenção dos movimentos e uma bolsa de mão embaixo do braço esquerdo compõem a sua atitude recolhida. A pequena praça onde fica o ponto de ônibus está cheia de gente jovem, que também parece não ter o que fazer. Eles sentam em bancos de cimento, em torno de mesas também de cimento, equipamento urbano que certamente considera a falta de ocupação dos moradores do lugar. Bancos de madeira também servem para a leitura de um homem evangélico que, como Kika, parece destoar do lugar.

As calçadas ainda não foram tomadas pelos carros, pelo comércio ou pelos miseráveis. Malgrado essas pessoas estarem fora do mercado de produção capitalista, aqui nesse espaço há uma prática social e o espaço público é utilizado de forma amigável e acolhedora. Nenhum lugar poderia ser melhor do que esse para a exposição das diferenças, para o contato com o estranho e para o murmúrio. Em contraste com o recolhimento da crente, a paisagem surge exultante e cheia de vida, aquecida pelos trajes dos seus usuários. Bonés, bermudas coloridas, camisetas estampadas, floridas compõem uma imagem nem um pouco monocromática. Do outro lado da praça, um estabelecimento que parece ser um bar, se apresenta de modo não menos profuso. Ali, praticamente todos os espaços estão tomados por cartazes coloridos divulgando os produtos à venda, configurando uma situação facilmente definida como de poluição visual, considerada como “conseqüência e resultado de desconformidades de todas as situações e também o efeito da deterioração dos espaços da cidade pelo acúmulo exagerado de anúncios publicitários em determinados locais”, explicam Minami; Guimarães Jr. e Lopes em matéria da revista Vitruvius.40 A praça, mesmo limpa, é emoldurada por essas paredes, dando à área uma aparência suja e desleixada.

40

Disponível em . Acesso em: 20 ag. 2006. 222

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Apesar do isolamento de Kika, claramente fechada para qualquer tipo de contato, um homem41 que a observa do outro lado da rua, se aproxima e sussurra em seu ouvido: “O pudor é a forma mais inteligente de perversão”. O ruído ininteligível da cena, que até então imperava mesmo com o número elevado de pessoas, é interrompido somente nesse instante, quando a tranqüilidade da mulher é perturbada pelo adágio proferido pelo estranho. Kika, em close, demonstra inquietude, mas não reage, nem mesmo olha para o sujeito que lhe fala. Sua respiração torna-se ofegante, mas ela se mantém alheia ao que está ao seu redor, voltada para dentro de si, e, silenciosa, segue em frente e entra no ônibus. Ao retornar, Kika carrega sacolas de plástico de supermercado. Ela havia saído para fazer compras. A cidade e seus edifícios servem de pano de fundo para a paisagem empobrecida do local onde mora. À medida que sobe as escadas em direção a sua casa, as diferenças entre o lugar e o resto da metrópole parecem se afirmar ainda mais fortemente.

A miséria do espaço urbano se aprofunda no trajeto do padre até a sua igreja. O caminho é estreito, os barracos são grudados uns aos outros e feitos de materiais diversos: tijolos sem reboco, madeiras e destroços de todos os tipos, microfragmentos da metrópole transformada em texturas e formas sobrepostas em um arranjo organizado de modo a possibilitar aos seus moradores um mínimo de proteção. O padre reflete sobre a condição humana. Em um monólogo interior, afirma que o ser humano é estômago e sexo e, estando condenado a ser livre, o homem mata e se mata com medo de viver. Sua fala mistura existencialismo com niilismo, dialogando com o ambiente conforme se dá a montagem desses fragmentos discursivos que tem como meta destacar o estado de desespero ou desesperança de sujeitos que não sabem lidar com essa liberdade, por ele referida. No fim do caminho entre os barracos está a igreja abandonada com suas portas e janelas fechadas por tijolos. Em contraposição à desesperança do padre e à atitude de reserva da evangélica, Dunga aparece saltitante. Ele anda com vivacidade, cheio de energia, e o espaço, para ele, se mostra aberto, claro, próximo. Andar, diz Hillman, “me põe em contato com minha natureza animal. Sou como me movimento: como um

41 O diretor Cláudio Assis.

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gato ágil e furtivo; obstinado como um touro; altivo como uma cegonha; desengonçado como um pato; empertigado e saltitante como um coelhinho” (1993, p. 54). Em plano de conjunto frontal, Dunga surge de dentro de um misto de posto de gasolina e quitanda, onde placas anunciam a venda de gelo, carvão, cartão telefônico e coco gelado. Estivadores em um caminhão abastecem o quiosque com centenas de cocos. Ele atravessa uma rua quase sem movimento, com passos largos e velozes, cortando caminho por dentro de um boteco onde homens bebem cerveja. Um sujeito puxando um carrinho de coleta de lixo imprime à cidade um caráter provinciano. Esse caminhar o insere na cidade e o encontro se dá mais intimamente quando, num gesto

de vaidade, Dunga – de sandália plataforma vermelha, calça de malha, camiseta regata e bolsa a tiracolo – atrasa o passo diante de um espelho.

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De uma portinha se espalha pelas paredes desgastadas um suporte de metal que faz a vez de uma vitrine. Nela, bugigangas de todos os tipos: pinças, enfeites de cabelo, tiaras, relógios e, no meio de tudo, o espelho. Dentro da pequena loja parece não caber ninguém. A calçada torna-se sua extensão e também sala de estar. Uma mulher sentada na cadeira, outras encostadas nas paredes disputam lugar com os tais painéis, conferindo a esse espaço um uso íntimo que ultrapassa sua função originária de permitir e dar segurança ao fluxo de pedestres. Como atenta Hillman, a cidade precisa de lugares de encontro que “não é somente um encontro público, é encontrar-se em público. (…) Lugares onde os corpos possam se ver uns aos outros, encontrar-se, tocar-se (…)

Isso enfatiza a relação do corpo com a vida diária da cidade, levando nosso corpo físico para a cidade” (1993, p. 41). Desse modo, as ruas são apropriadas, como se a vida

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interior tivesse, de alguma maneira, deixado o espaço da casa, assumindo um estado de mobilidade e intencionalidade que não se traduz pela pressa, mas por uma espécie de lentidão ocupada pela conversa, pelo direito de ter tempo a perder.

