O IMPACTO DAS TECNOLOGIAS DIGITAIS PARA A CRIAÇÃO ARTÍSTICA: UM ESTUDO SOBRE A MPB

November 4, 2017 | Author: Renato Lage Conceição | Category: N/A
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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE ECONOMIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POL&Iac...

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE ECONOMIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS, ESTRATÉGIAS E DESENVOLVIMENTO

O IMPACTO DAS TECNOLOGIAS DIGITAIS PARA A CRIAÇÃO ARTÍSTICA: UM ESTUDO SOBRE A MPB

AUTOR: Bruno Cosentino Vianna Guimarães ORIENTADOR: Prof. Leandro José Luz Riodades de Mendonça

RIO DE JANEIRO Dezembro 2012

Bruno Cosentino Vianna Guimarães

O IMPACTO DAS TECNOLOGIAS DIGITAIS PARA A CRIAÇÃO ARTÍSTICA: UM ESTUDO SOBRE A MPB

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento, do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Políticas Públicas.

ORIENTADOR: Prof. Leandro José Luz Riodades de Mendonça

RIO DE JANEIRO Dezembro 2012

Bruno Cosentino Vianna Guimarães

O IMPACTO DAS TECNOLOGIAS DIGITAIS PARA A CRIAÇÃO ARTÍSTICA: UM ESTUDO SOBRE A MPB

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento, do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Políticas Públicas.

ORIENTADOR: Prof. Leandro José Luz Riodades de Mendonça Aprovada em ____ de __________ de 2012 por:

________________________________________________ Dr. Frederico Oliveira Coelho, PUC/RJ ________________________________________________ Dr. Leandro José Luz Riodades de Mendonça, UFF ________________________________________________ Dr. Allan Rocha de Souza, UFRRJ ________________________________________________ Dr. Renata Lèbre La Rovere, UFRJ

RIO DE JANEIRO Dezembro 2012

Ao meu pai

AGRADECIMENTOS Gostaria de agradecer a algumas pessoas importantes, que tiveram contribuição direta para a conclusão desta dissertação. Agradeço, primeiramente, ao meu orientador Leandro Mendonça pelas sucessivas conversas sobre o texto até chegar a sua forma final. Agradeço também ao Allan Rocha de Souza e à Renata Lèbre La Rovere pelas sugestões na minha qualificação. Agradeço a CAPES pela bolsa que obtive durante parte do mestrado, sem a qual o estudo aplicado sobre o tema teria sido muito mais árduo. Agradeço aos professores do PPED pelas aulas, aos meus colegas, à Ana Célia Castro pela dedicação ao programa de pós graduação. Agradeço também a minha mãe Márcia, ao meu irmão Renato, a minha cunhada Lorena, aos meus sogros Sina e Sima, ao meu cunhado Sobhan, aos meus amigos Dielson Pessoa e Arthur Nogueira pela presença cotidiana em minha vida; ao André Kano, pela sintonia espiritual. Agradeço a Andrés Patiño, Mário Gesteira, Renato Endrigo, Pedro Tié e Gabriel Carneiro pela música deles. Agradeço (in memoriam) à querida Santuza Cambraia Naves, que me ajudou diretamente nesta dissertação tanto com importantes sugestões de leitura como com conversas que guardo carinhosamente na lembrança; ao meu querido amigo Eucanaã Ferraz, que ouve com atenção as minhas inquietações; ao Frederico Coelho e ao Paulo da Costa e Silva pelas ótimas conversas sobre música brasileira; ao Bruno Vieira, por nossa conversa na praça General Osório; ao Francisco Bosco e ao Hermano Vianna por terem compartilhado em suas colunas no jornal O Globo os nomes de dois livros centrais para a discussão desta dissertação; ao Antonio Cicero, pelo livro “O mundo desde o fim”; a Caetano Veloso, pela personalidade artística provocadora; a André Midani, pelo exemplo concreto de que música e mercado, com inteligência e sensibilidade, podem andar juntos e criar coisas belas; a José Miguel Wisnik, pelos brilhantes ensaios sobre o Brasil e a música brasileira; a Luiz Tatit, pelo seu insight sobre a entoação do compositor na canção brasileira; a Theodor Adorno, por seu ensaio sobre a indústria cultural; a todos os pensadores que

contribuem para o avanço do conhecimento e cujas obras utilizei para compor o presente trabalho. Agradeço amorosamente ao meu pai Wagner, que sempre está próximo, me proporcionando conforto material e emocional para que eu siga seguro o meu caminho. Também agradeço a ele a relação admirada e profunda que tenho hoje com a música brasileira. Por fim, agradeço todos os dias a existência da minha mulher Anissa, pois “nada é maior que dar amor e receber de volta amor”.

“Enlouquecer ê ê ê Ao tentar satisfazer a todo mundo”. Jorge Mautner

RESUMO

A democratização do acesso às tecnologias digitais transformou as condições materiais de produção da música no início do século XXI e teve como principal consequência o fim da indústria fonográfica. Até então, as gravadoras detinham os meios de produção e selecionavam seu elenco cada vez mais por critérios comerciais, fato que tendeu à padronização da produção artística. Com a introdução das novas tecnologias, é permitido aos artistas atuar fora da estrutura industrial, sem, no entanto estar totalmente livre da coerção capitalista – no nível psicossocial – sobre a produção. O presente trabalho pretende, portanto, a partir da oposição de duas racionalidades, a econômica – coletiva e dominante – e a artística – individual –, descrever as novas condições sociais e materiais de criação musical para o compositor e intérprete da MPB, após o uso difundido das tecnologias digitais de gravação e da internet.

ABSTRACT

The democratization of access to digital technologies has transformed the material conditions of production of music in the twenty-first century and its main consequence is the end of the music industry. Before that, the record labels owned the means of production and therefore the power to select the artists who would be launched in the market, guided, however, increasingly by commercial criteria, a fact that tended to standardization of artistic production. With the introduction of new technologies, artists are allowed to operate outside the industrial structure, although without being totally free of market constraining – in the psychosocial level - on production. The present work intends, therefore, from the opposition of two rationalities, the economic - collective and dominant - and artistic - individual – to describe the new social and material conditions of musical creation for the composer and performer of MPB, after the widespread use of digital recording and the internet.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.......................................................................................................... 11 1 MPB: DESCONSTRUÇÃO E RECONSTRUÇÃO DE UMA SIGLA...................... 16 2 DUPLA ECONOMIA.............................................................................................. 26 3 ORGANIZAÇÃO ECONÔMICA DO MERCADO DE BENS CULTURAIS............ 39 4 NOVO ESTADO MENTAL..................................................................................... 52 5 CONTINUUM.......................................................................................................... 59 6 O MÚSICO-PRODUTOR........................................................................................ 74 CONCLUSÃO........................................................................................................... 91 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................... 95

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INTRODUÇÃO O objetivo deste estudo é analisar as transformações decorrentes do acesso às tecnologias digitais de produção para a criação da música brasileira. Por criação artística deve-se entender (e será melhor explicado no decorrer da dissertação) o conflito permanente entre a demanda comercial do produto cultural e a liberdade criativa individual do artista. A análise terá como objeto o compositor e intérprete da instituição MPB. Para melhor compreensão do significado vigente de MPB, faço remissão ao momento histórico em que surgiu no cenário cultural brasileiro. O movimento de reconstrução e desconstrução1 da sigla MPB, ao longo de cinco décadas, deve ser entendido como parte de mudanças amplas ocorridas nas bases materiais da sociedade brasileira. A penetrabilidade social das tecnologias da informação,2 como veremos, conforma um estado de espírito próprio de seu tempo, refletido também na produção artística da nova geração da MPB. Utilizo como fio condutor para a interpretação teórica os argumentos do livro “A dádiva: como o espírito criador transforma o mundo”, de Lewis Hyde, no qual o autor propõe a co-existência da obra de arte em uma dupla economia: a economia de mercado e a economia de doação. Segundo ele, nenhuma delas deve ser vista em estado puro.3 Proponho então que analisemos a canção brasileira sobre um continuum, onde entre um extremo e outro, pode-se configurar diferentes situações intermediárias, que caracterizam uma tensão entre mercado e arte, necessária para a existência da obra de arte como um bem de consumo. Ao depender do domínio da lógica comercial sobre a criação artística, o artista pode ver-se coagido às injunções do meio econômico e social e limitado em sua liberdade criativa. O período marcado pela hegemonia da indústria fonográfica – que ganha força a partir dos anos 1950 e dura até os anos 1990 – tocou o extremo comercial do continuum com a formação de bandas concebidas dentro do departamento de marketing das gravadoras, fato que se deveu a décadas de domínio sobre os meios de produção. Utilizo, para descrever essa situação, as ideias de Theodor Adorno, quando descreve os efeitos dos condicionamentos da estrutura industrial no grande artista. É preciso advertir, entretanto, que não vou 1

NAVES, Santuza Cambraia; COELHO, Frederico Oliveira; BACAL, Tatiana. A MPB em discussão: entrevistas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. 2 CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999. 3 HYDE, Lewis. A dádiva: como o espírito criador transforma o mundo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

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ater-me às críticas pontuais do filósofo alemão sobre a cultura de massas nos Estados Unidos, por certo datadas; tampouco a seus julgamentos de valor sobre este ou aquele tipo de música e a sua convicção de que não se pode haver música artística no mercado de massas. Importante contribuição, no entanto, é o que Adorno revela sobre o modo genérico de pensar do homo economicus e suas consequências para o “sujeito pensante” que é o grande artista; sobretudo, a ideia de reificação do pensamento. Usarei seu conceito de indústria cultural, portanto, como um tipo ideal (ou puro) – ou seja, um instrumento teórico abstrato que busca, por meio do método indutivo, analisar conceitualmente um fenômeno sociológico – indicador de aspectos tendenciais intrínsecos à lógica de funcionamento da ordem econômica capitalista. A ideia de continuum, em seguida, é aplicada ao caso particular da MPB. Como veremos, segundo o historiador Marcos Napolitano, o processo de institucionalização da MPB nos anos 1960 obedeceu a duas forças opostas: enquanto buscava firmar-se como um campo autônomo de expressão artística, cedia às exigências da incipiente ação da televisão brasileira e da indústria fonográfica instalada no país. Sendo assim, a instituição MPB é ambígua por definição: nem desfigurada pela lógica comercial, tampouco uma ilha de liberdade artística. A imagem do continuum será apropriada para situar, ao longo do tempo, os avanços e recuos da MPB de um extremo ao outro. As tecnologias digitais, por serem mais baratas, promoveram uma nova configuração nessa linha imaginária, senão a favor da criação artística, ao menos a ponto de desconcentrar o poder econômico alcançado pela indústria fonográfica nas últimas décadas do século XX. O avanço da liberdade artística deve ser visto, assim, como parte complementar do mesmo processo que levou à crise da música como mercadoria, tornada gratuita, por exemplo, com o compartilhamento de arquivos na internet. Em seguida, tentarei deslindar as dimensões técnica e ideológica da indústria cultural ao descrever tecnicamente a organização econômica da indústria de bens culturais e as transformações ocorridas com o advento da tecnologia digital. A peculiaridade do objeto artístico como bem de mercado conformou uma organização econômica também peculiar. Se no período industrial, fundada sobre altos custos fixos e ganhos de escala, ela tendia ao oligopólio e, por conseguinte, limitava a diversidade da oferta, criando uma escassez artificial, hoje em dia, no período chamado – entre outros nomes – informacional, com o acesso facilitado às

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tecnologias digitais, uma mudança fundamental é a viabilidade técnica de produção e comercialização de uma diversidade de produtos em mercados de nicho. A análise do aspecto técnico, como veremos, é insuficiente para explicar a complexidade do atual contexto para a criação musical, determinada também por aspectos culturais e psicossociais. Discutirei ainda a posição do artista enquanto indivíduo criador – mais especificamente o compositor-intérprete da MPB – na instável configuração econômica do mercado de música digital, em fase de experimentação e consolidação de novos modelos comerciais. A possibilidade de produzir bens artísticos e colocá-los à disposição do público na internet tornou um grande número de pessoas que antes eram receptores do conteúdo produzido pela indústria, também em produtores ou emissores. Manuel Castells, em seu livro “A sociedade em rede”, credita à democratização dos meios técnicos – e a sua penetrabilidade social – o desimpedimento, por indivíduos e grupos, da busca de sua identidade. Segundo ele, a possibilidade de interagir com as informações recebidas concede às pessoas autonomia para decidir e organizar seu comportamento.4 Para ele, então, a cultura de massa, criticada por Adorno, estaria condicionada não a um aspecto cultural, mas a um aspecto técnico, finalmente ultrapassado. Ao entusiasmo de Castells, contraponho as reflexões do filósofo Christoph Turcke, em seu livro “A sociedade excitada: filosofia da sensação”. Nele, o autor, também alemão, atualiza a teoria crítica de Adorno e identifica a diversidade de oferta e as inúmeras possibilidades de interação como sintomas de um aparato sensorial ultrassaturado do homem contemporâneo. Esse diagnóstico configura um estado psicossocial que nos levaria a querer nos concentrar simultaneamente em muitas coisas, sem, no entanto, conseguir fixá-las e torná-las unidades concretas de experiência; nos impediria, enfim, de transformar os estímulos em percepção e, por conseguinte, criar uma identidade “tanto em sentido objetivo quanto subjetivo”.5 Outro ponto que merece ser destacado é colocado por Manuel Castells, quando chama atenção para o fato da presumida radicalização do processo de individualização, a ponto de a fragmentação entre diferentes grupos poder tornar-se uma ameaça à coesão social e cultural de uma coletividade maior. Como veremos, o sentido de MPB, atrelado, nas décadas de 1960 e 70, a um discurso nacionalista e 4 5

.

CASTELLS, op. cit. TÜRCKE, Cristoph. Sociedade excitada: filosofia da sensação. Campinas: Editora da Unicamp, 2010, p. 66.

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agregador, é diretamente afetado por essa tendência à fragmentação social e cultural. A abertura do mercado ao domínio da diversidade é também acompanhada de modelos empresariais mais flexíveis e de novos meios de divulgação e distribuição da música. Muitos artistas passaram a cuidar de suas carreiras de forma autônoma e as antigas gravadoras passaram a ocupar-se somente com os serviços de marketing prestados aos artistas. Observa-se, no meio musical, sobretudo quando se trata de novos artistas, uma espécie de movimento contrário à especialização do trabalho, em que são impelidos a adquirir habilidades de gestão, vendas e marketing, estranhas ao labor artístico, para manter-se no mercado. Nesse novo contexto, contraposto ao modelo organizacional da indústria fonográfica, interessa-me pensar como o compositor/intérprete de MPB responde às injunções do novo contexto econômico e tecnológico. Para

este

estudo,

além

das

referências

teóricas,

consultei

fontes

complementares que pudessem constituir um conjunto capaz de atribuir sentido ao momento de incerteza em que se encontra o mercado musical. Dada a atualidade do tema, busquei na imprensa, em blogs especializados, em livros ou artigos acadêmicos, informações atualizadas que flagrassem os movimentos dos agentes diretamente envolvidos na reestruturação do mercado. É preciso dizer que grande parte do meu conhecimento sobre o tema advém da minha experiência pessoal como um desses agentes, tanto como compositor e cantor quanto, desde os estudos para o mestrado, como pesquisador, dupla função que me insere na posição sui generis tanto de observador como de observado. Desde que a crise das gravadoras tornou-se patente, também participei de seminários, mesas de discussão em festivais e muitas conversas pessoais com agentes atuantes sobre a situação do mercado de música. Sobre a delimitação do sentido de MPB, discuto sobretudo textos acadêmicos que têm o tema como objeto de investigação intelectual. Tentei compreender os vários sentidos que a sigla comporta. É inevitável, portanto, ao longo da dissertação, a comparação entre o momento de surgimento da MPB, sob o paradigma industrial, quando predominava um ideal agregador da identidade brasileira, e o atual momento, orientado por novos padrões tecnológicos e pelo signo da fragmentação da cultura nacional. Colocar lado a lado os dois contextos é igualmente útil para refletir sobre a natureza da coerção econômica sobre a produção artística, se

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meramente técnica – e enfim superada com o advento das tecnologias digitais de gravação e a internet – ou se de natureza ideológica e ainda atual. Proponho que as novas tecnologias sejam analisadas pelo que trazem de oportunidades, mas também pelo que impõem à sociedade um modo homogeneizante de pensar e agir. Em suma, por meio da análise das condições sociais para a existência do compositor e intérprete da MPB em dois períodos históricos marcadamente distintos – a era industrial e a era da informação –, este trabalho sugere uma interpretação dos efeitos que as novas condições de produção e de existência no mundo informacional podem causar para a criação artística da nova geração da MPB. Minha hipótese é a de que a democratização do acesso aos meios técnicos de produção e distribuição e a consequente redistribuição de poder entre artistas, intermediários e público, está sendo capaz, desde pelo menos o ano 2000, de assegurar, no continuum, uma posição mais favorável para o artista de MPB, e de reestabelecer uma tensão salutar entre a lógica comercial e a criação artística, que se havia enfraquecido nas décadas de 1980 e 90. A viabilidade técnica de produção e distribuição, no entanto, não é suficiente para desfazer a estrutura de coerção capitalista sobre a criação artística, que não é mais física (fábricas, estúdios de gravação, depósitos), mas intangível, refletida em um estado psicossocial que exige de todos um desempenho produtivo homogeneizante.

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1 MPB: DESCONSTRUÇÃO E RECONSTRUÇÃO DE UMA SIGLA Não existe consenso sobre a definição de MPB. Atributos históricos, socioeconômicos, ideológicos e estéticos estão associados à sigla e permitem ao pesquisador delimitá-la a partir de variados enfoques. Diferentemente do sentido abrangente da expressão “música popular brasileira”, a sigla MPB, como a conhecemos hoje, passa a ser usada a partir de um momento preciso na década de 1960, em meio ao cruzamento complexo de três fatores. O primeiro, econômico: o investimento das gravadoras multinacionais nos mercados locais, em busca de novas oportunidades de negócio, aliado à incipiente indústria televisiva, que tateava fórmulas de sucesso, entre as quais sobressaíam os programas seriados de música e os festivais da canção. O segundo fator, de ordem político-cultural, envolvia os artistas e intelectuais, na maioria das vezes universitários oriundos da classe média, que imbuídos de um ideal nacional-popular – refletido na produção artística – propunham um projeto de nação fundamentado na pesquisa e incorporação das tradições da cultura popular. O terceiro fator, de natureza estética, deve-se à vontade de ruptura e continuidade dos artistas com a tradição da Bossa Nova, que ao mesmo tempo incorporavam suas recentes conquistas harmônicas para a música popular, desejando, no entanto, superá-la esteticamente. A sigla MPB, na década de 1960, surge para designar esse grupo de compositores engajados com o ideal nacional-popular, que, inseridos em tal contexto, logo se viram em um impasse, visto que precisavam da televisão, mas resistiam a assumir estética e ideologicamente seu aspecto mercadológico. Ainda que, tecnicamente, a televisão fosse um excelente veículo para o propósito de ampla comunicação com o povo, a lógica comercial que lhe era intrínseca mostrava-se deformadora tanto da ideologia nacional-popular quanto do que julgavam ser o verdadeiro labor artístico. Os artistas da MPB não se restringiam a utilizar a canção como veículo portador de um conteúdo “doutrinário”, mas sim como um produto artístico acompanhado de elaboração formal.6 Nesse sentido, segundo Santuza Cambraia Naves, primavam 6

NAVES, Santuza Cambraia. Rumos da MPB. Revista Cult, n. 105. Disponível em: . Acesso em: 14 mar. 2010.

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por um “preciosismo prosódico” e dispensavam discursos politizados de “sentido literal”. A referência a “aspectos musicais e poéticos” dos segmentos populares, diz ela, por si, já configurava uma “atitude” política.7 Embora estivesse claro, mesmo para esses artistas, que a televisão e as gravadoras não eram veículos neutros,8 é apenas com o surgimento do movimento tropicalista, em 1968, que a postura nacional-popular é questionada de forma sistemática e o aspecto comercial da canção é assumido, inclusive esteticamente. Se havia uma preferência por parte dos emepebistas quanto ao uso de certos instrumentos e timbres, restringindo-se àqueles que julgavam ser dotados esteticamente de referências ao que fosse genuinamente nacional, os tropicalistas, ao contrário, aproveitaram-se da roupagem da música estrangeira, associada ao uso da guitarra elétrica, para afirmar o caráter da canção brasileira como um produto comercial e cosmopolita. Uma observação mais detalhada, entretanto, mostra que a oposição entre emepebistas e tropicalistas não deve ser interpretada como um dualismo simples; em nenhuma dimensão aliás (artística, sociológica, econômica ou política), já que a oposição têm um caráter generalista que serve à melhor compreensão de dois tipos de comportamento que se confrontaram em um momento histórico preciso, por causa de uma questão específica, passando ao largo das trajetórias individuais de artistas que não se encaixavam em nenhum desses grupos e mesmo de artistas identificados com os grupos mas que mantinham sua independência de pensamento. Bons exemplos são o do cantor e compositor Chico Buarque, que era um dos maiores sucessos de venda desde o lançamento da música “A banda”, identificado estrategicamente pelos tropicalistas mais ao lado dos emepebistas, mas admirado e elogiado publicamente por Caetano Veloso e Gilberto Gil, principais expoentes do Tropicalismo musical; em outro caso emblemático, que ilustra bem a complexidade do momento, Gilberto Gil, ícone do uso da guitarra elétrica em um festival de MPB, participara de uma passeata contra a guitarra elétrica liderada por Elis Regina. No âmbito político, tampouco, deve-se pensar de modo simplista uma oposição entre politizados de um lado e alienados de outro, pois a divergência 7

Idem, ibidem. NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-1969). São Paulo: [s.n.], 2010. (Versão digital revista pelo autor). Disponível em: . Acesso em: 12 jan. 2012. 8

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remete fundamentalmente a uma orientação estético-política. Celso Favaretto esclarece que o trabalho dos tropicalistas “foi especificamente artístico, mas a política não estava ausente, pois responderam à situação decorrente do movimento militar de 64, ao produzir a linguagem de mistura, que corrói as ideologias em conflito”. Continua: No tropicalismo, a colocação do aspecto estético e do aspecto mercadoria no mesmo plano faz parte do processo de dessacralização, da estratégia que dialetiza o sistema de produção de arte no Brasil por distanciamento-aproximação do objetomercadoria. Esta posição destoava de outras, quer de esquerda, quer de direita, que, embora com justificativas diversas, condenavam, unanimemente, o envolvimento comercial da arte, considerado naquele momento como compromisso com a indústria cultural.9

Ao incorporar esteticamente o aspecto comercial da música, os tropicalistas propuseram uma solução para o impasse em que se encontravam os emepebistas. Segundo Marcos Napolitano, paradoxalmente, na medida mesmo em que o Tropicalismo criticou a MPB histórica, operou uma ampliação conceitual do termo, pois “negando a sigla em seu sentido estrito (i.e. ‘música nacionalista’) contribuiu para [...] consolidar novo estatuto assumido pela MPB, [...] na qualidade de arquigênero e instituição dotada de certa flexibilidade estético-ideológica”.10 Explica: ... seria temerário tentar delimitar as características da MPB a partir de regras estético-musicais estritas, pois sua instituição se deu muito mais em nível sociológico e ideológico. Estes dois planos foram articulados pela mudança no sistema de consumo cultural do país, transformando as canções no centro mais dinâmico do mercado de bens culturais. A sigla MPB se tornou sinônimo que vai além do que um gênero musical determinado, transformando-se numa verdadeira instituição, fonte de legitimação na hierarquia sócio-cultural brasileira, com capacidade própria de absorver elementos que lhe são originalmente estranhos...11

Em perspectiva histórica, a instituição MPB passa a compreender não somente o grupo de artistas engajados com o ideal nacionalista, mas também os tropicalistas e tantos outros compositores e intérpretes que surgiram nos anos seguintes, inclusive os artistas surgidos com a democratização da tecnologia digital. Marcos Napolitano utiliza a definição do sociólogo francês Pierre Bourdieu, para 9

FAVARETTO, Celso. Tropicália, alegoria, alegria. Cotia: Ateliê Editorial, 2007, p. 140. NAPOLITANO, op. cit., p. 189. 11 Idem, ibidem, p. 7. 10

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quem “instituição” é a “acumulação nas coisas [no caso, as obras] e nos corpos [no caso, os compositores e intérpretes] de um conjunto de conquistas históricas que trazem as marcas de suas condições de produção e tendem a gerar as condições de sua reprodução”.12 Portanto, está gravada na obra e nos artistas desse período e dos anos subsequentes a manutenção da instituição MPB. A instituição MPB é uma categoria abrangente que engloba tanto os tropicalistas quanto artistas que não são ligados a nenhum movimento quanto os artistas da chama Nova MPB. Para ficar claro, até aqui vimos, então, dois sentidos distintos de MPB: o primeiro que identificava um grupo de artistas engajados com o ideal nacionalpopular na década de 1960 e o segundo, chamado por Napolitano de instituição, que incorpora tanto os artistas da Bossa Nova, passando pelos emepebistas e tropicalistas quanto os artistas das gerações posteriores, e que só foi possível a partir da elucidação conceitual13 da música brasileira promovida pelo movimento tropicalista. Ao longo da dissertação, passo a me referir à instituição MPB somente como MPB, pois o aspecto histórico do grupo de artistas identificados como emepebistas e aos quais se contrapuseram os tropicalistas não tem relevância para a análise aqui empreendida. Portanto, a MPB, assim como a define Marcos Napolitano, é mais “do que um gênero musical determinado”, é uma “fonte de legitimação na hierarquia sociocultural brasileira, com capacidade própria de absorver elementos que lhe são originalmente estranhos”.14 Sandroni observa que durante as décadas de 1960, 70 e 80, a MPB possuía uma característica unificadora, pois “ela servia ao mesmo tempo como categoria analítica (distinguindo-se da música 'erudita' e da 'folclórica'), como opção ideológica e como perfil de consumo”. Na década de 1990, entretanto, a sigla passa a evocar somente o sentido de etiqueta mercadológica.15 O estreitamento conceitual do termo acompanhou o processo de segmentação do mercado fonográfico brasileiro: a MPB, que durante certo período englobava todo tipo de música produzida no Brasil, passou a ser mais um gênero entre outros, assim como a música sertaneja, o axé, o pagode romântico etc. A sigla perdeu sua característica unificadora, incapaz de 12

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro, Difel, 1990apud NAPOLITANO, Marcos, 2010, p. 7. Cf. CICERO, Antonio. “Tropicalismo e MPB”, in Finalidades sem fim: ensaios sobre poesia e arte. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. 14 NAPOLITANO, op.cit., p. 7. 15 SANDRONI, Carlos. Adeus à MPB. In: CAVALCANTE, B.; STARLING, H.; EISENBERG, J. (Org.). Decantando a República: inventário histórico e político da canção popular moderna brasileira. v. 1. Outras conversas sobre os jeitos da canção. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004. 13

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sintetizar as múltiplas identidades expressas nas músicas brasileiras veiculadas pelos meios de comunicação...”.16 Concomitantemente

ao

processo

de

segmentação

do

mercado,

o

barateamento do acesso aos novos meios técnicos de produção – no caso da música, as tecnologias digitais de gravação e a internet – também contribuiu para pulverizar a produção de cultura no Brasil. Se o genérico termo MPB foi capaz de abranger, em uma recepção coerente, um diversificado conjunto de manifestações musicais, a partir de então, os grupos produtores de cultura, de variadas procedências, passaram a reivindicar uma demarcação mais nítida das fronteiras socioculturais. A redução do sentido de MPB a uma etiqueta mercadológica revela o enfraquecimento do paradigma modernista de nação, fundamentado na ideia da mestiçagem racial e do sincretismo cultural. É exemplar o caso do grupo de rap paulistano Racionais MC's que, como observa Naves, “se orienta por uma redefinição da ideia de nacionalidade, ao passo que ela não mais se confunde com os limites geográficos do Estado-nação”.17 É nesse sentido, pois, que Sandroni, em seu artigo, dá “Adeus à MPB”, ou seja, é somente nesse sentido, de uma sigla unificadora, identificada com um projeto de nação, que se pode falar no fim da MPB. A instituição MPB, contudo, me parece constituir ainda uma categoria adequada de análise da recente produção da música brasileira. Santuza Cambraia Naves, Frederico Coelho e Tatiana Bacal notam um movimento de desconstrução e reconstrução revelador das transformações por que passaram tanto a concepção de MPB quanto a “maneira de avaliar os seus princípios básicos”. A desconstrução, segundo eles, estaria ligada ao abandono por parte dos músicos dos “fundamentos nacionais e totalizantes”, típicos da década de 1960, enquanto que o movimento de reconstrução buscaria “atualizar a canção popular a partir da incorporação de sonoridades gestadas por compositores que se consagraram como emepebistas”. Essa dinâmica é intrínseca ao processo, a um só tempo sociológico e mercadológico, que acentua a singularidade de identidades artísticas ligadas ao local em relação ao global, “e não mais a partir do nacional,

16 17

Idem, ibidem, p. 31. NAVES, op.cit.

