SOBRE ROBÔS E INSETOS: A CRISE DO FANTÁSTICO EM KAREL ČAPEK E FRANZ KAFKA

September 19, 2017 | Author: Zaira Vera Sabala Van Der Vinne | Category: N/A
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SOBRE ROBÔS E INSETOS: A CRISE DO FANTÁSTICO EM KAREL ČAPEK E FRANZ KAFKA Alexander MEIRELES

Doutor em Literatura Comparara (UFRJ). Professor Adjunto do Departamento de Letras da Universidade Federal de Goiás (UFG). E-mail: [email protected]

Resumo Escrevendo ambos na Boêmia (atual República Tcheca) da virada do século, Karel Čapek e Franz Kafka exemplificaram respectivamente na peça teatral R.U.R.: Robôs Universais de Rossum (1920) e na novela A metamorfose (1915), a crise do gênero Fantástico que desde então tem atraído a atenção de diferentes críticos e escritores tais como, Castex, Caillois, Vax, Todorov, Jackson, Bessière, Furtados, Ceserani e Alazraki. Esta inquietação crítica, centrada nos debates do Fantástico enquanto gênero x modo narrativo, se formaliza neste artigo através das expressões literárias da Ficção Científica e do Realismo Mágico, dois gêneros aparentemente díspares entre si no sentido de suas relações com o hegemônico discurso racionalista vigente na Europa desde o Iluminismo. Todavia, como este trabalho pretende analisar como estudo de caso, a despeito das suas diferenças diegéticas, as obras de Čapek e de Kafka demonstram não apenas a tenuidade das fronteiras do modo fantástico, mas também apontam para o legado deixado pelo gênero fantástico no século vinte. Palavras-Chave: Fantástico; Ficção Científica; Realismo Mágico; Karel Čapek; Franz Kafka.

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Considerações sobre um gênero evanescente

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ste artigo toma como espaço e tempo definidos para estudo a Europa, e mais especificamente a Boêmia (atual República Tcheca) das duas primeiras décadas do século vinte. Dentro deste cenário, duas formas literárias emergentes decorrentes do zeitgeist finissecular – o Realismo Mágico e a Ficção Científica – foram utilizadas respectivamente pelos tchecos Franz Kafka e Karel Čapek para tecer suas considerações sobre a situação do individuo na modernidade e, indiretamente, expressarem a crise do gênero fantástico no século vinte. Visando analisar este quadro, o presente trabalho tem como objetivo tomar a novela A metamorfose (1915), de Kafka e a peça teatral R.U.R.: Robôs Universais de Rossum (1920), de Čapek como estudos de caso da tenuidade das fronteiras das vertentes do modo fantástico e do legado do gênero fantástico no século vinte. A profusão de estudos críticos a respeito do que comumente se chama de “Literatura Fantástica”, principalmente a partir da segunda metade do século vinte, demonstra não apenas o interesse em um gênero de forte penetração e manifestação na própria cultura de massa da sociedade contemporânea, mas principalmente expõe a complexidade do debate ao redor de sua existência enquanto gênero literário autônomo ou modo narrativo (TODOROV, 1992; BESSIÈRE, 1974; CESERANI, 2006) e sua sobrevivência e manifestações nos dias de hoje (ALAZRAKI, 2001; ROAS, 2001). Sobre o primeiro ponto, a despeito de alguns estudiosos como Rodrigues (1988), remontarem seu início a Antiguidade com A Odisséia, de Homero ou as narrativas das Mil e Uma Noites, consagrou-se dizer que o período compreendido para a ascensão e desenvolvimento do Fantástico como gênero se situa nas últimas décadas do século dezoito até fins do século dezenove, tendo seu ponto de partida na tradição romanesca gótica alemã e inglesa surgida do apagar das luzes do Iluminismo e fomentada pela contestação e rejeição ao racionalismo característico do período em favor da irrupção da imaginação (SILVA, 2005, p. 183). Não à toa, convencionou-se entre a maioria dos estudiosos do gênero que o Fantástico se inicia com O Diabo Enamorado (1772), do francês de Jacques Cazotte, mostrando a presença da recorrente figura medievalesca do diabo. Como salienta Paes (1985):

Malgrado se tenha querido recuar-lhe as origens aos monstros, feiticeiros, vampiros e almas do outro mundo da tradição folclórica da Europa, ou até mesmo aos prodígios mitológicos da Antigüidade oriental e clássica, o certo é que teve um início histórico definido: a França do último quartel do século XVIII, quando aparece Le Diable Amoureux, romance de Jacques Cazotte que iria influenciar de perto, entre outros, o alemão E. T. A. Hoffmann (1776-1822), mestre supremo do conto fantástico durante o Romantismo (PAES, 1985, p.189).

A ficção fantástica vai se colocar nesse contexto na forma de uma resposta ao discurso racionalista hegemônico do século dezoito, formalizada na utilização de narrativas fragmentadas, espaços fechados e desoladores e torturas 620

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físicas e mentais (BOTTING, 1996, p. 2). O propósito desta ficção era opor o racional e o sobrenatural, de forma a fazer o insólito irromper no mundo cotidiano e assim provocar a inquietação no personagem. Destaca-se neste ponto também o fato de que, dadas suas raízes góticas, uma significativa parte dos críticos e escritores aponte a capacidade própria do gênero fantástico de gerar algum medo ou horror. Entre os teóricos que salientam a relevância do medo ou do horror na constituição do fantástico estão Lovecraft (1987), Caillois (1965) e mais recentemente Roas (2001). No entanto, mais importante do que o medo, é a hesitação o elemento definidor do Fantástico mais comumente apontado pelos estudiosos e assim colocado por Todorov (1992) em sua bem conhecida definição: “O fantástico é a hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis naturais, face a um acontecimento aparentemente sobrenatural” (TODOROV, 1992, p. 31). Plasmando literariamente as ansiedades culturais do ambiente de virada do século, o fantástico tomaria novos rumos no início do século dezenove na Alemanha romântica de Hoffmann. Como destaca Ceserani: Com ele, o inexplicável se esconde na cotidianidade mais simples e banal, realista e burguesa; os procedimentos da hesitação se tornam técnica narrativa; os pontos de vista se problematizam, /.../ temas como aquele do duplo, da loucura, da vida após a morte se interiorizam e geram projeções fantasmáticas (CESERANI, 2006, p. 90-91).