A Cidade à (ou na?) deriva Os tons fortes que Amarelo manga utiliza para compor não só a arquitetura decadente e caótica da metrópole nordestina, mas também a representação de sua população, destacam um ambiente em ruínas, marcado pela acumulação de tempos que montam uma história na qual o presente parece insalubre e triste. No entanto, essa cidade está cheia de vida, ocupada por uma gente passional e ainda esperançosa, a despeito de seus movimentos serem quase inaudíveis e/ou invisíveis. No meio das ruínas, eles, teimosamente, comem, bebem, trabalham, conversam, amam e tramam em busca de seus sonhos e de suas fantasias. A metrópole é ocupada por trabalhadores e caminhantes que conquistam as ruas e os espaços do Recife em uma luta diária pela sobrevivência.

abandona a narrativa ficcional em busca da documental, sem nenhuma motivação aparente a não ser, talvez, o magnetismo de uma irremediável ou assombrosa condição política e social. O desespero mudo, os corpos que envelhecem decrépitos, os rostos feios e enrugados tornam-se a alegoria dessa condição e de seu caráter irrevogável e em progresso. A cidade se fecha sobre esses indivíduos, obrigados a encontrar, nessa realidade, saída para a miséria que os aprisiona. Como excluídos, eles ocupam o centro da metrópole porque este também foi excluído, ganhando o epíteto de histórico quando este adjetivo representa o que ficou para trás, congelado em uma importância que não existe mais. Segundo François Ascher, as concepções tayloristas e fordistas42 de especialização e divisão do trabalho foram transpostas para a cidade, que acabou por ser recortada segundo “funções elementares”, o que levou a sua divisão em regiões destinadas a atividades específicas.

A cidade, retalhada e colocada em cena, parece exercer uma espécie de poderosa atração, a ponto de desviar a atenção da câmera que

Procurou-se otimizar de maneira separada a produção industrial, as finanças, o comércio, a moradia e o lazer. A centralidade única foi detonada em razão do zoneamento e da centralidade múltipla: business district central, zonas industriais, centros comerciais, zonas de moradia etc. (In HUET, 2001, p. 63)

42 Taylorismo e fordismo são, grosso modo, concepção e prática de uma mesma idéia: produção máxima com

tempo e esforço mínimo, divisão e especialização do trabalho. 225

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A divisão da cidade de acordo com suas funções gera, da mesma forma, a divisão de sua população de acordo com sua formação, emprego na área produtiva e poder de consumo. Cada uma dessas faixas de zoneamento é ocupada por tipos específicos de pessoas, o que gera mais divisões. O centro, tendo perdido sua força de concentração de poder, acaba sendo ocupado e procurado pela população menos favorecida econômica e culturalmente – quando se pensa a cultura como um produto do mercado de produção simbólica ou material ou quando cultura assume a condição de marca de distinção a partir de uma concepção elitizada –, se transformando em um espaço de concentração de pobreza e segregação social, um lugar a ser evitado pelos mais favorecidos, mas um lugar também de exercício criativo em busca da manutenção da vida. O filme se perde (ou se encontra) nas ruelas e avenidas do Recife, entregue ao que elas oferecem, deixando-se conduzir em direção àquilo que o afeta, como estando à deriva, compondo um espaço próprio estruturado segundo a intensidade desses estímulos. Estabelece-se um regime visual à altura do homem, em uma escala onde o mais importante é o indivíduo em seu ambiente, posto ao rés do chão.

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A conformação do espaço exibe uma metrópole horizontal e quase subterrânea – como metáfora ao que se esconde – e expõe um desejo de ver a cidade de perto, porém mantendo uma distância simbólica, objetivamente construída por um aparato tecnológico que age como um detetive ao disfarçar a sua intenção investigativa. A câmera se põe dentro e fora ao mesmo tempo comportando-se de modo estrangeiro. Seu intuito é apreender o ambiente a partir do que este tem de menos prazeroso, ou de outro modo, dar visibilidade àquilo que não se procura ou não se consegue ver. Filmar, diz Comolli, “significa quebrar a carapaça que recobre as imagens, extrair a cobertura de rotina que banaliza os signos e os torna indiferentes” (1995, p. 155). Esse ato dá destaque, acrescenta à realidade e constrói uma cidade que deve à cidade real sua existência, contudo com ela não se confunde. Dentro da metrópole, como um caminhante, a câmera constrói um texto, marca os espaços, compõe um roteiro. Sente a topografia do lugar, suas variações, as mudanças no entorno. Nesses momentos de deriva, o ficcional aparece como algo que se interpõe, como o que chama ao dever de construir a narrativa proposta no roteiro. Dessa forma, o discurso fílmico se estrutura em idas e vindas entre a ficção e o documental.

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Certeau (1994) compara o caminhar à enunciação. O sujeito que fala se apropria da linguagem, toma as palavras necessárias, relaciona seus termos, constrói sonoridades. A caminhada afirma, lança suspeita, arrisca, transgride, respeita etc., as trajetórias que ‘fala’. Todas as modalidades entram aí em jogo, mudando a cada passo, e repartidas em proporções, e sucessões, e com intensidades que variam conforme os momentos, os percursos, os caminhantes. Indefinida diversidade dessas operações enunciadoras. Não seria portanto possível reduzi-las ao seu traçado gráfico. (ibid., p. 179)

O caminhante estrutura combinações entre seus passos, toma o espaço para si e, ao fazer isto, decide e escolhe, exclui e inclui. Ele compõe seu trajeto de forma regular, como se este fosse “o seu” trajeto, ou desvia em busca de atalhos que lhe tragam possibilidades distintas de construção dessa sua enunciação, tornando-o irregular, dinâmico, imprevisível. “A arte de ‘moldar’ frases tem como equivalente uma arte de moldar percursos” (ibid., p. 179). No chão, os corpos são os artífices dessa escritura, abrindo passagens, recuando, pequenos diante do concreto que os cerca, mas potentes ao construir, dia a dia, a sua

própria cidade. O mapa, como representação objetiva, não existe para esse sujeito que faz o seu próprio roteiro. Ele o conhece como conhece seu corpo e ambos se confundem em sua natureza e em sua subjetividade. A câmera desse Recife documental penetra na cidade, colocando-se parada diante do seu objeto de interesse, sem provocar nenhuma reação entre os filmados. Ela parece conhecer, sobremaneira, aquilo que deseja ver, o que permite associações não só de tema, mas também de ritmos. Segundo Amengual, todo filme é tomado por duas forças, a da presença e a da evocação. A presença quer mostrar, levar o real ao ponto mais próximo de suas aparências, de sua ‘objetividade’. Ela dará ao cinema testemunho, reflexo, documento, identificação, drama, espetáculo (…). E a evocação que realiza o mundo, o desconstrói, submete-o ao conceito ou à lembrança, e o organiza em discurso, sustentará o cinema de narrativa, poema, canto, panfleto, ensaio ou exposição didática. (1973, p.33).

