A CASA EM VERSO E PROSA:

February 16, 2017 | Author: Miguel Klettenberg Padilha | Category: N/A
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1 2 U N I V E R S I D A D E F E D E R A L D E P E R N A M B U C O CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO DEPARTAMEN...

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE ARTE S E COMUNICAÇÃO DEPARTAMENTO DE ARQUITETURA E URBANISMO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DESENVOLVIMENTO URBANO

CAPA

NILSON DA ROCHA CORDEIRO

A CASA EM VERSO E PROSA: CANÇÕES, POESIAS E SUBJETIVIDADE DO CONCEITO DE CASA

RECIFE, 2015

NILSON DA ROCHA CORDEIRO

FRONTISPÍCIO

A CASA EM VERSO E PROSA: CANÇÕES, POESIAS E SUBJETIVIDADE DO CONCEITO DE CASA

RECIFE, 2015

NILSON DA ROCHA CORDEIRO

FOLHA DE ROSTO

A CASA EM VERSO E PROSA: CANÇÕES, POESIAS E SUBJETIVIDADE DO CONCEITO DE CASA

Dissertação apresentada ao programa de pósgraduação em desenvolvimento urbano da Universidade Federal de Pernambuco, como requisito final para obtenção do título de mestre em desenvolvimento urbano.

Orientadora: Lúcia Leitão

RECIFE, 2015

Catalogação na fonte Bibliotecário Jonas Lucas Vieira, CRB4-1204 FICHA C794c

Cordeiro, Nilson da Rocha A casa em verso e prosa: canções, poesias e subjetividade do conceito de casa / Nilson da Rocha Cordeiro. – 2015. 120 f.: il., fig. Orientadora: Lúcia Leitão. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Pernambuco, Centro de Artes e Comunicação. Desenvolvimento Urbano, 2016.

Inclui referências, apêndices e anexos.

1. Habitações. 2. Espaço (Arquitetura). 3. Subjetividade. 4. Poesia. 5. Canções. 6. Música. 7. Conceitos. I. Leitão, Lúcia (Orientadora). II. Título.

711.4 CDD (22. ed.) CATALOGRÁFICA

UFPE (CAC 2016-86)

NILSON DA ROCHA CORDEIRO FOLHA DE APROVAÇÃO

A CASA EM VERSO E PROSA: CANÇÕES, POESIAS E SUBJETIVIDADE DO CONCEITO DE CASA

Dissertação aprovada como requisito final para obtenção do título de mestre no programa de pós-graduação em desenvolvimento urbano – MDU – da Universidade Federal de Pernambuco.

BANCA EXAMINADORA

______________________________________________________ 1º Examinador/Presidente – Dr. ª Lúcia Leitão

______________________________________________________ 2º Examinador – Dr.ª Maria de Jesus Britto Leite

_______________________________________________________ 3º examinador – Dr.ª Julieta Maria de Vasconcelos Leite ________________________________________________________ 4º Examinador – Dr. Antônio Paulo Rezende

Recife, 21 de julho de 2015

DEDICATÓRIA

Para minha mãe, Joanita da Rocha Cordeiro, primeira e mais segura morada.

AGRADECIMENTOS Agradeço primeiramente a Deus, meu Senhor e sustentador da minha vida e de tudo que existe. Sou muito devedor e por isso agradeço aos meus pais, Nelson Francisco Cordeiro e Joanita da Rocha Cordeiro, que souberam construir em mim a verdadeira noção de Casa, ensinando-me os princípios e valores éticos que orientam minha caminhada. Sou grato às minhas irmãs, Daniely da Rocha Cordeiro Dias, Débora da Rocha Cordeiro Alves que compartilharam comigo momentos especiais da minha vida; e especialmente Dilian da Rocha Cordeiro que muito me ajudou em minha vida pessoal e acadêmica. Agradeço imensamente a minha orientadora, Lúcia Leitão, que pacientemente e com rigor me conduziu na construção dessa dissertação e que apesar das minhas inúmeras dificuldades me ajudou para que eu chegasse até aqui. Também agradeço aos servidores e funcionários do Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Urbano – MDU, especialmente à Renata Albuquerque que de forma muito profissional mas sem perder a humanidade me ajudaram em diversos momentos, sempre com bastante simpatia e presteza. Quero agradecer também aos membros da banca examinadora que aceitaram o convite para avaliar este trabalho. Sou muito grato à Albertina Flávia de Amorim, na fase final desse trabalho se tornou a mais compreensiva companheira e incentivadora em muitos momentos; dosando palavras de estímulo e também de cobranças; sempre com muito carinho. Também registro minha gratidão aos colegas GPC-FUNDARPE, que ao longo de todo meu trabalho entenderam minhas limitações e dificuldades e me deram suporte sempre que precisei. Em especial agradeço a Amanda Paraíso, que em muitos momentos me ajudou nas minhas reflexões e contribuiu com comentários pertinentes que em muito melhoraram este trabalho. Também agradeço de forma especial a Flávio Barbosa que de maneira artística soube conferir a estas páginas um pouco de beleza. Sou grato ao amigo Paulo Vitor Borges Manga que me auxiliou com o inglês para o abstract. Finalmente, agradeço aos meus amigos, em especial José Rafael Monteiro Pessoa e Glena Salgado Vieira, que souberam compreender minhas ausências e nunca deixaram de me apoiar e incentivar. A todos, expresso meus mais profundos agradecimentos pelo tempo, incentivo compreensão e ideias generosamente compartilhadas. Muito obrigado! Vocês são todos de casa!

EPÍGRAFE “Um homem percorre o mundo inteiro em busca daquilo que precisa e volta a casa para encontrá-lo”. George Moore

“Toda a obra de um homem, seja em literatura, música, pintura, arquitetura ou em qualquer outra coisa, é sempre um auto-retrato; e quanto mais ele se tentar esconder, mais o seu caráter se revelará, contra a sua vontade”. Samuel Butler

RESUMO

Ao iniciar estas reflexões sobre a moradia, buscamos destacar o aspecto basilar da casa – enquanto abrigo – para o desenvolvimento do indivíduo, da cidade e da sociedade. Com o objetivo de investigar as concepções de casa, como esse termo é percebido e qual a sua real importância na constituição do indivíduo, utilizamos como porta de acesso para esse universo as representações feitas sobre a casa e o lar encontradas em canções e poemas que abordam a temática, seja de forma explicita ou implícita. A construção e análise dos dados deram-se de forma qualitativa na perspectiva interpretativa das ciências, nas quais, os atos humanos, assim como seus discursos, constroem e carregam significados que tecem os tecidos da história, da sociedade e das pessoas. Tentamos, por meio de uma leitura de canções e poemas, por meio da análise do conteúdo (BARDIN, 1977) e fundamentados na teoria das representações sociais (MOSCOVICI, 1978, 1985; JODELET, 1985, 1991), pesquisar a ideia de casa que está presente em nosso imaginário. Tomamos de empréstimo alguns conceitos da psicanálise (FREUD, 1973; WINNICOTT, 1983, 1985, 1989). Pudemos perceber que uma primeira ideia de casa é aquela associada à herança. Uma casa-memória onde encontramos os traços de uma afetividade intensa e geralmente associada à infância. Uma segunda projeção da casa é a casaidentidade que se projeta no tempo presente. Ela é o espaço de pertencimento e de segurança. Finalmente, uma terceira projeção da casa é a que se lança para o futuro: a casa-promessa ou casa-esperança, uma casa idealizada e que é sonhada e desejada, sempre como uma promessa de felicidade e realização.

Palavras-chave: Casa. Poemas. Música e Canções. Subjetividade. Espaço e Lugar.