Em contos como “As aventuras da noite de São Silvestre” (1815), “A casa deserta” (1817) e principalmente em “O homem de areia” (1817), Hoffmann promoveu inovações na narrativa fantástica ao estabelecer jogos entre aparência e realidade, a alternância nas explicações e hesitações na trama e o reforço da importância e dos perigos dos atos falhos e dos distúrbios mentais. As estratégias do escritor alemão viriam a exercer profunda influência na França de Théophile Gautier e na América de Edgar Allan Poe, pavimentando assim o caminho para a chegada do fantástico na segunda metade do século dezenove quando as pesquisas sobre a sexualidade e o inconsciente ganham corpo juntamente com o desencanto gerado pelos rumos da Revolução Industrial representado pelas ideias positivistas em relação ao homem e a Ciência. A segunda metade do século dezenove testemunhou o período áureo do fantástico. Esta afirmação se sustenta pelo enriquecimento do gênero advindo do diálogo com diferentes sistemas literários do período como o Realismo, o Naturalismo, o Simbolismo e o Esteticismo de fim de século, fomentador do Decadentismo (CESERANI, 2006, p. 105). Como reforça Todorov (1992): “a literatura fantástica nada mais é do que a má consciência deste século XIX positivista” (TODOROV, 1992, p. 176). Escritores como Théophile Gautier, Guy de Maupassant, Villiers de l’Isle-Adam e Henry James exploraram diferentes estratégias do fantástico ao mesmo tempo em que outros escritores como Charles Dickens, H. G. Wells e Robert Louis Stevenson flertaram com o gênero. R. Let. & Let. Uberlândia-MG v.28 n.2 p.619-637 jul.|dez. 2012

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Na entrada do século vinte, todavia, o fantástico se viu a tal ponto problematizado e ameaçado em decorrência de outros movimentos artísticos e da própria conjuntura política e cultural do novo século que Todorov decretou sua iminente morte: “A literatura fantástica, ela mesma, que subverteu ao longo de todas as suas páginas, as categorizações linguísticas, recebeu com isto um golpe fatal; mas desta morte, deste suicídio nasceu uma nova literatura” (TODOROV, 1992, p. 177). Mas, então qual seria a forma da nova literatura do sobrenatural mencionada pelo crítico estruturalista? Ele mesmo fornece uma possível resposta: A metamorfose, de Franz Kafka (TODOROV, 1992, p. 177), uma obra que posteriormente seria considerada pela crítica literária como um dos primeiros trabalhos literários representativos do que viria a ser conhecido como Realismo Mágico. Neste mesmo ponto das considerações de Todorov sobre a novela de Kafka chamamos a atenção também para uma observação do crítico frequentemente ignorada pelos estudiosos do fantástico: o fato de que o mesmo processo de naturalização do fantástico presente na novela de Kafka também se faz presente na Ficção Científica: “É preciso fazer observar que os melhores textos de science-fiction se organizam de maneira análoga” (TODOROV, 1992, p. 180). Esta observação do crítico búlgaro no fechamento de Introdução à literatura fantástica sobre estas duas expressões literárias emergentes no início do século vinte, nos permite que se faça aqui uma ousada proposta: a de que o Realismo Mágico e a Ficção Científica se colocaram como herdeiras do gênero fantástico enquanto narrativas capazes de promover, de maneiras diferentes, a inquietação do individuo diante da realidade que o cerca. No entanto, para um melhor entendimento desta proposta faz-se necessário um olhar mais detalhado em cada um destes gêneros romanescos. Comecemos então pela Ficção Científica1, visto sua origem estar vinculada à mesma tradição gótica de onde se originaria o Fantástico. A Ficção Científica além dos monstros e das naves espaciais

O primeiro passo ao se discutir sobre a ficção científica é buscar uma delimitação do conceito, visto ser ela uma forma literária tão complexa no que se refere a suas interseções com outras literaturas e a sua abrangência de temas, o que acaba a levar parte da crítica literária a incorrer em situações como a de Roas (2001), que exclui a FC dos domínios do fantástico por considerá-la pautada pela apresentação de,

fatos “impossíveis” em nosso mundo. Mas “impossível” não quer dizer “sobrenatural”, tendo em conta, também, que estes eventos tem uma explicação racional, baseada em futuros avanços científicos ou tecnológicos de origem humana ou extraterrestre (ROAS, 2001, p. 8).2



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O termo “Ficção Científica” pode aparecer ao longo deste trabalho representado pelas letras “FC”. hechos “imposibles” en nuestro mundo. Pero “imposible” no quiere decir “sobrenatural”, teniendo em cuenta, además, que dichos sucesos tienen uma explicación racional, basada em futuros avances científicos o tecnológicos, ya sena de origen humano o extraterrestre.