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como na MPB”.18 O Tropicalismo, ao usar guitarra elétrica para fazer música brasileira, já se inclinava de forma isolada e prospectiva nesse sentido. Proponho, portanto, abordar a MPB sob dois enfoques: um amplo, que acompanha a reflexão sobre a fragmentação/democratização da cultura brasileira, e outro estrito, ligado à ideia de etiqueta mercadológica. O sentido amplo tem como pressuposto o grau de abstração que o termo adquiriu a partir da reelaboração conceitual da música brasileira promovida pelo movimento tropicalista; predomina aqui o princípio antropofágico de Oswald de Andrade, da “alteridade ao sentimento do outro”,19 que norteou, consciente ou inconscientemente, sucessivas gerações de compositores, cuja produção é marcada pela mistura de tradições, gêneros, repertórios, expressões artísticas.20 Em concordância com a antropofagia cultural, segundo Antonio Cicero, a cultura brasileira “existe somente enquanto bojo de contatos, atritos e fusões culturais e raciais” e a “originalidade desse país [...] não deve ser buscada na particularidade dele mas no seu modo de ser universal”.21 Foi devido a esse atributo da cultura brasileira que a MPB tornou-se, em certo momento, uma sigla unificadora, visto que, se, a rigor, o que é tipicamente brasileiro é fruto do contato com o estrangeiro – isto é, a cultura brasileira assimila o que lhe é estranho e cria, através da mistura, do sincretismo, algo diferente –, ela é capaz de conter, sem maiores contradições, múltiplas estéticas, assim como bem a define, por exemplo, Álvaro Neder, para quem Através da MPB, múltiplos estilos, gêneros (musicais e literários, incluindo a poesia oral), 'naturezas' ou 'origens' ('erudita', 'popular', 'folclórica') e histórias tiveram suas barreiras demolidas e foram colocados em embate sob um mesmo conjunto de práticas, de forma tanto deliberada quanto inconsciente pelo coletivo. Esta peculiar mistura, em que a música é o elemento vital e singularizante, produziu uma alteração da maior importância para a cultura, permitindo aos sujeitos transitar entre diferentes modelos identitários e ocupar múltiplas posições. Chega-se, assim, à conclusão de que o que unicamente define a MPB como uma prática singular é a pluralidade, sendo a pluralidade de gêneros um indicativo básico da pluralização das posições subjetivas, ao desconstruir identidades

18

NAVES; COELHO; BACAL, op. cit., p. 14. ANDRADE, Oswald de. Um aspecto antropofágico da cultura brasileira – o homem cordial. In: ______. A utopia antropofágica. São Paulo: Globo, 2011, p. 216. 20 NAVES; COELHO; BACAL, op. cit. 21 CICERO, Antonio. O mundo desde o fim. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995, p. 199. 19

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mais estáveis fabricadas por gêneros discretos. Dessa maneira, a MPB define-se a partir de sua música.22

Por causa da estreita ligação entre a MPB e a tentativa de definição da cultura brasileira, a compreensão da sigla na atualidade não pode prescindir das transformações porque está passando o conceito de identidade nacional. Nesse sentido, questiona Sandroni, “perguntar-se sobre o que se entenderá por música popular brasileira daqui para frente, ou se a expressão ainda será usada no futuro, é também perguntar-se sobre o que se poderá entender por 'povo brasileiro'”.23 Tem-se tornado comum, a partir do ano 2000, o uso do termo Nova MPB (ou congêneres como neo-mpb ou nova música brasileira) para referir-se a um grupo de compositores e intérpretes surgidos após a ampliação do acesso às tecnologias digitais de gravação e à internet. No sentido amplo até aqui analisado, a meu ver, chamar de nova a MPB, isto é, adicionar um epíteto para diferenciá-la da velha, não introduz mudança substancial ao termo, visto que, na medida em que a MPB é capaz de identificar-se com o conceito de antropofagia cultural, inclui um amplo matiz de tradições, sendo, portanto, os meios técnicos através dos quais se concretiza sua produção ou circulação, de natureza meramente acidental. No entanto, tomando como exemplo o movimento funk carioca, percebemos que, apesar de ser o resultado da mistura de influências estrangeiras e locais bem assimiladas na formação de um produto cultural distinto, não é socialmente reconhecido como parte da MPB. Aqui se revela, portanto, o sentido estrito de MPB. Se analisarmos a qualidade de “arqui-gênero” da MPB, posso entendê-la como uma sigla guarda-chuva sob a qual todos os gêneros musicais, uma vez produzidos no Brasil, estão contemplados (e esse é o sentido amplo abordado acima e que vigorou segundo Sandroni até a década de 1990), mas se consideramos a MPB no sentido estrito de etiqueta mercadológica, ela passa a ser vista como mais um gênero entre outros, definido porém – e aí reside sua especificidade – pela mistura e coexistência de outros gêneros musicais ou até pela diluição deles, obedecendo a uma maneira puramente pessoal do artista compor e se comunicar através de sua música – o que Luiz Tatit chama de adequação entre a melodia e a

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NEDER, Álvaro. A invenção da impostura: MPB, a trama, o texto. In: GIUMBELLI, E.; DINIZ, J. C. V.; NAVES, S. C. (Org.). Leituras sobre música popular: reflexões sobre sonoridades e cultura. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008, p. 274. 23 SANDRONI, op.cit., p. 31.

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dicção do autor.24 Um artista de MPB não é reconhecido como sambista, funkeiro ou sertanejo. Portanto, embora MPB, samba, funk carioca ou sertanejo sejam todos gêneros representativos da música popular brasileira, somente a etiqueta MPB é capaz de reunir sob uma única sigla essa multiplicidade de outros gêneros ou estilos, transmutados na singularidade estética do artista. Antes de tentar explicar a razão da precedência do adjetivo “nova” à sigla, preciso ainda chamar atenção para uma característica fundamental da MPB. Segundo Marcos Napolitano, na década de 1960, a incipiência da indústria televisiva e os altos investimentos da indústria fonográfica no mercado brasileiro possibilitaram a coexistência, ainda que tensa, do rigor formal pretendido e levado a cabo pelos artistas e dos interesses comerciais, o que acabou por assegurar à instituição MPB “uma autonomia relativa” em relação à racionalidade econômica da indústria fonográfica e da televisão.25 Se, impulsionado pelos festivais da canção – os festivais da canção eram então os programas de maior audiência da televisão e o consumo de música ainda estava atrelado às classes mais altas da sociedade26 –, a MPB conseguiu conjugar desejo de expressão artística com sucesso comercial, nas décadas seguintes, o controle do processo produtivo por uma lógica econômica cada vez menos flexível diminuiu as margens de liberdade artística. Assim, a MPB, na década de 1990, passa a remeter sobretudo à produção de artistas surgidos nas décadas anteriores, ou a uma estética tida como datada, sintetizada na fórmula voz e violão. Os anos que antecederam a crise da indústria fonográfica são marcados pela falta de interesse em investimentos de longo prazo. Na década de 1990, a música sertaneja, o pagode romântico e a axé music foram eleitos como os principais produtos de retorno rápido para as gravadoras, situação que contribuiu para agravar o limbo em que se encontrava a MPB. O jornalista Tárik de Souza descreve o transcurso: Depois de décadas em que as diferentes gravadoras (na grande maioria, multinacionais) faziam suas apostas artísticas, como manda a prudência do mercado financeiro, em ases de curto, médio e longo prazo, essa estratégia foi drasticamente modificada, a partir dos anos 1990. O foco único passou a concentrar-se nos chamados produtos 24

TATIT, Luiz. O século da canção. Cotia: Ateliê Editorial, 2004. NAPOLITANO, op. cit., passim. 26 Idem, ibidem. 25

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descartáveis, de fôlego curto, vendas altas e imediatas. A chamada MPB, cuja linha evolutiva, após a era de ouro, tinha tomado rumos cada vez mais inovadores após a bossa nova (era dos festivais, Tropicalismo, clube da esquina, neonordestinos, vanguarda paulista), foi progressivamente alijada dos meios de difusão de massa, movidos, muitos deles, a jabá. Mesmo figurões coroados em décadas anteriores [...] passaram a viver mais de shows do que de discos. E muitos saíram das majors para selos independentes”.27

A partir do ano 2000, contudo, o novo paradigma tecnológico passa a viabilizar a carreira de uma geração profícua de artistas – anteriormente preteridos do mercado fonográfico –, ligados à tradição da MPB, porém marcando uma diferença em relação a ela. A criação do termo Nova MPB deve-se, assim, tanto a uma atualização estético-musical da MPB, possibilitada pelo uso das tecnologias digitais de gravação e composição, quanto a uma reconfiguração do mercado musical, decorrente dos novos meios de produção e difusão da música. É explicativo o trecho da entrevista de Frederico Coelho ao Diário do Nordeste: O que chamamos de 'Nova MPB' é a forma como se encontrou para dar conta de uma produção intensa e extensa em qualidade e quantidade de uma geração que chegou ao momento maduro. A mesma geração que, desde meados dos anos 1990 (e por isso um marco sempre evocado é o Manguebeat, quando uma cena musical local como a de Recife incorporou os dados da eletrônica, ganhando projeção nacional fora dos meios já conhecidos de divulgação das grandes gravadoras e da grande mídia) precisou se reinventar dentro da crise da indústria fonográfica e do admirável mundo novo dos novos recursos digitais de gravação, reprodução e circulação da mercadoria música. Uma geração que entendeu o processo e passou a produzir de forma orgânica, juntando forças, trocando ideias e colaborando não apenas para sua carreira, mas para todo um campo de produção e fruição da música.28

O grupo de artistas da Nova MPB, uma vez que viraram donos dos meios de produção, passaram a experimentar novos processos de criação e circulação da música fora do antigo modelo da indústria fonográfica, reafirmando em novos termos a tendência à autonomia da instituição constituída nos anos 1960. Tendo como base o movimento de desconstrução e reconstrução da MPB, a Nova MPB, sem esquecer o aspecto comercial da música, repõe em prática o desejo de experimentação artística, ainda orientado pelo princípio da mistura e do sincretismo cultural, mas não mais atrelado a um discurso nacional. Portanto, em sentido estrito, isto é, como 27

SOUZA, Tárik de. A MPB entre a arte e o trono do mercado. Revista Cult, n. 151, 15 out. 2010. COELHO, Frederico. Nova MPB – uma entrevista. Objeto sim objeto não, 5 set. 2011. Disponível em: . Acesso em 20 dez. 2011. 28

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etiqueta mercadológica, faz sentido o uso do termo Nova MPB, visto que circunscreve a nova produção sob novos parâmetros estéticos e materiais de produção, diferentes da “velha” MPB bancada pela indústria e estacionada criativamente. Para concluir, é possível fazer um compêndio das principais características da Nova MPB; entre elas: (1) a de não se encerrar em um único ou poucos gêneros ou estilos musicais; ao contrário, tem como principal característica a mistura deles (por vezes nenhum se sobressaindo especificamente) e as influências de outras artes, entre as quais se destaca a literatura; (2) há um uso livre de variados instrumentos, com o violão de nylon ocupando uma posição tradicional de destaque na formação instrumental (embora o uso de guitarra elétrica, inclusive sem a presença do violão de nylon, seja muito comum, pelo menos desde a Tropicalismo), além da utilização cada vez mais frequente de instrumentos eletrônicos; (3) faz parte principalmente do formato canção, isto é, a união de letra e música (não descartando eventuais composições instrumentais); (4) apesar de possuir letras em idiomas estrangeiros (fato também cada vez mais recorrente), é preponderantemente cantada em português; (5) cumpre uma função de entretenimento, sendo veiculada em rádio, televisão, internet e apresentações ao vivo; (6) é relevante a presença de obras originais, isto é, de autoria dos próprios compositores-intérpretes ou de compositores que possuem obras inéditas interpretadas por cantores ou cantoras; (7) novas versões de antigas canções também são frequentes, porém há uma vontade perceptível de desconstruí-las, marcando uma diferença da versão original; (8) há um diálogo intenso com a tradição da música brasileira em suas variadas manifestações regionais e também com a música pop internacional; (9) tanto artistas em carreira solo quanto grupos, tanto compositores-intérpretes quanto simplesmente intérpretes fazem parte da Nova MPB; (10) o campo é constituído por certas instâncias de legitimação e consagração29, como cadernos culturais de jornais voltados para segmentos da elite cultural, blogs especializados, programas de televisão, estações de rádio, casas de shows, além de agentes específicos, como selos, gravadoras, editoras, empresários; (11) tanto os artistas quanto o público são predominantemente de classe média ou classe média alta e cursaram ou cursam 29

Instâncias de legitimação e consagração é um conceito usado pelo sociólogo Pierre Bourdieu, que designa os espaços que podem garantir um retorno financeiro ou simbólico para os atores do mercado de bens culturais.

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universidade; (12) há uma rica tradição que pode ser reconhecida na figura de artistas brasileiros de diferentes épocas após o acontecimento da Bossa Nova.

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2 DUPLA ECONOMIA O período de institucionalização da MPB, durante a década de 1960, foi marcado por dois movimentos antagônicos e complementares: de um lado, os artistas, que primavam por um rigor artístico em suas canções e um discurso totalizante de nação; e por outro lado, a instalação no país da indústria fonográfica multinacional em parceria com a nascente televisão brasileira. Os artistas, ao mesmo tempo que descobriam o novo meio de comunicação como um ótimo veículo para dirigir-se ao grande público, opunham-se à tendência de estandartização do produto cultural apontada por ele. Tal conflito entre a criação artística e a lógica de mercado, como tentarei demonstrar, é intrínseco ao mercado artístico na sociedade moderna. Lewis Hyde, em seu livro “A dádiva: como o espírito criador transforma o mundo”, procura entender quais são as especificidades da dimensão econômica da obra de arte; encontra então no campo da antropologia, em trabalhos sobre “doações (dádivas, presentes) como uma forma de propriedade” em “um tipo de comércio”,30 a base de sustentação para sua tese. Para ele, a obra de arte pertence a uma dupla economia: a economia da doação, que lhe é essencial, e a economia de mercado, que lhe é contingencial. A economia de doação foi apresentada por Marcel Mauss em seu livro Ensaio sobre a dádiva, no qual descreve os métodos de troca das sociedades consideradas pelo ocidente como primitivas. Nelas, o comércio se dá mediante uma série de obrigações morais que agem como força social integradora da comunidade. Apropriando-se das ideias de Mauss e aplicando-as ao campo artístico, Hyde acredita que a doação seja o princípio mesmo do processo criador. Segundo ele, ao artista é concedida a primeira dádiva “por meio da percepção, da experiência, da intuição, da imaginação, do sonho, de uma visão ou de uma obra de arte”. Existem casos em que esse primeiro material constitui-se por si só uma obra acabada – “... nesse caso o artista é meramente um transmissor ou um meio (os poetas surrealistas tentaram trabalhar dessa maneira...”31 – porém isso é raro e o mais comum é que o artista labore com o material. “A capacidade de elaborar tal matériaprima constitui-se na segunda dádiva, que é o dom do artista” – o dom pode ser 30 31

HYDE, op. cit., p. 17. Idem, ibidem, p. 292.

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descrito como uma força de síntese, um “poder de combinar os elementos de nossa experiência em um todo coerente”. Por último, com o que lhe foi doado inicialmente, o artista produz algo mais elevado, que constitui a obra de arte acabada – a terceira dádiva, portanto – “que é oferecida ao mundo ou dirigida de volta ao clã ou à terra natal que deu ao artista a primeira dádiva”.32 Em outras palavras, a experiência do artista com tudo aquilo que está a seu redor e faz parte de sua vida cria um repertório de imagens relacionadas as suas sensações íntimas. Esse “inventário de sensações”, por mais que o acesso à fruição do bem artístico seja mediado pelo mercado (através da compra de ingresso para um concerto musical, por exemplo), permanece apartado do aspecto estritamente monetário da relação, visto que os artistas, como poderemos discutir melhor no item 2.1.3, não produzem suas obras motivados prioritariamente pelo dinheiro. A própria tradição constitui-se numa dádiva às novas gerações, que, acrescida do labor do artista, é retribuída ao lugar de origem em forma de uma nova obra de arte, completando um percurso necessário para que a doação de fato aconteça, pois, ao contrário da economia de mercado, na economia de doações, o objeto é consumido quando passado adiante – “a riqueza é medida por sua circulação e não por sua simples aquisição e acumulação”.33 O ciclo descrito revela então o espírito coletivo que se forma em torno do objeto artístico: Como ocorre com qualquer circulação de dádivas, a arte agrega os participantes – artista e público – em um self mais amplo. O espírito criador move-se em um corpo, ou ego, maior que o de cada pessoa envolvida. As obras de arte são extraídas de partes do ser que não são exclusivamente pessoais, partes que derivam da natureza, do grupo, da raça, da história e da tradição e que se manifestam através do dom do artista. Já o público que delas usufrui, este tem essas mesmas partes comuns nutridas pelas obras de arte. Na doação que faz através do dom que recebe, o artista nos possibilita fazer parte de algo que não perecerá, ainda que pereçamos todos nós e as gerações que nos sucederão. […] As obras de arte não são 'meramente' simbólicas e tampouco “representam simplesmente” o self maior; elas são sua corporificação necessária, uma linguagem sem a qual esse self maior não existiria.34

Para o autor, as identidades pessoais, específicas, sexuadas, são transitórias e tomam e perdem forma no interior do que chama de self, ou um espírito coletivo, 32

Idem, ibidem, p. 292. Idem, ibidem, p. 72. 34 Idem, ibidem, p. 239. 33

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que por sua vez é duradouro e impessoal.35 Para tornar mais clara a ideia de economia de doação, é preciso observar o funcionamento do processo de acumulação capitalista descrito por Hyde. A partir da observação de Marcel Mauss sobre as práticas de troca de comunidades arcaicas, em que os beneficiários de doações devem cumprir certas obrigações, como, por exemplo, retribuir a dádiva recebida ou com um objeto de valor equivalente ou superior, preferencialmente para uma terceira pessoa que não aquela de quem recebeu a doação, de modo a ampliar o círculo de doações, Lewis Hyde relaciona essa retribuição à figura da usura, que no comércio de doações “é sinônimo do acréscimo que se incorpora à doação quando ela é consumida ou passada adiante”; “essa 'usura' não é computada nem cobrada: ela é passada adiante como doação também”,36 gerando a abundância da riqueza, argumenta. Diferentemente, portanto, da ideologia capitalista – e também da experiência comunista de transformar o Estado em proprietário de tudo –, cuja prerrogativa para a produção de riqueza é a retirada de circulação do excedente, transformando-o em capital, na economia de doação, o excedente é tratado como dádiva. Por isso, nesse tipo de economia, a valorização é um processo contínuo que segue o objeto, enquanto que na transação de bens de mercado ela é interrompida ao transformar-se em lucro. Ainda segundo Hyde, a cobrança da usura esteve sempre associada ao círculo social. No Antigo Testamento, a lei dupla de Moisés proibia o recebimento de juros entre “irmãos” – “não emprestarás com usura a teu irmão...” –, mas o permitia nas relações com estrangeiros – “poderás emprestar com usura ao estrangeiro...”.37 O pressuposto dessas normas é a constatação de que a riqueza deve fluir no interior do grupo, e para isso acontecer, a usura deve ser tratada como dádiva. A crença cristã na fraternidade universal criou então um problema para a prescrição contida na lei de Moisés, solucionado, contudo, pela reforma protestante, que torna novamente a restringir o raio do círculo, e recoloca a usura em novos termos, sob uma condição cindida entre os âmbitos civil e moral: sobre o primeiro, caberia ao Estado legislar, mais competente no que diz respeito aos assuntos econômicos, enquanto sobre o segundo, a responsabilidade seria do poder espiritual, que, no

35

Idem, ibidem. Idem, ibidem, p. 184. 37 Idem, ibidem, p. 188. 36

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entanto, a proíbe. A questão da usura acompanha a formação do Estado laico e a divisão dos domínios temporal e espiritual, fundadores da sociedade moderna. Uma característica que se depreende da troca de doações, portanto, é o laço afetivo que se estabelece entre os membros da coletividade. Nos termos do sociólogo alemão Ferdinand Tönnies, essa relação está associada ao sentimento de comunidade, segundo o qual as relações sociais são organizadas numa suposta origem orgânica e natural, de orientação religiosa, onde a cooperação entre os membros do grupo é baseada na memória e na tradição.38 É também nesse sentido que a economia de doações deve ser entendida, para Marcel Mauss, como um “fenômeno social total”, “cujas transações são ao mesmo tempo econômicas, jurídicas, morais, estéticas, religiosas e mitológicas”,39 anterior ao desenvolvimento do contrato legal como instituição, que exclui os conteúdos sociais e afetivos da relação. Ao conceito de comunidade, Tönnies opõe o de sociedade, onde as pessoas estão reunidas de modo mecânico, arbitrário, regidas por regulamentações contratuais e seguem princípios racionais de conduta.40 São exemplos de sociedade as cidades modernas, cuja sociabilidade é marcada pela impessoalidade. Como observa Georg Simmel, a impessoalidade nas relações deve-se em grande parte ao papel assumido pelo dinheiro como meio de troca, já que a substituição da troca de prestações de serviço por pagamentos em dinheiro foi sentida como meio para a liberdade pessoal. Se, por um lado, o surgimento da sociedade moderna desfaz a rigidez hierárquica de classes, por outro, fragiliza os laços afetivos dentro da coletividade.41 A liberdade individual como possibilidade histórica é, portanto, inseparável do surgimento da nova ordem econômica capitalista, cujos princípios, por causa disso, revestem-se de valores pretensamente universais e passam a regular toda a extensão das relações sociais. Em outras palavras, tenta-se legitimar ideologicamente a acumulação desigual do excedente de capital – e todas as consequências sociais decorrentes – pela simultaneidade (e complementariedade) histórica da conquista política dos direitos civis.42 Foi Max Weber, no entanto, que melhor esclareceu a relação entre “A ética protestante e o

38

TÖNNIES, Ferdinand. Community and society. Mineola: Dover Publications, 2002. HYDE, op. cit., p. 18. 40 TÖNNIES, op.cit. 41 SIMMEL, Georg. Psicologia do dinheiro e outros ensaios. Lisboa: Texto e Grafia, 2009. 42 Cf. MARSHALL, T.H. Cidadania, Classe Social e Status. Rio de Janeiro: Zahar editores,1967. 39

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'espírito' do capitalismo”. Um trecho de seu importante ensaio contribui para situar o tema: Atualmente a ordem econômica capitalista é um imenso cosmos em que o indivíduo já nasce dentro e que para ele, ao menos enquanto indivíduo, se dá como um fato, uma crosta que ele não pode alterar e dentro da qual tem que viver. Esse cosmos impõe ao indivíduo, preso nas redes do mercado, as normas de ação econômica. [...] O capitalismo hodierno, dominando de longa data a vida econômica, educa e cria para si mesmo, por via da seleção econômica, os sujeitos econômicos – empresários e operários – de que necessita.43

Ora, se a obra de arte pertence essencialmente a uma economia de doações, revela-se então o descompasso entre a existência da obra de arte na sociedade moderna, imersa na crosta capitalista e pautada pela lógica de mercado, e a remissão

a

valores

associados

a

um

tipo

de

sociabilidade

comunitária,

historicamente superado no ocidente. O artista moderno está, portanto, sob “constante tensão entre a esfera da doação (dádiva, dom), a qual sua obra pertence, e a sociedade de mercado, que é seu contexto” – “como preservar o verdadeiro espírito de comunidade em uma sociedade de massa cujo valor dominante é o valor de mercado e cuja moralidade foi codificada em leis”?,44 questiona Hyde. A transformação do excedente em capital e, consequentemente, o declínio do valor da doação, são intrínsecos à consolidação das bases materiais da sociedade capitalista moderna (industrial e urbana). Quais são as consequências dessa conjuntura para o processo criativo do artista? Parte de uma possível resposta a essa questão pode ser encontrada na crítica à indústria cultural elaborada por Theodor Adorno. Devo fazer a ressalva de que não me interessa aqui utilizar os comentários do autor sobre o momento em que escreveu, no final da primeira metade do século passado, e tampouco compartilho de seus juízos generalizantes sobre a qualidade estética das obras produzidas sob a organização industrial. Nesse sentido, concordo com Gabriel Cohn, para quem as ideias do filósofo alemão “não refletiam o real como fato histórico, mas apontavam para as potencialidades de realização de uma tendência social mais bem

43

WEBER, Max. A ética protestante e “espírito” do capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 47 e 48. 44 HYDE, op. cit., p. 152.