Essas forças não são excludentes, elas se completam e se reforçam. A presença evoca, provoca o imaginário; a evocação afirma uma presença, se mostra. Em Amarelo manga compõem um filme só, dando sustentação

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uma à outra, trazendo o documental para a ficção e a ficção para o documental. No filme, a metrópole é tomada em seu deslocamento, nas ações que a qualificam, o que a aproxima do espaço liso em contraposição ao espaço estriado, segundo conceitos propostos por Félix Guattari e Gilles Deleuze em Mil platôs (1997). Em ambos existem pontos, linhas, superfícies e volumes. A diferença está na relação de subordinação. No estriado, as linhas e os trajetos estão subordinados ao ponto; no liso, este é subordinado àquelas. No espaço liso, falta o centro e a desterritorialização se encontra em potência. Patchwork e feltro são algumas das figuras escolhidas pelos autores para explicar o conceito. O feltro não implica distinção alguma entre os fios, nenhum entrecruzamento, mas apenas um emaranhado das fibras, obtidos por prensagem (…) São os micro-filamentos das fibras que se emaranham. Um tal conjunto de enredamento não é de modo algum homogêneo: contudo, ele é liso, e se opõe ponto por ponto ao espaço do tecido (é infinito de direito, aberto ou ilimitado em todas as direções; não tem direito nem avesso, nem centro; não estabelece fixos e móveis, mas antes distribui uma variação contínua). (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 182)

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O espaço estriado, por sua vez, indo de ponto a ponto, é organizado e finito. Ele indica direções e evita a perdição. O tecido é uma de suas figuras. Seus fios entrelaçados geram o ponto, sua base de sustentação: um se mantém fixo enquanto o outro passa por cima ou por baixo, conformando a trama. O liso e o estriado, no entanto, podem se transformar constantemente um no outro. O espaço liso pode ser estriado sempre que for traduzido em informações ordenadas e compreensíveis, como marcos de localização, direcionamento de fluxos, praças, parques, monumentos ou qualquer outro mecanismo e estratagema que substitui o espaço com prática. O estriado torna-se liso quando ocupado por acontecimentos que interrompem seu ordenamento, quando não importa o ponto, mas o que ocorre no trajeto. Nele não há medida, mas intensidades, algo que não pode ser exatamente quantificado. Estriado e liso são inversos, mas não fixos em sua estrutura. São espaços vivos e dinâmicos, resultantes de experiências diversas e em constante transformação. A cidade como projeto urbano, zoneamento social, é estriada em sua conformação propositiva, no entanto,

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libera espaços lisos, que já não são só os da organização mundial, mas os de um revide que combina o liso e o esburacado, voltando-se contra a cidade: imensas favelas móveis, temporárias, de nômades e trogloditas, restos de metal e de tecido, patchwork, que já nem sequer são afetados pelas estriagens do dinheiro, do trabalho ou da habitação. (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 188)

A câmera em Amarelo manga se coloca como uma operação de alisamento, estando, dessa maneira, entre os dois. O mapeamento (estriamento) da cidade se dá a partir do levantamento dos espaços a serem filmados, em função dos interesses narrativos; o alisamento ocorre quando esses lugares não são apresentados através de sistemas de identificação ou de localização, mas por meio das atividades que lhes dão vida. Apesar da proximidade em relação ao comportamento do caminhante, as diferenças são essenciais, na medida em que por mais que esteja dentro do ambiente, subjetiva e onipresente, a câmera sempre estará fora, traduzindo o acontecimento, selecionando e apresentando, finalmente, aquilo que foi capaz de capturar. Se o caminhante coloca-se dentro do ambiente, como um sujeito impregnado de experiência prática, construindo inconscientemente a

sua história, a imagem fílmica, ao contrário, se estrutura a partir de intenções estéticas e discursivas claras e previamente definidas. As externas do filme trazem personagens que se deslocam por ruas cujas marcas são provisórias, feitas pelos homens de acordo com as suas necessidades, a despeito de qualquer intenção planejada para o ambiente. Os barracos que circundam a passagem de Isaac em uma das primeiras seqüências do filme, as bancas de comércio informal e o prédio histórico decadente e depredado, transformado em abrigo para despossuídos, são alguns dos traços desse alisamento. Uma única nomeação a um ponto específico da cidade quando se faz referência ao campinho de Euclides, onde ocorre o encontro entre Wellington canibal, Dayse e Kika. As demais passagens dos personagens são experiências de percursos, entendidas como narrativas que contam sobre as linhas que ligam um ponto a outro. Canibal, ao se dirigir ao encontro com Dayse, atravessa becos escuros ocupados por desabrigados urbanos e feirantes noturnos. Ele fuma um cigarro e parece não ter pressa. Ao virar a esquina de uma lotérica “O caminho da Sorte Loterias”, encontra do seu lado direito uma igreja do Evangelho Quadrangular, onde o culto acontece. Na frente, uma parede branca traz o nome

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da igreja escrito com letras vermelhas, em caixa alta. Lâmpadas acesas em uma instalação mal feita deixa os fios à mostra. Logo abaixo, quatro mensagens fazendo referência a Jesus. A primeira começa com a forma do número um que sangra como fundo vermelho para a mensagem em letra branca que diz “Jesus Salva!”; o número dois com fundo amarelo traz “Jesus Batiza no E. Santo!”; o três, em azul afirma “Jesus cura!” e por último o número quatro cinza anuncia que “Jesus voltará”. Uma faixa amarela do lado esquerdo da parede diz: “Aguarde, vem aí o homem com a mala de Deus! O homem com a mala do diabo!” Essa é a recepção dada aos crentes e aos que passam pelo lugar. A câmera acompanha o trajeto devagar.