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Cabe destacar em defesa de Roas que, como veremos mais adiante, essa visão limitada da ficção científica, mas popularmente consagrada, se baseia na representação do gênero no cinema norte-americano e em outros veículos da cultura de massa, que, por sua vez, se alicerça na vertente norte-americana praticada na primeira metade do século vinte, caracterizada por, dentre outras coisas, a presença de robôs, batalhas interplanetárias, armas de raios e mutantes (SILVA, 2008, p. 33). Retomando a questão da conceituação, é importante lembrar que definir, como o nome indica, é estabelecer um fim, o que implica em se jogar luzes sobre algum aspecto, deixando outros na sombra. Essa questão é particularmente percebida nas tentativas de se substituir o termo “Ficção Científica” por outros que, à primeira vista, permitiriam uma conceituação mais clara. É o caso de Raul Fiker em Ficção científica: ficção, ciência ou uma épica da época? (1985), onde o crítico usa o termo “Literatura de Antecipação” (FIKER, 1985, p.11), para essa literatura, mas acaba privilegiando apenas narrativas que se passam no futuro em detrimento de várias outras vertentes da FC que ocorrem em realidades alternativas no presente. O romance O homem no castelo alto (1962), de Philip K. Dick, por exemplo, narra o que aconteceria caso os Estados Unidos da América tivessem perdido a Segunda Grande Guerra, desencadeando uma sociedade americana nos dias de hoje dominada pelas forças do Eixo. Percebe-se aqui mais uma vez a filiação da ficção científica com a literatura fantástica nos termos propostos por Roas (2001, p. 8), quando o pesquisador espanhol coloca que a literatura fantástica é o único gênero literário que não pode funcionar sem a presença do sobrenatural. No caso específico das obras desta temática da FC, o insólito é o elemento constituidor da realidade alternativa. Outra vertente da FC que não se poderia encaixar especificamente no termo “Literatura de Antecipação” devido ao seu foco no passado são os romances steampunk, definidos como narrativas de FC ambientadas em sociedades no passado em que foram introduzidas inovações tecnológicas que alteraram o seu desenvolvimento. É o caso, por exemplo, do romance The Difference Engine (1990), de William Gibson e Bruce Sterling, no qual a máquina mecânica de calcular de Charles Babbage, de 1820, foi de fato construída, antecipando uma revolução tecnológica que aconteceria apenas no século seguinte, e mudando, assim, o curso natural da história inglesa. Outros críticos se atêm à própria constituição do termo, analisando o sentido das palavras “Ficção” e “Científica”. Mas, se não há problemas quanto ao entendimento do que seja “Ficção”, o mesmo não pode ser dito da “ciência” presente na palavra “Científica”. Segundo L. David Allen: “a ciência em ficção científica não é a ciência corrente nem é aplicada numa situação corrente; antes é extrapolada, estendida além do estado corrente das ciências ou da situação corrente, sob certos aspectos” (ALLEN, 1974, p.225). Cabe ressaltar ainda que essa “ciência corrente” da FC, mencionada por Allen, também sofreu alterações ao longo da história dessa forma literária. A ficção científica norte-americana publicada na América do Norte até os anos de 1950 era derivada de ciências naturais ou exatas R. Let. & Let. Uberlândia-MG v.28 n.2 p.619-637 jul.|dez. 2012

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como a Física, a Química e a Biologia, ou de áreas tecnológicas como a Engenharia ou a Informática. Exemplos clássicos de ficção científica desse período são os engenhos tecnológicos das histórias de Flash Gordon que acabaram por marcar a iconografia da FC até os dias de hoje com armas de raios-X e naves espaciais. A partir dos anos de 1960, contudo, as mudanças culturais do período abriram terreno na literatura para as chamadas Ciências Humanas ou Sociais como, por exemplo, a Lingüística, a Psicologia, a História e a Antropologia. Mas se, afinal de contas, a FC é ainda marcada como uma literatura voltada para o futuro cabe aqui um breve olhar sobre o surgimento desta visão na América do início do século vinte. A imagem da ficção científica está intrinsecamente ligada à história das pessoas que ajudaram a construir a imagem dos Estados Unidos da América no século vinte como uma terra de oportunidades para aqueles que enxergavam um país orientado para o futuro. Chegando à América do Norte na idade de vinte anos vindo da então Tchecoslováquia, Gernsback se tornou editor de várias revistas que objetivavam se tornar veículos de divulgação científica junto aos jovens. Foi com esse perfil que ele lançou em 1926 a revista considerada por John Clute (1995) e outros críticos como o marco inicial da ficção científica moderna: Amazing Stories. Chamando-a de a revista da “ciênciaficção” (scientifiction), Gersback procurou dar respeitabilidade ao seu projeto literário de divulgação científica republicando histórias de autores que lidaram com a ficção científica como Júlio Verne, H. G. Wells e Edgar Allan Poe. Mas, além da publicação de Amazing Stories, a contribuição de Hugo Gernsback para a ficção científica foi a criação do próprio termo como o conhecemos hoje. Segundo Roberto de Sousa Causo em Ficção científica, fantasia e horror no Brasil (2003), esse nome apareceu pela primeira vez na edição inicial de julho de 1929 de outra publicação de Gernsback: Science Wonder Stories. Ainda que na década de 1930 as histórias de FC já tivessem abandonado a visão utilitarista da ciência e da tecnologia defendida por Gernsback em suas publicações, a força da sua influência marcou a imagem dessa forma literária junto ao grande público, à crítica literária e a outras manifestações artísticas como o cinema. Ao contrário, porém, da ficção científica praticada nos Estados Unidos, a FC europeia sempre apresentou uma tendência para o questionamento do papel da ciência e do progresso na sociedade e dos efeitos da aplicação do discurso racionalista sobre o homem. Insere-se aí a hipótese apresentada da ficção científica como herdeira do gênero fantástico enquanto mediadora da relação do homem com as complexas mudanças advindas da modernidade. Esse fato pode ser constatado desde as raízes iluministas desta expressão literária em As viagens de Gulliver (1726), do irlandês Jonathan Swift e no romance consagrado como inaugurador do gênero – Frankenstein, ou O moderno Prometeus (1818), da inglesa Mary Shelley. No fim do século dezenove esta tendência alcançaria o seu ponto mais alto com os chamados “Romances Científicos”, o nome usado pelo escritor inglês H. G. Wells para se referir a histórias que se baseavam no pensamento científico, como informa John Clute (1995, p. 114). 624