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acabada”.45 Essa suposição permite-me dizer que Adorno mirava uma espécie de tipo ideal, isto é, procurava reconhecer um tipo de conduta orientada pela lógica de mercado, que pode também ser aplicada a outros contextos históricos e culturais na forma de parâmetro de comparação e análise. É por esse motivo que alguns de seus pressupostos teóricos permanecem atuais, pois, mesmo após a completa transformação das condições materiais de produção a partir da década de 1970, os preceitos gerais que regem o comportamento do homo economicus permanecem vigentes. Quero abordar, portanto, a crítica à indústria cultural como uma crítica, sobretudo, às consequências da concentração de poder dos conglomerados industriais para a criação artística. Segundo Adorno, a formação de oligopólios tende a tornar idêntica toda cultura de massas,46 empobrecendo a capacidade de percepção do indivíduo e forjando um círculo vicioso da produção cultural. A cultura se torna um produto da indústria, criada sob o filtro da lógica comercial, e não mais resulta de uma negociação de forças no interior da sociedade, por certo assimétricas, mas que refletem uma base minimamente diversificada de poder; na indústria cultural, o consenso é imposto pelas forças econômicas. Com o passar dos anos, nos explica Robert Hullot-Kentor, a expressão indústria cultural adquire sentidos distintos do original cunhado por Adorno. Uma frívola onipresença do termo faz com que o significado do conceito se perca em meio a uma profusão de termos industriais como, por exemplo, “indústria hospitalar”, “indústria da educação” etc., “dentre as quais a 'indústria cultural' corresponde apenas a uma derivação...”;47 dáse assim uma cisão entre o sentido atribuído por Adorno, ciente do conteúdo antagônico do conceito, e sua apropriação comercial, “anestesiada em relação àquilo que significa”.48 Hullot-Kentor explica que: Para entender com mais precisão o antagonismo entre cultura e indústria no conceito adorniano de “indústria cultural”, é preciso primeiramente levar em conta que a cultura, embora possa ter outros sentidos, é tudo aquilo que é mais do que a autopreservação. É aquilo que surge da capacidade de suspender propósitos diretos. […] 45

COHN, Gabriel apud DIAS, Marcia Tosta. Os donos da voz: indústria fonográfica brasileira e mundialização da cultura. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 24. Grifo nosso. 46 ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. A indústria cultural: o esclarecimento como mistificação das massas. In: ______. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. 47 HULLOT-KENTOR, Robert. Em que sentido exatamente a indústria cultural não mais existe. In: DURÃO, F. A.; ZUIN, A.; VAZ, A. F. A indústria cultural hoje. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 19. 48 Idem, ibidem, p. 21.

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A indústria cultural, como produção de cultura por meio da indústria, é o agente por meio do qual tudo aquilo que poderia ir além, e que de fato vai além, da autopreservação da vida é reduzido à violenta luta pela sobrevivência.49

Em outras palavras, a produção de cultura, que para Adorno deve ser desinteressada – assim como Immanuel Kant acreditava que deveria ser a natureza do juízo estético –, quando produzida pela indústria, movida pelo interesse no lucro, faz com que a beleza que está na “finalidade sem fim” das obras de arte passe a ter uma função utilitária de entretenimento. A obra de arte pode também ter uma função de entretenimento sem perder suas qualidades estéticas, porém, diversos bens produzidos pela indústria do entretenimento constituem-se em ótima diversão sem, no entanto, ter nenhuma relevância artística. Nesse caso, o poder de oligopólio da indústria é um fator de coerção ao “espírito criador”, visto que as decisões sobre a produção e seleção dos bens artísticos passam a ser tomadas pelos executivos das empresas. Se “no comércio essencial da arte uma doação se efetua entre o artista e o público”,50 na indústria cultural, entre artista e público está o intermediário comercial, que vai vender a obra de arte no mercado e que tem o poder de arbitrar sobre a produção. A assimetria de poder entre a indústria e os artistas não significa que não se pode produzir cultura sob o modelo industrial – a cultura é resultado de um jogo complexo de negociações –, mas que os princípios que movem um e outro são incompatíveis. Por isso a constante tensão entre os dois pólos é necessária. Adorno descreve um cenário em que há um predomínio total da lógica de mercado sobre a criação artística. Como disse, esse cenário somente existe idealmente. Fato é que, durante esse período, a indústria detinha os recursos de produção que eram usados como recurso de poder para condicionar o gosto do público, que, por sua vez, não deixa de ser considerado, mas sob altos custos de publicidade. Para Adorno, a publicidade, e a consequente normalização do gosto do consumidor, garante que o poder de decisão fique sempre entre os diretores executivos das empresas.51 Nesse modelo, a liberdade de escolha do consumidor se torna ainda o argumento de economistas para legitimar a decisão supostamente imparcial do mercado sobre a

49

Idem, ibidem, p. 22. HYDE, op. cit., p. 15 51 ADORNO; HORKHEIMER, 1985. 50

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produção.52 A padronização do gosto tende a estipular fórmulas para o processo criativo dos artistas, que, de modo a garantir sua existência no mercado, em maior ou menor grau, são impelidos a aceitar os preceitos do mercado, acabando por transformar suas obras em meras mercadorias, destituídas de valor estético e diluídas na roda fugaz do entretenimento. O objeto artístico, cuja fruição é subjetiva e instransferível, nesse contexto, passa a ter seu valor medido por parâmetros objetivos e o valor intrínseco à obra tende a não mais exercer influência no juízo estético do indivíduo. A padronização dos bens culturais e a reificação da percepção do indivíduo têm como consequência, segundo Adorno, a realização do “o homem como ser genérico”: se “outrora, a oposição do indivíduo à sociedade era a própria substância da sociedade. […] Hoje, o trágico dissolveu-se neste nada que é a falsa identidade da sociedade e do sujeito”.53 Adorno recoloca a mesma oposição entre indivíduo/sociedade em termos de artista/estilo (de uma época), quando descreve o artista como o indivíduo vilipendiado pela indústria cultural. Para ele, a indústria cultural torna-se então a “negação do estilo”, pois o estilo não deve consistir “na realização da harmonia [...], mas nos traços em que aparece a discrepância, no necessário fracasso do esforço apaixonado em busca da identidade.54 Em outras palavras, a construção do estilo pressupõe a ação do artista em embate constante com as injunções da sociedade, mas para Adorno, a sociedade administrada pela indústria cultural não permite nenhum embate e suprime, por isso, a tensão salutar que deveria haver entre o artista e o estilo de sua época: “os grandes artistas jamais foram aqueles que encarnaram o estilo da maneira mais íntegra e mais perfeita, mas aqueles que acolheram o estilo em sua obra como uma atitude dura contra a expressão caótica do sofrimento, como verdade negativa”.55 Tomando a teoria de Adorno como um tipo ideal, que nunca chega a se realizar concretamente, mas aponta tendências, devo relativizar sua afirmação de que a indústria cultural é a negação do estilo com outra menos peremptória do próprio autor, a de que é a indústria cultural é “o mais inflexível de todos os estilos”. Assim, é possível resguardar uma margem de manobra para o grande artista, tal como 52

TOWSE, Ruth. A text book of cultural economics. Cambridge: Cambridge University Press, 2010. Idem, ibidem, p. 127. 54 Idem, ibidem, p. 108. 55 Idem, ibidem, p. 107. Grifo nosso. 53

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definido acima, pois, se a indústria cultural, por mais inflexível, é o estilo dominante da economia de mercado, o grande artista, como sujeito pensante, deve acolher seus preceitos em sua obra como verdade negativa, criticando-os, portanto. É, por esse motivo, forçosamente um sujeito cindido psicologicamente, que incorpora a unidade dos contrários, e a torna consciente em sua própria produção, preservando a constante tensão entre o particular – ele próprio e a obra – e o universal – o contexto histórico, contingente, no qual está inserido. Em outros termos, pode-se dizer que se trata de um conflito de racionalidades entre o “espírito criador” e o “'espírito' do capitalismo”. Max Weber, esforçando-se para relativizar as ambições universalistas do slogan “time is money”, ilumina seu conceito de racionalidade: Nunca uma coisa é “irracional” em si, mas sempre de um determinado ponto de vista “racional”. Para quem é irreligioso, toda conduta de vida religiosa é “irracional”, assim como para o hedonista é irracional toda conduta de vida ascética, por mais que, levando-se em conta o valor último de cada qual, se trate de uma “racionalização”. Se o presente ensaio [A ética protestante e o “espírito” do capitalismo] tiver que contribuir com algo, que seja para pôr a descoberto em sua polivalência o conceito apenas aparentemente unívoco de “racional”.56

Tendo em mente a dicotomia indivíduo/sociedade – ou indivíduo/coletividade, como exemplicado por Weber –, pode-se entender que, no limite, a racionalidade é individual. Assim, a racionalidade econômica, isto é, a racionalidade de uma coletividade que partilha um modo de pensar comum, se mostra, na indústria cultural, uma força hegemônica contra a qual se bate a racionalidade individual do grande artista em busca de identidade.57 Este, como vimos, uma vez inserido em uma lógica de produção para o mercado, encontra-se no centro de dois princípios antagônicos. A tensão entre arte e mercado subjaz as principais questões em debate durante o período de institucionalização da MPB. Marcos Napolitano situa o tema: ... a história da MPB renovada, produto dos anos 1960, foi marcada pelo conflito entre dois vetores opostos, um 'movimento instituinte' da MPB, que configura autonomia e outro, de reordenamento da realização comercial da canção, que enseja heteronomia. Mesmo no fim da década, quando o vetor representado pela indústria cultural adquiriu maior visibilidade, a sua atuação junto aos criadores e à 56 57

WEBER, op.cit., p. 175. ADORNO; HORKHEIMER, op. cit.

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audiência de MPB não pode negligenciar o caráter institucional desta corrente. Em suma, nem sempre instituição e mercado estiveram harmônicas, embora, em linhas gerais, os dois movimentos tenham sido concomitantes, constituindo séries históricas que ora convergiram, ora divergiram e só podem ser compreendidos dentro da historicidade específica que instituiu a MPB.58

Nos anos 1960, o potencial de audiência da música popular era explorado pelo mercado televisivo em programas seriados e festivais da canção, tornando manifesta a tensão entre as dimensões estética e comercial da música. A discussão ganhou publicidade no final da década com o sucesso do programa Jovem Guarda, que rivalizou a audiência com sua versão emepebista, o Fino da Bossa. Os defensores da MPB nacional-popular, colocando-se em uma posição de guardiões da cultura e do bom gosto, questionaram a qualidade estética do outro grupo, tidos como um produto pasteurizado e alienado, fato que os obrigou então a compreender a situação ambígua da música como produto comercial e cultural e a entender o mercado não como um meio neutro de divulgação, mas como um problema estrutural a ser enfrentado.59 O Tropicalismo surge nesse momento, em 1968, propondo uma saída para o impasse estético-ideológico em que se encontrava a MPB nacional-popular. Para além da apreciação estética favorável das canções e performances da Jovem Guarda, fazia parte da estratégia tropicalista tomar emprestada a roupagem jovem, despojada e internacional (supostamente universal), com a qual venderiam as suas canções no mercado.60 Pode-se dizer que a estratégia consistia em tomar emprestado aspectos objetivos da música comercial, desde as vestimentas até a sonoridade, preservando, no entanto, a consciência crítica do artista, notória nas performances e canções dos tropicalistas. O entendimento do sistema de condicionamentos da indústria cultural, inexorável, segundo Umberto Eco, para que possa haver comunicação entre artista e público consumidor,61 é sistematizado enfim pelo movimento tropicalista. Até então os artistas da MPB nacional-popular, ainda que representassem a força propulsora da reorganização das indústrias fonográfica e televisiva, não estavam completamente integrados. No auge do sucesso dos festivais da canção, o 58

NAPOLITANO, op. cit., p. 8. Idem, ibidem. 60 Idem, ibidem. 61 ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. São Paulo: Perspectiva, 2006. (Coleção Debates, n. 19). 59

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compositor Sidney Miller, por exemplo, defendia a tese de que o artista deveria resguardar sua integridade, sem, no entanto, afastar-se do público. Marcos Napolitano observa a incoerência, de caráter prático, dessa linha de pensamento: ... na sua visão [de Sidney Miller], a “comunicabilidade”, categoria central da canção engajada, deveria ser pensada fora das estruturas do “consumo massificado” […] O mecanismo de “universalização do gosto”, imposto pelas multinacionais da canção, poderia ser matizado pelo compromisso individual do artista-artesão em oferecer um produto “não alienante” que colocasse em xeque o “produto de consumo massificado”.62

Curioso perceber, no entanto, que parte da afirmação de Sidney Miller, quando diz que o “compromisso individual do artista-artesão em oferecer um produto 'não alienante'” poderia matizar a universalização (estandartização) do gosto, parece descrever os próprios interesses dos tropicalistas, pois, como vimos, o grande artista, mesmo atuando dentro da estrutura, quando consciente de sua posição contraditória, pode e deve sustentar um compromisso artístico que é individual. E esse foi o caso dos expoentes tropicalistas, sem, no entanto – e neste ponto são opostos à Miller –, o desejo de colocar “em xeque o 'produto de consumo massificado'”, mas sim problematizá-lo, mesmo que de forma não assumida; sem tampouco, e menos ainda, pensar “a 'comunicabilidade' [...] fora das estruturas do 'consumo massificado'”, pois propunham exatamente o contrário. Os artistas ligados ao Tropicalismo, embora compreendessem os condicionamentos aos quais estavam submetidos, não se viam libertados pela máquina63 e buscavam uma atuação crítica no interior do sistema. Celso Favaretto esclarece os procedimentos adotados pelos tropicalistas para dar conta da situação: Se, por um lado, a atividade artística se realiza inevitavelmente segundo a ordem do mercado, por outro, não deixa de se afirmar como tentativa de transformação da sensibilidade, das convenções, dos comportamentos. Esta possibilidade tem sido explorada segundo, ao menos, duas direções: por um trabalho de metalinguagem, de reflexividade do processo artístico, e pela explicitação dos mecanismos de produção da arte, conforme sua situação.64

62

NAPOLITANO, op. cit., p. 236. ECO, op. cit. 64 FAVARETTO, op.cit., p. 139. 63

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De forma semelhante, para Marcos Napolitano, o Tropicalismo musical pretendia consolidar um novo público jovem através da utilização de códigos e padrões que não podiam ser totalmente assimilados pela indústria cultural, atuando como uma vanguarda dentro do mercado.65 Os tropicalistas, portanto, interiorizaram a lógica do mercado, mas colocaram-se em uma posição dialética em relação a ela, em um movimento de “distanciamento-aproximação”.66 Importante enfatizar, portanto, que durante o período de institucionalização da MPB, o artista não sucumbiu à lógica de mercado, mesmo com a consciente e assumida postura comercial dos tropicalistas. A indústria cultural, aplicada ao Brasil da década de 1960, não se configurou – tal como pensava Adorno – em pura negação do estilo, pois formou-se um espaço de enfrentamento ideológico entre os artistas e a indústria, que não refletia, a rigor, “a experiência obscura dos dominados”.67 A consolidação da MPB como uma instituição relativamente autônoma ao mercado criou uma espécie de respiradouro dentro das estruturas econômicas, com maior ou menor autonomia ao longo das décadas seguintes. Se, para Adorno, o grande artista deve incorporar a unidade dos contrários (mercado e autonomia), é inevitável reconhecê-la no comportamento dos artistas tropicalistas, visto que a solução para o impasse que a MPB nacional-popular então se encontrava foi, justamente, a tomada de consciência por eles, da necessidade de assumir criticamente – como “verdade negativa” – o mercado como estrutura condicionante da qual não era mais possível livrar-se. Segundo Marcos Napolitano, O Tropicalismo pode ter sido o espelho que forçou a instituição-MPB a olhar para si mesma, enxergando sua imagem refletida como mercadoria exposta, objeto banal e de rápido consumo. O mercado ao se olhar neste espelho pode ter visto o contrário: seus bens culturais elevados à condição de arte. O enigma histórico do Tropicalismo musical reside na decifração desta situação ambígua.68

De acordo com a teoria de Lewis Hyde, há duas categorias primárias de propriedade: uma se transmite por doação e a outra como bem de mercado. Nenhuma, segundo ele, deve ser vista em estado puro. Elas coexistem.69 A partir dessa ideia, podemos pensar em um continuum, em que é possível identificar 65

NAPOLITANO, op. cit. FAVARETTO, op. cit., passim. 67 ADORNO; HORKHEIMER, op. cit., p. 107. 68 NAPOLITANO, op. cit., p. 225. 69 HYDE, op. cit. 66

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diferentes graus de conformação entre as duas categorias, a depender de variáveis contingentes. Para Adorno, o valor de mercado prevalece de forma absoluta sobre a criação artística. É por isso que descreve um tipo ideal. A MPB, como parte constituinte da indústria cultural brasileira na década de 1960, não se encaixa perfeitamente nos pressupostos adornianos, pois mantém a tensão entre os dois pólos. Se, por um lado, podemos identificar o aspecto estritamente comercial das canções de MPB, por outro, devemos perceber os riscos estético-formais que assumiram os artistas, não se adequando inteiramente à lógica econômica estrita.70 Como já deve ter ficado claro, é, portanto, no sentido de uma força tendencial, e não absoluta, que aplico o conceito de indústria cultural nesta dissertação sobre a música brasileira, pois por mais que a indústria possua um poder econômico capaz de determinar a produção artística em várias instâncias, nunca chegará a ter um poder absoluto sobre a criação artística. Em suma, é importante frisar que a instituição MPB surgiu da relação intrínseca com o mercado – sendo assim, a canção de MPB é por definição um produto comercial. Resguardou-se, até certo ponto, das imposições do mercado, configurando um campo relativamente autônomo de criação. O transcurso histórico da MPB, dos anos 1960 até a primeira década deste século, com o surgimento da chamada Nova MPB, será analisado tendo-se como referência a imagem do continuum entre os extremos da doação e da mercadoria. Se as condições materiais da sociedade industrial conformaram uma estrutura coercitiva, é importante refletir se o acesso aos meios de produção promovido pela revolução tecnológica inaugura uma situação mais favorável ao artista, ou se o aspecto técnico das mudanças não é suficiente para modificar o estado geral condicionante da lógica capitalista sobre a produção artística. Antes de chegar a essa análise, porém, descrevo como as transformações tecnológicas refletiram na organização econômica do mercado musical.

70

NAPOLITANO, op. cit.

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3 ORGANIZAÇÃO ECONÔMICA DA INDÚSTRIA DE BENS CULTURAIS Como vimos no capítulo anterior, Lewis Hyde sugere que a obra de arte coexiste em uma dupla economia: a economia de doação – que lhe é essencial – e a economia de mercado. A economia da cultura é o ramo das ciências econômicas que tenta aproximar uma da outra a fim de compreender suas especificidades. Segundo a especialista Ruth Towse, a disciplina compõe um campo de investigação amplo, que inclui pesquisas em psicologia, comunicação e, sobretudo, sociologia da cultura. Seu estudo, que, segundo ela, deve-se à constatação de que a indústria de bens culturais é uma importante fonte para o crescimento econômico das nações,71 a despeito desse interesse estritamente econômico, é, por si, um movimento necessário de relativização, posto que se trata de uma tentativa de acercar duas racionalidades opostas: a racionalidade econômica (coletiva) e a racionalidade do artista (individual). Também nesse sentido, Françoise Benhamou observa que um dos fatores que contribuiu para o reconhecimento da economia da cultura no plano teórico foi a revisão do pressuposto da racionalidade.72 Dessa forma, uma dificuldade intrínseca às pesquisas nesse campo é, passando ao largo do referencial do homo economicus, sobre o qual a ciência econômica está assentada, entender o comportamento idiossincrático dos artistas, deslocados nesse “imenso cosmos” que é a “ordem econômica capitalista”.73 Primeiramente, deve-se notar que os artistas, mais do que outros trabalhadores, não encontram somente no dinheiro sua principal motivação para produzir. Status, prestígio ou estima tendem a ocupar o lugar da remuneração financeira.74 Segundo estudos do economista Bruno Frey,75 os artistas recebem sobretudo motivações intrínsecas, relacionadas à satisfação psíquica, como, por exemplo, o reconhecimento entre os pares, ao invés de motivações extrínsecas, relacionadas ao dinheiro. É por esse motivo, que as premiações, normalmente formadas por júris de artistas e/ou especialistas, são importantes no mundo da arte e constituem uma moeda reconhecida nesse tipo de mercado. A estudiosa do assunto, Françoise Benhamou, observa:

71

TOWSE, op. cit. BENHAMOU, Françoise. A economia da cultura. Cotia: Ateliê Editorial, 2007. 73 WEBER, op. cit., p. 47 e 48. 74 HYDE, op. cit. 75 TOWSE, op. cit. 72

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O artista compensa a ausência de utilidade associada à escassez relativa de seus ganhos com a utilidade não-monetária representada pelo reconhecimento de que desfruta e por sua pertença a um meio que ele tem em alta conta. Os lucros simbólicos podem converter-se em lucros materiais: os títulos, as honrarias, o reconhecimento social, por sua vez, geram remunerações materiais, convites, ampliação do mercado “natural” do criador etc.76

Geralmente os artistas são obrigados a exercer uma atividade complementar (multiple job-holding) ou contar com a renda regular do cônjuge como fonte de financiamento para a carreira artística;77 contudo, entre ser bem remunerado em um emprego convencional ou mal remunerado (contanto que se consiga pagar as contas) dedicando-se exclusivamente à arte, tendem a preferir a segunda opção. A ciência econômica chama essa situação de “custos de oportunidade”, que são os custos associados às oportunidades perdidas, quando recursos de tempo ou dinheiro deixam de ser utilizados para um propósito por causa de outro. A isso, Ruth Towse também dá o nome de “renda psíquica” ou “subsídio dos artistas para arte”.78 Interessante reconhecer a semelhança entre os termos “subsídio” e “doação”, revelando que mesmo o estudo da cultura pelas ciências econômicas mostra afinidades com a abordagem antropológica de Lewis Hyde. De maneira semelhante, Hyde observa três saídas para os artistas modernos: ou assumem uma segunda ocupação, ou conseguem um patrocínio ou vivem da arrecadação de direitos autorais com a comercialização de suas obras no mercado. Note-se que a estrutura subjacente às três soluções é a de uma economia dupla, em que a riqueza de mercado se converte em riqueza da doação,79 em outras palavras, o “subsídio dos artistas para a arte”. Deve-se também chamar atenção para a inaplicabilidade no meio artístico do conceito “mercado de trabalho”, que se refere à oferta e à demanda por horas de trabalho de pessoas com habilidades semelhantes.80 Dois pontos devem ser aqui ressaltados. Primeiro, a quantidade de horas de trabalho como medida do valor da mão de obra do homo economicus. A teoria econômica assume que o trabalho é homogêneo e que uma hora de trabalho cumprida por qualquer trabalhador tem igual valor.81 Esse tipo de grandeza, no entanto, não é adequado para dimensionar 76

BENHAMOU, op. cit., p. 44. BENHAMOU, op. cit.; TOWSE, op. cit. 78 TOWSE, op. cit., passim. 79 HYDE, op. cit. 80 TOWSE, op. cit. 81 Idem, ibidem. 77

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inúmeros tipos de trabalho, muito menos o artístico. Para melhor entendimento, lê-se a diferença que Lewis Hyde faz dos conceitos de “trabalho” e “labor”: Trabalho é o que fazemos com um certo limite de tempo. Ele começa e termina em um tempo específico e, quando possível, o fazemos por dinheiro. […] O labor, por outro lado, define seu próprio ritmo. Podemos até ser pagos por ele, mas é mais difícil quantificar. […] O trabalho é uma atividade intencional realizada por meio da vontade. Um labor pode ser intencional, mas só enquanto se trata de estabelecer as bases do que precisa ser feito. A partir daí, o labor tem seu tempo próprio. […] Não há tecnologia alguma, nenhum meio de encurtar o tempo que seja capaz de alterar os ritmos de um labor criativo.82

O segundo ponto que merece ser analisado é a pressuposição pela economia de mercado de que os trabalhadores possuem habilidades semelhantes e podem ser facilmente substituídos. É certo que a educação, o treinamento ou a experiência distinguem os trabalhadores comuns, mas essas são habilidades que podemos adquirir por determinação própria. Como expus, o dom ou o talento não podem ser adquiridos voluntariamente, o que tampouco significa que o artista talentoso, para tornar-se um grande artista, não deva aperfeiçoar sua arte pela via do esforço e do conhecimento. Surpreendentemente, igual entendimento é fornecido pelo estudo da economia da cultura, que evidencia o grau de relativização que a teoria econômica precisou alcançar quando aplicada ao mundo das artes, chegando mesmo a questionar a validade de seus pressupostos teóricos, fato que corrobora a noção de dupla economia: No mercado de trabalho artístico […] características indefiníveis, as quais chamamos talento ou criatividade artística, contribuem aparentemente mais para o sucesso comercial ou uma maior remuneração [...] mesmo para aquelas pessoas que não tenham passado por um treinamento formal. Isso tem levado economistas que estudam o mercado de artes a se perguntarem […] se de fato é possível aplicar as noções convencionais de economia ao mercado de trabalho artístico.83

A singularidade do bem artístico é outro ponto que merece ser analisado. Segundo os economistas Hal Varian e Carl Shapiro, os bens artísticos são considerados bens da experiência, ou seja, os consumidores devem experimentá-los para lhes atribuir valor. A rigor, observam todo novo produto, virtualmente, é um bem 82 83

HYDE, op. cit., p. 94. TOWSE, op. cit., p. 294. Tradução nossa. Grifo nosso.