Dentro, pessoas dançam e cantam. Canibal dá a sua última tragada antes de entrar na igreja, onde se deixa envolver pelo rito e pelo ritmo, se pondo, primeiro, a bater palmas como os demais e depois a dançar girando em torno de si, como em transe, sensação

acentuada pela câmera que também gira aceleradamente, borrando a imagem dos fiéis. Meio entorpecido, ele se retira do lugar ainda mais lentamente, voltando a seu roteiro original.43 Ao se falar dos caminhantes que traçam e vivem seus próprios trajetos via Certeau, é quase forçoso pensar nesses espaços descritos por Guattari e Deleuze, e mais difícil ainda esquecer o caminhar do flâneur que moldava seus percursos na metrópole passeando com a sua tartaruga por uma Paris de 1839 (BENJAMIN, 2006). A cidade grande era um espetáculo cheio de maravilhosas invenções e carregado de mistérios a serem decifrados. Ele era um sujeito do espaço e do tempo necessário para a sua conquista – conquista não como superação, mas como experimentação. “A cidade é a realização do antigo sonho humano do labirinto. O flâneur, sem o saber, persegue esta realidade”, diz Walter Benjamin (2006, p. 474) Entrar nesse labirinto traz, como pressuposto básico, a capacidade de saber-se perdido, mas em condições de encontrar-se. O fio da multidão ou da mercadoria indicava a saída para o flâneur. Era esta a condição – junto com a disponibilidade de tempo – para esse sujeito colocar-se ébrio diante da metrópole, entregue aos seus efeitos e em estado de

43 Em mais um momento de deriva, a câmera deixa Canibal passar e se fixa diante de uma televisão ligada

na sala de uma casa. 230

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contemplação. A cidade era sentida em sua textura, em seus sons e ruídos; apalpada e vista da janela, ou de dentro da rua. O flâneur, fora do processo produtivo, livre dos compromissos impostos pelo trabalho, era um observador privilegiado. Metido na cidade, tinha consciência dos perigos que esta condição lhe trazia, sabendo manter-se atento e vigilante, aberto aos estímulos do ambiente, principalmente àqueles que lhe surgiam diante do olhar. A metrópole, a ele, se oferecia e esse encontro era espontâneo, carregado de intenções estéticas, num corpo-a-corpo apaixonado e privado,44 numa relação em que a cidade e a as pessoas adquiriam significados próprios, compostos a partir de sua sensibilidade. Ainda é Benjamin que afirma que a flânerie “se baseia, entre outras coisas, no pressuposto de que o fruto do ócio é mais precioso do que o do trabalho” (2006, p. 497). Essa possibilidade de estar sem ocupação e com tempo para o não fazer foi, em grande parte, sufocada pela velocidade que já no final do século XIX tomava conta dos moradores das metrópoles. Contemporaneamente potencializada pelos interesses capitalistas, essa urgência instaura uma situação em que o

alisamento do espaço ou a sua experimentação não são facilmente reconhecíveis, sobretudo quando inseridos num contexto onde o estar com pressa é um fato consumado e definidor do comportamento do sujeito metropolitano. “A aceleração do passo sugere não apenas a impossibilidade de olhar, de contemplar, mas supõe dificuldades de evocação, comprometendo as dinâmicas da memória, que necessitam, invariavelmente, de tempo para se desprender desse cotidiano apressado” (FREIRE, 1997, p. 47). Se a flânerie se mostrava por si mesma diferenciada, reconhecer no sujeito da metrópole atual um caminhar próprio, capaz de interromper a aceleração ou, de outra forma, como alguém que mantém o passo corrido, mas ainda assim consegue estabelecer relações significativas com esse espaço é um desafio – muito mais quando a motivação desses passos se relaciona com a manutenção da cadeia produtiva – para aqueles que, como Certeau, encontram nessa ação um sentido que supera o ir de um ponto a outro. O flâneur se diferenciava na multidão vagando pelas ruas, encantado com a mercadoria. Ele é “o observador do mercado. Seu saber está próximo da ciência

44 Benjamin,

referindo-se a observação de Engels sobre o isolamento dos indivíduos que fazem parte da multidão, afirma que o flâneur só aparentemente o rompe, “quando preenche o vazio, criado pelo seu próprio isolamento, com os interesses, que toma emprestados e inventa, de desconhecidos” (1994a, p. 54).). A flânerie era uma prática individual e privada, em que o sujeito se abria aos estímulos da metrópole a eles conferindo significados particulares e de acordo com os seus interesses. 231

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ocultada da conjuntura. Ele é o espião que o capitalismo envia ao reino do consumidor” (BENJAMIN, 2006, p. 471). É para as galerias e passagens,45 templo do consumo, que ele se dirige, “pensando em dar uma volta, mas na verdade, é para encontrar um comprador” (ibid., p. 61). Inspirados na postura desse sujeito, mas críticos em relação a essa sua ligação com o mercado,46 na França,47 entre as décadas de 1950 e 1960, um grupo de artistas e pensadores criou a Internacional Situacionista, cujo objetivo era se posicionar ativamente em relação à sociedade que, segundo GuyErnest Debord um dos principais ideólogos do movimento, havia se espetacularizado, levando os indivíduos a um estado de não participação em relação aos seus destinos e ao destino das cidades. Debord48 publicou em 1967 o livro A Sociedade do Espetáculo em que expõe através de aforismos seu posicionamento em relação ao modo como as imagens cada vez mais medeiam e esvaziam as relações sociais. No primeiro e no décimo sétimo aforismo, ele afirma que

45

Toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era vivido diretamente tornou-se representação. (1997, p. 13) A primeira fase da dominação da economia sobre a vida social acarretou, no modo de definir toda realização humana, uma evidente degradação do ser para o ter. A fase atual, em que a vida social está totalmente tomada pelos resultados acumulados da economia, leva a um deslizamento generalizado do ter para o parecer, do qual todo ‘ter’ efetivo deve extrair seu prestígio imediato e sua função última. (ibid., p. 18)

A Internacional Situacionista tomou como palco para os embates as grandes cidades, onde o espetáculo se materializa através das relações de produção e de consumo de todos os tipos e níveis. Nesse processo, elas se perdem como referência histórica e afetiva ao serem trocadas pelo espetáculo, cuja origem, de acordo com Debord, “é a perda da unidade do mundo (…) O espetáculo nada mais é

“A passagem é a apenas rua lasciva do comércio, só afeita a despertar os desejos. Mas como nessa rua os humores deixam de fluir, a mercadoria viceja em suas bordas entremeando relações fantásticas como um tecido ulcerado – O flâneur sabota o tráfego. Ele também não é comprador. É mercadoria” (BENJAMIN, 2006, p. 85).). 46 “Enquanto o flâneur continua preso ao encanto da multidão e das mercadorias, o poeta (Baudelaire) percebe o caráter ilusório desse universo (…) (BOLLE, 2000, p. 72). 47 Lugar da flânerie. 48 Debord é considerado um dos intelectuais mais ativos e influentes no movimento de Maio de 68 ocorrido em Paris. 232