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O propósito dos romances científicos era tentar representar e dar sentido às complexas e rápidas mudanças do seu tempo que estavam alterando a sociedade europeia em várias esferas, tendo como pano de fundo a hegemonia da Pax Britannica, a Revolução Industrial e teorias científicas polêmicas como as de Charles Darwin sobre a evolução humana. Conhecido como o pai da ficção científica ao lado do francês Júlio Verne e autor de clássicos da ficção científica como A máquina do tempo (1895) e Guerra dos mundos (1898), H. G. Wells exerceu profunda influência sobre Yevgeny Zamiatin (Nós / 1922), Aldous Huxley (Admirável mundo novo / 1932) e George Orwell (1984 / 1949), escritores cujas obras, segundo Baker (1990), estabeleceram as convenções literárias da ficção distópica moderna. Os romances de Wells como Uma utopia moderna (1905) e Homens como deuses (1923), por exemplo, podem ser lidos como manifestações perfeitas da crença do escritor inglês em um pacifismo global, alcançado pelo uso humanista da ciência. Na descrição das suas sociedades perfeitas e fictícias, ele defendeu ideias que se tornaram alvos recorrentes da sátira das distopias modernas desde então (SILVA, 2008, p. 75). Em seu ponto de vista otimista, por exemplo, os eventos históricos catastróficos, tais como a guerra global, o colapso econômico ou um desastre ecológico, seriam inexoravelmente seguidos pelo surgimento de um cenário utópico. Tal prognóstico, contudo, foi refutado pelo pessimismo derivado do genocídio de duas guerras mundiais e do desapontamento com sistemas políticos dominantes. Longe de agirem como catalisadores de mudanças positivas para o futuro como queria Wells, esses eventos impregnaram o presente com uma visão distópica sobre o futuro, de opressão e alienação que foi capturado pelos escritores europeus no desenvolvimento de suas obras. Outra crença do autor de A máquina do tempo que foi alvo das críticas das distopias foi à adoção da racionalidade como um guia para uma estrutura social imaginária pautada na ciência e em seus benefícios materialistas. Devido a esse suporte da ciência, a Natureza como mediadora do homem com o mundo torna-se obsoleta. De fato, nas utopias Wellsianas, ela se apresenta como caótica e sem propósito, um imenso elemento que deve ser dominado e moldado pelo desejo do homem. Tal oposição entre razão e natureza, representada nos romances de Wells pela dialética ciência e emoção, estabeleceu a fórmula literária explorada por Zamiatin, Huxley e Orwell na criação de cenários distópicos cujos princípios, como veremos a seguir, já estavam presentes na peça R.U.R.: Robôs Universais de Rossum, de Karel Čapek. Os escravos mecânicos de Karel Čapek

Desde o início do século vinte até hoje as carreiras de Kafka e Čapek seguiram caminhos diametralmente opostos. Virtualmente desconhecido fora do círculo de Praga quando morreu em 1924 (HAMPL, 2002), Kafka ocupa hoje posição central dentre os grandes nomes da literatura mundial. Como acredita Backes (2007a) em “A teia kafkiana” até mesmo a literatura latino-americana R. Let. & Let. Uberlândia-MG v.28 n.2 p.619-637 jul.|dez. 2012

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provavelmente teria enveredado por caminhos bem diferentes se não fosse a ficção de Kafka. Gabriel García Marques, por exemplo, confessa ter alcançado coragem para desenvolver o Realismo mágico apenas depois da leitura de A metamorfose, dizendo que Kafka lhe apontou o caminho e que aprendeu com ele que se pode escrever de outro modo (BACKES, 2007a, p. 39). Čapek, por sua vez, saiu da posição de maior escritor tcheco do início do século vinte, tendo suas obras traduzidas na Inglaterra e na América e elogiadas por dramaturgos e escritores como o inglês Bernard Shaw e o alemão Thomas Mann até a obscuridade. Hoje ele é lembrado, principalmente pelos leitores de ficção científica, apenas como o criador, junto com seu irmão Josef Čapek, da palavra “robô” (SUVIN, 1979, p. 270). Dentre as razões apontadas para esta queda, segundo Patrícia Hampl em “Comeback for Čapek” (2002), a principal está no fato de que Čapek construiu sua obra usando o vernáculo de sua terra, em uma época em que o Tcheco nem existia como língua oficial (a Tchecoslováquia foi criada como país apenas após a Primeira Guerra Mundial). O também tcheco Kafka, por outro lado, construiu sua carreira usando a língua alemã, permitindo assim que seus romances, contos, diários e cartas ultrapassassem as frágeis e instáveis fronteiras de seu país do período do entre guerras para alcançar o mundo. Este fato ajudou também para que a obra kafkiana escapasse do banimento pelo regime comunista que assumiu o controle do país; o que não ocorreu no caso de Čapek, cujas claras posições políticas sobre democracia e cultura foram repudiadas quando da ascensão do Comunismo no país, banindo toda a produção artística do autor de R.U.R. para o ostracismo por quatro décadas (CLUTE, 1995, p. 119), até o resgate atual por outros escritores de seu país como Milan Kundera e Ivan Klíma. Com uma obra composta de cinquenta livros de contos de fadas, romances de detetive, ensaios, relatos de viagem e artigos, destaca-se na produção de Karel Čapek diversas obras de cunho fantástico, dentre as quais a peça satírica Ze života hmyzu (Vida de inseto) (1921), na qual os insetos representam diversas características humanas; e os romances Věc Makropulos ( O segredo de Makropulos) (1922), centrada na discussão da imortalidade humana; Krakatit (1924), com uma trama que gira ao redor de um dispositivo de destruição nuclear e Válka s mloky (A guerra das salamandras) (1936). Este último, com tradução no Brasil, é um romance de distopia de forte crítica contra o Nazismo que narra a exploração de salamandras inteligentes pelos humanos e sua posterior revolta contra a humanidade. Mas, indubitavelmente é pela peça R.U.R.: Robôs Universais de Rossum (Rossumovi univerzální roboti no original em tcheco) que Čapek é lembrado hoje. Lembrando parcialmente o roteiro dos filmes Eu, Robô (2004) e Blade Runner (1982), baseados respectivamente no conto homônimo de Isaac Asimov e na novela Os androides sonham com ovelhas elétricas?, de Philip K. Dick, esta peça de três atos publicada em 1920 e encenada em 1921, mostra como a descoberta por um cientista do segredo para a criação de seres artificiais mais precisos e confiáveis que os humanos desencadeia toda uma indústria 626