ABSTRACT

When starting these reflections on the home, we seek to highlight the fundamental aspect of the house - as shelter - for the development of the individual, the city and society. In order to better understand the concepts of “home”, as that term is perceived and what is its real importance on the individual's constitution, we used the representations made about the house and the home found in songs and poems addressing the issue as an entry point for this universe, either explicitly or implicitly. The construction and analysis of the data is given in a qualitative way in the interpretative perspective of science, in which the acts of humans, as well as his speeches, build and carry meanings that weave the fabric of history, society and people. We try, through a reading of poems and songs, through content analysis (BARDIN, 1977) and based on the theory of social representations (MOSCOVICI, 1978, 1985; JODELET, 1985, 1991). Search the home of idea that is present in our imagination. We also borrow some concepts of psychoanalysis (FREUD, 1973; WINNICOTT, 1983, 1985, 1989). We noticed that a first idea of home is that of inheritance. A memory-home, in which we find traces of intense affection and usually associated with childhood. A second projection of the house is the house-identity that is projected in the present times. It is the space of belonging and security. Finally, a third projection, the desired house of the future: The promise-house or the home one hopes to obtain, idealized, dreamed and desired, always as a promise of happiness and fulfillment.

Word-key: Home. Poems. Music and Songs. Subjectivity. Space and Place.

SUMÁRIO

1.

INTRODUÇÃO .................................................................................................. 11

2.

ESPAÇO E LUGAR, CASA E HABITAR ........................................................ 19

2.1.

Espaço e Lugar ................................................................................................... 19

2.2.

A casa e o habitar ................................................................................................ 22

2.3.

Muito mais que as paredes .................................................................................. 26

2.3.1. 2.3.2. 2.3.3 2.3.4. 2.3.5

Significados da Casa ........................................................................................... 28 Casa e Subjetividade ........................................................................................... 30 Casa Lar .............................................................................................................. 32 Casa Moradia ...................................................................................................... 34 Casa Habitada e Família ..................................................................................... 35

3.

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS ....................................................... 39

3.1.

A escolha das fontes ........................................................................................... 40

3.1.1. Música e Canções ............................................................................................... 42 3.1.2. Poesia .................................................................................................................. 44 3.2. As canções e os poemas como representação social........................................... 46 3.3.

Análise do conteúdo ........................................................................................... 51

4.

ANÁLISE DOS DADOS E RESULTADOS ..................................................... 57

4.1

A Casa Cantada e Encantada .............................................................................. 60

4.2

Os Três Tempos da Casa .................................................................................... 69

4.2.1. Casa do Passado como lugar de aconchego: Memória da casa .......................... 71 4.2.2. Casa do Presente como lugar de intimidade: Vivendo a casa............................. 82 4.2.3. Casa do Futuro como lugar de sonhos: Promessa da casa .................................. 96 5.

CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................... 106

REFERÊNCIAS ........................................................................................................... 112

Primeiras Palavras

Muitas ideias de casa

11 1. INTRODUÇÃO “O meio ambiente construído, assim como a linguagem, tem o poder de definir e aperfeiçoar a sensibilidade. Pode aguçar e ampliar a consciência. Sem a Arquitetura, os sentimentos sobre o espaço permanecem difusos e fugazes” (Yi-Fu Tuan – Topofilia, 1980).

As mudanças do desenho urbano das cidades, cada vez mais vertical no Brasil, têm sido o centro de discussões em mesa de bar, praças públicas e tribunais de justiça. Urbanismo e arquitetura são debatidos por especialistas e também por leigos. A construção da paisagem e os múltiplos conceitos que este termo carrega são temas de pesquisas e artigos dos mais diversos campos científicos. Da porta para dentro, as transformações das metrópoles podem ser sentidas de diversas formas. A passagem da casa para o apartamento pode ser um dos exemplos mais visíveis, entretanto, não é o único efeito desse processo. Uma casa que é demolida para dar lugar a um edifício leva consigo inúmeras histórias. Histórias privadas vividas por sujeitos que experienciaram aquele lugar; as vezes por décadas. Sob o teto da casa que se vai experiências foram vividas; pessoas se reconheceram e se relacionaram; ligações se estabeleceram com aqueles que ali moravam e também com as paredes que lhe davam abrigo. Abrigo não apenas para o corpo, mas também para alma; aquele espaço que por algum tempo foi extensão afetiva da família que o habitava, quando perdido, deixa um vazio que pode levar muito tempo para ser novamente preenchido – algumas vezes a vida toda. Por isso, cabe a nós indagar qual a importância da casa para aquele que a habita. Entre uma e outra história de casas e mudanças, podemos entrever as camadas de complexidade da nossa relação com o espaço em que vivemos. Para deixarmos o lugar que por anos moramos, para trocarmos de uma casa para outra, é necessário mais que um simples caminhão de carregar móveis. Existem elementos que não podem ser transportados. Podemos perguntar então o que existe na nossa relação com nossas casas que foge a materialidade das paredes e dos móveis mas que é tão – ou mais – importante que a própria casa. Afinal, o que realmente é uma casa? Quais os elementos que são necessários para podermos chamar um espaço de lar? Quais as concepções que fazemos desses termos tão corriqueiro que é a moradia? Foram estas perguntas que nos impulsionaram nesta investigação. Mesmo sem a intensão de chegar à respostas definitivas – esta não é a pretensão deste trabalho – buscamos discutir este assunto que mesmo quando não nos damos conta está presente em nossa vida. Todo tempo ao nosso redor da mesma forma

12 como as paredes de nossas casas. Vários teóricos se dedicaram ao estudo da casa e do conceito de lar. Também podemos ver a tentativa definir tais elementos nas artes. Essa busca pode ser percebida como algo bastante legítimo, uma vez que as artes são uma das formas de expressão do ser humano. Partindo desse entendimento seguindo na busca de uma aproximação do universo das canções e poemas para responder nossos questionamentos iniciais. No artigo “Dora, Uma Arquitetura para Sonhar”, Leitão (2012), apresenta também alguns questionamentos sobre esse tema: Qual é o papel da arquitetura, do espaço edificado, no psiquismo humano? De onde vem o desejo (e não a ação) de espacejar? Quais são as implicações desse desejo na experiência de habitar o mundo? Será que a arquitetura não é ela própria uma narrativa, um discurso, uma articulação simbólica e, como tal, uma manifestação particular do inconsciente? (LEITÃO, 2012, p. 9).

Refletindo sobre estas questões, podemos dizer que o ser humano, nasce, vive e morre e, nestas jornadas, está a necessidade de abrigar-se no – e do – mundo. Talvez o seu refúgio mais íntimo seja seu próprio corpo. Em seguida vem a casa, na busca por abrigo e conforto. Pode-se perceber o quanto a ideia de moradia está presente em nossas vidas. E apesar de parecer algo trivial, esta questão envolve conceitos muito mais profundos e complexos do que se possa imaginar num primeiro momento. A moradia é para o ser humano algo tão necessário quanto o alimento ou o ar que respira. Diz-se isso não apenas em termos de sobrevivência, mas em termos de constituição do indivíduo. A casa é o seu refúgio e também seu lugar de reconhecimento. Desde que nascemos somos jogados para fora de nossa casa primeira – o útero materno – para um mundo estranho, desconhecido e hostil (LEITÃO, 2009). Todos os dias que se seguem daí em diante serão de busca desse abrigo inicial; uma tentativa de retornar a esse espaço de conforto e segurança. Segundo Heidegger (1982, p. 240), o habitar é a “maneira como os homens fazem seu caminho, desde o nascimento até a morte, sobre a Terra, sob o céu”. Tão importante para a vida do ser humano, o espaço da moradia tem-se transformado ao longo do tempo, contribuindo para a produção de diferentes modos de ser e existir no mundo. Essa questão se radicaliza quando se amplia o pensamento e se insere a moradia no ambiente da cidade contemporânea, esse espaço múltiplo e plural, onde se manifestam diversos modos e estilos de vida que vão se processando na confluência das muitas forças que se manifestam nos espaços urbanos. Assim, a cidade