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que a linguagem comum dessa separação (…) O espetáculo reúne o separado, mas o reúne como separado” (1997, p. 23). O grupo desenvolveu um método próprio de intervenção que tinha como ferramentas principais a imaginação e a fantasia que deveriam tomar de assalto o vazio existencial da cidade, ressignificandoa, despertando um passado mítico e simbólico aprisionado em suas construções e em seus monumentos. Cada quarteirão da cidade teria a possibilidade de despertar os mais diferentes sentimentos e paixões. (FREIRE, 1997, p. 68)

A flânerie, para eles, torna-se deriva que é o “modo de comportamento experimental ligado às condições da sociedade urbana: técnica de passagem rápida por ambiências variadas. Diz-se também, mais particularmente, para designar a duração de um exercício contínuo dessa experiência” (DEBORD in JACQUES, 2003, p. 65). Nesse conceito está posta a idéia de ação, de pôr-se em movimento com uma intenção que vai além do contemplar a cidade e se deixar envolver por seus estímulos. Os situacionistas defendiam um posicionamento político de intervenção urbana, partindo, de início, da idéia de que era preciso

mudar o mundo. Para isso propunham que fossem criadas situações, “isto é, ambiências coletivas, um conjunto de impressões determinando a qualidade do momento (…) A construção de situações começa após o desmoronamento moderno da noção de espetáculo. É fácil ver a que ponto está ligado à alienação do velho mundo o princípio característico do espetáculo: a não-participação”. (ibid., p. 57). O sujeito à deriva, diferente do flâneur, faz parte de um projeto coletivo, ele anda sem rumo com o objetivo de configurar, intencionalmente, significados aos espaços da cidade como uma ação consciente que leva à montagem de novos territórios e a um posicionamento político comprometido com uma cidade em transformação permanente. Para sustentar essa idéia, eles propuseram o conceito de urbanismo unitário definido “pelo emprego do conjunto das artes e técnicas, como meios de ação que convergem para uma composição integral do ambiente” (ibid., 2003, p. 54), considerando a cidade em sua dinamicidade, tomada pela ação humana em toda a sua diversidade, tanto afetiva quando de prática social. “O desenvolvimento espacial deve levar em conta as realidades afetivas que a cidade experimental vai determinar” (In JACQUES, 2003, p. 55).

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A metrópole, vista como esse ambiente vivo e dinâmico, é o objeto da psicogeografia, “uma geografia afetiva, subjetiva, que buscava cartografar as diferentes ambiências psíquicas provocadas basicamente pelas deambulações urbanas” (DEBORD in JACQUES, 2003, p. 23); “o estudo das leis exatas e dos efeitos precisos do meio geográfico, planejado conscientemente ou não que agem diretamente sobre o comportamento afetivo dos indivíduos”, explica (ibid., 2003, p. 39). São, portanto, três as estratégias propostas para se pensar e se viver a e na cidade: a psicogeografia, o urbanismo unitário e a deriva, todas estruturadas com base na experiência, nos afetos e nas emoções que essa ambiência urbana provoca no sujeito em deambulação ou em situação. Nada, nesse processo, é eterno e imutável, frisavam os situacionistas. No texto Teoria da deriva, Debord explica que essa prática está intrinsecamente relacionada com um comportamento lúdico-construtivo, devendo ser realizada por pessoas que abram mão dos objetivos da vida cotidiana, entregando-se “às solicitações do terreno e das pessoas que nele venham a encontrar” (In JACQUES, 2003, p. 87). O risco lhe é inerente, uma vez que em alguns momentos a região pode lhe causar imenso prazer e em outras, profunda dor. “O terreno

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passional objetivo onde se move a deriva deve ser definido de acordo com seu próprio determinismo e com suas relações com a morfologia social”, explica Debord (ibid., p. 87). Essa entrega, no entanto, deve ocorrer dentro dos princípios da psicogeografia como um método previamente definido. Sair sem rumo pela cidade, como uma ação prática, permite que se experimente a geografia tanto em seu aspecto topológico quanto humano. A brusca mudança de ambiência numa rua, numa distância de poucos metros; a divisão patente de uma cidade em zonas de climas psíquicos definidos; a linha de maior declive – sem relação com o desnível – que devem seguir os passeios a esmo; o aspecto atraente ou repulsivo de certos lugares; tudo isso parece deixado de lado. Pelo menos, nunca é percebido como dependente de causas que podem ser esclarecidas por uma análise mais profunda, e das quais se pode tirar partido. (DEBORD in JACQUES 2003, p. 41)

O resultado dessa prática pode ser o mapeamento do espaço sentido, composto de uma forma completamente diferente do que se entende por mapa, como uma representação racionalmente construída de um espaço. Este mapa é emocional, estruturado como uma narrativa sobre os lugares e as emoções experimentadas durante a deriva, como o percurso do caminhante

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proposto por Certeau e o mapa de memória de Walter Benjamin, que se confunde com o mapa da cidade de Berlim. A descrição da Rua Krumme, é uma dessas expressões: Os contos de fada falam às vezes de passagens e galerias que, em ambos os lados, estão pontilhadas de quiosques cheios de tentações e perigos. Quando menino, fui íntimo de um trajeto semelhante; chamava-se Rua Krumme. No ponto onde tinha sua curva fechada ficava seu recanto mais sombrio: a piscina com as paredes de tijolos vermelhos vitrificados. Repetidamente, durante a semana, a água era renovada. Era então afixado na entrada o cartaz ‘Interditada Provisoriamente’, eu saboreava aquela trégua. Olhava em torno as vitrines das lojas e alimentava o espírito com abundancia de penhores. O passeio público ficava congestionado por trapeiros com móveis e utensílios domésticos. Era uma região onde até o vestuário da estação tinha vez. No local onde a Rua Krumme tomava a direção oeste havia uma papelaria. Os olhares dos neófitos em sua vitrine começavam por examinar os cadernos baratos de Nick-Carter. Mas eu sabia que era na parte dos fundos onde devia buscar os escritos picantes. (…) Não longe da piscina ficava a biblioteca municipal. Apesar de suas tribunas de ferro, não aprecia nem alta nem fria demais. Farejava ali meu próprio

território. (…) O que se passava em mim podia ser levado para casa, para debaixo da lâmpada de meu quarto. Sim, a própria cama me fazia retornar muitas vezes àquela loja e à corrente humana que percorria a Rua Krumme… (1995, p. 135 e 136)