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de fabricação destas criaturas. Chamados de robôs (do tcheco robota, “trabalhador forçado”) estas máquinas são utilizadas em larga escala nas indústrias e nas residências para toda sorte de trabalho. No entanto, após se tornarem conscientes de sua força, os robôs dominam a raça humana e a ameaçam com a extinção, mas no último momento a humanidade é salva por um casal de robôs que, humanizados, decidem poupar o único sobrevivente do genocídio e partem para o mundo para se tornarem uma nova versão de Adão e Eva. Analisada pela perspectiva da ficção científica de hoje, a descrição dos robôs de R.U.R. se encaixa melhor na imagem de androides sintéticos, visto serem eles o resultado de manipulação genérica e não mostrarem externamente diferenças físicas dos humanos. Esse fato fica claro na explicação dada pelo diretor geral da fábrica Harry Domin à personagem Helena Glory sobre a origem dos robôs: Foi em 1920 que o velho Rossum, um grande fisiologista, mas à época ainda jovem sábio, veio para esta ilha longínqua estudar a fauna marítima. Procurava imitar por síntese química a substância viva a que chamam protoplasma e, um belo dia, descobriu uma matéria que tinha absolutamente todas as qualidades da substância viva, embora sendo de composição química diferente” (ČAPEK, 1968, p. 129-130).

Uma vez descoberto o segredo da vida e após alguns experimentos com animais, Rossum decidiu criar um ser na forma humana. Como ressalta Domin, as intenções do cientista eram claras: ... o velho Rossum queria destronar Deus. Era um materialista terrível, é por isso que insistia na dele. O que ele queria era fornecer a prova de que não precisamos de Nosso Senhor. Aí tem a razão por que se lhe meteu na cabeça fazer um homem exatamente igual a nós. (ČAPEK, 1968, p. 131).

A declarada intenção de Rossum de aplicar a Ciência para interferir na Natureza chama a atenção para as características da ficção distópica apontados por Moylan (2000) presentes na peça. Semelhante, por exemplo, ao que pode ser encontrado em Nós, Admirável mundo novo e 1984, R.U.R. inicia sua narrativa em media res visando mergulhar o leitor no mundo já modificado pelos produtos do racionalismo. Outra recorrente característica das distopias literárias citadas por Moylan, a utilização da tradição da sátira menipéia,3 também se faz sentir na obra de Čapek no diálogo travado entre Helena Glory, que irá se revelar como uma con

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Assim chamado por causa de Menippus, filósofo do ano 300 a.c, a Sátira Menipéia crítica as vicissitudes do homem em uma mistura de prosa e verso. Na literatura moderna é representada por uma discussão socrática (um debate de idéias) entre personagens que são apenas incorporações das idéias discutidas. Está nessa tradição a estratégia narrativa utilizada por Swift em “A Modest Proposal” (1729) no qual ele propõe que os pobres da Irlanda comam ou vendam suas próprias crianças para resolver seus problemas de fome e desnutrição. (CUDDON, 1991, p. 539-540).

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testadora do sistema de exploração dos seres artificiais, e o diretor geral da fábrica na qual os robôs são produzidos em massa para ocuparem a função de trabalhadores de baixo custo:

DOMIN - /.../ Qual é o melhor operário do ponto de vista prático, na sua opinião? HELENA – O melhor? Talvez aquele que é honesto e dedicado. DOMIN – Nada disso, é aquele que sai mais barato. Aquele que tem menores necessidades. O jovem Rossum inventou o operário com o mínimo de necessidades. Suprimiu tudo o que torna o homem mais caro e que não interessa diretamente para o trabalho. Conseguiu, desse modo, suprimir o homem e criar o Robô (ČAPEK, 1968, p. 133)

Não se pode deixar de notar aqui nesta leitura de R.U.R. como uma peça alinhada com as convenções da literatura de distopia a crítica a hierarquização da sociedade industrial representada na constituição de uma elite dirigente e uma classe subserviente. Este desenho social era defendido por Wells em romances nos quais suas utopias eram dirigidas por uma elite de especialistas científicos que determinariam todos os procedimentos a serem seguidos pelos membros da sociedade. Longe de ter sido vista como algo positivo, essa subordinação de muitos a poucos indivíduos escolhidos foi criticada pela sua clara potencialidade distópica. Sátiras à idealização de Wells podem ser reconhecidas na figura dos opressores dirigentes, ditadores e políticos tais como o Beneficente (Nós), o Controlador Mundial Mustapha Mond (Admirável mundo novo) e os agentes do Partido Interno, representados pelo Grande Irmão (1984), apenas para mencionar os mais conhecidos. Nas utopias de Wells, mesmo os assuntos específicos relacionados à esfera subjetiva e emocional como a sexualidade, o casamento e a procriação seriam discutidos e regulamentados pelos especialistas, visando alcançar os melhores resultados para a sociedade. Como engajado reformador social, porém, H. G. Wells não ficou incólume a situação das classes baixas na rígida Inglaterra vitoriana como se vê em A máquina do tempo, onde o leitor é levado por um cientista Vitoriano até o século 802701 onde se descobre que a humanidade se dividiu em duas raças distintas: os doces e bucólicos Elóis e os Canibais industriais Morlocks em uma clara crítica sobre os rumos da Revolução Industrial e o que poderia acontecer com o proletariado (os Morlocks) caso continuassem a ser excluídos da prosperidade das classes mais abastadas (os Elóis). Considerados por Suvin (1979, p. 272) como variantes dos Morlocks de Wells, os robôs de Karel Čapek evocam o efeito do estranhamento (Verfremdungseffekt) nos termos propostos por Bertolt Brecht em “Pequeno Organon para o Teatro” (1978) no qual o pensador define a possibilidade da arte em apresentar um elemento conhecido por nós de uma maneira “estranha” (BRECHT, 1978, p. 129). Esta é claramente o propósito da cena em que Helena Glory é apresentada a Sylla sem saber que esta última é um robô. A opção pela longa citação a seguir visa justamente apresentar o processo de construção do efeito do estranhamento: 628