13 se faz espaço e cenário da construção de múltiplas possibilidades e seu estudo remete à reflexão sobre os sujeitos sociais que, em sua heterogeneidade e através de suas vivências individuais e coletivas, vão revelando os modos de vida que, tal como tramas, mantêm-se ali em permanente construção. Ao iniciar estas reflexões sobre a moradia buscamos destacar o aspecto basilar da casa – enquanto abrigo – para o desenvolvimento do indivíduo, da cidade e da sociedade. Não é possível pensar efetivamente a cidade sem considerar, além dos espaços públicos, os seus espaços privados e mais íntimos. Entre os direitos fundamentais do ser humano destaca-se o direito à moradia. Não que este seja de maior importância ou seja um tipo especial, mas porque o pleno exercício dos demais direitos necessita, fundamentalmente, dele. Assim, ao falarmos do pleno exercício da cidadania; garantias fundamentais; direito à cidade, estamos falando em essência e em última instância, do acesso à moradia digna e de qualidade, em seus aspectos concretos e também subjetivos. Com o objetivo de melhor investigar as concepções de casa, como esse termo é percebido e qual a sua real importância na constituição do indivíduo, utilizamos como porta de acesso para este universo, as representações feitas sobre a casa e o lar encontradas em canções e poemas que abordam a temática, seja de forma explícita ou implícita. Acreditamos que para dar conta de explicar a existência de uma ideia de casa primeva, muito mais antiga que qualquer projeto construtivo, não podemos nos limitar a analisar apenas seus elementos concretos. A busca por um entendimento do conceito de casa é também a busca por elementos da subjetividade humana. Ela – a casa – está na origem de nossa construção enquanto indivíduos. Entendemos a subjetividade como a forma pela qual a multiplicidade de elementos presentes na subjetividade social, assim como todas as condições objetivas de vida do mundo social, se organizam numa dimensão emocional e simbólica. É importante registrar também que a noção de subjetividade implica na ideia de corporeidade. Segundo a orientação fenomenológica (MERLEAU-PONTY, 1994), o sujeito é um corpo que habita o espaço e o tempo. Assim, o conceito de corporeidade amplia o de corpo, ao incluir a mediação espaço-temporal imbricada com sua constituição e expressão como subjetividade.

14 De acordo com essa perspectiva, a corporeidade deve ser entendida como forma de mediação entre dois mundos: subjetivo-objetivo1, eu-outro, indivíduosociedade. Temos assim que a relação do indivíduo com sua moradia é um dos elementos constitutivos do processo formador da sua identidade e que o estudo e a compreensão dessa relação pode ajudar na compreensão do que é habitar, quais as diferentes estratégias e formas do habitar doméstico, quais são os dilemas e conflitos enfrentados pelo indivíduo que não se reconhece em sua casa e como todos esses elementos podem influenciar no processo de apropriação da moradia e, em última instância, da cidade. Além disso, parece-nos que essa casa primeira, carrega em si mesma mais que a concepção de abrigo. Nela residem os mais profundos elementos constitutivos da alma humana. Nesta casa-símbolo encontramos a própria representação do indivíduo e ela se apresenta como o lugar de nascimento – e também de pós-morte – de onde todos viemos e também para onde desejamos retornar. A possibilidade de conhecer a casa das pessoas é, em muitos aspectos, a possibilidade de conhecê-las profundamente. É desvendar as contribuições do habitus (BOURDIEU, 1974; 1983), em suas identidades, os costumes incorporados e adquiridos no decorrer de suas trajetórias individuais e a distinção pelo gosto em suas escolhas ou rejeições. Compreender como se dá a relação entre o indivíduo e sua moradia, pode fornecer elementos que subsidiem novas estratégias para as políticas habitacionais que sejam mais efetivas e eficazes. Abordar a questão do espaço habitacional na vertente dos usos e das práticas, é também inserir o tema da qualidade habitacional que, por sua vez, é fundamental na construção de políticas públicas, tanto na questão da oferta de moradia quanto na gestão urbana como um todo. A questão da moradia – ou da falta dela – envolve múltiplos aspectos, desde questões políticas e econômicas até aspectos psicológicos e artísticos. No livro Casagrande e Senzala (1933), Gilberto Freyre utiliza justamente a moradia como fonte de análise para traçar um perfil da cultura e da sociedade colonial brasileira. A obra O Cortiço (1890), de Aluízio de Azevedo, também é emblemática, na medida em que apresenta a ideologia e as relações sociais do final do século XIX, onde os conflitos, desejos, sonhos e aspirações são retratados, metaforicamente, dentro do contexto de 1

Estes dois mundos não são opostos ou antagônicos, antes são complementares e estão em constante imbricação.

15 uma habitação coletiva. Esses dois exemplos – mas não somente eles – nos mostram como a moradia pode revelar bem mais que formas e padrões arquitetônicos indo muito além de suas paredes. Neste trabalho buscaremos refletir sobre os aspectos subjetivos da casa. Elementos que vão além da dimensão arquitetural e que estão tão profundamente conectados com os aspectos concretos e visíveis que para muitos são a mesma coisa. Assim, este trabalho propõe uma reflexão sobre os elementos que fogem das áreas da engenharia e da arquitetura, mas são fundamentais para concepções de projetos construtivos que visam a produção de moradias; temas que não estão dentro do universo jurídico e político, mas que são da maior importância para elaboração de políticas e programas habitacionais. Não há como se pensar em políticas habitacionais sem se pensar também em todos os aspectos que estão envolvidos no processo de habitar e dos usos do espaço. E para isso é fundamental compreendermos o conceito que temos de casa e como esse conceito opera na nossa constituição enquanto indivíduos e como se manifesta em nossas relações com a nossa casa. Desconsiderar tais elementos é pensar pela metade, uma vez que a casa só se completará com a chegada dos seus habitantes e os usos que se farão de seus espaços e elementos arquitetônicos. Assim, os estudos dos elementos subjetivos é condição sine qua non para o entendimento das relações entre as pessoas e suas casas, sua relação com seus espaços, com a cidade e com o mundo. Num país em que o acesso a moradia digna ainda é um enorme problema social, ampliado por uma ideologia da casa própria como um bem essencial cultivada durante décadas, é urgente que as mais diversas áreas do conhecimento – História, Sociologia, Economia, Psicologia – se aproximem do tema. Conhecer em profundidade os processos relacionais indivíduo-casa, os impactos gerados nos processo de mudança de um tipo de habitação para outro, radicalmente diferente e em que medida isso afeta as pessoas e o processo de adaptação dessa nova realidade, pode contribuir na formulação de políticas habitacionais mais sustentáveis que entendam e atendam às necessidades e desejos da população. Desse modo, este trabalho tem sua importância na medida em que busca contribuir na para uma melhor compreensão do conceito de casa e de lar. Tal entendimento pode vir a ser utilizado para a elaboração de novas estratégias de ação

16 para implantação de uma política habitacional e uma gestão urbana que considere todos os aspectos do indivíduo/cidadão, desde o atendimento às suas necessidades mais básicas, até o respeito à sua individualidade e da sua identidade. Em nossa pesquisa buscamos refletir sobre o conceito de casa. Muito além das paredes e de um teto, buscamos encontrar as ideias que este termo carrega e como esta construção que é histórica e socialmente construída se manifesta nas obras artísticas como poemas e canções. Para subsidiar nossa análise nos valemos das referências trazidas pela teoria da Análise do Conteúdo de Bardin (1977). Também tomamos de empréstimo alguns conceitos da psicanálise (FREUD, 1973; WINNICOTT, 1983, 1985, 1989). O presente texto apresenta uma forma mais livre – quase ensaística – em sua redação. Não havendo dados empíricos a serem analisados, mas tão somente as letras das canções e poemas, optamos por desenvolver uma linha mais em sintonia com a linguagem poética que procuramos nos apropriar para nossas reflexões. O trabalho está organizado em quatro partes ou capítulos. No primeiro apresentamos quais foram nossas fontes e o que nos levou a essa escolha. Tentamos esclarecer quais foram os caminhos percorridos que nos levaram a escolher o caminho da poesia para nosso estudo. O segundo capitulo versa sobre nossa fundamentação teórica. Quais os autores que nos deram suporte e como eles se relacionam com as fontes selecionadas. Também apresentamos alguns conceitos básicos que consideramos importantes para melhor entendimento e para o desenrolar das nossas reflexões. O terceiro capítulo, ponto nevrálgico neste estudo, contempla nossas reflexões e análises dos poemas e canções selecionadas. Cumpre esclarecer que no decorrer do texto optamos por transcrever as obras – canções e poemas – na íntegra uma vez que se tratando de uma composição artística, correríamos o risco de perder sua essência poética ao selecionarmos apenas parte do texto. Também em respeito ao leitor que, ao longo da leitura, poderá ter suas próprias impressões e interpretações. Lembramos que a ciência, assim como a arte, é um campo vasto e aberto a múltiplas leituras. Finalmente no último capítulo apresentamos, à guisa de uma conclusão, breves considerações a que pudemos chegar. Ao nos debruçamos sobre as obras artísticas que trazem a casa – ou o sentido de lar – como tema, pudemos notar que este conceito se