A Rua Krumme descrita por Benjamin é única, resultado de sua experiência, de sua história, de seus sonhos, medos e fantasias. Em nenhum momento ela é tomada como um lugar separado dessa experiência. Dia a dia, estação a estação, ela vai adquirindo significados diversos, construídos pelas sensações e situações vividas, como uma bricolagem do tempo e do espaço ocupado e modificado por quem afinal lhes dá vida. O lugar torna-se povoado, não só por essas pessoas, mas pelas lembranças que cada um carrega. Em Amarelo manga, a cidade é flagrada em sua vida cotidiana, apreendida através de “climas psíquicos definidos”, de acordo com o dizer dos situacionistas. Esses espaços se caracterizam emocionalmente, como estados de espírito que os tornam mais ou menos dinâmicos e intensos, mais ou menos deprimentes ou excitantes. Esse modo de apreender a cidade do Recife aproxima o filme de Assis dos mapas situacionistas, rompendo com as representações oficiais e trazendo uma cidade construída com base

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na relação entre os sujeitos (nem sempre os personagens) e o ambiente, num arranjo sentimental que altera o modo como a cidade se apropria e é apropriada por seus habitantes. “A deriva como um ‘discurso pedestre’ reinstala o valor de uso do espaço numa sociedade que privilegia o ‘valor de troca’” (FREIRE, 1997, p. 68).

(…) a mínima prospecção desmistificada mostra que nenhuma distinção, qualitativaouquantitativa,dasinfluências dos diversos cenários construídos numa cidade pode ser formulada a partir de uma época ou de um estilo arquitetônico, e menos ainda a partir das condições de hábitat. (DEBORD, in JACQUES, 2003, p. 41)

Esta deriva, que pode ocorrer envolvendo os personagens ou, de outro modo, voltarse para o sujeito anônimo, se apresenta não só no contexto da história contada, mas também no contexto do ambiente urbano que surge com vida própria, como se, de alguma forma, tivesse força e potência para definir os caminhos e os modos de fruição e de significação possíveis de serem experimentados pelo receptor a partir da mediação do filme e de sua proposta de interpretação da vida nessa cidade.

O projeto de deriva do filme de Assis está construído sobre uma narrativa agressiva de quem busca encontrar no universo cotidiano da grande cidade situações que comprovem a hipótese de que entre pobres e miseráveis as apostas pela vida escorregam, inevitavelmente, pela brutalidade engendrada exatamente por esse cotidiano. O cineasta se esforça em tornar visível essa condição, recorrendo a imagens documentais com poder comprobatório do que ele propõe como verdade. O que está presente em Amarelo Manga é exatamente esse pode “revelador” da imagem como desmistificadora de uma realidade nem pouco agradável, onde não existem vítimas nem culpados. Assis atribui a si o direito de trazer isto à tona, como um sujeito que convive com as mazelas humanas, estando, por isso, habilitado a acender as luzes do cinema sobre essa realidade.

O aspecto qualitativo da deriva está diretamente vinculado às relações de afeto que os sujeitos que a praticam conseguem estabelecer com a metrópole: afeto pensado como agrado ou desagrado, simpatia ou antipatia. Para os situacionistas, essa relação pode conferir aos espaços da metrópole estados de espírito que têm suas causas nas combinações que formam a ambiência, o homem fazendo parte dela.

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Amarelo manga não é uma única cor, é um filme em segredo, como a vida da maioria dos seres comuns postos ali à nossa frente,

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seres escondidos em uma pseudopassividade que não deixa brechas para se pensar em nada, além de um tempo morto de uma vida vazia e sem sentido. Mas qual nada. O sentido cada um constrói, talvez de modo absurdo, talvez de modo agressivo, talvez até sem justificativa nenhuma, porém há um sentido, ou pelo menos a busca por um. Essa agonia é exposta por Lígia, a filósofa do cotidiano e do cansaço, a protagonista da única imagem subjetiva. Amarelo manga é tomado por objetos e corpos sem concessões ao belo. Homens e mulheres decadentes vivem em espaços com cheiro de sujeira e de morte. A morte no matadouro para sustentar a vida de humanos carnívoros; a morte no hall do hotel – ou seria do pardieiro Texas Hotel? – redesenhando a vida de seus ocupantes; a morte de Lígia gritando inutilmente em busca de uma saída para sua própria vida; a morte de Guga que, fazendo o que faz, não consegue o que quer. A morte – ou seria vida? – de Kika, sentada em frente ao espelho de um salão de beleza por cujo serviço irá pagar cinco reais, buscando um novo corpo, uma nova cor. A morte de Wellington Canibal, chorando sem esperança a perda da segurança; a morte de um padre que relativiza tudo num exercício tranqüilizador, mas não apaziguador, sentado no chão de uma igreja em ruínas, sem fiéis, mas com cachorros.

Morte como metáfora de uma vida presente, não a vida gloriosa, não a vida iluminada, ou luminosa, mas uma vida escondida num marasmo aparente, num abjeto medo de morrer ou de ver todos morrendo e ficando, ficando, ficando numa solidão própria àqueles a quem só restam fotos antigas, testemunhas de um passado que nada mais é do que isso. Nada fenomenal resta à maioria dos seres humanos, é parece nos dizer o filme. Mas também não nos enganemos, por trás daquela aparente indiferença, daquele silêncio ensurdecedor, há um turbilhão de emoções e de ações represadas prestes a romper as comportas da humanidade e a se fazer ação num frenesi exacerbado, sem desculpas e sem perdão.