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DOMIN - Sylla, mostre-se à senhora Glory. HELENA (levantando-se e estendendo-lhe a mão). – Muito prazer em conhecê-la. Deve sentir-se muito triste, aqui, tão longe do mundo, não? SYLLA – Não sei o que é, senhora Glory. Sente-se, por favor. HELENA (sentando-se) – De onde é a senhora? SYLLA – Daqui, da fábrica. HELENA – Ah! Nasceu aqui! SYLLA – Sim. Foi aqui que fui fabricada. HELENA (com um sobressalto) – O quê? DOMIN (rindo) – Sylla não é uma mulher, minha senhora. Sylla é uma Robô. HELENA – Peço lhe imensas desculpas. DOMIN (pondo a mão no ombro de Sylla) – A Sylla não se zanga. Repare, minha senhora, na pele que nós fazemos. Apalpe-lhe as bochechas. HELENA – Oh não! não! /.../ SYLLA – Eu sou uma Robô. HELENA – Não! Não! Está a mentir! Oh, Sylla, desculpe-me! Eu percebo, eles obrigam-na a isto para fazer publicidade! /.../ HELENA – São terríveis! O que você faz é cruel (ČAPEK, 1968, p. 134-137).

A hesitação de Helena diante da situação (que por sinal muito se identifica com o estipulado por Todorov como condição sine qua non para a existência do fantástico) e sua reação posterior ao ser apresentada ao duro trabalho realizado pelos robôs desde o momento em que “nascem”, confirmam também o caráter cognitivo do estranhamento na ficção científica (ROBERTS, 2000, p. 8), pois leva a personagem a refletir sobre a realidade de opressão imposta pelos dirigentes da fábrica aos robôs e, por parte do expectador da peça, promove um despertar quanto às questões sociais de seu tempo. Como esclarece Suvin sobre a cognição (1972, p. 377), ela não implica apenas em uma reflexão da realidade, mas também sobre a realidade. Ela aponta para uma abordagem criativa visando uma transformação dinâmica e não apenas contemplativa do mundo do autor. Neste sentido, chama a atenção como as fronteiras das vertentes do fantástico no início do século vinte se embaçam no que se refere à abordagem do complexo zeitgeist do início do século quando se aprofundou o sentimento de que “tudo o que era sólido se desmancha no ar”, citando a conhecida frase de Marx em O manifesto comunista (1848). Se o fantástico, segundo Todorov, sucumbe na virada do século em decorrência desse cenário podemos propor que o gênero, assim como as criaturas que habitam suas narrativas, se metamorfoseou em outras formas. Esse fato levou o crítico Darko Suvin no apropriadamente intitulado Metamorphoses of Science Fiction (1979) a considerar A metamorfose e R.U.R. como obras integrantes de um modelo analógico de ficção científica assim definido pelo crítico: R. Let. & Let. Uberlândia-MG v.28 n.2 p.619-637 jul.|dez. 2012

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O modelo analógico na FC é baseado na analogia ao invés da extrapolação. Suas figuras podem mas não precisam ser antropomórficas ou suas localidades geomórficas. Os objetos, figuras, a até certo ponto os relacionamentos que partem deste mundo modelado indiretamente podem ser bem fantásticos (no sentido de empiricamente inverificável) ao passo que são logica, filosofica e mutualmente consistentes (SUVIN, 1979, p. 29, tradução nossa).4

Para Suvin, estas modernas parábolas fundem novas visões de mundo com uma visão satírica e por vezes grotesca das deficiências de nosso mundo cotidiano. Não a toa, como apontado por Suvin, percebe-se nesta leitura a estreita ligação do modelo analógico de ficção científica praticada por Karel Čapek com o realismo mágico de Franz Kafka. Entre o mágico e o maravilhoso

Da mesma forma do observado na ficção científica, as discussões que cercam a vertente do modo fantástico conhecido como “Realismo Mágico” começam pelo próprio termo, tanto pelo proposital paradoxo contido nos dois sintagmas que nomeiam esta forma literária – “Realismo” e “Mágico” – como também pelo debate que cerca os nomes “Mágico” e “Maravilhoso”. De acordo com a visão consagrada por diferentes críticos como Chiampi (1980) e Rodrigues (1988), o termo “Realismo Mágico” foi empregado pela primeira vez no universo das artes plásticas na metade dos anos vinte do século passado pelo crítico alemão Franz Roh na obra Nach-Expressionismus, Magischer Realismus: Probleme der neuesten europäischen Malerei (1925) e analisava uma nova abordagem realista da pintura que objetivava a restauração do objeto, sem renunciar, entretanto, aos privilégios do sujeito. Além deste ponto, Roh apontou o esgotamento do Expressionismo em descrever experiências interiores através da distorção de imagens naturais. Traduzido dois anos depois para a Língua Espanhola como Realismo mágico. Post-expressionismo: Problemas de la pintura europea más reciente, o livro de Roh foi publicado pela Revista de Occidente em 1927 não apenas na Espanha, mas também na América Latina, o que ajudou a disseminação do nome no continente a ponto de na década seguinte ser usado pelos círculos literários de Buenos Aires para denominar a produção literária de alguns escritores europeus, como Kafka, Cocteau e Chersterton (SPINDLER, 1993, p. 2). Todavia, mesmo este marco inicial pode ser recuado. Como sustenta Lois Parkinson Zamora em “Swords and Silver Rings: Magical Objects in the Work of Jorge Luis Borges and Gabriel García Márquez” (2005), a expressão “Realismo Mágico” teria surgido durante o Romantismo alemão em Allgemeines Brouillon (1798–99), de Novalis. Neste livro o filósofo descreve

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The analogic model in SF is based on analogy rather than extrapolation. Its figures may but do not have to be anthropomorphic or its localities geomorphic. The objects, figures, and up to a point the relationships from which this indirectly modelled world starts can be quite fantastic (in the sense of empirically unverifiable) as long as they are logically, philosophically and mutually consistent.