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da experiência, porém, pode-se dizer que o objeto artístico “é um bem da experiência toda vez que é consumido”.84 Desse modo, novas canções lançadas no mercado, por exemplo, possuem um alto grau de imprevisibilidade quanto a seu consumo. Diferentemente, os bens típicos de mercado, por exemplo, os sabonetes, uma vez experimentados, são padronizados e produzidos em série a partir de uma fórmula única. A fim de diminuir as incertezas e os riscos de investimento na produção artística, há uma tendência da indústria cultural a suprimir a singularidade da obra de arte, aproximando-a das características de um típico bem de mercado. Deve-se observar que no caso da indústria de bens culturais (da música, do cinema e do livro) também é possível reproduzir cópias em série dos suportes físicos. No entanto, o processo de criação e concepção permanece artesanal. Assim, a obra de arte é sempre um protótipo ou uma matriz a partir da qual serão feitas as cópias. A singularidade do bem artístico configurou uma organização econômica particular da indústria de bens culturais, baseada em altos custos fixos e ganhos de escala. Todos os insumos necessários, ou seja, o maquinário para a produção da matriz e para a reprodução e a matéria-prima que serve como suporte físico para as cópias, representavam altos custos fixos para o empreendimento. Os custos fixos são aqueles que “não variam com o nível da produção e só podem ser eliminados se a empresa deixa de operar”.85 Na indústria fonográfica, referiam-se principalmente às despesas com fábricas, depósitos e estúdios de gravação.86 Para essa estrutura dispendiosa tornar-se lucrativa, era necessário apresentar “economias de escala”, possível quando se pode duplicar a produção “com menos do que o dobro dos custos”.87 Em outras palavras, opta-se por produzir no limite da capacidade da estrutura física da indústria, maximizando o gasto com os custos fixos. Assim, quanto maior a quantidade produzida, menor o custo unitário. Essa estratégia posta em prática pela indústria fonográfica via na formação de elencos numerosos e diversificados a saída para a redução dos riscos inerentes ao investimento. Desse modo, apenas alguns artistas (segundo Towse, um em oito) recuperavam o investimento inicial. Também deriva da tentativa de redução da imprevisibilidade comercial a estratégia do star system, que é a alta soma de investimentos em um grupo seleto 84

SHAPIRO, Carl; VARIAN, Hal R. A economia da informação: como os princípios econômicos se aplicam à era da Internet. Rio de Janeiro: Elsevier, 1999, p. 118. 85 PINDYCK, Robert; RUBINFIELD, Daniel. Microeconomia. São Paulo: Pearson Prentice Hall, 2005, p. 183. 86 DIAS, op. cit. 87 PINDYCK; RUBINFELD, op. cit., p 201.

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de artistas de sucesso, com o objetivo de “garantir” as vendas de antemão, associando os objetos artísticos a uma “marca” de qualidade. É nesse sentido que Varian e Shapiro destacam a importância da promoção da marca e da reputação para vencer a resistência do consumo de bens da experiência. Ou seja, tenta-se reduzir os riscos por meio de um elemento objetivo – a fama ou o prestígio do artista, por exemplo –, que não é capaz de garantir o sucesso nem a qualidade do produto, induzindo a fruição subjetiva a fim de prever as vendas. É preciso ressaltar, no entanto, que, se a pessoa do artista não pode garantir de antemão o sucesso – seja artístico ou comercial – do produto, é também verdade que a relação não é de todo arbitrária, já que grandes artistas tendem a realizar grandes obras. Como observa Françoise Benhamou, por outro lado, o próprio público atesta o sucesso da estratégia, pois deseja minimizar as incertezas diante da diversidade de oferta, consumindo os bens que lhe são oferecidos pelo star system.88 Os altos custos fixos da estrutura industrial acarretam um fenômeno de concentração vertical, que consiste na integração da produção de modo que a empresa possa auferir lucro em todos os elos da cadeia, desde a prospecção de novos artistas, passando pela gravação e pela fabricação do fonograma até a distribuição e a divulgação. A concentração vertical aumenta a dimensão organizacional da indústria e tende à formação de oligopólios. Como consequência, poucas empresas podem determinar preços mais altos para seus produtos do que praticariam em um mercado de concorrência perfeita, formando uma barreira a entrada de novas empresas no mercado. Essa conformação da organização econômica industrial é o fundamento técnico para a crítica de Adorno à indústria cultural. Um efeito importante desse tipo de organização econômica é a limitação quanto ao número de artistas contratados pela indústria fonográfica. Para tornar-se lucrativa, um critério relevante para a seleção do elenco é o tamanho potencial do público. Existe então um filtro que tende a deixar de fora tanto novos artistas quanto aqueles que possuem um público pequeno, mesmo que estável, pois ambos representam incertezas de retorno financeiro à empresa. Ruth Towse, em estudo sobre o mercado de trabalho artístico, conclui que há excesso de artistas para poucas oportunidades (abundant supply), ou seja, a indústria cria uma situação de

88

BENHAMOU, op. cit.

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escassez artificial89 da oferta, que exclui um grande excedente que não consegue chegar a ter sua obra apreciada pelo público. Pode-se contestar a afirmação dizendo que muitos artistas certamente poderiam apresentar-se em shows ao vivo, por exemplo, sem a necessidade do registro sonoro, porém, a presença da indústria fonográfica é demasiado significativa e não fazer parte dela é praticamente estar alijado do mercado, não só de discos, mas também de shows, já que as redes de relações das gravadoras vão muito além da gravação e promoção do disco, incluindo parcerias com casas de show, rádio e TV. O bem artístico, além de sua singularidade – como objeto não replicável por meio de fórmulas –, apresenta certas características de bem público, que lhe assegura uma posição sui generis na economia de mercado. Os bens públicos, ao contrário dos privados, são definidos por serem não-rivais e não-exclusivos.90 O bem não-rival é aquele que pode ser consumido por mais de uma pessoa simultaneamente, enquanto o bem não-exclusivo é aquele que não pode ser de propriedade de uma só pessoa.91 A gravadora quando comercializa a música em um suporte físico – o disco, a fita K7 ou o CD – se esforça por tornar o produto musical um bem privado (e, até certo, ponto consegue). No entanto, diferente de uma camiseta que só pode ser usada por uma pessoa, um disco que soa na vitrola, por exemplo, pode ser ouvido por várias pessoas ao mesmo tempo (nesse caso, portanto, é exclusivo, pois de propriedade do dono do disco, mas não-rival, pois a fruição é coletiva). A digitalização e o compartilhamento de arquivos MP3 na internet tornaram evidente a qualidade de não-exclusividade da música; não por acaso, a obsolescência do suporte físico como um bem privado foi um fator decisivo para o fim do modelo econômico da indústria fonográfica. Embora possua atributos de bem público, observo, contudo, que a obra de arte, ao contrário de bens públicos puros (estradas, prédios do governo, iluminação das ruas etc.), não é e nem pode ser produzida pela via política, isto é, pelo Estado, mas por indivíduos particulares. Daí advém a dificuldade de conciliação entre os diversos interesses na regulamentação do direito autoral. É também devido a essa situação peculiar, entre a livre iniciativa do mercado e a dimensão pública de sua circulação, que Ruth Towse observa a frequência do financiamento misto de artes, 89

ANDERSON, Chris. A cauda longa: do mercado de massa para o mercado de nicho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2006. 90 BENHAMOU, op. cit.; TOWSE, op. cit. 91 PINDYCK; RUBINFELD, op. cit.

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que inclui, além de empresas privadas, organizações sem fins lucrativos e dinheiro público. O conceito de externalidade em microeconomia também contribui para situarmos a obra de arte na economia de mercado. Externalidade é todo e qualquer efeito que provém da produção de bens ou serviços, mas que não está diretamente envolvido com a atividade. As externalidades podem ser negativas, no caso, por exemplo, de uma empresa que desenvolve produtos químicos, mas que, ao desenvolvê-los, libera substâncias tóxicas em um rio, prejudicando o meio ambiente comum; podem ser positivas, por exemplo, quando um médico cura um doente e para além da sua função de curar, promove a felicidade da família do paciente. As externalidades são consideradas falhas de mercado, devido à dificuldade de valoração monetária. A obra de arte possui externalidades que – para além do consumo pessoal – contribuem para a formação cultural da coletividade. A rigor, não é possível, portanto, definir preços para o produto artístico, pois, além da inexistência de critérios precisos para mensurar o labor e as externalidades da obra, os recursos intangíveis – sensíveis e intelectuais – necessários para a criação artística não se encontram disponíveis na natureza, logo, não podem ser calculados sob o princípio da escassez que fundamenta a ciência econômica. Interessante notar ainda a semelhança entre a teoria da dádiva e a observação dos economistas Hal Varian e Carl Shapiro de “doar o conteúdo” como estratégia de venda para o mercado de artes; segundo eles, “o truque é dividir seu produto em componentes, dos quais alguns você dá, outros você vende”.92 Dessa forma, acreditam que a doação é capaz de aumentar as vendas, fato corroborado por recentes pesquisas sobre o compartilhamento de músicas na internet. Segundo pesquisa da University of Hertfordshire, 80% das pessoas que compartilham ilegalmente estão dispostos a pagar por um serviço legalizado.93 Também Françoise Benhamou lembra que um estudo de Oberholzer & Strumpf, em 2004, “mostra que as trocas de arquivos, mesmo em nível elevado, se traduzem por um impacto 'estatisticamente próximo do zero' na venda de álbuns” e sugere que se busquem nos preços ou na qualidade do produto as razões da queda nas vendas de discos.94 Segundo os economistas, o conteúdo doado, no entanto, deve sê-lo até o ponto em 92

VARIAN; SHAPIRO, op. cit., 106 PARANAGUÁ, Pedro. I Seminário em Direitos autorais e acesso à cultura. Organizado pelo Núcleo de Estudos e Pesquisa em Direito, Artes e Políticas Culturais (NEDAC), realizado nos dias 9 e 10 de junho de 2011. (Comunicação verbal). 94 BENHAMOU, op. cit., p. 51. 93

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que não se torne substituto do que deveria ser vendido. Para isso, aconselham que uma amostra grátis deva ser oferecida de “forma inconveniente”, por exemplo, uma canção veiculada no rádio deve ser “fornecida quando o DJ quer transmití-la, e não necessariamente quando você quer ouví-la”, pois “o CD tem o que os economistas chamam de valor de opção”.95 No comércio digital, o mesmo pode ser notado, quando é permitido ao consumidor escutar apenas trechos da música antes de comprá-la, procedimento, no entanto, que o compartilhamento online põe por terra. A partir da democratização do acesso às tecnologias digitais e à internet, a organização econômica da indústria fonográfica sofreu profundas alterações. Por um lado, perdeu a primazia sobre os meios técnicos de produção, recurso que lhe garantia o controle da entrada dos artistas no mercado; por outro, viu sua principal fonte de renda esvair-se com a troca gratuita de arquivos musicais e a pirataria física. O editor da revista de tecnologia Wired Chris Anderson defende, em seu bestseller “Cauda longa: do mercado de massa para o mercado de nicho”, lançado já no novo milênio, a tese de que, durante o período industrial, devido a limitações físicas, não era possível a oferta de um conjunto real que desse conta da diversidade da produção cultural, situação enfim revertida com os baixos custos de produção e distribuição proporcionados pelas tecnologias digitais. Para descrever a nova situação, Anderson cunhou o conceito de “cauda longa”, que, segundo seus termos, apresenta a cultura sem os filtros da escassez econômica. Seu argumento é o de que o faturamento com a venda agregada de muitos não-sucessos comerciais passa a rivalizar com a venda de poucos sucessos de massa. A produção voltada para nichos de consumo torna-se economicamente viável com a digitalização do conteúdo e a diversidade da oferta pode revelar então a nova força econômica e cultural.96 A oferta ilimitada, entretanto, torna mais difícil a conexão com a demanda. A cauda longa, por prescindir de uma seleção anterior, concentra muito conteúdo aleatório ou de baixa qualidade. Com tantos produtos oferecidos, como encontrar aqueles que possam interessar a determinado público? O acesso ao consumidor, segundo o autor, deve ser feito através de filtros, que ajudam a reduzir o custo de busca pelos bens. Por filtro, entenda-se qualquer coisa que interfira na descoberta

95 96

VARIAN; SHAPIRO, op. cit., p. 107 ANDERSON, op. cit.

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do que se está procurando.97 Os filtros podem assumir várias formas, desde a procura pessoal em sistemas de busca na internet, passando pelo boca-a-boca virtual até as sugestões personalizadas em sites de venda. A função dos filtros seria, portanto, a de facilitar a busca do consumidor pelos produtos que, não sendo objeto de desejo do grande público, fossem de difícil acesso.98 Para Anderson, o barateamento dos custos de produção, acompanhado da venda pela internet, possibilitam o reconhecimento da forma natural da curva de oferta e de demanda, isto é, no caso da indústria fonográfica, toda a oferta que antes estava excluída do sistema de produção pode hoje ser produzida de forma mais barata (até mesmo em computadores pessoais) e facilmente encontrada por meio dos filtros na internet. Ao contrário do mercado controlado pelos oligopólios, atualmente existiria então viabilidade técnica para o artista comunicar-se diretamente com o público, sem precisar de intermediação. Desfazer-se-ia igualmente a situação característica descrita por Towse de que há sempre um excesso de artistas em relação à demanda. A dimensão que a estrutura organizacional da indústria fonográfica assumiu na década de 1970 tornou-se um problema em meio às incertezas da conjuntura neoliberal dos anos 1990. Houve então, nessa época, um movimento inverso de desconcentração vertical, quando os executivos procuraram apegar-se àquilo que era essencial à empresa, chamado no jargão administrativo de core business. O trabalho em Artistas & Repertório, marketing e vendas tornou-se o foco principal de atuação das majors,99 preocupada agora somente com a promoção da música nas redes de comunicação.100 Com o objetivo de reduzir os custos fixos, estúdios e fábricas de discos foram terceirizados – tais atividades, segundo depoimento do diretor artístico Marcos Maynard, poderiam ser feitas por quem quer que fosse101 –, o que tornou a organização empresarial mais maleável, em um movimento convergente com a reestruturação do capitalismo mundial rumo à “acumulação flexível”. David Harvey explica que:

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Idem, ibidem. Idem, ibidem. 99 DIAS, op. cit. 100 DE MARCHI, Leonardo. Discutindo o papel da produção independente brasileira no mercado fonográfico em rede. In: HERSCHMANN, M. (Org.). Nas bordas e fora do mainstream musical. Novas tendências da música independente no início do século XXI. São Paulo: Estação das Letras e Cores Editora, 2011. p. 145-163. 101 DIAS, op. cit. 98

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As economias de escala buscadas na produção fordista de massa foram substituídas por uma crescente capacidade de manufatura de uma variedade de bens e preços baixos em pequenos lotes. As economias de escopo derrotaram as economias de escala. […] Esses sistemas de produção flexível permitiram uma aceleração do ritmo da inovação do produto, ao lado da exploração de nichos de mercado altamente especializados e de pequena escala...102

O passo seguinte das majors foi a autonomização do próprio core business da empresa. A partir do ano 2000, diante da profusão de selos independentes e da facilidade de se obter gravações de qualidade, as gravadoras passaram a terceirizar o próprio trabalho de produção e prospecção de artistas (Artistas & Repertório), escolhendo os produtos prontos para a fabricação, tipo contratual conhecido como MPD (Prensagem, Marketing e Distribuição).103 O processo de produção ultrapassa o controle da indústria. Em muitos casos, os artistas, sozinhos ou associados a pequenos selos, passam a assumir a etapa de gravação/produção musical e a disponibilizar a obra gratuitamente ou para a venda na internet. As gravadoras passaram também a não mais faturar com a venda de fonogramas, visto que a etapa de comercialização on line foi apropriada pelas empresas de tecnologia. Chama a atenção o caso do iTunes, loja virtual da Apple, que controla 80% do mercado mundial de MP3, sem, no entanto, nunca ter investido no mercado musical.104 A revolução tecnológica desconcentrou o poder da indústria fonográfica em direção aos extremos: de um lado, grandes corporações, de outro, pequenas empresas fonográficas e artistas autônomos. Já em 1998, um relatório do senado francês debatia a situação do mercado midiático, chamando atenção para a ameaça representada pelo meio digital, já que abria “o setor da comunicação a operadores cujo poder financeiro é muito superior ao dos atores habituais do audiovisual”, acarretando “riscos de abuso de poder”.105 Sobre a questão, Françoise Benhamou pondera que: As consequências dessas movimentações de empresas estão cheias de contradições. De um lado, as tendências à uniformização dos produtos correm o risco de acentuar-se com a elevação das apostas financeiras […]. Mas, de outro lado, a distribuição direta dos produtos nas redes pode ajudar a levantar algumas barreiras ao ingresso de 102

HARVEY, DAVID. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo: Edições Loyola, 2009, p. 148 103 DIAS, op. cit. 104 LEWIS, Luke. Steve Jobs - Music Industry Hero Or Villain?. NME. Disponível em: . Acesso em: 28 dez. 2011. 105 BENHAMOU, op. cit., p. 143.

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outros participantes, barreiras que, como já vimos, são imputáveis em grande parte ao sistema de distribuição.106

As empresas de tecnologia são também as fabricantes dos suportes físicos multi-uso usados atualmente para ouvir música: laptops, MP3 players e smartphones. A indústria fonográfica, portanto, além de não ter mais a primazia da prospecção e gravação de artistas, não fabrica e não vende mais o suporte para o mercado varejista. Márcia Tosta Dias descreve a importância da relação entre hardware (suporte físico) e software (a própria música) como fonte de poder para a indústria fonográfica. Ela diz que a partir da metade do século XX, a “produção dos equipamentos leitores e dos formatos/conteúdos” se separou, mas mantém estreita sintonia ao longo do tempo. A separação total das duas esferas, no entanto, com o computador surgindo como o aparelho onde convergem vários usos “altera de maneira radical o núcleo que historicamente sustentou o poder das empresas”.107 Com as majors explorando majoritariamente seus catálogos, os pequenos selos, alheios originalmente aos grandes esquemas econômicos das multinacionais, passam a ser vistos como “agentes da diversidade e da inovação”,108 e transformam-se no principal meio para o lançamento de novos artistas. Leonardo de Marchi observa, em recente estudo, que as gravadoras deixaram de ser os articuladores do mercado musical, tornando-se prestadoras de serviços para os artistas.109 Diz ele: Com a digitalização dos fonogramas e dos canais de distribuição e de comunicação com os fãs, não apenas os artistas ganham autonomia em relação às gravadoras, como também a relação entre grandes gravadoras e independentes deixam de ter uma inequívoca hierarquia. [...] Em particular, as gravadoras independentes se tornam agentes estratégicos para a comunidade artística brasileira, uma vez que as grandes gravadoras têm demonstrado clara propensão a reduzir investimentos em repertório musical local, e os artistas autônomos encontram dificuldades para expandir seus mercados sem auxílio de intermediários. [...] as empresas fonográficas independentes se converteram em agentes estratégicos para a manutenção e ampliação da diversidade cultural no mercado brasileiro de música.110

Não é por acaso que artistas representativos da Nova MPB ganham visibilidade associados a pequenas empresas fonográficas voltadas para o mercado 106

Idem, ibidem, p. 144. DIAS, op. cit., p. 184. 108 Idem, ibidem, p. 184. 109 DE MARCHI, op. cit. 110 Idem, ibidem, p. 147. 107

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de nicho – alguns exemplos são YB Music, Coqueiro Verde Records, Oi Música, Bolacha Discos, Biscoisto Fino, SLAP etc. Fato que é corroborado por Márcia Tosta Dias, para quem as transformações nas condições técnicas da produção favoreceram a consolidação de selos independentes, que acabaram por atrair inclusive os artistas consagrados não mais dispostos a aceitar as condições contratuais das majors e em busca de trabalhos menos comprometidos com a lógica comercial. Ao mesmo tempo, as majors tampouco mostravam interesse na criação de acervo por meio do investimento em novos artistas, o que de certa forma as liberaria de um “'compromisso' mais propriamente cultural”,111 dedicando-se apenas à comercialização. Segundo De Marchi, utilizando as categorias criadas por Manuel Castells, a produção fonográfica reestruturou-se em forma de rede, modelo segundo o qual as relações, ainda que assimétricas, são flexíveis e não permitem reconhecer uma administração

centralizada.

Os

músicos

passam

a

gravar

suas

próprias

composições, ou em casa ou em estúdios terceirizados, a encomendar a produção da arte gráfica para uma agência de design, a imprimir o encarte em uma gráfica e a distribuir o álbum por um selo. A figura do artista autônomo tornou-se comum, tendo em torno de si prestadores de serviço que trabalham sob demanda ou, dependendo da estrutura, uma pequena equipe fixa conjugada com a contratação de terceirizados. O dinheiro arrecadado em shows e com a venda de CDs ou outros produtos derivados passam, em alguns casos, a manter financeiramente a pequena estrutura organizacional, responsável financeiramente por gravação, assessoria de imprensa, produção audiovisual e outros serviços.112 Por essa razão, questiona-se também a hierarquia verticalizada que se supunha haver entre os independentes e as majors, pois aqueles passam a ser “parte inerente da produção de fonogramas em larga escala”.113 O fato de as grandes gravadoras serem detentoras de um extenso catálogo ainda lhes dá poder de barganha junto aos varejistas – nesse caso, resiste ainda a lógica da economia de escala, que particulariza a atuação das majors atualmente; por outro lado, muitas gravadoras independentes adotaram a estratégia de investir na qualidade do seu elenco, sendo identificadas por prezar o aspecto estético da 111

DIAS, op. cit., p. 185 e 186. MOREL, Leonardo. Música e tecnologia: um novo tempo, apesar dos perigos. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2010. 113 DE MARCHI, op. cit., p. 151. 112

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obra, o que valoriza a marca no mercado. De Marchi explica que a etapa de distribuição dos bens tornou-se o “elo articulador da cadeia produtiva e a principal barreira de entrada nesse mercado”.114 Assim, os artistas autônomos, em função da pouca capilaridade de sua rede de relações, visto que possuem, entre eles e o público, somente um estágio de intermediação, que pode incluir os concertos ao vivo, a página oficial na internet e os intermediários do entorno digital, podem ter a médio ou longo prazos o seu público estagnado. Nesse ponto, hoje, o contrato com uma grande gravadora ainda oferece para o artista a possibilidade de ampliação do seu público no mercado digital, já que mantém uma rede de contatos que passa por gravadoras estrangeiras, portais na internet, companhias de telecomunicações, além dos tradicionais meios de comunicação de massa.115 A revolução tecnológica colocou então em novos termos o debate de questões preeminentes do período industrial. A despeito de haver viabilidade técnica para a produção cultural fora da estrutura física da indústria, é controversa a hipótese de que a democratização dos meios técnicos, por si, seja capaz de suprimir o imperativo econômico sobre a liberdade artística, tampouco de permitir ao indivíduo uma busca da identidade pautada por critérios subjetivos. No próximo capítulo, descreverei, portanto, as mudanças nas condições materiais da sociedade sob o novo paradigma tecnológico e suas consequências para a produção artística e o mercado da MPB.