17 mostra numa perspectiva afetiva-temporal. A casa é representada em três momentos: a casa-memória, que se volta para um passado perdido; a casa-identidade, palco da nossa formação subjetiva e que se apresenta no momento presente, ainda que mantenha sua conexão com a memória e a casa-promessa, projetando-se para o futuro em busca de uma realização plena, mas que também encontra no passado seu referencial. O nosso interesse em refletir sobre a casa surge em grande medida da observação e estudos sobre as políticas habitacionais no Brasil; sobre as relações sociais manifestas na contemporaneidade nos ambientes urbanos; mas também é fruto de questionamentos pessoais. Este trabalho nasce então de questionamentos íntimos. Partindo em busca de respostas, encontramos em Bachelard (2008) casa como um lugar de aconchego e proteção. Passamos então a refletir sobre tais conceitos e sobre como esse aconchego e proteção podem ser percebidos de diferentes formas. Avançando em nossas reflexões sobre essas questões fomos levados a questionar como fazer esse sentimento pessoal que nos movia presente em nosso trabalho, considerando também as questões coletivas. Logo no início pudemos perceber outras questões que começaram a surgir ligadas à casa: as relações entre os diferentes objetos; a questão do afeto; o conceito de intimidade, domesticidade; a noção do espaço da casa como um lugar sonhado, imaginado, inventado. Assim, partimos para uma investigação que pudesse dar conta dessa dimensão subjetiva da casa. Que pudesse ajudar na compreensão das representações que são feitas e que permitisse chegar mais próximo desse universo afetivo que logo nos vem à mente quando chamamos nossa casa de lar. Buscamos na verdade entender o que está na construção da expressão “lar, doce lar”. O objetivo de nosso trabalho foi seguir o conceito de casa – espaço de morar – por meio da poesia e de canções. Assim, procuramos investigar as representações da casa/lar presente nas canções e poemas que apresentam essa temática.

Capítulo I

Casa: Nosso lugar... Nosso mundo

19 2. ESPAÇO E LUGAR, CASA E HABITAR Hoje, certamente mais importante que a consciência do lugar é a consciência do mundo, obtida através do lugar (SANTOS, 2005, p. 161).

2.1. Espaço e Lugar Você pode ser tão fiel a um lugar ou a uma coisa como a uma pessoa. Um lugar pode realmente fazer seu coração dar um salto. (Andy Warhol).

É importante para nossa reflexão entender bem o conceito de lugar. Por muito tempo o seu conceito foi utilizado pelos geógrafos, espacialmente, para expressar o sentido locacional de um sítio. Hoje, o termo se apresenta com um sentido bem mais amplo, não se limitando apenas à ciência geográfica, mas sendo trabalhado pelos mais diversos campos de investigação, desde a História e a Arquitetura, até a Psicologia. E é neste entrecruzamento da Arquitetura e a Psicologia que se busca fundamentar o conceito de lugar. O espaço, ao contrário da compreensão costumeira, não é produzido apenas por objetos materiais e, por isso, não pode ser tomado exclusivamente por seus caracteres objetivos. Há toda uma dimensão subjetiva, produzida por fluxos imateriais que constituem igualmente esse espaço numa relação de troca. Muitos lugares, altamente significantes para certos indivíduos ou grupos, tem pouca notoriedade visual. São conhecidos emocionalmente, e não através do olho crítico ou da mente. Uma função da arte literária é dar visibilidade a experiências íntimas, inclusive de às de lugar (TUAN, 2013). O lugar pode ser compreendido como uma construção social. Espaço e lugar são termos familiares que indicam experiências comuns (Ibid.). Eles são centros aos quais se atribuem valores. Para o autor, o que começa como espaço indiferenciado, torna-se lugar à medida que o dotamos de valor. Assim, o lugar é um mundo de significados organizados. Estando imerso na intersubjetividade, o lugar é, para Holzer (1997, p. 79), “o momento em que o corpo, como elemento móvel, coloca-se em contato com o exterior e localiza o outro, comunicando-se com outros homens e conhecendo outras situações”. Ele se estrutura na relação do “eu” com o “outro”, o palco da nossa história, em que se encontram as coisas, os outros e a nós mesmos. O corpo situa-se na transição do eu para o mundo, o ponto de vista do ser-no-mundo, sendo a condição necessária da existência

20 humana. Isso nos traz de volta a ideia de corporeidade apresentada por Merleau-Ponty, (1994) e que já mencionamos2. O espaço onde tudo acontece e onde nos movemos no cotidiano se mostra tão sólido e estável que não percebemos que nossa visão do mundo é afetada pelo que acreditamos e pelo que sabemos (EWALD et al, 2008) – ou imaginamos saber. Esses aspectos já nos mostram o quanto o lugar e a moradia são elementos de uma questão que vai muito mais longe do que a pedra e a cal (LEITÃO, 2007). Entretanto, os aspectos subjetivos dessa questão são muitas vezes negligenciados3 ou considerados de forma muito superficial pelos planejadores urbanos e gestores públicos, levando a um entendimento incompleto do assunto4. A casa é o lugar onde nos encontramos e nos reconhecemos. Onde nos refugiamos e de pertencimento. Ela é nosso lugar no mundo (BACHELARD, 2008). Nossa referência. Para Tuan (1983), o lugar é marcado por três palavras-chave: percepção, experiência e valores. Os lugares guardam e são núcleos de valor, por isso eles podem ser totalmente apreendidos através de uma experiência total englobando relações íntimas, próprias e relações externas. O autor distingue espaço e lugar: enquanto o espaço pode transformar-se em lugar, na medida em que se atribui a ele valor e significação; o lugar não pode ser compreendido sem ser experienciado. Ainda segundo Tuan (2013), é impossível discutir o espaço experiencial sem introduzir os objetos e os lugares que definem o espaço. O espaço transforma-se me lugar à medida que adquire definição e significado. Os lugares íntimos são lugares onde encontramos carinho e afeto, onde nossas necessidades fundamentais são consideradas e merecem atenção sem espalhafato. A afeição duradoura pelo lar é em parte o resultado de experiências íntimas e aconchegantes. Os momentos íntimos, para os quais temos dificuldade não só de exprimi-los em palavras como termos consciência deles, são muitas vezes aqueles em que nos tornamos passivos e que nos deixam mais vulneráveis, expostos à carícias e ao estímulo de nova experiência.