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um idealizado personagem filosófico capaz de integrar os fenômenos ordinários e os sentidos mágicos da realidade (ZAMORA, 2005, p. 39). Ainda segundo Zamora, Franz Roh teria retirado desta obra o nome para definir sua visão artística pela similaridade dos argumentos entre ele e Novalis quanto à recusa a estrutura da razão instrumental e a importância da complementaridade dos opostos. Na Literatura, “Realismo Mágico” foi introduzido ainda no fim dos anos quarenta do século vinte, após o escritor venezuelano Arturo Uslar Pietri usar o nome em Letras y hombres de Venezuela, em 1948. Para Pietri, essa nova narrativa viria a incorporar o mistério e uma adivinhação (ou negação) poética da realidade, vindo assim a corrigir os limites da poética do Realismo (RODRIGUES, 1988, p. 51). Percebe-se neste ponto que a noção de Realismo Mágico ainda estava atrelada ao postulado por Roh. Em 1949, esta vertente do modo fantástico ganharia um novo impulso com a publicação de El Reino de este Mundo, do cubano Alejo Carpentier, obra esta que trazia no prefácio o nome “Real Maravilhoso Americano” para se referir a uma literatura que, na descrição de Chiampi, mostrava como, “a união de elementos díspares, procedentes de culturas heterogêneas, configura uma nova realidade histórica, que subverte os padrões convencionais da racionalidade ocidental” (CHIAMPI, 1980, p. 32). Como também foi observado por Spindler (1993), nitidamente se nota no conceito de Carpentier do Realismo Maravilhoso o olhar eurocêntrico do mito do Novo Mundo como uma terra de maravilhas e exotismo. A prevalência atual nos estudos literários do termo Realismo Mágico se iniciou em 1954 com a palestra ministrada por Angel Flores de título “Magical Realism in Spanish American Fiction”, realizada durante o Congresso da Associação de Línguas Modernas em Nova Iorque. Publicado no ano seguinte em Hispania, 38 (2), este trabalho introduziu o nome “Realismo Mágico” no mundo acadêmico, o que acabou por torná-lo o mais usado desde então em detrimento do nome “Realismo Maravilhoso” (RODRIGUES, 1988, p. 51). Cabe destacar que na principal obra da crítica brasileira sobre o assunto – O Realismo Maravilhoso – Irlemar Chiampi opta pela utilização do termo cunhado por Carpentier dado a enorme tradição do Maravilhoso na história da literatura ocidental. Independente, porém, da designação, existe hoje a tendência do uso intercambiável tanto do termo Realismo Mágico quanto do Realismo Maravilhoso para descrever um tipo de discurso narrativo na qual o real e o insólito se misturam sem solução de continuidade e sem criar tensões entre eles. Na discussão do tema no E-Dicionário de termos literários, Selma Calazans Rodrigues define esta literatura como, “um tipo de ficção hispano-americana que reagia contra o realismo/naturalismo do século XIX e contra a novela da terra, um tipo de regionalismo que imperava nas primeiras décadas do século XX”. De fato, como bem atesta Chiampi, o Realismo Mágico se associava a um período bastante crítico no mundo: “(...) nas suas origens o termo se acomodava à atmosfera cultural do período entre guerras” (2008, p.23). R. Let. & Let. Uberlândia-MG v.28 n.2 p.619-637 jul.|dez. 2012

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Os problemas terminológicos e conceituais ligados a este modo fantástico de forte presença na Europa e na América Latina acabaram por fomentar nas duas últimas décadas do século vinte tentativas de categorização da sua forma. Este é o caso do ensaio “Realismo Mágico: uma tipologia (1993), do guatemalteco William Spindler no qual o crítico postula a existência de três depreensões desta expressão literária: o Realismo Mágico Metafísico (europeu), alicerçado na técnica do Verfremdung; o Realismo Mágico Antropológico (latino-americano), sustentado pela convivência entre o mágico e o real das culturas nativas da região; e o Realismo Ontológico, no qual não são oferecidas explicações para os acontecimentos irreais no texto e o sobrenatural é apresentado de um modo realista sem contradizer a razão. Sendo um autor costumeiramente enquadrado no Realismo Mágico, qual seria então o lugar de Kafka dentro da tipologia de Spindler? Como será visto a seguir, mesmo dentro do Realismo mágico Kafka desafia enquadramentos. Um inseto no olho da modernidade

A alienação do homem finissecular em relação a uma existência que lhe parece absurda, a busca infrutífera por algo que não pode mais ser encontrado e a indagação por aquilo que não tem resposta são as características mais marcantes de toda a obra de Kafka. Esses elementos recorrentes abordados sob uma visão simbólica da realidade resultaram em textos que subverteram o esquema todoroviano do fantástico como hesitação entre o natural e o sobrenatural ou como proibição de dar-lhe uma visão alegórica ou poética (PAES, 1985, p.16). Como coloca Todorov ao escrever especificamente sobre A metamorfose: Em Kafka, o acontecimento sobrenatural não provoca mais hesitação pois o mundo descrito é inteiramente bizarro, tão anormal quanto o próprio acontecimento a que serve de fundo. Reencontramos, portanto, (invertido) o problema da literatura fantástica – literatura que postula a existência do real, do natural, do normal, para poder em seguida atacá-lo violentamente – mas Kafka conseguiu superá-lo. Ele trata o irracional como se fizesse parte do jogo: seu mundo inteiro obedece a uma lógica onírica, se não de pesadelo, que nada tem a ver com o real (TODOROV, 1992, p. 181).