114 115

Idem, ibidem, p. 155. Idem, ibidem.

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4 NOVO ESTADO MENTAL Em seu livro “A sociedade em rede”, de 1996, Manuel Castells empreendeu a difícil tarefa de descrever as profundas transformações por que está passando a sociedade com o surgimento das novas tecnologias de informação. O autor inclui entre as tecnologias da informação, “o conjunto convergente de tecnologias em microeletrônica, computação (software e hardware), telecomunições/radiodifusão, e optoeletrônica

[...]

a

engenharia 116

desenvolvimentos e aplicações”.

genética

e

seu

crescente

conjunto

de

Marca a passagem do que denomina “era

industrial” para a “era da informação”. A revolução tecnológica, para ele, é um evento histórico tão importante quanto a Revolução Industrial do século XVIII, visto que induz “um padrão de descontinuidade nas bases materiais da economia, sociedade e cultura”. A penetrabilidade social das novas tecnologias contribui para a formação de um novo estado de espírito.117 Assim como a invenção da escrita alfabética na Grécia antiga, descrita por Eric Havelock como uma revolução da mente humana, que permitiu, através de um número reduzido de letras, a formação de um sistema conciso de elementos acústicos do discurso falado capaz de universalizar os meios de comunicação interpessoal,118 a revolução da tecnologia da informação, teoricamente, expande tais possibilidades, pois integra em um mesmo sistema as formas escrita, oral e audiovisual.119 Castells observa que, apesar do impacto da imprensa nas sociedades européias, as altas taxas de anafalbetismo da população afetaram o potencial de expansão da escrita alfabética. Acredita, entretanto, que a organização da economia industrial capacitou a mente humana em torno de conhecimentos e informação para quando surgissem as novas tecnologias de informação. O impacto da imprensa é ainda menos relevante nos países latinoamericanos, sobretudo no Brasil. Como observa Antonio Candido, a alfabetização tardia da população, simultânea ao processo de urbanização, não aumentou propriamente o número de leitores de literatura erudita, visto que logo foram expostos ao domínio do rádio e da televisão, constituindo a base de uma cultura de massa. Nesse caso, o acesso aos modernos recursos audiovisuais pode significar a satisfação de necessidades de ficção e poesia fora do livro. A influência da indústria 116

CASTELLS, op. cit., p. 67 Idem, ibidem. 118 HAVELOCK, Eric. A revolução da escrita na Grécia e suas consequências culturais. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. 119 CASTELLS, op. cit. 117

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cultural e dos meios de comunicação de massa assume, portanto, nesses países, uma dimensão maior do que nos países letrados europeus. Por causa disso, Candido adverte que a América Latina é um “continente sob intervenção”, ao qual cabe máxima vigilância, já que a literatura erudita, independentemente se boa ou ruim, não exerce grande poder de repercussão sobre o comportamento ético ou político das massas, enquanto que numa “civilização massificada”, mesmo o público alfabetizado, que sofre menos influência da indústria cultural, tende a uniformizar-se e confundir-se com as massas, que a recebem em grande escala.120 Sob as novas bases materiais da sociedade, Castells propõe, portanto, uma rediscussão sobre a cultura de massas. Para ele, “o conceito de cultura de massa, originário da sociedade de massa, foi uma expressão direta do sistema de mídia resultante do controle [...] exercido por governos e oligopólios empresariais”.121 Sendo assim, diante da penetrabilidade dos novos meios, aos quais, falando da internet, atribui características tecnológicas e culturais anarquistas, haveria condições para o surgimento de uma nova cultura. Explica que, diferentemente dos meios de massa, que são caracterizados por serem de via única, a comunicação real “depende da interação entre o emissor e o receptor na interpretação da mensagem” e isso compreende uma grande diferença com os meios de comunicação de massa.122 A definição de Françoise Sabbah ajuda a esclarecer o tema: ... a nova mídia determina uma audiência segmentada, diferenciada que, embora maciça em termos de números, já não é uma audiência de massa em termos de simultaneidade e uniformidade da mensagem recebida. A nova mídia não é mais mídia de massa no sentido tradicional do envio de um número limitado de mensagens a uma audiência homogênea de massa. Devido à multiplicidade de mensagens e fontes, a própria audiência torna-se mais seletiva. A audiência visada tende a escolher suas mensagens, assim aprofundando sua segmentação, intensificando o relacionamento individual entre o emissor e o receptor.123

Castells diz que o processo real de comunicação depende da interação. O mais exato, no entanto, seria dizer: permite a interação. O próprio autor distingue dois tipos de população no novo mundo multimídia: “a interagente e a receptora da 120

CANDIDO, Antonio. Literatura e subdesenvolvimento. In: ______. A educação pela noite & outros ensaios. São Paulo: Ática, 1989. p. 140-162. 121 CASTELLS, op. cit., p. 416 e 417. 122 Idem, ibidem, p. 419 e 420. 123 SABBAH, Françoise. The New Media. In: Manuel Castells (org.) High Technology, Space and Society Sage. Beverly Hills, 1985 apud CASTELLS, op. cit., p. 424.

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interação”,124 a primeira ativa e a segunda passiva. A rigor, falta exatidão aos termos, pois, se analisarmos as características dos dois sistemas de mídia – os meios de massa e a internet –, é evidente que o conteúdo da programação da televisão e do rádio sempre foi fruto, em maior ou menor grau, de alguma interação com o público receptor. Tampouco parece crível que no sistema de comunicação de massa fosse vedado ao receptor interpretar a mensagem a sua maneira, pois para haver interpretação não é preciso haver interação. A diferença central consistia, portanto, na assimetria de poder entre emissor e receptor, além da inviabilidade técnica de uma interação simultânea e direta. É correto dizer que a fragmentação das fontes de informação abrem novas possibilidades para o receptor, que pode selecionar com liberdade de escolha as informações, de acordo com suas preferências. É nesse sentido que Castells questiona a cultura de massa, pois, para ele, se as pessoas tiverem autonomia para decidir o modo de comportar-se, “o conceito de mídia de massa refere-se a um sistema tecnológico, não a uma forma de cultura, a cultura de massa”.125 É preciso entender então o que Castells quer dizer exatamente com público passivo ou ativo. O autor supõe que tais categorias sejam determinadas pelo condicionamento técnico da comunicação e não pelas qualidades intrínsecas ao indivíduo. Entretanto, a postura crítica do receptor, que, de fato, é capaz de caracterizá-lo como ativo ou passivo, é independente do meio técnico. O que é realmente novo com o uso difundido das novas tecnologias de informação é a viabilidade técnica da interação, da participação, ou seja, o público receptor ativo tem mais poder de interferir no conteúdo que consome. Se, de fato, o público ativo, que tinha as mãos atadas diante da estrutura coercitiva dos meios de comunicação de massa, atualmente, tem poder de influenciar a programação, ela se torna fruto de uma fonte mais plural e democrática de decisão. Os novos meios técnicos, no entanto, como vimos, não são capazes de tornar todo o público ativo, pois muitos farão parte da população chamada pelo próprio Castells de “receptores da interação”, o que tampouco significa, como já foi dito, que essa população seja passiva, já que a interpretação subjetiva não depende da interação. Em outras palavras, o barateamento das novas tecnologias permitiu que o público ativo crítico, até então preso às decisões dos empresários, pudesse cada 124 125

CASTELLS, op. cit., p. 457 e 458. Idem, ibidem, p. 419 e 420.

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vez mais demonstrar suas vontades e tê-las atendidas, enquanto que o público passivo, mesmo que crítico, continuasse a consumir uma programação sobre a qual não teve ingerência. No mercado de música, o aparecimento do walkman, por exemplo, permitiu ao público gravar as canções de sua preferência e ouví-las a qualquer momento. Em conferência sobre música independente, Bruno Levinson, diretor artístico de uma rádio carioca, disse que o principal concorrente da emissora são os ipods dos consumidores e que o principal desafio para a programação seria apresentar novidades para os ouvintes que os faça preferir estar sintonizados na rádio a estar ouvindo sua discoteca pessoal.126 O papel ativo do público na escolha do que consome poderia ser o principal argumento – comprovado até certo grau – contra as ideias defendidas por Adorno. De fato, as mudanças nas bases materiais da sociedade revelam um aspecto anacrônico da crítica à indústria cultural, sobretudo no que diz respeito à diversificação da produção. Contudo, nesse sentido, ainda é preciso questionar o quanto a lógica de mercado ainda tende à padronizar o produto, mesmo que agora voltado para nichos de consumo. O cerne da questão está além do objeto (e por isso, além do contexto industrial), pois remete, sobretudo, à administração econômica e psicológica da sociedade. Christoph Turcke, em seu livro “Sociedade excitada: filosofia da sensação”, alcança, sob o signo da diversidade e não mais da uniformização, o fundo abstrato da crítica adorniana, qual seja, o aviltamento da experiência subjetiva pelo espírito capitalista dominante, e descreve seus efeitos fisiologicamente. Segundo o autor, o sistema nervoso do homem contemporâneo é resultado de um processo de escalada das sensações que nos habituou de tal forma, ao longo de séculos, a estar ocupado com o seu trabalho, que, no seu tempo livre, não mais consegue ocupar-se consigo próprio. O indivíduo passa a estar envolvido

em

diversas

atividades

simultaneamente,

em

uma

espécie

de

malabarismo contra a desocupação. Turcke explica: A torrente de excitação [...] representa estímulos demais. Ela coloca o organismo na situação paradoxal de não mais ser capaz de transformar os puros estímulos em percepção. [...] Apenas na medida em que a percepção é capaz de fixar-se em algo, juntar-se a algo, é que ela pode tornar-se uma unidade concreta de experiência, pode dar coesão ao organismo sensível, uma identidade, um “aí”, tanto em sentido objetivo quanto subjetivo […] A “luta pelo aí” tem 126

LEVINSON, Bruno. Seminário Internacional Música independente no contexto pós-crise, realizado nos dias 3 e 4 de outubro de 2011. (Comunicação verbal).

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então duas faces. A primeira corresponde à luta concorrencial generalizada pela presença midiática: a luta para ser percebido. A outra, no entanto, é a luta pela percepção. Nem mesmo isso é mais óbvio. Por um lado, pertence ao organismo como aquilo que lhe é mais próprio; por outro, liquidifica-se e evapora-se na torrente de estímulos.127

O fato de o indivíduo ser capaz de empenhar-se em diversas atividades simultaneamente ou de ter diante de si uma variedade de opções é prejudicial a seu aparato perceptivo, pois cria um enorme potencial de distração, colocando-o em um estado de deriva. Turcke distingue então dois tipos de distração, aquela “que é obtida por meio do desviar sistemático”, e outra “que se tem através da adaptação a um ambiente que permanece sempre igual”.128 Para referir-se ao primeiro tipo cunhou o conceito de “distração concentrada”. Explica que os orgãos isolados, não suportando o estado desocupado, prendem-se, cada um, a funções separadas – “o ouvido no rádio, o olho na revista ilustrada, o maxilar na goma de mascar” –, o que leva a concentração sistemática a prejudicar a concentração nervosa.129 Segundo Lewis Hyde, como vimos, o valor da experiência subjetiva para o “espírito criador” se dá através da percepção e da experiência, chamada de a primeira dádiva, com a qual, através de seu dom, será capaz de dar coerência formal ao objeto artístico e retribuí-la ao público. O artista deve, portanto, entregarse ao que ele chama de “estado de dom”: “um estado no qual ele é capaz de discernir as conexões inerentes a seus materiais e de dar-lhes vida em sua obra, ou seja, de lhes acrescentar algo”.130 O estado de dom corresponde ao “relaxamento distraído”, descrito por Turcke, no qual é possível à percepção fixar-se em algo para tornar-se

“uma

unidade

concreta

de 131

ultrassaturado” do homem contemporâneo

experiência”.

O

“aparato

sensorial

resiste, no entanto, a entregar-se a tal

estado, caso em que a produção artística tende a exprimir efeitos efêmeros. A liberdade de ação ou de formação de um itinerário pessoal de consumo, que remete à vontade e à construção da identidade individual, são possibilidades reais da era da informação – vimos que é para esse aspecto que Castells, entre outros, chama atenção. Os argumentos de Turcke devem ser considerados, portanto, como uma força contrária à construção da identidade. Ambas tendências 127

TURCKE, op. cit., p. 66. Idem, ibidem, p. 263. 129 Idem, ibidem, p. 276. 130 HYDE, op. cit., p. 236. 131 TURCKE, op. cit., p. 19. 128

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existem simultaneamente: a primeira, resultado da penetrabilidade das novas tecnologias da informação; e a segunda, da permanência redimensionada da lógica de mercado no estágio do capitalismo na era da informação. Pode-se dizer então que o fim da “era industrial” não representou exatamente o fim da realização do homem como ser genérico, denunciado por Adorno, e tampouco realizou plenamente as condições de liberdade do sujeito pensante na construção da identidade. Importante perceber, portanto, a natureza da mudança. A crítica de Adorno, embora ataque o oligopólio industrial, é, sobretudo, uma crítica a seu controle ideológico e social. A introdução das novas tecnologias de informação constitui uma mudança drástica nas bases materiais da sociedade, que, por certo, tem consequências práticas no modo das pessoas se relacionarem, mas a que não se pode atribuir um componente moral e social.132 A lógica do capitalismo ainda rege o comportamento em sociedade, e nesse sentido, os argumentos de Adorno permanecem atuais, mesmo quando se observa o surgimento de vozes minoritárias que enriquecem as bases de uma sociedade democrática. É por esse motivo que, para Leo Maar, a indústria cultural “implica um amálgama de cultura e economia por meio do qual a dominação no plano da subjetividade, até mesmo em seus aspectos mais subjetivos, estaria condicionada à estrutura social”.133 A ideologia da indústria cultural é absorvida psicossocialmente, sem mais a necessidade da coerção material. O comportamento do homem contemporâneo sofre, portanto, um controle psicossocial que reflete a assimilação automática ao espírito do capitalismo. O mercado torna-se a principal força de integração da sociedade, onde colocamos nós mesmos à venda sem a garantia de que sejamos bem sucedidos. A necessidade de adaptação dos indivíduos às coerções sociais passa a ser “uma integração ao segundo grau”, ou meras reações à “coerção seletiva do mercado”,134 onde a autopromoção tende a tornar-se então uma necessidade para a autoconservação.135 A compulsão à emissão – efeito da necessidade fisiológica de ocupação – decorre dessa condição de autopromoção e coloca a questão dos marginalizados na sociedade atual de forma imprecisa, já que, a rigor, embora haja igualdade de 132

TÜRCKE, Cristoph. Hipertexto. In: A indústria cultural hoje. DURÃO, F. A.; ZUIN, A.; VAZ, A. F. (Org.). São Paulo: Boitempo, 2008. 133 MAAR, Wolfgang Leo. Prefácio. In: DURÃO, F. A.; ZUIN, A.; VAZ, A. F. A indústria cultural hoje. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 7. 134 TÜRCKE, 2010, p. 63. 135 MAAR, op. cit.

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direitos e possibilidades técnicas para expressar-se – por exemplo, a internet com as redes sociais e blogs ou as organizações não governamentais –, essa igualdade camufla uma situação ainda mais desigual, pois o poder das grandes corporações se torna cada vez maior em relação às pequenas organizações e às vozes dissonantes individuais, dando lugar então à figura do “excluído completamente integrado”.136 Se por um lado, essa compulsão está associada a valores como democracia e autoexpressão, eles também dissimulam o real impacto da ação dessas pessoas. Se pensarmos a reestruturação do mercado de música popular no Brasil, pode-se dizer que os pequenos selos, embora exerçam artisticamente a primazia na prospecção de novos talentos, no que se refere ao volume de receitas e ao alcance de sua produção com o público, encontram-se próximos da situação dos excluídos completamente integrados. É verdade que, de forma agregada, conquistam cada vez mais espaço no mercado, mas não a ponto de poder enfrentar comercialmente as empresas de tecnologia. Tampouco, a viabilidade técnica da produção supre a precariedade da estrutura organizacional e o frágil poder econômico. Assim, se na era industrial, as gravadoras detinham exclusivamente o controle da produção e difusão sem deixar margem para novos atores no mercado, no mercado de música digital, as relações assimétricas de poder, embora não de todo impositivas, acentuaram-se na ponta da distribuição, ainda que, como uma espécie de compensação, os pequenos vislumbrem a possibilidade de ação que lhes era antes negada. A Nova MPB, portanto, está inserida nesse novo contexto econômico, que, por um lado, permite a coexistência de espaços de respiração fora das estruturas coercitivas da economia global, e por outro, infunde um estado psicossocial de consequências imprevisíveis para a produção e o consumo da música.

136

TURCKE, 2010, p. 70.

60

5 CONTINUUM No primeiro capítulo, fiz a distinção entre um sentido amplo e outro estrito da MPB. O sentido amplo remete à solução proposta pelo Tropicalismo para o impasse estético-musical em que se encontravam os emepebistas engajados com o ideal nacional-popular e pode-se dizer que tem como fundamento a teoria antropofágica de Oswald de Andrade, que inclui conceitualmente a cultura brasileira no círculo da modernização capitalista internacional. Em sentido estrito, a MPB remete a um aspecto comercial: a sigla passa a ser identificada a uma etiqueta mercadológica. Ambos os sentidos coexistem na recente utilização do nome Nova MPB: por um lado, acompanha a crise do sincretismo cultural como valor definidor da identidade nacional – seja ele fundamentado no paradigma das três raças ou na teoria antropofágica –, por outro, atualiza a MPB quanto à experimentação dos novos meios de produção em favor da criação de uma nova estética musical. Tendo como referência a imagem do continuum entre os dois tipos de propriedade assumidos pela obra de arte – como dádiva e como mercadoria – busco circunscrever a MPB no período que vai desde a década de 1970 até a primeira década do novo século, destacando as profundas transformações advindas do uso das tecnologias digitais de produção e da internet. A partir da segunda metade da década de 1960, ainda que houvesse preocupação com a instabilidade do negócio, o investimento da indústria fonográfica multinacional no mercado brasileiro mostrava bons resultados financeiros. Segundo Marcos Napolitano: ... em 1959, o mercado vivia das vendas de discos de catálogo, com a música estrangeira representando cerca de 60% das vendas. Quase dez anos depois, a música brasileira atingia essa mesma cifra, diminuindo a importância comercial da música estrangeira. Mas a tendência à instabilidade ainda era considerável, na medida em que cerca de 25% das vendagens totais dependiam do sucesso dos movimentos musicais (como o Tropicalismo), dificultando a consolidação de uma estrutura de mercado a base de gêneros e cartazes mais estáveis (mais interessantes para as gravadoras, digase). Somente em meados da década de 70, a indústria já possuía autonomia suficiente para racionalizar seus produtos musicais de acordo com uma tendência de consumo mais estabilizada, cujo processo foi facilitado pela institucionalização da MPB.137

137

NAPOLITANO, op. cit., p. 247.

61

Nos anos 1970, o long play se estabelece definitivamente no mercado nacional, fato acompanhado por mudanças estratégicas no negócio da música. O LP possibilitou uma significativa economia para as gravadoras, visto que, em termos de custos, era um suporte que continha mais espaço de armazenamento da música. Segundo Márcia Tosta Dias, “o baixo preço unitário do disco (comparado com o de outros setores da indústria cultural, como o cinema), aliado à grande fertilidade musical de muitos países, facilitou a expansão”138 dos mercados locais. Nessa época, os investimentos voltaram-se para a formação de catálogos duradouros e nesse sentido a figura do artista tornou-se mais importante que o produto musical em si, pois permitia à indústria fidelizar o público a uma marca – a imagem do artista – reconhecível. A estratégia de vendas regulares e amortização a longo prazo mostrou-se lucrativa, uma vez que a produção musical, por mais que utilizasse fórmulas de sucesso, como vimos, não garantia o retorno do investimento.139 A MPB, nesse período, aproveitou-se, portanto, de uma conjuntura favorável, de altos investimentos da indústria fonográfica e da introdução da tecnologia do longplay, que contribuiu para a formação de um star-system nacional. Houve condições sociais e econômicas para o aparecimento e a permanência de um seleto grupo de artistas que passaram a ser identificados com a sigla MPB. A relativa autonomia de que gozava a instituição – devido ao posicionamento crítico dos artistas em relação à tendência de uniformização do produto – assegurou que se mantivessem tensionadas as dimensões artística e mercadológica da música. A partir mesmo da década de 1970, o poder econômico consolidado das gravadoras e da televisão, favorecido pelo ciclo de crescimento econômico de 1968 a 1973,140 passa a ser dominante. A MPB, como instituição sócio-cultural, delimitava seus espaços, sua hierarquia, seus artistas, mas a tendência à autonomia, no decorrer dos anos, se viu confrontada com as demandas da indústria cultural, articulada a partir da indiferenciação entre entretenimento, fruição estética e formação de consciência e que pressionava por resultados comerciais cada vez mais rápidos.141 Na década de 1980, a conjuntura econômica internacional já havia se tornado adversa a investimentos de médio e longo prazos. André Midani conta em sua autobiografia 138

DIAS, op. cit., p. 61. Idem, ibidem. 140 Idem, ibidem. 141 NAPOLITANO, op. cit. 139

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que, se nos anos 1960, a indústria planejava a amortização do investimento na carreira dos artistas para depois do terceiro álbum, na década de 1980, as multinacionais tinham cada vez mais urgência no retorno financeiro. Por esse motivo, houve um processo de substituição de experientes diretores artísticos por eficientes administradores de empresas, chamados pejorativamente por Midani de tecnocratas, alheios à especificidade do mercado musical.142 Dois movimentos orientadores das ações da indústria fonográfica podem ser então observados nas décadas de 1980 e 90: a segmentação da produção e a busca por sucessos rápidos; ambos com impacto sobre a MPB. A estratégia de segmentação aproveitou-se da integração da esfera das comunicações promovida pelo governo militar, quando vários setores da indústria de bens culturais foram beneficiados, aumentando também a venda de toca-discos e televisões.143 Diante de um mercado de bens culturais redimensionado, a indústria fonográfica pôde então pensar na diversificação do produto para diferentes públicos. Um reflexo avançado desse processo pode ser percebido pela distinção, feita pelas gravadoras, entre “artistas de marketing” e “artistas de catálogo”. Segundo Márcia Tosta Dias, os artistas de catálogo são aqueles que se beneficiaram da mudança na atuação da indústria fonográfica nos anos 1970, quando se investia em um elenco estável, com artistas ligados à MPB e que, mesmo em pequenas quantidades, produziam discos com vendas garantidas por muitos anos. Os artistas de marketing, ao contrário, são produzidos “a um custo relativamente baixo, com o objetivo de fazer sucesso, vender milhares de cópias, mesmo que por um tempo reduzido”.144 A maior parte do investimento no artista de catálogo está relacionada à etapa de produção artística, isto é, composição, arranjos, gravação, enquanto que para os artistas de marketing, a promoção recebe a maior quantia. É inquestionável a compreensão que os próprios executivos das gravadoras demonstram da singularidade do mercado artístico. Nesse sentido, o produtor Marcos Maynard observa que “o projeto de marketing e o artista de marketing […] só existem se existir uma gravadora. O artista verdadeiro, um movimento musical, existe mesmo se não existir uma gravadora”145 – em outras palavras, é isso que Lewis Hyde diz quando afirma que, embora a obra de arte coexista em uma dupla 142

MIDANI, André. Música, ídolos e poder: do vinil ao download. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008. DIAS, op. cit. 144 Idem, ibidem, p. 82. 145 Idem, ibidem, p. 83. 143

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economia, apenas a economia de doação lhe é essencial e, portanto, “uma obra de arte é capaz de sobreviver sem depender do mercado”.146 O subsídio cruzado é, segundo Maynard, a alternativa para os artistas de catálogo se manterem no mercado: “você tem que pegar um projeto de marketing, meter no mercado, estoura e você tem dinheiro para reinvestir nos seus artistas e, esses sim, ficam para sempre”.147 Um produto artístico inteiramente concebido por profissionais de marketing e vendido ao público por meio de ações maciças de publicidade, isto é, por uma estratégia de convencimento calcada no montante de dinheiro gasto, revela o grau de controle alcançado pela indústria fonográfica sobre a produção artística nas décadas de 1980 e 90. Não parece, portanto, um acaso que, no mesmo período, a MPB passe a ter seu público cada vez mais restrito a um nicho de mercado. Tornouse praticamente impossível, sobretudo para as gerações surgidas nesse ínterim – visto que os artistas consagrados nas décadas anteriores já haviam conquistado espaço para a circulação de suas obras (embora cada vez mais reduzido) –, conciliar expressão artística e realização comercial. O artista de marketing, ao mesmo tempo em que representa o produto extremo da racionalidade econômica sobre a produção musical, de certa forma, pressagia a crise da indústria fonográfica no final dos anos 1990; crise de credibilidade – basta notar a quantidade de artistas renomados que rescindiram seus contratos com as majors para assinar com gravadoras independentes ou abrir seus próprios selos – e crise estrutural. Com o compartilhamento de arquivos musicais pela internet, observa-se uma desvalorização do fonograma como mercadoria e evidencia-se assim a natureza da música como doação. Para o consumidor, os custos de baixar as músicas gratuitamente são muito menores do que os de comprá-las, seja na loja física ou na virtual – a Apple inaugurou sua loja iTunes no Brasil cobrando o preço de R$ 1,80 por faixa; logo, um álbum de 12 faixas custaria um pouco mais de vinte reais, quase o mesmo preço de um exemplar físico com encarte gráfico. O consumo de música digital foi acompanhado, como vimos, do desenvolvimento de novos suportes, como os aparelhos de MP3 player, que substituíram discos, fitas cassete e CDs. Assim, as empresas de tecnologia passaram a comercializar o suporte físico para o consumo de música, reduzindo drasticamente a principal fonte de receitas da indústria 146 147

HYDE, op. cit., p. 13. DIAS, op. cit., p. 83.