2

Ver página 14 e 15 Felizmente existem grupos de pesquisadores que vem há bastante tempo se debruçando sobre esse tema, a exemplo do Nusarq – Núcleo de Estudos da Subjetividade na Arquitetura, formado em 2004 e coordenado pela professora Dr.ª Lúcia Leitão que desde 2004 desenvolve estudos nessa área. 4 Daí decorre tantos erros nos planos e projetos habitacionais e políticas de habitação que são colocadas em prática pelos setores responsáveis. 3

21 Neste ponto, cabe lembrar, que não fazemos nada que não seja a partir da materialidade que nos cerca. A casa – no sentido concreto do termo – é o nosso maior referencial de espaço depois do nosso próprio corpo. Por isso é algo tão precioso no nosso imaginário. Assim, compreender os aspectos subjetivos não é suficiente e nem mesmo possível sem uma reflexão da relação entre as dimensões físicas/materiais e subjetivas/sensíveis da questão. Ao se construir uma casa é preciso considerar tanto a materialidade e seus aspectos construtivos como volume, forma, dimensões e elementos próprios da engenharia e da arquitetura como também os elementos subjetivos como as sensibilidades, valores, costumes, crenças, os diferentes usos dos espaços e as muitas redes de relações existentes. Somente assim pode-se chegar à compreensão do conceito de habitar. Para uma melhor compreensão da articulação entre processos espaciais e processos mentais, podemos nos valer do que nos fala Santos (1994), quando considera como: Um conjunto indissociável de que participam, de um lado, certo arranjo de objetos geográficos, objetos naturais e objetos sociais e, de outro, a vida que os preenche e anima, ou seja, a sociedade em movimento. O conteúdo (a sociedade) não é independente da forma (os conteúdos geográficos) e cada forma encerra uma fração de conteúdo. O espaço, por conseguinte, é isso: um conjunto de formas, contendo cada qual frações da sociedade em movimento” (SANTOS, 1994, p. 26-27).

Milton Santos trabalha com a categoria de lugaridade. Esta emerge dos interesses e trocas ou entre crenças e sentidos e permite perceber que tecnosfera e psicosfera, mobilizam correntes de informação que impregnam os objetos e as ações, em constante metamorfose, convertendo os fixos do mundo produzido nos fluxos do mundo vivido. A lugaridade para este autor apresenta-se como uma categoria epistemológica responsável pela possibilidade de ver a cidade que, por sua vez, permite distinguir o local e o lugar, de modo que para Milton Santos o primeiro conceito atua como referência da paisagem, e o segundo é o polo cognitivo onde se pode apreender sobre os usos e sentidos e através dos quais é possível construir uma arqueologia da cidade e, desse modo, podemos migrar da constatação sociológica para a dimensão comunicativa que assinala sua história. Assim, podemos pensar a casa, que pode ser vista como força de integração para os pensamentos, as lembranças, os sonhos, afastando contingências. “Sem ela, o homem seria um ser disperso. Ela mantém o

22 homem através das tempestades do céu e das tempestades da vida. É corpo e é alma.” (BACHELARD, 2008, p. 26). No âmbito da casa, no espaço doméstico, estabelecem-se sistemas simbólicos mediadores que permitem vivências sociais mais amplas. “A casa faz declarações tanto públicas quanto pessoais [...]. Ao criar uma casa as pessoas tanto descobrem e criam sua posição social quanto moldam seu mundo interior.” (CALDEIRA, 2008, p.264) Mais que espaço físico e geográfico, a casa é o lugar da interação entre social e particular; entre público e privado. Ampliando a ideia de casa e de rua; elevando-as à condição de categorias sociológicas fundamentais para a compreensão da sociedade. DaMatta aponta que “acima de tudo [casa e rua são] entidades morais, esferas da ação social,

províncias

éticas

dotadas

de

positividade,

domínios

culturais

institucionalizados”. (DA MATTA, 1987, p. 14). Heidegger (1954), entende que o Ser-aí ou o ser-no-mundo – Dasein – jamais se encontra dentro ou fora de algum lugar, mas ele mesmo cria um espaço em torno de si, e essa criação de pertencimento é um dos aspectos básicos da autocompreensão da existência. Chegamos aqui ao conceito de habitar.

2.2. A casa e o habitar A casa segue sendo o lugar central da existência humana, o sítio onde a criança aprende a compreender sua existência no mundo e o lugar de onde o homem parte e regressa. (NORBERG-SCHULZ).

De alguma maneira é preciso morar. No campo, na pequena cidade, na metrópole. Morar, assim como vestir e se alimentar, é uma das necessidades mais básicas do ser humano. As características da habitação mudam historicamente, no entanto é sempre preciso morar, pois não é possível viver sem habitar um espaço. Habitar é marcar um território e os seus edifícios e também ser marcado por eles. Habitar em uma casa é habitar o mundo, e a casa, como entidade física, é um meio de experimentarmos ser parte desse mundo. Assim, o habitar doméstico é uma atividade inexoravelmente inserida no contexto do mundo, e as condições segundo as quais habitamos o mundo atuam na forma que habitamos domesticamente. Autores como Certeau (1996), Giard e Mayol (1996), Tuan (1980 e 1983) e Valente (1972), entre outros, demonstram haver estreita ligação entre formas e divisões

23 da habitação e o modo de vida de seus ocupantes, de maneira que a edificação residencial pode ser considerada uma materialização dessa cultura, da identidade e da sociedade. Fica evidente que habitar uma casa é bem mais do que o simples ato de nos inserirmos em um invólucro físico. Está também relacionado com a representação que fazemos do que seja nossa casa e de nós mesmos. A grande tarefa que temos ao habitar um espaço padronizado é singularizá-lo. E aí não importa se é um apartamento de alto luxo ou uma casa de conjunto habitacional. Esse espaço só será uma casa, um espaço doméstico, quando lhes for atribuído valor simbólico. Quando forem criados laços afetivos entre os que adentram esses espaços, suas paredes e os diversos objetivos. Enfim, só serão uma casa quando forem subjetivadas. Quando forças expressivas a constituírem, desmanchando a homogeneidade e construindo territórios singulares. Estes aspectos devem ser considerados em qualquer estudo sobre moradia, habitação, urbanismo e cidades, pois uma casa se completa em sua materialidade quando passa a ser habitada (COUTINHO, 2010; ZEVI, 2009). A casa, como entidade física, é um meio de experimentarmos ser parte do mundo e também de nos revelarmos enquanto indivíduos para este mundo. Além de nos abrigarmos do mesmo. Heidegger (1971) tece uma reflexão do habitar, fazendo a ligação entre os conceitos de habitar, construir, permanecer e residir, todos tendo uma origem comum, estando assim, estreitamente relacionados como uma só ideia primordial: a da moradia como lugar de abrigo e proteção, mas também como local de satisfação, cuidado e paz. Com esse entendimento sobre o habitar, podemos identificá-lo e relacioná-lo com a própria vida cotidiana e com nossa existência enquanto indivíduos. Ao focar nosso olhar para um plano mais concreto da realidade, ou seja, ao mais visível e próximo aos nossos sentidos, localizamos fisicamente a casa como o lugar próprio da habitação. Norberg-Schulz (1984) aponta para essa visão, ao colocar a ideia do habitar enquanto “unidade indissolúvel entre vida e lugar”. Para Buttimer (1982), habitar implica mais do que simplesmente morar ou organizar o espaço, significa viver de um modo pelo qual se está adaptado aos ritmos da natureza. Percebe-se assim, o quanto a ideia de casa/moradia, lugar/espaço e habitar/abrigar-se, estão imbrincados e completamente imersos em um universo de subjetividade. Não se pode analisar esse tema focando apenas a partir do concreto e

24 visível. Aliás, como já foi dito por Saint-Exupéry, “o essencial é invisível aos olhos”. Sendo preciso, portanto, enxergar além do que nos mostram os sentidos. Segundo Vallejo (1975), uma casa vem ao mundo, não quando a acabam de edificar, mas quando começam a habitá-la. Para este autor, a relação entre casa/moradia e as pessoas que a habitam, vai muito além da necessidade de abrigo. Existe uma relação quase simbiótica entre moradores e casas, numa relação recíproca de formação identitária. Cada indivíduo pode, então, atribuir significados e estabelecer associações de intimidade com o lugar onde mora. Culturalmente, a habitação sintetiza as aquisições humanas ao longo do tempo, refletindo seu modo de interação com o meio ambiente, a evolução tecnológica do grupo e as peculiaridades locais (RAPOPORT, 1972). Mas a casa carrega também a evolução simbólica e afetiva de uma sociedade. Ela também é uma síntese da afetividade humana e está impregnada de subjetividade. De acordo com Yi-Fu Tuan, as experiências íntimas, quer com pessoas ou coisas, são difíceis de comunicar. As palavras apropriadas são evasivas. Fotografias e desenhos nem sempre parecem adequados (TUAN, 2013). A música e a poesia, entretanto, podem evocar certos sentimentos – mesmo carecendo de precisão significativamente – que nos aproximam desses espaços de intimidade; não sendo, portanto, impossível expressá-los. Ainda segundo Tuan (2013), as experiências íntimas podem ser pessoais e sentidas profundamente, mas não são solipsistas e excêntricas. Assim, as diferentes culturas possuem, cada uma, seus próprios símbolos de intimidade, amplamente reconhecidos pelas pessoas, porém nenhum deles é privado, com significados completamente obscuros para os outros. Todos os indivíduos relacionam-se com suas habitações, construindo diferentes hábitos de morar, reflexos de como vivem. Como palco das diferentes manifestações da vida humana com toda sua diversidade social, cultural e econômica, a arquitetura passa a produzir sensações e significados, assumindo também uma dimensão simbólica, como resultado de um sentimento de pertencimento do indivíduo com seu lugar de moradia. Nesse sentido, o espaço arquitetônico se faz presente como abrigo de experiências e dos hábitos inerentes às diversas formas de morar.