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Cidade Corpo

amarelo manga

o outro lado da rua o invaso

r

o homem que copiava

Capítulo 3

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Um filme clássico

Um Rio de Janeiro em estado de suspensão, silencioso, etéreo. Estado provocado pelas emoções da protagonista, mulher de 65 anos, moradora solitária de Copacabana pedaço de terra que é o seu lugar, onde passou toda a sua vida e onde, provavelmente, morrerá. Esse lugar é “princípio de sentido para aqueles que o habitam e princípio de inteligibilidade para quem o observa” (AUGÉ, 1994, p. 51). O Rio-Copacabana é representação imaginária da cidade cantada e lamentada em ocasiões diversas pelos que a conhecem e pelos que não a conhecem. Esta metrópole prescinde de sua totalidade, ela é o bairro, as pessoas que ocupam as suas praças, que preenchem as suas ruas, e seu recorte fílmico se monta sobre os caminhos de Regina (Fernanda Montenegro), que vive uma rotina quase vazia, não fosse o pretexto de ser uma pessoa que luta pela melhoria do lugar onde mora. A narrativa traz esse seu cotidiano dolorosamente vivido, dentro de uma estrutura clássica organizada sobre a premissa de que o que vemos é tal como ocorre. Essa é a essência do filme clássico, forjar uma situação em que personagens e ambientes estejam ali em sua verdade, completos, sem limites nem segredos. Os atores simulam desconhecer a situação de

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encenação. Assim, envolvem aqueles que os assistem, e a câmera, como o que inscreve a imagem, deixa de ter sua presença sentida. A força da protagonista está direcionada para o sentir-se viva e, de alguma maneira, participante. Esse é o seu projeto e também sua distração. Qualquer coisa que a toque a seduz e a envolve. Talvez por isso a narrativa se apresente de modo tão diluído, quase como uma brincadeira cuja suavidade traz a possibilidade da recusa teleológica de uma história que se dirige ao fim. O objetivo da protagonista é muito aberto, por isso os desvios, os esquecimentos, a insistência, a teimosia, desde que estes a mantenham viva, a ela, e ao filme. No fundo Regina sabe de sua fragilidade, mas ela se recusa a considerá-la, pelo menos publicamente. E o filme a segue nessa ilusão, também fragilizado, colocado sobre uma linha quebradiça passível de se romper a qualquer instante. Sem a força do gênero e sem ousadias estéticas de qualquer tipo, a narrativa quase se perde diante de tantas possibilidades de ação conseqüente que não são levadas à frente. Entreabertas, as portas indicam caminhos, histórias a serem vividas, mas o convite não é aceito, e como uma Xerazade que não consegue enredar as suas histórias, o filme se volta para a única coisa a lhe dar consistência: os medos da protagonista.

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Mas se estes medos são a sua pobreza, também são a sua maior riqueza se considerarmos o desafio de uma narrativa construída sobre algo tão pouco palpável, apesar de tão enraizado na vida concreta. A ausência de um inimigo físico, claramente identificado, confere à cidade a qualidade de espaço provocador a justificar a vida de Regina que procura no que está fora de sua casa a sua motivação. Buscando o que lhe surge diante da janela, ela consegue se inserir no mundo através do sentido da visão potencializado pelo uso do binóculo.

Sua atitude voyeurística encontra nessa busca sua justificativa e se estende para o filme que oscila entre assumir como seu o olhar da protagonista ou deste se diferenciar mantendo, porém, o foco sobre ela, como um observador privilegiado. Qualquer que seja a sua escolha, pela subjetividade ou pela objetividade, o cinema, por sua ubiqüidade no espaço e no tempo, “pode mostrar tudo, pode evocar e contar tudo” (AMENGUAL, 1973, p. 64).

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A opção pela estrutura clássica, como o que busca criar a ilusão de que o espectador “está em contato direto com o mundo representado, sem mediações”1 joga todo o seu peso sobre a dramaturgia. Os personagens, inseridos na vida, são o que interessa. Suas apreensões, suas oscilações e suas dúvidas, muitas delas esquecíveis, são passíveis de serem levadas em um único sopro, juiz de uma insignificante existência. Outros mais consistentes desviam os caminhos, não sem antes travarem uma luta árdua com a pouca importância dos fatos cotidianos que, afinal, fazem o dia-a-dia e dão sustentação à vida. Aqui a remissão ao caráter destrutivo descrito por Walter Benjamin é quase obrigatória: O caráter destrutivo não vê nada de duradouro. Mas eis precisamente por que vê caminhos por toda parte. Onde outros esbarram em muros ou montanhas, também aí ele vê um caminho. Já que o vê por toda parte, tem de desobstruí-lo também por toda parte. Nem sempre com brutalidade, às vezes com refinamento. Já que vê caminhos por toda parte, está sempre na encruzilhada. Nenhum momento é capaz de saber o que o próximo traz. O que existe ele converte em ruínas, não por causa das ruínas, mas por causa do caminho que passa através delas. (1995, p. 237)

Sabe-se que Regina tem uma família, que há um ex-marido, um filho e um neto, e também uma espécie de animosidade que a afasta do convívio com eles. O jornaleiro que trabalha em frente ao seu edifício é tratado com desdém e ironia. Os velhos são vistos como inúteis, uma gente à espera da morte. O perigo não é nada diante da necessidade de sentir-se viva, e ela arrisca a sua própria vida em missões noturnas pelas boates da cidade, chegando a afirmar seriamente que se o delegado lhe der um colete à prova de bala, sobe o morro em perseguição a traficantes. Com esse caráter destrutivo, ela se coloca desafiadora diante do que lhe é apresentado como impossibilidade. Desqualifica tudo o mais que possa significar o seu enquadramento dentro da categoria de velha aposentada e desocupada. Sua atitude de desprezo e ironia em relação aos desejos dos outros a requalifica livrando-a dos empecilhos da idade. A cada fracasso que lhe é imposto, ressurge insistindo em provar a sua potência e competência mesmo que isto signifique destruir ou agredir os que estão em seu entorno. Para esse sujeito, “destruir remoça, já que remove os vestígios de nossa própria idade”, diz Benjamin (1995, p. 236). O filme estreou em silêncio, longe do efeito espetacular de algumas produções nacionais, como Cidade de Deus (Fernando

1 XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. Rio de Janeiro, 1984, p. 32.

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Meirelles, 2002), Madame Satã (Karim Aïnouz, 2002) e Amarelo manga (Cláudio Assis, 2002). Poucas notas em revistas de cinema, quase nada nos jornais, apesar dos inúmeros prêmios em festivais nacionais e internacionais, entre eles o de melhor filme, melhor atriz para Fernanda Montenegro e melhor fotografia, no Festival do Audiovisual – Cine Pernambuco de 2004; melhor filme da Sessão Panorama, mostra paralela do 54º Festival Internacional de Cinema de Berlim de 2004, em escolha feita pelo público; e o prêmio da Associação dos Correspondentes de Imprensa Estrangeira no Brasil, 2005, como melhor filme, melhor atriz e melhor roteiro. O longa de Marcos Bernstein foi considerado pela revista Contracampo como programático, “não muito mais do que um objeto morno de observação. (…) Um cinema marcado pelo esmaecimento da linguagem, em que as seqüências parecem antes estar obedecendo ao roteiro do que se utilizando dele como potencializador de imagens”, foram as palavras do crítico Felipe Bragança.2 Em entrevista à Folha da Bahia, Bernstein destaca sua experiência como roteirista e o risco de fazer um filme de

“roteiro” no sentido ruim, ou seja, um filme que pareça defender o texto, a palavra. E sim gostaria de ter feito um filme em que o roteiro3 (…) é peça-chave, mas sempre contado cinematograficamente, mesmo em cenas em que a palavra, os diálogos sejam o foco principal. Tentei sempre dar um sabor nessas imagens, tentando pincelar coisas interessantes em cada enquadramento, mesmo quando eles pareçam simples à primeira vista. Se consegui? Não sei...