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fonográfica. O CD, hoje em dia, é visto pelos artistas e pela indústria como um objeto meramente promocional.148 Se a música, fixada no fonograma, teve reduzida sua característica de mercadoria, ao contrário, as apresentações ao vivo, estas insubstituíveis, readquirem valor simbólico no atual contexto, tornando-se a principal via de remuneração para o artista. A música, que sempre fora um serviço, mas que ao longo do último século transformou-se também em um produto industrial, volta a valorizar-se como serviço.149 Se na década de 1970, Caetano Veloso, por exemplo, poderia optar por viver somente de discos e direitos autorais, sem preocupar-se com o palco,150 atualmente o mesmo artista é obrigado a fazer shows para receber por sua produção recente. O problema maior, contudo, sucede com os compositores não intérpretes, alguns optando pela carreira de intérprete para obter uma renda extra.151 Há alguns anos, os preços dos concertos ao vivo vêm aumentando substancialmente. Segundo o presidente da Warner Music Brasil, Sergio Affonso Fernandes, sem a participação das gravadoras nas receitas dos shows torna-se inviável o investimento na carreira de novos artistas. Segundo ele, a Warner, hoje em dia, vive de seu catálogo, com 70% da venda de CDs e DVDs e somente 30% da venda digital.152 Entretanto, novos modelos de negócio têm sido experimentados no sentido de recuperar o caráter de mercadoria do registro musical. O principal deles é a venda de arquivos pela internet, mercado no qual é possível perceber um crescimento das receitas, ainda que não seja capaz de recuperar as vendas do apogeu da indústria.153 Importante notar também a mudança da venda de uma coleção de canções para a venda avulsa. Apesar de essa alternativa não ter tido ainda nenhum impacto substancial no formato álbum, pode ser uma estratégia eficiente para o mercado de singles. Embora a faixa isolada tenha adquirido um preço próprio, Márcia Tosta Dias, no entanto, reserva ao álbum um espaço de nicho garantido,

148

LENINE, 2011 apud TERRA, Renato. Lenine lança um som. Revista Piauí, n. 62. p. 48-51, 2011. MELLO, Gustavo; GOLDENSTEIN, Marcelo. A música em metamorfose: um mercado em busca de novos modelos de negócio. Relatório BNDES Setorial 32, p. 113-152, 2010. 150 ARAÚJO, Guilherme. O nome dele é Guilherme Veloso Araujo Gil. In: JOST, Miguel; COHN, Sergio (Org.). O bondinho. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2008. p. 116. 151 VIANNA, Luiz Fernando. Era digital pune os artistas que não fazem shows. In: O Globo. Disponível em: . Acesso em 28, dez, 2011. 152 TERRA, Renato, op. cit. 153 MELLO; GOLDENSTEIN, BNDES, op. cit. 149

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composto por ouvintes interessados e que procuram produtos diferenciados.154 Outro modelo testado e já implementado é o de consumo em streaming. Nele, pagase uma assinatura para acessar quantas vezes quiser o catálogo disponível na internet (também chamado de “nuvem”), porém sem a permissão para fazer download dos arquivos. Em outros casos, ao invés da mensalidade, o consumo gratuito é financiado pela exibição de publicidade. Alguns exemplos desses serviços, no Brasil, são o Sonora, o OiRdio e o Power Music Club. Uma complexa questão desencadeada com o compartilhamento de música pela internet se refere ao direito autoral, resultado de uma negociação de interesses conflitantes entre autores, público e investidores, compreendidos em âmbito público (interesses coletivos) e privado (interesses particulares). O modelo de arrecadação e distribuição vigente no período industrial foi desmontado em meio às características anárquicas do novo meio tecnológico, forçando então a sociedade a debater novos parâmetros de regulação. Num primeiro momento, a partir da metade da década de 1990, houve uma tendência nas legislações nacionais e internacionais à proteção dos direitos patrimoniais em favor dos interesses das empresas, que temiam as consequências da digitalização de obras protegidas. No entanto, incorporou-se posteriormente ao processo de renovação legislativa um movimento contrário, de valorização das características do novo meio para a circulação pública da informação e da cultura. Segundo esta última linha, os interesses do criador e do público devem sobressair-se em relação aos estritamente econômicos dos investidores, posto que são direitos fundamentais.155 O movimento de valorização das dimensões moral e sócio-cultural do direito autoral, em detrimento da dimensão econômica, é análogo à relevância que assume a doação como categoria primária de propriedade na sociedade da informação. É importante notar, contudo, que a relevância que a dimensão sócio-cultural do direito autoral passa a ter na sociedade da informação é também acompanhada, sob um ponto de vista econômico, de uma disputa estritamente comercial entre os provedores de conteúdo e as plataformas da internet, que disponibilizam o conteúdo gratuitamente na rede em troca de publicidade paga. Para Robert Levine, há no atual processo de veiculação uma desvalorização da qualidade do produto, que não havia na indústria de mídia tradicional, visto que as plataformas não são também 154

DIAS, op. cit. SOUZA, Allan Rocha de. Os direitos culturais e as obras audiovisuais cinematográficas: entre a proteção e o acesso. Tese (Doutorado em Direito) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010. 155

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produtoras de conteúdo. O problema, questiona, é quem tem o poder, o produto ou a plataforma? Como fazer para a plataforma pagar pelo conteúdo?156 Não se pode, portanto, fechar os olhos para o fato de que o serviço de distribuição de conteúdo gratuito na internet, ao mesmo tempo em que democratiza o acesso aos bens culturais – e isso é algo notável –, é um modelo de negócio extremamente lucrativo, já que o conteúdo é disponibilizado sem custos, ali, pelos usuários, e quem recebe a remuneração, via publicidade, por sua veiculação são as empresas de internet. Como não são também produtoras de conteúdo, esse dinheiro não retroalimenta a cadeia produtiva, procedimento que fazia parte do modelo de negócio da mídia tradicional, e, logo, não assume o risco inerente ao investimento em cultura. É nesse sentido que Levine denuncia a estreita relação entre as instituições que advogam pela flexibilidade dos direitos autorais na web e as empresas de tecnologia, como, por exemplo, o financiamento do Creative Commons pelo Google.157 A sofisticação da nova estrutura de coerção se revela, portanto, na capacidade de encobrir a defesa de interesses comerciais sob o argumento da democracia e do bem-estar comum.158 Esse tipo de imposição, mais sutil, por não estar visível nas estruturas materiais, desmente, em parte, aqueles que acreditam que as tecnologias digitais eximiram os artistas de fazer concessões à indústria cultural, pois a coerção, como disse, não é somente técnica, mas sobretudo psicossocial. Observa-se, portanto, que à argumentação de Castells sobre a possibilidade da busca de identidade individual e coletiva – a primeira edição de seu livro é de 1996 –, juntam-se novas formulações críticas que acompanham as mudanças na ordem do dia e contribuem para matizar as previsões auspiciosas, porém não menos verdadeiras, de antes da virada do século. A impotência artística causada pelo poder da indústria fonográfica nas décadas de 1980 e 90 foi aplacada com o surgimento da tecnologia digital de gravação e com a alternativa de divulgação das músicas na internet. A partir do ano 2000, o momento mostrou-se profícuo para o surgimento de uma extensa produção musical, até então preterida das majors, como é o caso dos artistas da Nova MPB. Desde que a MPB passou a ser considerada uma etiqueta mercadológica, esteve relacionada principalmente às gerações de artistas – e à estética criada por eles – 156

SÁ, Nelson de. Chegou o momento do contra-ataque da indústria da cultura. [Entrevista de Nelson de Sá com Robert Levine]. Folha de S. Paulo, 3 out. 2011. Disponível em: . Acesso em 28 dez. 2011. 157 Idem, ibidem. 158 CARVALHO, op. cit.

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surgidos nas décadas de 1960 e 70. No fim do século, é identificada como uma música de qualidade inquebrantável, ao mesmo tempo, porém, carrega o ranço de anacrônica, incapaz de inovar esteticamente. A Nova MPB, embora apresente evidente ligação com a tradição da MPB, ao contrário, é pautada por um diálogo intenso com o que lhes é contemporâneo e se coloca em posição dialógica com as consequências

estéticas,

econômicas

e

psicossociais

do

novo

paradigma

tecnológico e psicossocial. É preciso observar, entretanto, uma espécie de cisão estética dentro da Nova MPB, pois, se, por um lado, um grupo de artistas, ainda que restrito a um pequeno nicho de mercado, mantém a tensão entre a vontade de experimentação formal e o sucesso comercial – e, desse modo, confirma a tendência à autonomia da instituição MPB –, por outro, outros artistas demonstram estar comprometidos, sem contradições, com a lógica de mercado. Os primeiros, normalmente, estão associados a pequenos selos, enquanto os segundos ao que ainda resta das antigas gravadoras – embora isso não seja uma regra, já que mesmo estas criaram os selos próprios para lançar novos artistas, com a diferença, porém, de a produção artisticamente independente ficar limitada a um exíguo espaço dentro da estrutura de investimentos, ao contrário daquela, a que se almeja uma posição no mainstream (importante observar que, dado o atual estágio de segmentação do mercado, é impreciso falar em somente um mainstream. O mainstream a que me refiro, portanto, é um entre outros, o que poderia chamar-se talvez um mainstream de nicho, diferente daquele que experimentou a geração dos anos 1960 com os meios de comunicação de massa). A rigor, os artistas desse segundo grupo não compartilham dos valores da relativa “autonomia” da instituição, embora tenham associado a sua imagem e à posição que ocupam no mercado o status de uma música socialmente reconhecida como portadora de qualidade estética. Uma diferença objetiva entre os dois grupos pode ser notada esteticamente, por opções muitas vezes ligadas à “velha” MPB (como por exemplo, o execrado formato voz e violão), ou pela adoção ou não de estratégias do antigo esquema de produção e comercialização da indústria fonográfica, que pode ir desde a escolha de repertório até o lançamento de produtos já testados (como, por exemplo, regravações de grandes sucessos ou gravações de álbuns ao vivo), ou seja, pela adesão a fórmulas comerciais que visam reduzir a imprevisibilidade das vendas. Nesse sentido, é possível reconhecer dois

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movimentos internos à Nova MPB, um que enseja continuidade – e sendo assim o sentido de Nova MPB é somente geracional (cronológico) – e outro que propõe uma renovação estética e dos modos de circulação. Interessa-me aqui analisar, sobretudo, este último grupo de artistas, haja vista, nele, a manutenção da “tendência a 'autonomia'” da instituição MPB e a assinalada distinção estéticomusical empreendida por eles com os novos recursos tecnológicos. O uso das tecnologias digitais viabilizou a carreira de inúmeros artistas, antes preteridos do elenco das gravadoras, dando vazão a uma demanda segmentada. Desfez-se, em parte, a situação característica do mercado de trabalho artístico de que há sempre uma oferta excessiva de artistas em relação à demanda. Porque Ruth Towse descreve essa situação de abundant supply no contexto industrial, é difícil saber se sua opinião é a de que a oferta, não importa o período, é sempre excessiva em relação à demanda – e dessa maneira, dada a excepcionalidade de artistas talentosos, o corte se daria pelo público que os distinguiria dos menos talentosos –, ou se a oferta é abundante em relação à seleção de mercado promovida pela indústria, que tinha os recursos para a criação de escassez artificial; nesse caso, Towse estaria pressupondo que um artista talentoso necessariamente fizesse parte do esquema industrial, combinação nem sempre óbvia, embora verdadeira em muitos casos. Hoje em dia, todos os candidatos a um lugar ao sol no meio artístico tem a chance de mostrar seu trabalho, os menos e os mais dotados de talento. Sendo assim, é preciso observar se realmente a oferta é excessiva em relação à demanda na forma natural de suas curvas, pois é notável a multiplicação de pequenos nichos no mercado musical – e nesse caso a demanda pode ser maior do que supunha a autora. Desde que vários artistas – chamados independentes, por não possuírem vínculos com as majors – alcançaram certa visibilidade no nicho da Nova MPB, estações de rádio e televisão abriram cada vez mais espaço para sua divulgação. A coexistência de novos e antigos meios mostra uma relação de complementariedade. A internet, nesse caso, funciona como uma porta de entrada, atenuando a arbitrariedade da seleção dos artistas, já que logo que é percebida alguma relevância em torno de algum nome no ambiente virtual, este passa a ser solicitado na programação de antigos meios de comunicação de massa. A rádio MPB-FM, do Rio de Janeiro, por exemplo, criou o programa “Faro MPB”, que, a princípio, ocupava uma pequena faixa na programação, mas que, aos poucos, os artistas que

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ali estrearam, começaram a participar de outros programas antes destinados somente aos cantores e compositores “consagrados” ainda na época da indústria fonográfica. Além disso, a emissora aumentou a promoção em torno dos novos artistas com ações externas, como programas específicos para a web e um festival chamado “Festival Faro”. Algo semelhante ocorre na TV Globo, com o programa “Som Brasil”, no qual artistas em início de carreira são frequentemente convidados para apresentarem-se ao lado de grandes estrelas da MPB; o horário de exibição, de madrugada, restringe o público, contudo não deixa de mostrar o interesse da emissora de maior audiência no país pela nova geração de compositores e intérpretes da Nova MPB. Os canais de televisão segmentados também têm aberto espaços na programação, como o “Na brasa”, da MTV, e o “Experimente”, do canal a cabo Multishow. Um novo tipo de programa dedicado a novos artistas da música brasileira também passou a ocupar a cauda longa do mercado e assume o formato de apresentações ao vivo transmitidas exclusivamente na internet. Os mais importantes são a “TV Trama”, o “Show Livre” e o “Oi Novo Som”, o primeiro ligado a uma gravadora, o segundo a um grande portal de internet e o terceiro a uma empresa de telecomunicações. Este último é um caso concreto do investimento de empresas não fonográficas em música, que confirma o que afirmara David Harvey sobre a exploração de economias de escopo – as economias de escopo são aquelas que se aproveitam da mesma estrutura material ou intelectual da empresa para explorar outras atividades comerciais alheias a seu core business. Esse formato de programa para a internet aproveita-se do baixo preço da tecnologia digital e da quantidade de novas bandas e artistas em busca de promoção e lhes oferece um produto audiovisual – a TV Trama também disponibiliza o áudio com alta qualidade de gravação – e alguma visibilidade na rede, em troca de produção diária de conteúdo e posicionamento da marca junto a diferentes parcelas do público jovem.. Encontrase, nesses canais, todo o tipo de oferta musical, não somente Nova MPB. Se fizermos um paralelo com a indústria fonográfica, é como se todo o material demo antes enviado aos departamentos de Artistas & Repertório das gravadoras estivesse disponível na internet, porém tornado produto acabado, com qualidade profissional e um pequeno público já formado. Tornou-se, inclusive, comum as gravadoras consultarem os fãs clubes dos artistas em redes sociais para selecionar artistas para seu elenco. Em geral, os programas voltados para nichos de

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mercado, sobretudo os veiculados exclusivamente na internet, estão cercados por valores como experimentação, ousadia e atitude artísticas, em relação inversa à padronização e a falta de arrojo, tidas como características do comportamento da indústria fonográfica na década de 1990. É nesse sentido que se pode falar em um processo, que não se sabe aonde chegará, de reestruturação do campo musical, percebido também na renovação de instâncias de consagração e legitimação – são exemplos os blogs e sites especializados, os programas da cauda longa e as redes sociais. A estruturação do mercado em nichos é acompanhada de um fenômeno de fragmentação social, pois a afirmação da identidade de grupos ou indivíduos está diretamente relacionada ao consumo de bens culturais. Sobre esse fenômeno, Castells chama atenção para o risco da não interação entre os grupos: ... quando a comunicação se rompe, quando já não existe comunicação nem mesmo de forma conflituosa [...], surge uma alienação entre os grupos sociais e indivíduos que passam a considerar o outro um estranho, finalmente uma ameaça. Nesse processo, a fragmentação social se propaga, à medida que as identidades se tornam mais específicas e cada vez mais difíceis de compartilhar.159

Tendo em mente a afirmação de Lewis Hyde de que “quando uma produção artística não tem um público que a reconheça e que dela se aproprie espiritualmente”, a doação não se dá, deve-se pensar nos efeitos da circulação restrita dos bens culturais para a formação cultural de uma coletividade. Como argumenta Hyde, “uma dádiva é consumida quando passada adiante”;160 ou seja, quanto maior o círculo, mais representativa será a obra de arte como objeto da cultura. Atualmente, com a segmentação de mercado, o tamanho do círculo é, ao contrário, cada vez menor. É nesse sentido que Dominique Wolton, em seu “Elogio do grande público”, defende a televisão aberta. Para ele, “torna-se essencial conceber atividades que permitam atingir 'os dois objetivos', a dimensão individual e a coletiva”.161 A importância disso, segundo o autor, está na religação igualitária “entre ricos e pobres, jovens e velhos, rurais e urbanos, entre os cultos e os menos cultos”.162

159

CASTELLS, op. cit., p. 41. HYDE, op. cit., p. 17 161 WOLTON, Dominique. Elogio do grande público: uma teoria crítica da televisão. São Paulo: Editora Ática, 1996, p. 19. 162 Idem, ibidem, p. 16. 160

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Ora, em uma análise estritamente técnica, pode-se realmente conceber os meios de comunicação de massa como ideais para a veiculação de bens culturais dentro de um amplo espectro social (como vimos, essa visão parcial orientou, em parte, o comportamento de alguns artistas engajados com o projeto nacional-popular nos anos 1960). No entanto, os interesses dos proprietários e executivos das empresas de mídia obedecem a uma lógica de mercado, cujo interesse pelo grande público é, sobretudo, financeiro e não de formação cultural, de modo que o argumento de Wolton, para ser bem apreendido em sua relevância, deve ser confrontado com a crítica de Adorno à indústria cultural. Os artistas somente serão agentes de coesão social pelo espírito crítico impresso em suas obras, e, para isso, devem ter liberdade de criação, caso contrário, serão agentes da indústria cultural, mantenedores de uma cultura de massas. A despeito das dimensões comercial e artística da obra de arte possuírem princípios tão díspares, há uma convergência entre elas, pois, se por um lado, a obra de arte se torna mais representativa quanto maior o público que a reconhece culturalmente, por outro lado, sendo o mercado a via de comunicação com esse público, a consequência direta para os empresários é o sucesso de vendas e o retorno financeiro. Visto desse modo, já que a ambos interessa atingir um grande público, o problema parece ser menos a coexistência tensionada entre as duas lógicas do que a exigência do retorno financeiro a curto prazo, que se tornou premente para a indústria fonográfica ao longo das últimas décadas do século XX. A exigência de retorno rápido vai de encontro à formação de carreiras artísticas duradouras e, portanto, desestimula a formação de público por meio do envolvimento gradual com a obra de um artista; ao contrário, aproxima cada vez mais o objeto artístico de um bem de mercado descartável. Devo observar, no entanto, que, do ponto de vista do artista, muitos, sinceros com sua vocação, por algum motivo, não têm o desejo íntimo de que sua obra circule de forma ampla. Mas como pretendo ressaltar a correspondência entre a constatação de Lewis Hyde sobre a importância da obra de arte para a coesão cultural de uma grande coletividade e a pretensão dos artistas brasileiros da MPB a um discurso totalizante de nação, as considerações podem, nesse caso, ser aplicadas. A MPB desfrutou de grande visibilidade nos meios de comunicação de massa na década de 1960 e 70. O desejo de comunicar-se com o grande público foi um traço comum a esses artistas, assim como o de dialogar com o que lhes era

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“estranho” – os engajados, restritos às fronteiras nacionais e os tropicalistas abertos ao estrangeiro –, a fim de buscar uma síntese possível em meio à heterogeneidade cultural brasileira, que pudesse revelar a nossa identidade como nação. Diferentemente, hoje, tanto a Nova MPB como outros gêneros musicais estão restritos a nichos de consumo, onde, mesmo fenômenos de massa, como por exemplo o axé music, a música sertaneja ou o pagode romântico, não parecem ser capazes de abarcar um público que, embora numeroso, seja composto por pessoas de diferentes gostos, estilos de vida e visões de mundo. Se, por um lado, a democratização da cultura possibilitou a satisfação de demandas antes reprimidas junto a diferentes parcelas da sociedade, refletindo uma pluralidade cultural latente, por outro, a segmentação do consumo, quando não acompanhada de um trânsito individual entre os diferentes grupos, pode causar uma fragmentação prejudicial à coesão da coletividade. A estratégia de promoção musical em redes sociais na internet é um forte exemplo de como alguns grupos de consumo não são estimulados a comunicar-se com outros grupos com gostos diferentes. O princípio de funcionamento dessas redes se restringe às relações entre “amigos”, que exclui as pessoas que não partilham determinadas características em comum, isto é, tende a estimular o convívio entre iguais e a homogeneizar o círculo de relacionamento, prejudicial ao conflito de opiniões, base necessária para a formação de um consenso amplo e representativo de uma sociedade complexa. Na ciência política, os conceitos de conflito e consenso são conceitos irmãos – o segundo não existe sem o primeiro.163 Embora a formação do consenso a respeito da qualidade estética da produção cultural não obedeça aos mesmos princípios da formação do consenso político – já que exclui noções de público e privado, por exemplo –, é possível aplicar esses conceitos quando a pensamos – caso da MPB – como um objeto de formação e coesão sócio-cultural, vide, por exemplo, a construção social do samba como gênero musical síntese da identidade brasileira, tão bem descrita por Hermano Vianna em “O mistério do samba”. A Nova MPB, ao contrário da MPB, faz parte de um nicho de mercado, ou seja, as obras de seus artistas representativos circulam em um círculo social restrito. As apresentações ao vivo, a despeito de terem se tornado mais numerosas – pois 163

BOBBIO, Norberto. Consenso. In: ______; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco (Org.). Dicionário de Política. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998.

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há mais artistas no mercado –, atraem plateias reduzidas. Nesse sentido, é exemplar o caso do Grupo Matriz, no Rio de Janeiro, empresa, surgida há pouco mais de cinco anos, dona de quase uma dezena de casas de shows de pequeno porte na cidade; em São Paulo, outra casa que contribuiu significativamente para a formação de uma cena musical expressiva é o Studio SP, além da Casa de Francisca e dos já bem sucedidos teatros do circuito SESC. Considerando que o principal objetivo para um artista novo é a formação de público, observam-se estratégias que tentam reverter o quadro pouco favorável. É frequente a organização de shows em que há participações de artistas consagrados (diz-se que o artista reconhecido “apadrinha” o mais novo), ou que dois artistas novos se juntam para dividir os custos de produção e “tomar emprestado” o público um do outro. Sob outro ponto de vista, apesar da Nova MPB representar uma pequena fatia do mercado, tornou-se frequente, devido às facilidades de transporte e comunicação e da importância financeira adquirida pelos concertos ao vivo no mercado musical, a participação de novos artistas brasileiros em diversos festivais internacionais – Françoise Benhamou atribui o aumento da oferta e demanda por festivais ao subsídio do Estado no sentido de promover o turismo.164 Será

então

possível

para

os

artistas

da

Nova

MPB

viabilizarem

financeiramente suas carreiras no mercado de nicho? O caso particular do cantor e compositor Wado é ilustrativo. Em dez anos de carreira, o músico já teve contrato com gravadoras, mas atualmente prefere trabalhar de forma autônoma. Segundo ele, a grande vantagem de ter contrato com uma gravadora é a possibilidade de aproveitar sua rede de contatos para a divulgação do trabalho para um público maior. Recentemente, Wado optou por viver em Maceió, sua cidade Natal, e ressalta as facilidades da produção digital e da internet para esse tipo de escolha, além dos editais públicos, que incentivam a regionalização da produção cultural, fora do eixo Rio - São Paulo. O artista diz ter platéia garantida de trezentas pessoas em qualquer capital do Brasil e, sobretudo após ter uma canção sua incluída na novela “Caminho das Índias”, da TV Globo, o recebimento de direitos autorais tornou-se uma fonte de rendas significativa e regular. Tendo como exemplo o caso de Wado, pode-se dizer que é possível aos compositores-intérpretes da nova geração tornar sustentável

164

BENHAMOU, op. cit.