25 Nesta relação entre casas e indivíduos o espaço arquitetônico vivenciado subjetivamente por meio de uma articulação entre espaço e memória afetiva. Como nos fala Zevi (2011), A arquitetura não provem de um conjunto de larguras, comprimentos e alturas dos elementos construtivos que encerram o espaço, mas precisamente do vazio, do espaço encerrado, do espaço interior em que os homens andam e vivem. (ZEVI, 2011, p. 18).

Ao comentar estas notas de Zevi, Leitão (2014) diz: A compreensão da arquitetura como espaço que inclui o humano é talvez a contribuição mais relevante de Zevi para a definição contemporânea do espaço da arquitetura, [...] ao chamar a atenção para a inclusão do humano na própria definição do espaço da arquitetura, Zevi aponta, ainda que indiretamente, para a dimensão subjetiva da arquitetura. (LEITÃO, 2014, p. 29).

Vemos aqui um rompimento com a concepção cartesiana de espaço, que seria tomando como vazio e indiferente àquilo que o preenche, e nos aproximamos de Merleau-Ponty (1994), quando nos diz que: O espaço não é o meio (real ou lógico) onde se dispõem as coisas, mas o meio pelo qual a posição das coisas se torna possível. (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 249).

Notamos aqui que ao falar da casa estamos tratando de algo que não é meramente objetivo, mas essencialmente subjetivo. Ela – a casa – é, assim, parte constituinte do humano e da sua constituição enquanto sujeito no mundo. Esse papel fundamental da casa na vida humana não passou despercebido para muitos autores de nossa literatura. Aluízio de Azevedo se utiliza da imagem de uma habitação para descrever elementos da sociedade de sua época. Gilberto Freyre também leva seu olhar para a casa como elemento essencial que revela aspectos subjacentes a sociedade aristocrática que buscou estudar e explicar através de suas obras, Casagrande e Senzala (1933) e Sobrados e Mocambos (1936), clássicos de nossa literatura e obras de referência para quem busca compreender a formação de nossa sociedade e suas relações. Vemos o quanto a análise dessas obras pode ser reveladora. Outros exemplos de como a ideia de casa; abrigo; moradia; espaço e lugar, estão presentes em nosso imaginário e carregam consigo ideias-força que artistas como poetas e escritores tentam – cada um à sua maneira – expressar em palavras, se multiplicam ao longo da história e evidenciam que, subjacente aos conceitos que acreditamos ter sobre a casa ou o lar, existe um imaginário ou mesmo um conjunto de

26 símbolos ou representações que vão além do óbvio e são, na verdade, as bases que sustentam nossa construção do conceito de casa e, por fim, de nossa própria identidade como indivíduo e também como sociedade. Em cada momento histórico existem formas em disputa – mas que também são complementares – de perceber, conceber e interagir. As diferentes maneiras de nos colocarmos no mundo, seja em articulação ou em confronto com a realidade apresentada, estão diretamente associadas à capacidade de produzir e transformar a existência, ou seja, o lugar onde vivemos. Dessa forma, em cada período surgem ideias que estruturam ações transformadoras. Estas, podem ser lidas por diferentes meios – pela ciência, pelas artes – e escalas – a nação, a cidade, a casa e o indivíduo. A ideia de casa ou de lar não foge a esta dinâmica. Sua concepção também é fruto das diferentes formas de ver o mundo e a si mesmo. Assim, estudar esse conceito é estudar essas relações sociais. É buscas compreender a sociedade e os indivíduos. E, como já dito, uma forma de se aproximar dessa dimensão é através do estudo das obras artísticas que carregam consigo representações da sociedade. Como nos fala Santos (2004), podemos considerar a própria casa física como um objeto, cujo modo como é percebido por seus usuários se vê transformado ao longo do tempo, através do seu uso. Ainda segundo este autor, o lugar habitado é a tradução pragmática das ações do mundo exterior, “do qual lhe vêm solicitações e ordens precisas de ações condicionadas” (SANTOS, 2004, p. 322). Fica claro, dessa forma, a forte interação entre os espaços de intimidade. Por meio da casa acessamos o mundo exterior por meio da própria materialidade da casa e também ao um mundo interno e subjetivo por meio das lembranças. Assim, a nossa casa, assume a função de entrada para dois mundos. Duas realidades. Uma concreta e necessária como abrigo do corpo, outra, subjetiva e afetiva, fundamental para o abrigo da alma (RYKWERT, 2004).

2.3. Muito mais que as paredes Digo minha mãe. E é em ti que penso, ó Casa! Casa dos belos estios obscuros de minha infância. (MILOSZ, apud BACHELARD – Poética do Espaço, 2008).

É no interior da casa onde se realizam as mais variadas e íntimas atividades humanas. É na casa onde encontramos privacidade; onde se dorme e onde são feitas as

27 refeições. Convive-se com o grupo doméstico. A moradia também pode ser o local de trabalho. O trabalho dentro da casa nunca se esgota. É preciso fazer sua manutenção, lavar cozinhar, etc. Mas a casa também é espaço de lazer. Onde se descansa e onde se pode brincar e sonhar. Quem, dentre nós, nunca brincou “de casinha”? Casinhas criadas sob as mesas de nossas casas, entre poltronas e sofás, ou com velhos lençóis amarrados nas cadeiras. Ou definindo espaços num gramado imenso, com pedras roliças, como numa plantabaixa. Montando móveis, com caixas de sapato ou outras sucatas quaisquer que, num piscar de olhos, adquiriam o status de tudo o que se podia querer e sonhar. Alguns de nós ganhamos de presente lindas casinhas de brinquedo. Mas nada tinha a mesma graça do que, sem elas ou a partir delas, nossa imaginação pudesse criar. Segundo Freud (1973), podemos buscar os primeiro traços da atividade poética no brincar da criança. Quando brinca, ela cria um mundo próprio e novo; situando as coisas do seu mundo em uma ordem nova e mais ao seu gosto. Para a criança, a brincadeira é algo muito sério. É uma atividade que envolve muitos afetos. Para o autor, o oposto do brincar não é a seriedade, mas a realidade. A criança distingue bem a realidade do mundo e seu brincar, apesar da carga de afeto com que o preenche; ela gosta de apoiar os objetos e circunstâncias que imagina em objetos tangíveis e visíveis do mundo real. Esse apoio é o que diferencia o “brincar” infantil do “fantasiar”. O fantasiar dos adultos não é tão fácil de percebermos como o brincar da criança. Freud (idem) nos diz que quando as pessoas crescem param de brincar, renunciando a esse prazer da infância. Mas, na realidade, esse prazer não é verdadeiramente renunciado. Ao parar de brincar, a criança em crescimento apenas abandona o elo com os objetos reais e, em vez de brincar, passa a fantasiar. No espaço da “casa real” de nossas infâncias, criamos nossas “casas imaginárias”. Temos, segundo Freud (idem), um paralelo entre a atividade criadora do poeta e o brincar infantil. Para o autor, o poeta faz o mesmo que a criança quando brinca: cria um mundo fantástico e o leva muito à sério, sente-se intimamente ligado a ele, ainda que o distinga da realidade. Os poetas também conseguem diminuir a distância entre a sua singularidade e a essência geral humana. Pensemos em nossas casas. O que foi feito das casinhas de nossa infância? De uma forma ou de outra, aqui estão, constituídas de tijolos, madeira ou papelão, transformadas em lar, moradia ou prisão.