Para Bragança, ele não conseguiu e o filme se apresenta “por demais preocupado em ‘cumprir’ as artimanhas e manhas de seu roteiro”. O tom do texto é duro, sem concessões de nenhum tipo às opções estéticas e ou narrativas do diretor estreante. Mesmo as elogiáveis interpretações de Fernanda Montenegro e Raul Cortez aparecem perdidas, indecisas entre um naturalismo mais livre e um cinema de tipos (que parece demarcado pelas falas, algumas habilidosas, escritas por Bernstein). Raul Cortez, talvez por trabalhar com um personagem mais contido/duro, acaba por alcançar um tom de voz e fragilidade que (bem mais discretos do que a “figura” da personagem Regina) se segura melhor nessa flutuação incerta de estatutos.

2 Disponível em: . Acesso em: 25 nov. 2007. 3 O roteiro de O outro lado da rua foi escrito em parceria com Melanie Dimantas. Bernstein foi roteirista

de Terra estrangeira (1995), junto com Daniela Thomas e Walter Salles, Central do Brasil (1998) e mais recentemente de Zuzu Angel (2006). 244

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Segundo Inácio Araújo, crítico da Folha de São Paulo, diante de Do Outro Lado da Rua (sic), é justo o espectador perguntar, antes ainda de terminar a sessão, aonde queria ir o diretor-roteirista Marcos Bernstein: trata-se de um filme sobre o olhar e suas incertezas, como “Janela Indiscreta” ou “Blow Up”? Ou de um filme sobre nossa tendência a fazer juízos apressados? Ou ainda uma história delicada sobre encontro e amor numa idade, num momento, numa situação e numa idade improváveis (…)? É um pouco disso, um pouco de cada um. Menos, talvez, por falta de claro engajamento numa dessas linhas do que pela percepção de que com cada uma delas, isoladamente, não se iria muito longe.

Ainda para Araújo, o filme “escorrega” do policial para o romântico. Atitude que, segundo ele, transfere para os atores a sua força narrativa, o que o beneficiaria, mas não o suficiente, na medida em que o personagem masculino vivido por Raul Cortez, em seu último trabalho para o cinema, é “subexplorado”, servindo de “apoio para a mulher, que é quem se transforma”. No entanto, destaca, “Bernstein observa seus personagens com ternura, entrega-se aos atores com franqueza”.4

O mérito do filme, para Pedro Butcher, também da Folha de São Paulo, está exatamente no abandono da narrativa policial, como se delineia nas seqüências iniciais, em favor do potencial dramático dos protagonistas. Desde esse abandono, “o filme toma um rumo delicado e interessante ao seu modo, ganhando personalidade própria e mostrando como Regina se desmonta de sua amargura para a possibilidade de se apaixonar novamente”. Luiz Zanin, do jornal O Estado de São Paulo, compara Bernstein ao diretor britânico Mike Leigh: ambos, segundo ele, voltam sua atenção para o trabalho dos atores. O Outro Lado da Rua é de fato um bonito filme intimista, que aposta numa dramaturgia mais clássica e centrada no trabalho do ator. (…) Mas também é verdade que, ao optar por esse tipo de filme, que poderia ser enquadrado sob o rótulo de ‘cinema brasileiro de qualidade’, Berstein passa por cima de uma dramaturgia que poderia ser mais densa, talvez mais próxima das contradições tanto dos personagens quanto do seu ambiente.5

Assim, O outro lado da rua estréia na contramão de uma cinematografia que privilegia a ação, não necessariamente como gênero, mas como estrutura de montagem,

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Disponível em: . Acesso em: 25 nov. 2007. 5 Disponível em: . Acesso em: 25 nov. 2007. 245

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adotando um ritmo mais lento, com imagens que tendem a uma composição plástica minimalista e pouco rebuscada que desloca a atenção para o ator como elemento central da narrativa. A despeito de todas as críticas sobre a timidez do cineasta, o filme6 reforça a idéia de que na produção contemporânea do cinema nacional existe espaço para uma representação temporal mais comedida e pouco afeita ao ritmo imposto pela velocidade e aceleração como marcas da sociedade atual.

A história O outro lado da rua conta a história de Regina, uma mulher de classe média moradora de Copacabana que recusa a velhice e procura meios de torná-la menos entediante e inútil. À insônia, ela engana com o estranho hábito de pôr-se a espionar os apartamentos dos vizinhos. Seu binóculo passeia pelas janelas procurando algo que sinalize uma interrupção da rotina enfastiante.7 Enquanto nada acontece, ela busca nas ruas agitação para a sua vida e vai atrás dos malfeitores que atuam no seu bairro. Regina presta serviço voluntário para a polícia,

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ela é olheira, espiã, uma agente secreta de codinome Branca de Neve cuja missão é denunciar a ação de criminosos. Após a denúncia dos crimes, ela procura nos jornais notícias que confirmem o seu trabalho. Não basta estar presente durante o flagrante, é preciso o testemunho da imprensa. Assim ela consegue confirmar a importância do que faz e justificar a sua vida. Regina é irônica e por vezes indelicada, dona de um humor que tende ao sarcasmo, e de uma independência que a mantém solitária e sem amigos. Sua única companhia é a cachorra Betina, uma vira-lata silenciosa com quem passeia todas as manhãs pelo calçadão da praia. Em uma de suas incursões noturnas às janelas vizinhas, ela descobre um homem em atitude suspeita. Ele aplica uma injeção em uma mulher que depois é coberta com um lençol até a cabeça, como se faz com os mortos. O comportamento do sujeito estimula a curiosidade e a desconfiança de Regina. Sem hesitação ela liga para a polícia denunciando o crime que teria presenciado. Na manhã seguinte, Regina procura nos jornais notícias sobre o ocorrido. Comenta com o jornaleiro a ausência de tal notícia.

Segundo dados da Ancine, a bilheteria do filme ficou em torno de 92.165 espectadores. Disponível em:
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