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uma carreira, embora com muito menos glamour e conforto material do que os artistas da MPB consagrados nas décadas anteriores pelo rádio e pela televisão.165 Outro caso representativo da inserção da Nova MPB no mercado internacional é o da cantora Céu. Em dez anos de carreira, teve seus discos lançados por selos na Inglaterra e nos Estados Unidos. Neste país, distribuída pela rede de café Starbucks, vendeu 30 mil cópias nas duas primeiras. A artista não tem a imagem massificada na mídia nacional e no entanto é um exemplo de carreira bem sucedida dentro de um determinado segmento, participando de importantes festivais internacionais, como por exemplo o Coachela Fest, na Califórnia, com agenda de shows cheia na Europa e em países da América Latina. Seus shows no Brasil não são em grandes casas e, embora já tenha tido músicas incluídas na trilha de novela da rede Globo, seu nome não é conhecido do grande público, sobretudo porque não faz um tipo de música que seja o padrão de sucesso imposto pelo mercado. No entanto, paulatinamente, vem conquistando espaços cada vez maiores e já se apresentou em grandes eventos como a abertura dos jogos panamericanos, sendo também indicada a prêmios de porte, como o Grammy. Céu é um exemplo de artista da Nova MPB, que surgiu de forma independente, produzindo de forma autônoma tanto sua música (com liberdade artística) quanto a circulação de seus shows, ocupando inicialmente um mercado de nicho e alargando cada vez mais o nicho chegando em algumas ocasiões ao grande público. Importante, portanto, compreender as atuais condições sociais para o surgimento de grandes artistas. As questões discutidas neste capítulo – a segmentação do mercado, a fragmentação social, o culto do amador, a reificação da obra de arte, o paradigma da sensação – são acentuadas ou decorrem diretamente das novas bases materiais da sociedade contemporânea, que, se por um lado, viabiliza tecnicamente a produção artística, por outro, revela novos e difusos parâmetros de controle do sistema capitalista transformado pelas tecnologias da informação.

165

JANOTTI JR., Jeder; GONÇALVES, Suzana Maria Dias; PIRES, Victor de Almeida Nobre. Wado, um ilustre desconhecido nos novos tempos da indústria musical. In: HERSCHMANN, M. (Org.). Nas bordas e fora do mainstream musical. Novas tendências da música independente no início do século XXI. São Paulo: Estação das Letras e Cores Editora, 2011. p. 359-378.

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6 O MÚSICO-PRODUTOR Em seu livro “O que é o virtual?”, Pierre Levy distingue “quatro modos de ser”, agrupados da seguinte maneira: o virtual/atual e o possível/real. Explica: ...o virtual é como uma situação subjetiva, uma configuração dinâmica de tendências, de forças, de finalidades e de coerções que uma atualização resolve. A atualização é um acontecimento, no sentido forte da palavra. Efetua-se um ato que não estava prédefinido em parte alguma e que modifica por sua vez a configuração dinâmica na qual ele adquire uma significação. A articulação do virtual e do atual anima a própria dialética do acontecimento, do processo, do ser como criação. Em troca, a realização seleciona entre possíveis predeterminados, já definidos. Poder-se-ia dizer que o possível é uma forma à qual uma realização confere uma matéria.166

Ainda segundo Levy, “a atualização é criação, invenção de uma forma”. Podemos dizer então que antes do objeto artístico assumir uma forma concreta (atualizar-se), ele existe virtualmente em nossa mente como potência. Há uma articulação contínua entre os modos atual e virtual. A virtualização passa “do ato – aqui e agora – ao problema, aos nós de coerções e de finalidades que inspiram os atos”,167 e assim sucessivamente. Para ilustrar o processo, basta pensarmos na sucessão de esboços, estudos, rascunhos, que antecedem a forma final de um objeto artístico. Considerando o instrumento técnico como um operador de virtualização, é interessante observar as possibilidades para a criação artística surgidas com o uso do computador. Uma mudança aparentemente simples, mas de grandes proporções, por exemplo, é a possibilidade de gravar em casa instrumentos em pistas separadas e ouví-los simultaneamente (o que antes demandaria uma estrutura dispendiosa de estúdio), permitindo a compreensão do produto como um todo antes de tornar-se pública a versão final. A passagem do ato ao problema, nesse caso, ocorre em espaços cada vez mais curtos de tempo e praticamente sem custos financeiros, de modo a ampliar consideravelmente as possibilidades de experimentação, essencial para a criação artística. Um fenômeno típico dos novos tempos, portanto, é a transformação dos músicos também em produtores, utilizando o computador não somente para o

166 167

LEVY, op. cit., 136. Idem, ibidem, p. 139.

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registro mas também para a criação musical.168 O domínio dos recursos digitais pelos artistas-produtores contribui não somente para a criação de uma nova sonoridade, relacionada aos timbres eletrônicos, mas também promove uma transformação no aspecto formal da composição. O resultado estético alcançado com os novos meios suscitou, a partir de uma entrevista de Chico Buarque, um frutífero debate em torno do que se convencionou chamar de o “fim da canção”.169 No auge do sucesso comercial do rap, o compositor supôs que o formato canção talvez estivesse esgotado, tendo sido um genêro datado do século XX. Buscando entendê-lo, José Miguel Wisnik observa que, de certa forma, a canção passa, na virada do século, por “efeitos deslocadores”, tanto do rap, que consiste em uma radicalização da palavra ritmada, quanto da música eletrônica.170 A forma de compor da música eletrônica, de fato, contribuiu com recursos importantes para a produção de música popular, como, por exemplo, o sequenciamento de células rítmicas ou harmônicas em loop (em repetição) – estética que remete à música minimalista – ou o uso de elementos da música concreta e eletroacústica, que se caracteriza pela edição de sons gravados da vida cotidiana, com ou sem processamento no computador. Na tentativa de compreender as particularidades das canções produzidas pela nova geração de compositores brasileiros, José Miguel Wisnik e Arthur Nestrovsky criaram o conceito de “canção expandida”. Segundo Wisnik, a canção expandida é “aquela que passeia por temas mais ou menos fortuitos, difusos, nem sempre definíveis com clareza, e traz com eles uma massa sonora de fundo que se expande e às vezes abre lagoas musicais autônomas, ou que levam a canção para lugares inesperados”.171 Arthur Nestrovsky reitera a ausência de narrativa: ... é como se tivesse uma canção tradicional, só que cada pedaço da canção foi expandido […] e você pode ficar um bom tempo dentro daquele pedaço e depois vem uma outra coisa que às vezes é marcadamente diferente: uma outra textura, outros instrumentos, efeitos eletrônicos […] é como se fosse uma espécie de ambiência sonora e poética, que é mais sugestiva do que propriamente narrativa.172 168

FRÓES, Rômulo. A nova música brasileira e seus novos caminhos. Overblog, 30 jun. 2009. Disponível em: . Acesso em: 30 dez. 2011. 169 WISNIK, José Miguel; NESTROVSKY, Arthur. O fim da canção. Rádio Batuta, Instituto Moreira Salles, 2009. (Áudio). Disponível em: . Acesso em: 1º jan. 2012. (Comunicação verbal). 170 WISNIK, op. cit. 171 WISNIK, José Miguel. Nova. O Globo, 1º jan. 2011. (Segundo Caderno). 172 NESTROVSKY, op. cit.

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A própria imagem de expandir um pedaço da canção é análoga às possibilidades de composição através de softwares musicais e tem o mesmo fundamento do loop, que é a repetição de fragmentos (samples) de sons para a criação de ritmos ou atmosferas sonoras. Da mesma forma, é possível, igualmente, descontruir as frações musicais seja pela alteração (distensão) da duração ou pelo processamento do som (recriando texturas), ou mesmo pela reprodução, em instrumentos acústicos, dos efeitos produzidos em computador. Pode-se dizer que a canção expandida, a rigor, revela-se somente no registro sonoro, e que, nela, forma e sonoridade são indissociáveis. Dessa forma, os interlúdios instrumentais, os arranjos, os efeitos, as texturas, a atmosfera, todos esses elementos, compõem, para além da relação letra e música (que define o formato canção), a unidade expressiva da canção expandida: “a melodia remetendo à harmonia, por sua vez aquilo remetendo à letra e todos esses elementos estruturalmente encadeados numa espécie de isomorfismo”.173 Podemos entender isso, por exemplo, observando a dificuldade de execução ou reprodução ao vivo da sonoridade alcançada com o aparato técnico de estúdio, ou também pela impossibilidade de refazer certas operações – uma vez executadas –, procedimento frequente, ao contrário, com instrumentos convencionais, temperados ou não. Isso acontece porque a música eletrônica abrange infinitas possibilidades entre o som e o ruído e não possui, como o sistema tonal, uma notação efetiva. Um esforço nesse sentido é o livro “Solfejo do objeto sonoro”, em que o compositor Pierre Schaeffer, precursor da música concreta, procura identificar qualidades intrínsecas aos sons, que não podem ser representados na notação musical do sistema tonal, como mensurações físicas de frequência, tempo, amplitude e espectro, ou percepções subjetivas de altura, duração, intensidade e timbre. Wisnik também associa a forma da canção expandida a um tipo de escuta cuja atenção é flutuante: “planos de superposição de camadas que te deixam num estado de deriva associativa, de tal modo que a gente chega a dizer depois de ouvir que é difícil dizer do que ela [a cancão] fala”.174 O resultado formal da canção expandida deriva, portanto, não somente da utilização dos recursos digitais para a composição, mas também do estado psicossocial diagnosticado por Turcke sob o 173 174

WISNIK, 2009. Idem, ibidem.

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paradigma da sensação. A atenção flutuante – também poderíamos dizer a “distração concentrada” – está diretamente ligada ao modo como as pessoas consomem música atualmente. Se há algumas décadas, era preciso parar as atividades, normalmente em casa, colocar o longplay na vitrola (as caixas de som eram de qualidade superior à maioria dos atuais fones de ouvido), ouvir o álbum ao mesmo tempo em que folheava o encarte com as letras e a arte gráfica e estar atento para trocar de lado o disco, hoje em dia, é comum a audição em trânsito, com aparelhos portáteis, muitas vezes com o fone em somente um dos ouvidos, sujeito a todo tipo de estímulos sonoros, táteis, visuais, que disputam a atenção com a música. Ela confunde-se então com os próprios sons da vida cotidiana, como se fosse possível “desauratizar” ainda mais o obra de arte na época de sua reprodutibilidade digital. É importante notar o espírito colaborativo observado entre compositores, instrumentistas, produtores musicais, cantores, DJs da nova geração, que participam criativamente uns dos trabalhos dos outros, além de contribuir para o surgimento de novos espaços de circulação e estratégias de divulgação. O ambiente cooperativo ressalta a desvalorização do dinheiro como moeda de troca no meio musical, fato que pode ser explicado por uma necessidade prática, haja vista a descapitalização da indústria fonográfica e o aumento do número de novos artistas pleiteando um lugar no mercado. Exemplar desse espírito é a profusão de coletivos de arte surgidos nos últimos anos, entre os quais se destaca a rede “Fora do Eixo”. Os coletivos são voltados para uma filosofia de trabalho e de vida orientados por valores comunitários, como vimos, típicos da doação como categoria de propriedade. Criouse, inclusive, na rede Fora do Eixo, uma moeda própria, chamada Cubocard, que tem a função de financiar projetos no interior da rede. Frequentemente, nas casas comunitárias mantidas em algumas cidades, artistas e produtores são constrangidos a dividir sua vida pessoal, partilhar de um estilo de vida comum, para poder receber em “retribuição” os serviços oferecidos pela organização. É frequente também a produção de festivais de música, em que os artistas devem abrir mão do cachê, mesmo quando financiados por edital público, em troca da suposta exposição que viabilizará turnês pagas no futuro.175

175

CHINA, 2011. Blog. Disponível em: http://chinaman.com.br/fora-do-eixo-e-longe-de-mim>. Acesso em 20 dez. 2011.

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Quero destacar o tipo de critério usado pelos coletivos para a produção cultural. Lewis Hyde, a certa altura do seu livro, descreve a estratégia adotada pela Creative Capital Foundation, agência sem fins lucrativos que tem como objetivo financiar a arte com a própria arte. Para isso, é composta por um quadro de curadores especialistas, que selecionam os artistas pautados por critérios como “originalidade, ousadia, maestria”,176 por exemplo. Todo artista, explica, deve concordar em “contribuir com uma pequena porcentagem de todo o lucro líquido que venham a obter com as obras geradas por seus projetos”177 e esses recursos são aplicados em novos financiamentos. Colocando lado a lado as gravadoras, o Creative Capital Foundation e o Fora do Eixo, podemos perceber as diferenças de critério entre os tipos de organização, pois, se para as gravadoras – tendo em mente a ideologia da indústria cultural – o filtro é predominantemente comercial, se o modelo alternativo de uma empresa sem fins lucrativos, defendido por Lewis Hyde como o mais adequado para o fomento da arte, enfatiza valores como originalidade, ousadia, maestria, os coletivos utilizam critérios de cooperação, participação, engajamento, assim como o critério comercial, alheios ao juízo estético, e ligados a uma forma de sociabilidade ultrapassada no ocidente desde a revolução industrial. Jacques Rancière chama de “neocomunismo” o fenômeno que se revela por detrás do uso da internet como ferramenta para o compartilhamento da informação. A informação de qualidade, no entanto, como argumenta Andrew Keen em seu livro sobre “O culto do amador” na WEB 2.0. – o termo WEB 2.0. é utilizado para descrever a segunda geração da Web, caracterizada pela colaboração dos usuários na produção do conteúdo –, não pode ser resultado de um processo que combina colaboração e anarquia. Então, nesse sentido, deve-se estar atento ao pensamento que se tornou lugar comum a respeito do ambiente virtual, o de que a possibilidade de interação entre emissor e receptor promove enfim a indistinção entre artista e público, já que o emissor se torna receptor e vice-versa. Para Pierre Levy, por exemplo, que, nesse quesito, corrobora a opinião de Castells, “não é mais o sentido do texto que nos ocupa, mas a direção e a elaboração de nosso pensamento”. O texto “é recortado, pulverizado, distribuído, avaliado segundo critérios de uma subjetividade que produz a si mesma”. Para ele, toda leitura torna-se um ato de

176 177

HYDE, op. cit., p. 430. Idem, ibidem, p. 430.

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escrita.178 Indo de encontro a essas previsões, Keen descreve como o equivalente à morte da cultura a ingênua defesa de um executivo do Vale do Silício, chamado Kevin Kelly, pelo que chama de uma “versão líquida” do livro. “'Depois de digitalizados', diz Kelly, 'os livros podem ser desemaranhados em páginas únicas ou ser ainda reduzidos até retalhos de página. Esses retalhos serão remixados em livros reordenados em estantes de livros virtuais'”.179 O ponto de vista de Castells e Levy e também do executivo Kevin Kelly é o fundamento para a argumentação daqueles que acreditam ser um pensamento elitista e antidemocrático defender o valor de exceção na arte, ligado, segundo Bernardo de Carvalho, “a um ideal de individualidade, de subjetividade e de autoria individual”.180 Não acho possível presumir que todas as pessoas possuem dons artísticos, finalmente liberados com a democratização dos meios técnicos de produção, ou que talento é uma habilidade que pode ser adquirida por esforço próprio. Isso não significa absolutamente que artistas ocupem uma espécie de posição superior aos não artistas em uma suposta hierarquia que leve em conta habilidade, inteligência ou sensibilidade, e tampouco que o envolvimento com atividades lúdicas ou a expressão de sentimentos capazes de emocionar as pessoas seja exclusivo de artistas, mas sim que estes o fazem de uma maneira mais ou menos sistematizada, dando forma a um objeto. Na medida da capacidade de cada um, ao receber o impacto estético e emocional de uma obra de arte, as pessoas são levadas, segundo Hyde, senão a criar um novo objeto a elaborar melhor suas experiências, criando sentido para suas vidas através do qual se pode interpretála.181 Uma outra ideia comumente repetida com a democratização dos instrumentos digitais é a desqualificação dos intermediadores. Levy chega a descrever um fenômeno que denomina “desintermediação”: Como os produtores primários e os requerentes podem entrar diretamente em contato uns com os outros, toda uma classe de profissionais corre doravante o risco de ser vista como intermediários parasitas [...] da transação (comerciantes, banqueiros, agentes financeiros diversos) e tem seus papéis habituais ameaçados. Esse fenômeno é chamado de “desintermediação”.182 178

LEVY, op. cit. KEEN, Andrew. O culto do amador: como blogs, MySpace, Youtube e a pirataria digital estão destruindo nossa economia, cultura e valores. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009, p. 58. 180 CARVALHO, op. cit., p. 54. 181 HYDE, op. cit. 182 LEVY, op. cit., p. 62. 179

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A despeito de frequentes manifestações de abuso de poder, se o meio onde a obra de arte circula é o mercado, e, se onde há mercado, há vendedores, é imprescindível para a arte a figura do intermediário comercial, independente se vai ser uma gravadora ou um agente particular. Os artistas, salvo raras exceções, não têm habilidade para vender suas obras. Portanto, o acesso aos meios técnicos pode ter significado uma mudança no reequilíbrio de forças entre artistas, intermediários e público, instalando um ambiente menos assimétrico de relações de poder, mas não a ponto de ser pensado como o desencadeador do fim da intermediação, se é que isso é mesmo algo desejável, visto que, como vimos, as atividades artística e comercial são essencialmente irreconciliáveis. A função de um intermediador da música demanda empenho na construção de relações, desenvoltura em negociações, visão empresarial e artística, inteligência para circular socialmente, atividades que necessitam tempo de dedicação, além de competências inatas. Se, como propõe Levy, o artista fizesse ele mesmo a intermediação – e intermediação não é a mesma coisa que contato com o público –, provavelmente não teria mais tempo para dedicar-se à criação artística. Pragmaticamente, não é possível falar em desintermediação na música, pois esse trabalho é, sobretudo, um trabalho de relacionamento interpessoal, e não há meios técnicos que possam alterar isso. Ademais, mesmo esse reequilíbrio de forças parece ter sucedido em âmbito muito restrito, pois o que se vê no comércio on line é exatamente o contrário: as empresas de tecnologia, com estruturas físicas enxutas e pouco dispendiosas – em comparação às empresas organizadas sobre o modo de produção industrial – lucrando cada vez mais justamente com a intermediação, potencializada no mercado digital. No caso da música, do ponto de vista da criação artística, a indústria fonográfica não é o melhor modelo de intermediação, pois, idealmente, como foi dito acima, os critérios para a produção artística não devem ser comerciais; pragmaticamente, no entanto, o mercado é dado. Nesse caso, haja vista a compreensão da existência da obra de arte em uma dupla economia, deve-se sublinhar a particularidade do homem de negócios do mercado de artes, que deve ser, além de um intermediador comercial, também um mediador cultural, o elo entre o artista e o mercado. Revelador desse caso é o depoimento de André Midani, principal executivo da indústria fonográfica brasileira:

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Sempre fiquei atento ao meu redor. Consultava frequentemente meus artistas porque eles eram, e são até hoje, uma fonte inesgotável de ideias, simplesmente porque pensam nas suas carreiras e criações dia e noite. […] Meu talento profissional, além de competente administrador de empresas, era saber identificar uma boa ideia […] E o meu saber escutar foi responsável por gravações que hoje fazem parte da história da MPB, e que foram extremamente bem-sucedidas, artística e comercialmente falando.183

O executivo ainda adverte – e a mesma opinião também pode ser verificada nos depoimentos de outros diretores de gravadoras colhidos por Márcia Tosta Dias – que o trabalho no mercado de música requer a capacidade de entender o comportamento idiossincrático dos artistas. Tal postura, de executivo que atuou de forma determinante na criação do mainstream da MPB, é reveladora da diferença do homem de negócios do mercado de arte para o genérico homo economicus (fato que deve nos levar a refletir sobre o grau de institucionalização desse tipo de comportamento na indústria fonográfica). Outro relato de Midani é exemplar: Ao fim de um dia anormalmente tumultuado, tendo ouvido múltiplas queixas por parte de Guilherme Araújo (empresário de Caetano, Gil e Gal Costa) e de Marcos Lázaro (empresário de Elis Regina), todas relacionadas à nossa incapacidade de enxergar e enfocar as suas carreiras de maneira adequada, compreendi que eu tinha uma só cabeça, e que essa cabeça não tinha capacidade e cultura para entender e interpretar as demandas de artistas tão diferenciados. A maioria deles era de uma inteligência extrema e complexa, de um talento excepcional, de uma sensibilidade invulgar, todos ambiciosos e dotados de um narcisismo privilegiado.184

Se, por um lado, o executivo de gravadora não é, a rigor, um curador artístico – mas deve conciliar os dois critérios, artístico e comercial –, tampouco o é o público em geral não especialista. O uso da internet valoriza atualmente uma igualdade, onde a importância do direito à auto-expressão tende a nivelar qualitativamente os juízos sobre a produção artística. Dessa forma, os valores democráticos são como que cegamente compartilhados – como se para haver democracia, não se devesse reconhecer a igualdade tendo em conta as diferenças. Nestor Canclini questiona a consequência do relativismo cultural, ou seja, da não manipulação e hierarquização de valores. Para ele, “uma política democratizadora é não apenas a que socializa os bens 'legítimos', mas a que problematiza o que deve entender-se por cultura e quais 183 184

MIDANI, op. cit., p. 139. Idem, ibidem, p. 133.

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os direitos do heterogêneo”.185 Caso contrário, decorre um regime de opiniocracia, que, ao contrário do juízo crítico, não expõe argumentos e tampouco reconhece diferenças entre especialistas e amadores. Segundo argumenta Antonio Cicero, é como se ao problema de não podermos “provar cientificamente que determinada coisa seja superior a outra do ponto de vista estético”, pudéssemos igualar o juízo estético de um inepto ao de um conhecedor do assunto.186 Não à toa, é corrente em premiações artísticas a distinção entre o júri especializado e o júri popular; são tipos de avaliação diferentes, que devem ser considerados dessa forma nas tomadas de decisão que tenham como consequência a circulação de produtos artísticos. Uma vez que a circulação acontece via mercado e o resultado comercial é consequência, em grande parte, da recepção do público, a postura ideal do intermediador cultural, seja ele o diretor de uma gravadora – portanto, nesse caso, também um intermediador comercial – ou o curador de uma organização não lucrativa, deve ser a de conciliar os critérios de qualidade artística e penetrabilidade social junto ao grande público. Segundo defendo, os diretores artísticos das gravadoras conseguiram conciliar os dois critérios no início do período de institucionalização da MPB, comportamento que se tornou insustentável com o avançar das décadas e o acirramento da lógica econômica sobre a produção artística. A partir de agora, quando me referir ao especialista, não estarei me referindo ao executivo de gravadora, mas à pessoa, seja ela intermediadora ou não, com notório conhecimento, capaz de legitimar seu juízo sobre objetos artísticos diante do público comum; são representados nas figuras de críticos, curadores e dos próprios artistas, por exemplo. O fim da indústria fonográfica, como vimos, acarretou duas situações para o mercado musical. Por um lado, a reversão da situação de escassez artificial, que transformou toda a oferta latente, antes preterida do mercado, em oferta real; por outro, a descapitalização do mercado. Com mais gente produzindo e menos dinheiro para a produção – é certo que as tecnologias digitais reduziram os custos com a produção, ainda que se gaste cada vez mais com o marketing –,o número de profissionais (empresários, agentes, produtores), que antes cuidavam de uma amostra restrita de artistas selecionados pelos diretores artísticos das gravadoras e que normalmente assumem o risco cultural junto com os artistas, tornou-se 185

CANCLINI, Néstor García. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2011, p. 156. 186 CICERO, 2005, p. 166.

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insuficiente. Na música brasileira, em muitos casos, os compositores e intérpretes passam a ocupar-se com tarefas alheias à criação, como produção de shows, gravação e edição de videoclipes, negociação de contratos com selos ou gravadoras, relação com a assessoria de imprensa, inscrição em editais públicos de fomento, captação de patrocínio com os departamentos de marketing das empresas, acumulação de capital social e simbólico em eventos, além de suas ocupações principais de compor, ensaiar, arranjar, gravar, tocar, ou seja, tarefas que antes lhes eram oferecidas pela estrutura organizacional de uma gravadora. Sob esse ponto de vista, se por um lado não há mais impotência do artista ante as estruturas físicas da indústria fonográfica – estúdios, fábricas, depósitos etc. –, no entanto, o envolvimento forçado com as múltiplas funções relacionadas à promoção de sua obra, além de ocasionar amadorismo, não deixa de ser uma limitação material à criação artística. Atualmente, o consumo cultural na internet tende a associar o número de acessos a links de determinado artista, a seu prestígio na rede. A interação social e todo consumo no ambiente virtual são regidos pela lógica de um algoritmo. Dessa forma, para alcançar uma posição de destaque no ranqueamento do Facebook, por exemplo, (importante canal de divulgação para a música na internet), a pessoa deve disponibilizar conteúdo em quantidade, isto é, deve tornar-se ativa, pois quanto mais emite, não importa o que seja, mais visibilidade e prestígio alcança na rede. A lógica que está por detrás dos princípios de busca da internet, associada a parâmetros quantitativos – relativos ao número de exibições no Youtube ou de aparições no Google – tendem, por isso, a estimular uma perda do referencial subjetivo para o julgamento do que quer que seja uma grande obra. A autoria, argumenta Bernardo Carvalho, passa a ser então identificada a “uma forma privilegiada de estar e aparecer no mundo,187 provocando então uma indistinção entre as vidas pública e privada do artista. É nesse sentido, referindo-se a um artigo do filósofo francês Jacques Rancière, que esclarece a mal compreendida noção de gênio: ... ao contrário do que se convencionou chamar de culto do autor, a noção de gênio é bem mais complexa e está originalmente ligada ao conceito da obra como expressão de uma força anônima. O gênio não é apenas a representação de uma individualidade – uma força anônima o atravessa e termina por se expressar.188 187 188

CARVALHO, op. cit. RANCIÈRE, Jacques apud CARVALHO, op. cit,, p. 55. Grifo nosso.