28 A estrutura da casa servirá como base para estabelecer relações dos trabalhos com a ideia de cada cômodo, relacionando algumas das atividades que ali acontecem de acordo com o conjunto de trabalhos que se encaixam em cada espaço. Nota-se que “casa” não é apenas a edificação, o conjunto arquitetônico, ainda que possa ser tomado como tal, até porque o que a define, em arquitetura, não é a configuração espacial, mas o seu uso. (BRANDÃO, 2002, p.64).

Temos então que muito mais que, muito mais que o material, aquilo que de fato constitui a casa, encontra-se no plano do imaterial. São as relações estabelecidas e os sentidos atribuídos. 2.3.1. Significados da Casa O importante não é a casa onde moramos, mas onde, em nós, a casa mora. (Mia Couto)

Segundo Geertz (1989), o homem é um ser amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu. Podemos dizer que “cultura” refere-se ao significado que um grupo social dá à sua experiência, incluindo aqui ideias, crenças, costumes, artes, linguagem, moral, etc. A cultura é dinâmica, se recicla incessantemente incorporando novos elementos, abandonando antigos; mesclando os dois transformando-os num terceiro com novo sentido. Tratamos, portanto, do mundo das representações, incorporadas simbolicamente na complexidade das manifestações culturais. Cultura não é acessório da condição humana, antes é seu substrato. O ser humano é humano porque produz cultura, dando sentido à experiência objetiva e subjetiva. E, dentro desse espectro encontramos o conceito de casa. A casa se mostra, dentro das produções da imaginação, como um abrigo para os pensamentos, as lembranças e para sonhos. A argamassa – para usar um termo próprio da arquitetura e da engenharia – que une dois mundos: o objetivo e o subjetivo. Ao redor, ou melhor, dentro da imagem da casa encontramos um reflexo da alma humana. A casa está inscrita no corpo como imagem de intimidade que busca um centro, que instaura um centro, que cria um universo (ELIADE, 1991). Em qualquer casa que moramos, tendemos a imaginá-la sempre mais do que ela é, pois, com esta imagem arquetípica, estamos justamente no ponto de união entre imaginação e memória: “a casa vivida não é uma caixa inerte. O espaço habitado transcende o espaço geométrico” (BACHELARD, 2008, p. 62). Impregnamos nosso lar de símbolos.

29 Para Bachelard (2008), a casa é um valor vivo. O autor afirma ser “impossível escrever a história do inconsciente humano sem escrever uma história da casa” (BACHELARD, 1990, p. 89). Desta forma, a casa com seus cômodos, móveis e objetos vai nos provocando sonhos e nos trazendo lembranças. A casa de infância é amplificada, não condizendo com a realidade, pois estamos no terreno da casa onírica. Esta mantém-se ligada à casa de infância, dado que é a sua base, e nós a procuramos em busca de proteção. Este abrigo evidente – a casa – protege-nos do frio, calor, chuva, tempestade, da noite. Mas, estando no campo das emoções, ultrapassamos o simples recordar, e passamos a devanear, habitamos nossa casa oniricamente: Assim, uma casa onírica é uma imagem que, na lembrança e nos sonhos, se torna uma força de proteção. Não é um simples cenário onde a memória reencontra suas imagens. Ainda gostamos de viver na casa que já não existe, porque nela revivemos, muitas vezes sem nos dar conta, uma dinâmica de reconforto. Ela nos protegeu, logo, ela nos reconforta ainda. O ato de habitar reveste-se de valores inconscientes, valores inconscientes que o inconsciente não esquece (BACHELARD, 1990, p. 92)

O simbolismo da casa é um dos mais ricos em significado. Podemos encontrálo presente em inúmeras obras poéticas e em temas musicais. De qualquer modo, o que se tem é uma imagem que estrutura o ser humano, dado que se encontra no centro do mundo: a casa é “um verdadeiro cosmos” (BACHELARD, 2008, p. 24). Segundo Bachelard, a casa onírica pode aparecer representada como gruta, labirinto, choupana, cabana, casa burguesa, e tantos outros motivos, pois existe “uma raiz única na origem de todas essas imagens” (BACHELARD, 1990, p. 78). Exatamente como a cidade ou o santuário, a casa é santificada. A casa não é um objeto, uma máquina dentro da qual se vive; é um universo que o homem constrói para si mesmo, imitando a criação uma ação criadora e divina. Já mencionamos a importância da música e da poesia para a sociedade. É inegável que essas formas de expressão sejam fundamentais para a construção da sociedade. Da mesma forma não se pode desprezar a participação que elas têm na construção simbólica e no mundo subjetivo dos indivíduos. A música é um dos mais fortes fatores de integração social, presente em quase todos os encontros grupais: festas, encontros com amigos, comícios, jogos esportivos, etc. Apela, através de sua forte carga afetiva, para a memória emocional, na qual uma melodia reverbera e regenera sentimentos (LAING, 1988, p. 13). A arte é, portanto, um meio de representação da realidade, uma construção social, percepção de nós mesmos no mundo que nos

30 possibilita assumir modelos de identidade e comportamento. Tais representações do mundo podem nos inspirar para a compreensão de nossa realidade e de nós mesmos. A partir dessas reflexões podemos perceber como as expressões artísticas como a poesia e as músicas se aproximam do objeto que pretendemos estudar – a casa – o que se mostra como uma opção bastante interessante de investigação uma vez que se apresenta como um atalho ao universo simbólico e das representações sociais. Elas nos permitem uma forma de acesso ao mundo subjetivo. Permitindo-nos compreender à luz dessa subjetividade o conceito de casa que está presente em nossa sociedade e que muitas vezes não nos damos conta. Ver a casa através da visão da poesia reabre a possibilidade de, pela experiência estética e a ferramenta do imaginário, ser possível articular saberes, construir identidades e reconfigurar a relação entre o mundo objetivo e subjetivo, diminuído a distância entre eles. Por meio dos poemas nos vemos diante de uma dimensão que é, antes de tudo, emotiva, sensível e carregada de afeto. Podemos afirmar que a arquitetura é também um terreno poético. 2.3.2. Casa e Subjetividade Somos muito mais filhos do tempo em que nascemos e vivemos que do lugar onde nascemos. (José Saramago).

Assim como a cidade, a casa – o espaço de morar – permite múltiplos olhares que se cruzam e não se excluem. Permitem novam significações. Seja qual for a casa, ela é mais que sua construção concreta; ela é em essência subjetiva. Entendemos a subjetividade como nosso mundo interno. O espaço psíquico, lugar onde vivem as emoções, os sentimentos e também as percepções, a memória e a imaginação. Apesar de estarmos falando de um espaço individual e único, o meio social tem influência decisiva na constituição desse universo interior. O modo de vida, as oportunidades, as circunstâncias familiares e sociais é que vão dizer quais as condições de construção interna. O homem, como resultado da experiência íntima com o seu mundo interno e com outras pessoas do mundo externo, organiza o espaço que habita a fim de conformálo com as necessidades que não são apenas biológicas, mas também sociais, culturais e psicológicas. Como já foi dito, a casa é, neste sentido, muito mais do que um simples abrigo do corpo. A ela são atribuídos sentidos, significados, valores e afetos.