Diante do desafio de enquadrar o escritor tcheco dentro do rígido esquema conceitual desta literatura o crítico o desterra do terreno do fantástico porque na sua obra não há mais real que possa contrapor-se a tal “fantástico generalizado; o mundo inteiro do livro e o próprio leitor nele estão incluídos” (TODOROV, 1992, p. 182). Mas, o que há nesta novela a ponto de levar Gabriel García Marques a se enveredar pelos bosques do insólito e fazer com que Heinz Politzer, um dos mais conhecidos comentaristas da obra kafkiana, escrevesse que “depois da metamorfose de Gregor Samsa o mundo em que movemos tornou-se outro”? (BACKES, 2007b, p. 22). 632

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Ao lado de O processo (1914) e O castelo (1922), A metamorfose está entre as três obras que consolidaram o estilo literário de Kafka e é uma das histórias mais conhecidas mesmo entre aqueles que nunca leram Kafka. A narrativa definida pelo autor como “repulsiva” (KAFKA apud FERRAZ, 2010, p. 89) foi escrita em um período de três semanas entre novembro e dezembro de 1912 e foi recebida com risos pelos amigos do escritor quando da leitura da mesma. Depois desta experiência o amigo de Kafka, Max Brod procurou alguém que pudesse editar a estranha e genial novela. Impressa em 1915 na revista Die Weissen Blätter (As folhas brancas), a obra foi uma das poucas peças literárias que Kafka viu publicada ao longo de sua curta vida. Ele havia criado uma narrativa única marcada pela desacomodação do leitor desde a página inicial, assim explicada por Modesto Carone: “resta ao leitor o desconforto de se deparar com uma narração translúcida, mas cujo ponto de partida permanece opaco” (CARONE apud FERRAZ, 2010, p. 90). Esta desacomodação junto ao leitor criada por Kafka logo na abertura da história em que Gregor Samsa ao acordar se vê metamorfoseado em um “inseto monstruoso” (KAFKA, 2010, p. 11) subverte a classificação de Spindler de A metamorfose como uma representante do Realismo Mágico Ontológico (1993, p. 10) nos termos de apresentação de situações impossíveis de uma forma muito realista. De fato, propõe-se aqui que a novela de Kafka se alinha perfeitamente com o Realismo Mágico Metafísico pela razão explicada a seguir. Ao longo da novela chama a atenção as vezes em que Gregor Samsa chama a atenção para a sua “condição atual” (KAFKA, 2010, p. 57), o que sintomaticamente revela que, nos termos da novela, apesar da sua deformidade atual Gregor Samsa continua a ser o mesmo caixeiro viajante que tem sua vida regulada pelos horários de trens e pelas estafantes obrigações enquanto vendedor. Sem direito ao controle sobre a própria vida Samsa se desumaniza para atender ao ritmo da vida moderna. Nesta leitura, sua transformação em inseto é apenas mais uma etapa na sua perda de humanidade, perda esta que ganha destaque quando Kafka a aborda pelo víeis do estranhamento brechtiano, gerando no leitor a mesma reação incômoda desencadeada nos expectadores da peça de Čapek. Neste aspecto o Kafka de A metamorfose é o mesmo Kafka de O processo, tido por Spindler como Realismo Mágico Metafísico, causando no leitor “impressão de ser confrontado com uma alegoria ou uma metáfora de algo que permanece quase ao alcance e ainda, desconhecido” (SPINDLER, 1993, p. 7). Percebe-se, portanto que, ao contrário do que a primeira vista pode se supor, tanto a ficção científica quanto o Realismo Mágico podem compartilhar das mesmas estratégias de representação simbólica do real. Considerações finais

Considerados neste artigo como representantes chaves da Ficção Científica e do Realismo Mágico do início do século vinte mesmo antes destas duas expressões literárias serem denominados como tais, Karol Čapek e Franz Kafka souberam imprimir em R.U.R.: Robôs Universais de Rossum e A metamorfose R. Let. & Let. Uberlândia-MG v.28 n.2 p.619-637 jul.|dez. 2012

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não apenas suas visões do processo de desumanização do homem moderno face uma sociedade secular regulada pelo discurso científico, mas também apresentaram indiretamente em seus textos uma possível abordagem para a crise do gênero fantástico citada por Todorov por meio da construção de um estranhamento cognitivo que recupera na modernidade a hesitação todoroviana. Como se espera ter mostrado aqui, a Ficção Científica e o Realismo Mágico são capazes de atender a função do fantástico em capturar e traduzir a angustia e ansiedade de seu tempo por meio da apresentação de uma realidade meta-empírica na qual robôs e insetos se tornam para nós incômodos espelhos.

MEIRELES, A. ON ROBOTS AND INSECTS: THE CRISIS OF THE FANTASTIC IN KAREL ČAPEK AND FRANZ KAFKA Abstract Writing both in Bohemian (present Czech Republic) at the turn of the century, Karel Čapek and Franz Kafka exemplified respectively in the play R.U.R.: Rossum Universal Robots (1920) and in the novella The metamorphosis (1915), the crisis of the Fantastic genre that since then have been attracting the attention of different critics and writers, such as, Castex, Caillois, Vax, Hoffmann, Todorov, Jackson, Bessière, Furtado and Ceserani. This critical uneasiness, focused on the debates on the Fantastic as genre x narrative mode, is formalized in this article through the literary expressions of Science Fiction and Magical Realism, two differing genres in the sense of their relations with the hegemonic rationalist discourse existing in Europe since the Enlightenment. However, as this work aims to analyze as case study, despite their diegetic differences, Čapek’s and Kafka’s works demonstrate not only the tenuity in the frontiers of the fantastic mode, but also point out the legacy left by the fantastic as a genre in the twentieth century. Keywords Fantastic; Science Fiction; Magical Realism; Karel Čapek; Franz Kafka

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