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Essa definição remete ao tema da impessoalidade da expressão artística. Segundo Lewis Hyde, “as obras de arte são extraídas de partes do ser que não são exclusivamente pessoais, partes que derivam da natureza, do grupo, da raça, da história e da tradição e que se manifestam através do dom do artista”.189 Isto é, são recebidas pelo artista como dádiva; e através do artista, a obra de arte é devolvida ao grupo social, como corporificação necessária da cultura – essa é sua contribuição: o objeto acrescido de seu dom de tornar formalmente coerente a dádiva inicial.190 Também para T.S. Eliot, em seu clássico ensaio “Tradição e talento individual”, o artista não tem “uma 'personalidade' a ser expressa, mas um médium particular”, “no qual impressões e experiências se associam em peculiares e inesperados caminhos”. Por isso, diz, “não é em suas emoções pessoais, as emoções induzidas por episódios particulares em sua vida, que o poeta se torna, de algum modo, notável ou interessante”:191 Há muitas pessoas que apreciam a expressão de uma emoção sincera em verso, e há um grupo mais seleto de pessoas que podem apreciar a excelência técnica. Mas muito poucos sabem quando ocorre uma expressão de significativa emoção, emoção que tem sua vida no poema, e não na história do poeta. A emoção da arte é impessoal.192

Tanto a sinceridade com que o artista expõe um sentimento quanto o nível técnico com que o atualiza não são, portanto, parâmetros que assegurem a coerência interna da obra – segundo conhecido verso de Drummond, “o que pensas e sentes, isso ainda não é poesia”. A expressão da emoção na arte deve ser intrínseca ao objeto, ao jogo de relações formais encerrado nele. A regulação do mercado por relações sociais na internet, que levam a confundir a vida particular do artista com a obra – desconsiderando o traço de singularidade que a define – contribui para acentuar o determinismo social em torno da criação de valor para a produção cultural. Carvalho explica: É assim que o chamado 'valor social' (a capacidade que os indivíduos têm de influenciar uns aos outros através de suas opiniões em blogs, Twitters e páginas pessoais em sites de relacionamento) 189

HYDE, op. cit., p. 239. Idem, Ibidem, p. 76. 191 ELIOT, T. S. Tradição e talento individual. In: ______. Ensaios. Tradução, introdução e notas de Ivan Junqueira. São Paulo: Art Editora, 1989, p. 46. 192 Idem, ibidem, p. 48. Grifo nosso. 190

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começa a despertar interesse no mercado virtual. Porque, a partir do momento em que a obra é reduzida à expressão da vida privada e ao marketing do autor, ela também passa a ser veículo potencial de publicidade e encontra no chamado merchandising uma remuneração possível. Mais de 95% do lucro do Google vem da publicidade. Toda a estratégia da empresa depende do conhecimento, do acesso e da comercialização dos desejos, dos gostos e dos interesses dos usuários. Toda a economia da informação gratuita precisa que a vida privada seja exposta como pública, formando um mapa mundial dos desejos e do gosto, para que haja lucro.193

Sendo assim, se o especialista – a quem cabe relativizar o determinismo econômico e social (isto é, não deixar que um dos extremos dos binômios arte/mercado ou arte/vida predomine) – perde a autoridade, se alguns artistas passam a confundir obra e vida (a confusão não significa que a arte não é legítima quando movida pela vida, como sucede, aliás, com muitos grandes artistas, mas que devem tornar-se esferas distintas e não se tomar uma pela outra, pois, como vimos, a emoção na arte está na obra e não na vida pessoal do autor) e se tanto os tecnocratas das gravadoras quanto os novos produtores neocomunistas orientam-se por critérios extramusicais na escolha de seu elenco, a objetivação na fruição de obras de arte não era devida somente à organização econômica industrial, mas é também resultado, como foi dito, de um estado difuso de coerção social que atinge a psicologia e a fisiologia do homem contemporâneo. Na Nova MPB, pode-se perceber uma clara tendência à reificação da técnica ou à defesa da estética eletrônica como elemento propulsor de uma suposta evolução da música brasileira. Nesse sentido, Rômulo Fróes reivindica um “projeto de renovação” que passa pela sonoridade resultante do uso de equipamentos de gravação digital. Segundo ele, “... não só o som do instrumento tem importância aqui. O modo como ele é captado e a manipulação do seu timbre através dos inúmeros equipamentos de um estúdio de gravação serão tão ou mais importantes”.194 Se há, e de fato há, um grupo de novos artistas-produtores que incorporam a sua música a estética produzida por equipamentos eletrônicos, a meu ver, isso se deve a um espírito de época comum e não pode, como argumenta o compositor-articulista, significar superação de elemento harmônico pelo timbrístico. O valor da obra, como disse, está nela mesma e não em aspectos objetivos, como o 193 194

CARVALHO, op. cit., p. 55. FROES, Romulo. Chico e Caetano ao mesmo tempo. In: Estado de São Paulo. Disponível em: . Acesso em 3 de fev. 2012.

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tipo de microfonação ou o uso desse ou daquele pedal de guitarra. O uso de novas tecnologias não porta valor em si – tampouco a escolha de determinados acordes –, mas sim o tipo de uso que deles é feito na composição. Pensar o contrário seria incorrer em um determinismo tecnológico que confunde novos meios com progresso artístico.195 Por sua vez, como vimos, a nova estética da canção brasileira é analisada com brilhantismo por José Miguel Wisnik e Arthur Nestrovsky, que, com o conceito de canção expandida, nos fazem entender como os novos caminhos abertos pelo uso de recursos eletrônicos e a audição desconcentrada podem afetar a estrutura formal da composição. O caso do movimento Tropicalista na década de 1960 é ilustrativo. A estratégia de apropriação de elementos da música estrangeira e comercial pelos artistas tropicalistas não teria tido o mesmo efeito para a música brasileira se algumas composições, por si, não fossem portadoras de um apuro formal que as fizesse ter tido um impacto estético real na época – e ainda hoje, como pontos altos do cancioneiro brasileiro. O Tropicalismo, naquele momento, fez uso da guitarra elétrica também como um elemento político, para fazer frente a um conceito estreito de música brasileira que vigorava no meio artístico. A elucidação conceitual que empreenderam, no entanto, liberou a música brasileira de qualquer tipo de prescrição, e nesse caso, a guitarra elétrica foi um instrumento que serviu para mostrar que a música brasileira poderia ser feita de diversas maneiras, sem guitarras e inclusive com elas, pois ainda assim seriam brasileiras.196 Por esse motivo, a defesa de um projeto de superação estética da música brasileira através do uso da tecnologia digital não faz sentido senão como uma impostura, já que ignora a simultaneidade de múltiplas estéticas e temporalidades. É comum, sobretudo em matérias jornalísticas, mas também os próprios músicos-produtores, depositarem em aspectos técnicos da obra uma suposta legitimidade artística, em detrimento de uma apreciação crítica adequada. São muitos, inclusive, os casos de artistas da MPB que se promovem, voluntariamente nos próprios releases e/ou entrevistas, e não por apropriação oportunista da imprensa, utilizando aspectos de sua vida pessoal. Um caso ilustrativo e recentemente publicado – a reportagem não apresentava o teor crítico que lhe atribuo, embora o sugerisse implicitamente – é o do lançamento do último trabalho 195 196

CICERO, 2005. Idem, ibidem.

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do cantor e compositor Lenine, chamado “Chão”. Segundo o release do álbum, reproduzido pela imprensa sem alterações relevantes, o trabalho consistia em “dez músicas inéditas, imersas na delicada intimidade de ruídos sem edição”; a arte gráfica do CD mostrava seu neto dormindo no colo do filho mais velho, uma das faixas continha a gravação do batimento cardíaco de outro filho (este também produtor do disco) e em uma das faixas, podem-se ouvir os latidos do cachorro de Lenine. Em entrevista a um jornal carioca, ele repisa: “o grande diferencial do álbum é que os ruídos não foram editados”. Evidentemente, qualquer tipo de comunicação na imprensa não pode estar à altura da audição das músicas, e, nesse sentido, cabe a cada um julgar esteticamente a obra de acordo com sua capacidade e sensibilidade. O que salta aos olhos, no entanto, é a tentativa do próprio artista de singularizá-la por meio de informações meramente técnicas ou relacionadas a sua vida familiar. Em muitas ocasiões, os próprios shows de música também ficam relegados a segundo plano, pois cada vez mais as pessoas não saem de casa pela música, mas pelo happening. Segundo pesquisas, no último Rock in Rio, 45% das pessoas não foram ver o cantor. “O cara vai à festa”, afirmou o organizador do evento, Roberto Medina.197 A organização dos eventos, normalmente, além dos shows, oferece vários tipos de serviço, como bares para o consumo de comida e bebida, lojas onde se pode comprar produtos relacionados ao evento, exibição de filmes e discoteca. Para atrair o público, as casas de show transformam-se em pólos de entretenimento. Com esse modelo, a indústria dos megashows se mostra um negócio rentável no mundo inteiro.198 Um ponto importante que deve ser também questionado é a frequência do lançamento de composições inéditas na Nova MPB. Se os shows, devido à arrecadação de receitas, tornaram-se mais importantes do que a gravação de álbuns, por que então se percebe, mesmo entre os novos artistas, que atuam de forma autônoma e utilizam os meios de divulgação da internet, a mesma regularidade no lançamento de novos álbuns, tal qual vigorou no período industrial? Lançar álbuns com uma frequência regular fez sentido para a indústria fonográfica quando se vendiam discos, fitas ou CDs; agora que são um mero item de marketing, não haveria mais motivo comercial relevante, tampouco artístico para tal. Umberto 197 198

TERRA, op. cit. Idem, ibidem.

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Eco explica que um traço definidor da indústria cultural é a determinação de uma periodicidade para a produção. Segundo o autor, ... com o nascimento do jornal, a relação entre condicionamentos externos e fato cultural torna-se ainda mais precisa: o que é um jornal, se não um produto, formado de um número fixo de páginas, obrigado a sair uma vez por dia, e no qual as coisas ditas não serão mais unicamente determinadas pelas coisas a dizer (segundo uma necessidade absolutamente interior), mas pelo fato de que, uma vez por dia, se deverá dizer o tanto necessário para preencher tantas páginas? A essa altura, estamos já em plena indústria cultural.199

A permanência e até o acirramento da frequência de lançamento de novos trabalhos, mesmo sem coerção da indústria cultural, pode ser explicada à luz do “paradigma da sensação”. A “pressão para emitir”, identificada por Turcke, é sinal da necessidade de integração do indivíduo via massificação da imagem. Sob um estado psíquico regido pela busca incessante de novidades, “não emitir”, segundo ele, “é equivalente a não ser” e, logo, apesar de não haver mais a imposição da gravadora, o artista, para manter sua imagem onipresente, deve lançar novos trabalhos com uma periodicidade regular e em espaços cada vez mais curtos de tempo. Para dar conta da avidez do público por novas sensações, é comum o slogan “a nova revelação da música brasileira” para apresentar o trabalho de novos artistas, recurso tão sem imaginação quanto revelador de uma sociedade incessantemente em busca de estímulos sensoriais e em crise com a redução da influência dos meios de massa – e o fim da indústria fonográfica –, quando era mais possível, com propaganda massiva, construir astros da MPB de um dia para o outro (recentemente, o único caso bem sucedido foi o da cantora Maria Gadú). A descrição de Turcke sobre os efeitos do hipertexto é ilustrativa do sintoma: O olho do leitor encontra constantemente conceitos marcados chamando para outros textos que prometem uma leitura mais excitante do que a que se faz agora, e apenas o esforço de uma negação teimosa contra tais saltos de página permite que se esteja em condições de ler o texto em questão, de uma vez só, até o fim. Cria-se aqui um imenso potencial de distração, um tipo de percepção que não mais sente a si própria como tal, porque está à disposição, não pode mais envolver-se com nada sem reservas, sempre mirando de soslaio para outras coisas. Sua suspeita permanente: onde estou não é o “aí”. Estou excluído do que é decisivo.200

199 200

ECO, op. cit., p. 14. TÜRCKE, 2010, p. 70.

90

É claro que o leitor, ao percorrer o texto fragmentadamente, guiado por uma vontade pessoal, transforma-se ele próprio em autor de si mesmo, de um “texto” irrepetível, pois absolutamente pessoal – como vimos, assim argumentaram Manuel Castells e Pierre Levy. Verifica-se, porém, que um estado psicossocial latente pressiona o sujeito no sentido da falta de concentração. Desse modo, as músicas devem apresentar atributos capazes de conquistar o ouvinte logo nos primeiros segundos ou então proporcionar-lhes um tipo de escuta flutuante, como notaram Wisnik e Nestrovsky. Dada à obsolescência programada dos bens culturais, no caso das canções de massa, devem, sobretudo, apresentar alguma curiosidade que as alce a grandes sucessos instantâneos. David Harvey observa que: ... a aceleração do tempo de giro na produção teria sido inútil sem a redução do tempo de giro no consumo. A meia vida de um produto fordista típico, por exemplo, era de cinco a sete anos, mas a acumulação flexível diminuiu isso em mais da metade em certos setores […]. A acumulação flexível foi acompanhada na ponta do consumo, portanto, por uma atenção muito maior às modas fugazes e pela mobilização de todos os artifícios de indução de necessidades e de transformação cultural que isso implica. A estética relativamente estável do modernismo fordista cedeu lugar a todo o fermento, instabilidade e qualidades fugidias de uma estética pós-moderna que celebra a diferença, a efemeridade, o espetáculo, a moda e a mercadificação de formas culturais.201

A “regressão da audição”, de que falava Adorno na era industrial, portanto, pode ser atualizada sob o signo da diversidade. É notável a correspondência entre seu texto, de 1963, e o de Christoph Turcke, da primeira década do novo século. Justamente a desconcentração é percebida por Adorno como característica do “modo de comportamento perceptivo” do público. Segundo ele, as pessoas “não conseguem manter a tensão de uma concentração atenta, e por isso se entregam resignadamente àquilo que acontece e flui acima deles, e com o qual fazem amizade somente porque já o ouvem sem atenção excessiva”.202 A crítica de Adorno também recai sobre o objeto, afirmando, genericamente, que as canções não são absolutamente capazes de proporcionar uma audição concentrada, já que são “irremediavelmente

semelhantes

entre

si,

exceto

certas

particularidades

surpreendentes”. Sobre esse ponto, esclarece:

201

HARVEY, op. cit., p. 148. ADORNO, Theodor. O fetichismo na música e a regressão da audição. In: Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 182. 202

91

... as formas dos sucessos musicais são tão rigidamente normalizadas e padronizadas, até quanto ao número de compassos e à sua duração, que em uma determinada peça isolada nem sequer aparece uma forma específica. A emancipação das partes em relação ao todo e em relação a todos os momentos que ultrapassam a sua presença imediata inaugura o deslocamento do interesse musical para o atrativo particular, sensual.203

A susceptibilidade do homem contemporâneo aos apelos sensuais leva Turcke a diagnosticar um estado psicossocial. Adorno também diagnosticou o apelo aos sentidos da indústria cultural. O primeiro, no entanto, não atribui ao produto, como seu predecessor, o efeito da distração, embora isso de fato possa suceder como reflexo (e no período industrial, como as alternativas para escapar do modelo eram restritas, acabou-se por tomar o estado geral pelas obras), mas sim à tendência comportamental dos indivíduos sob os condicionamentos da sociedade capitalista informatizada. Quando verificada hoje, a tendência à uniformização do produto cultural, apontada há mais de meio século por Adorno, demonstra que, a despeito das transformações tecnológicas, ainda perdura e predomina, em vários âmbitos da produção e do consumo, a racionalidade econômica fundadora da indústria cultural. É nesse sentido que Eduardo Vicente, referindo-se, sobretudo, à canção popular de massas, fala de uma “padronização dentro da segmentação”, impulsionada pela ampliação do acesso às tecnologias digitais de produção,204 e Márcia Tosta Dias observa que a diversificação da produção deve ser vista sob a ótica da segmentação de mercado, promovida, portanto, com os mesmos objetivos de antes e igualmente padronizadores do produto cultural.205 Na Nova MPB, quaisquer traços estéticos em comum entre a produção de seus artistas representativos parecem relacionar-se mais, como já dito, a um espírito de época do que a algum tipo de condicionamento do mercado. Em nenhum momento, porém, a preocupação com o aspecto comercial do produto deixa de ser relevante, embora a questão seja tensionada com a vontade individual de expressão artística.

203

Idem, ibidem, p. 182. VICENTE, 1996 apud DIAS, op. cit. 205 DIAS, op. cit. 204

92

CONCLUSÃO Neste trabalho, procurei discorrer sobre as mudanças, no que tange à liberdade criativa de compositores e intérpretes da MPB, do paradigma tecnológico que marcou a passagem da era industrial para a era da informação. Primeiramente, tentei iluminar a sigla MPB em perspectiva histórica, chamando atenção para as diferenças estéticas, políticas e ideológicas entre os artistas que participaram do momento de sua instituição, na década de 1960, e os artistas da nova geração que despontaram a partir do ano 2000. Destaquei também o funcionamento do mercado musical, dominado pela indústria fonográfica e os meios de comunicação de massa, no primeiro caso, e descentralizado, com o fim do fonograma como fonte relevante de receitas, a revalorização mercadológica da música como serviço, a atuação de pequenos selos e artistas autônomos, no segundo caso. Propus uma análise da liberdade artística por dois ângulos: um, examinando a obra de arte e a natureza particular de sua economia, e dois, buscando compreender a condição do artista enquanto sujeito crítico em meio às coerções sociais e mercadológicas. Situei então, segundo a teoria de Lewis Hyde, a obra de arte em uma dupla economia, em que pertenceria essencialmente a uma economia de doação, em oposição quase que irreconciliável à economia de mercado, embora coexistindo contextualmente em ambas. A primeira, ligada a valores comunitários, pré-capitalistas, e a segunda, eminentemente capitalista, ligada aos valores da sociedade moderna. Dessa maneira, o valor da música enquanto bem de mercado – no caso, enquanto fonograma – pôde ser objeto de reflexão nos dois momentos históricos. Utilizando a imagem de um continuum, onde em um extremo está a doação, e no outro, a mercadoria como tipos de propriedade, pude mostrar que, durante as décadas de 1980 e 90, a racionalidade econômica – ou a mercadoria – tornou-se de tal modo dominante sobre a criação artística a ponto de surgirem artistas totalmente concebidos dentro dos departamentos de marketing das gravadoras, fato que, somado à substituição dos executivos da música por tecnocratas e à fusão das gravadoras com conglomerados da comunicação e a consequente abertura de seu capital na bolsa de valores, contribuiu para a crise da indústria fonográfica, consumada com a democratização do acesso às tecnologias digitais de gravação e à internet. A digitalização do registro musical, de onde decorre o compartilhamento gratuito de arquivos MP3 na internet, e a pirataria física de CDs, desvalorizou a música enquanto mercadoria e ressaltou seu valor de doação (com o

93

compartilhamento

gratuito

de

arquivos

digitais

na

internet),

tendo

como

consequência o fim do modelo de negócios da indústria fonográfica, que predominara nas décadas anteriores. Se por um lado, o valor de mercadoria do registro musical se enfraqueceu, por outro, o artista se libertou das coerções materiais que o prendiam à indústria fonográfica. O baixo custo das tecnologias digitais de gravação e a possibilidade de divulgar a música pela internet permitiram aos artistas tornarem-se donos dos meios de produção e independentes da indústria. A independência através da apropriação dos meios técnicos também libertou criativamente os artistas, que, sobretudo no final do século, estavam sob o domínio da acentuada lógica de mercado que regia a produção musical. Tendo como pressuposto teórico a crítica à indústria cultural, situo o artista no continuum, onde, segundo Adorno, é colocado em um dos extremos – tomo essa posição como um tipo puro, impossível de realizar-se –, completamente dominado pela racionalidade econômica, sem margens de manobra. Entretanto, ao definir o grande artista como um sujeito crítico, em embate constante com o meio onde está inserido, capaz de tornar consciente a contradição arte e mercado, o próprio autor ofereceu a chave teórica para a solução de seu problema sem solução. Essa definição do grande artista corresponde a elaboração conceitual da música brasileira empreendida pelos artistas tropicalistas no final da década de 1960, pois, em meio ao impasse em que se achavam compositores e intérpretes com a imposição cada vez maior da lógica de mercado pela indústria fonográfica e pela televisão, os tropicalistas propuseram uma solução que consistia em assumir de modo crítico a estética comercial e a racionalidade do mercado. Usei então a ideia de Marcos Napolitano, para quem a MPB é mais do que um grupo de artistas engajados com um ideal nacional-popular na década de 1960 – identificados como emepebistas –, mas uma instituição dotada de autonomia relativa em relação ao mercado, composta tanto por emepebistas como por tropicalistas, para demarcá-la como um produto a um só tempo cultural e comercial, relativizando, portanto, o modelo adorniano. A autonomia relativa da MPB a coloca numa posição sui generis no continuum (ou seja, próxima ao centro), em que é capaz de manter a tensão entre liberdade de criação e exigência da realização comercial da obra. Descrevo então a renovação e continuidade – após um período de encolhimento – da relativa autonomia da instituição MPB com a recente produção dos artistas da Nova MPB,

94

que marcou a transição do período dominado pela indústria fonográfica para o mercado digital em reestruturação. Tentando entender em que medida o acesso facilitado aos meios técnicos de produção e distribuição foram de fato capazes de proporcionar a emancipação criativa do artista em relação ao mercado, utilizei os argumentos de Christoph Turcke sobre o paradigma da sensação para explicar que, a despeito da viabilidade técnica da produção, a racionalidade econômica ainda exerce – de modo difuso, não percebido

nas

estruturas

materiais



coerções

psicossociais

que

afetam

sobremaneira a liberdade artística. Usei seu conceito de distração concentrada para justificar o funcionamento da obsolescência programada dos bens culturais e para descrever o hábito de consumo de música hoje que, somado às novas possibilidades timbrísticas dos recursos digitais, afeta formalmente a composição, criando um tipo chamado por Zé Miguel Wisnik e Arthur Nestrovsky de “canção expandida”. Apontei também como a organização econômica do novo mercado de música, ao desconcentrar provedores de conteúdo e plataformas de distribuição, aponta para o exacerbamento da lógica de mercado em extremos, tendo como consequência o não reinvestimento na base da cadeia produtiva. Em outras palavras, a particularidade do mercado de artes, assim como descrevi com auxílio teórico da economia da cultura, requer um investimento de risco, e, portanto, na atual configuração do mercado, os produtores que assumem o risco da produção lucram pouco com a venda da música, visto que esse comércio está nas mãos das empresas de tecnologia. De um lado, portanto, possibilitou-se o surgimento de pequenos produtores amadores, de outro, a fonte de renda com a música gravada, que manteve o modelo de negócios da indústria fonográfica durante décadas – assim como a fabricação de fonogramas –, migrou para as empresas de tecnologia, fabricantes dos aparelhos multimeios onde se ouve música e donas das lojas de comércio de música on line. Mesmo que os meios de produção tenham ficado mais baratos, o fim do modelo da indústria fonográfica descapitalizou o mercado de música, criando outros tipos de dificuldade para a criação artística. Como observei, dada a carência de profissionais no mercado, seja pela abundância de artistas, seja pela falta de dinheiro no meio, os artistas tendem a acumular muitas funções alheias à criação de suas obras e a necessidade ter outras fontes de renda, ligadas a ocupações no

95

mercado de trabalho convencional, acaba por ser um sério obstáculo para a constituição de novas carreiras. Por não possuírem conforto material e financeiro que o permitam construir um trabalho de forma gradual, novos compositores promissores demoram até conseguir alguma reputação ou correm o risco de nunca se afirmarem artisticamente. Além disso, a falta de filtros artísticos – ou que tencionem as dimensões artística e comercial – como mostrei, estimula estratégias de divulgação ligadas a aspectos objetivos, como, por exemplo, a massificação da imagem e a promoção da vida privada. Com o fim da indústria fonográfica, mostrase necessário que se encontrem vias alternativas entre as vantagens competitivas de uma estrutura organizacional adaptada aos novos tempos, inclusive com suas demandas comerciais, e a liberdade artística reconquistada após o advento das tecnologias digitais e da internet. Em suma, dada a dificuldade de retratar o mercado de música em um momento de tantas incertezas, busquei descrever em sua complexidade o que mudou material e socialmente para o artista enquanto indivíduo crítico com a grande transformação de paradigma por que a sociedade passou da era industrial para a era da informação. Os estudos sobre essa mudança de enormes proporções ainda estão na ordem do dia, mas alguns, como os que citei – sobretudo Manuel Castells e Christoph Turcke –, são capazes de situar de maneira rigorosa tendências, por vezes contrárias, sobre a condição do homem contemporâneo na sociedade capitalista da informação. E o grande artista, nascido nesse imenso cosmos do qual não pode mais abster-se, deve entendê-lo e atuar criticamente dentro dele, como disse Adorno, “no necessário fracasso do esforço apaixonado em busca da identidade”.206

206

ADORNO; HORKHEIMER. Op. cit., p. 108.

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