31 A produção da subjetividade e a construção da identidade do sujeito implicam, necessariamente, a sua própria expressão enquanto ser humano. E, nesse processo de construção de si mesmo, ele agrega, por meio de seu imaginário e das representações do mundo concreto que o cerca, elementos que vão compor esse processo de individuação. A casa apresenta-se então como o palco desse teatro de símbolos. Mas não apenas como o local onde se processam a efetivação, ela também é partícipe de todo o processo como protagonista da ação. Os conceitos de espaço e lugar nos ajudam a entender esse processo. Para Gonçalves (2007), toda pessoa tem uma história social, cultural e ambiental. Isso quer dizer que a pessoa, na sua história social, carrega fatos, lembranças, relações que foram importantes. Todos esses elementos ganham valor simbólico se analisados sob o ponto de vista da cultura. O valor simbólico é o sentido que o sujeito dá para todas as coisas, desde coisas materiais até as imateriais, como os elementos do mundo afetivo e espiritual. A casa também ter o seu valor simbólico para o homem e esse valor é um dos mais fundamentais para a formação do sujeito e de sua subjetividade. A casa nos fornece indícios dos valores, dos desejos e dos sonhos humanos. Ela também representa aquilo que nos traz felicidade ou o que nos atormenta. Cada quadro colocado na parede, cada foto colocada no porta-retratos, cada flor plantada no jardim espelham nossos comportamentos e sentimentos. Nos mostram traços de nossa personalidade e intimidade. Os que habitam as casas mais simples, os moradores das favelas, nas periferias urbanas, tentam acomodar sua casa às suas necessidades imateriais. Aqueles que moram nas coberturas ou mansões também. No espaço privado da casa sentimo-nos nós mesmos. A casa é um refúgio pleno e confortável que alivia nossas dores. Nesse sentido, estamos falando da “casa ideal”, o lugar essencial ou o “paraíso perdido” no dizer de Valadares (2000) e Rykwert (2009). Nas palavras de Leitão (2014), Da caverna aos nossos dias, o espaço arquitetônico é o espaço do abrigo. A noção de abrigo traz implícita a ideia de acolhimento – de pessoas, de atividades, de funções – e com ela a questão da adequação do meio ambiente a uma necessidade espacial específica, seja ela física ou psíquica, real ou puramente simbólica. (LEITÃO, 2014, p. 37).

Do ponto de vista simbólico, a casa representa a nossa psique, ou seja, as várias instâncias da nossa mente consciente e inconsciente. Nesse sentido, a casa, assim como a mente, expressa o conteúdo cognitivo e emocional que nos constitui como

32 indivíduos distintos do grupo. Psicologicamente falando, isso faz da casa um repositório das nossas vivências físicas, afetivas e intelectuais. A história de vida das pessoas encontra no espaço doméstico um lugar favorável de expressão de seus sentimentos, de seu projeto de vida, de suas esperanças e sonhos; mas também de suas angústias dores e temores. 2.3.3

Casa Lar Meu lar é sempre onde estou, meu lar está na minha mente, meu lar são meus pensamentos (Ziggy Marley).

A tradução da palavra casa, é ampla, creio que em quase todos os idiomas. Em húngaro temos a palavra Othonom quer dizer minha casa, o meu lar, a minha terra, o meu país. Vemos aqui a ideia de casa enquanto lugar conhecido e de pertencimento. É interessante que muitas vezes nos referimos à casa e ao lar como sinônimos. Sem adentrar uma análise semântica profunda desses termos, podemos dizer que a casa é entendida muitas vezes como o espaço da habitação enquanto o lar carrega consigo todo um ideário de afetividade. Podemos perceber essa distinção quando observamos a escrita chinesa que representação os termos casa e lar. O ideograma para casa 家5 é a junção do ideograma para porco 豕 e o de telhado 宀. Na interpretação chinesa o porco, quando domesticado não trouxe nenhum problema dentro de casa, podendo assim ficar à vontade. Já o ideograma chinês que representa o lar é o mesmo que significa a paz: um telhado abrigando uma mulher

女. Na interpretação



de alguns o homem concebeu a ideia de

que para se ter paz era preciso manter a mulher debaixo do seu telhado ou mantê-la confinada dentro de casa. Menos sexista que essa explicação, acreditamos que o termo lar surge com a junção da ideia de abrigo (o telhado宀) e a figura da mulher ou mãe 女. Em sua origem latina, a palavra “lar” constitui-se em substantivo masculino: o lar; na língua portuguesa, passa para o feminino: a casa. Mas por que isso ocorre? Talvez porque o lar, um verdadeiro lar, carregue consigo uma ideia primitiva de maternidade. Vemos aqui já uma aproximação do lar com o lado mais afetivo do humano. Lembra-nos o as palavras de Freud (1919) ao dizer que “amor é nostalgia do 5

Em chinês pronuncia-se "jia", e em japonês "ka", "ke", "ie" ou "ia".

33 lar”. A frase, por si só, carrega um peso do qual é impensável se livrar. Está contida nela, a base do que constitui a relação entre homem e espaço, mais especificamente, entre homem e lar; homem e intimidade. Nessa frase, o autor está se referindo ao lar como o lar primevo; o útero materno; o lar que envolve o habitante e que nele imprime suas primeiras marcas fundamentais. Lembramos Bachelard (2008 p. 26), quando no diz que “a vida começa bem, começa fechada, protegida, agasalhada no regaço da casa”. A casa nuclear como espaço privado, em sociedade, propõe-se a representar para o seu morador, um útero materno: úmido, quente, íntimo, resguardado, terno e “familiar”. Quando Freud diz que ‘amor é nostalgia do lar’, ele está se referindo a falta do lar enquanto a falta do contato encarnado do outro primário – a mãe. É a falta que cada sujeito traz de sua alteridade original. Essa falta está na origem de todos os desejos. Segundo Garcia-Roza (1992), citado por Leitão (2014), O que caracteriza o desejo para Freud é esse impulso [e não a necessidade física, biológica, atendida] para reproduzir alucinatoriamente uma satisfação original, isto é, um retorno a algo que já não é mais, a um objeto perdido cuja presença é marcada pela falta. Garcia-Roza (GARCIA-ROZA, 1992, p. 145, apud LEITÃO, 2014, p. 47).

Temos então, a partir dessa nostalgia, desse sentimento de perda, a necessidade de um reencontro. Já mencionamos Leitão (2009) quando nos fala que após o nascimento o homem anseia por reencontrar o espaço de conforto e segurança que foi perdido.

Heidegger (1982) vai dizer que essa busca é o que nos guia desde o

nascimento até a morte. É interessante as palavras de Rykwert (2009), que nos diz: O retorno às origens é uma constante do desenvolvimento do homem e, nessa questão, a arquitetura se adapta a todas as demais atividades humanas. A cabana primitiva – o lar do primeiro homem – não é, pois uma preocupação incidental dos teóricos, nem tampouco um elemento fortuito de mitos ou de rituais. (RYKWERT, 2009, p. 218).

Leitão (2014), agora citando Salignon (1997) nos diz que O espaço se torna este lugar onde o sujeito vai procurar nostalgicamente seus objetos perdidos, não racial, menos ainda geométrico. E mais: sempre ligado à figura da mãe, o espaço está atado a este Outro de onde o sujeito provém e de onde ele retira seu primeiro desprazer para trocá-lo pelo prazer. (SALIGNON, 1997, p. 94, apud LEITÃO, 2014, p. 49).

Ainda mais interessante é que Rykwert, assim como Freud, vai dizer que essa perda, essa busca é eterna, pois é impossível encontrar o objeto perdido que está para

34 sempre perdido. Freud nos diz que como não podemos retornar ao útero materno não teremos como encontrar aquilo que nos falta. Segue-se daí todo sentimento de frustração do qual nos fala a teoria psicanalítica. Rykwert nos diz que assim como se busca pela casa primitiva – a casa de Adão – e esta não sendo uma casa física, não tendo uma existência concreta, não pode nunca ser encontrada. Mesmo assim, continuamos nossa busca construindo em nosso imaginário uma casa que seria ideal. Uma casa dos sonhos. Como nos diz Leitão (2014, p. 51), “muito mais do que abrigo, portanto, a arquitetura, em sua dimensão simbólica, aponta para a produção do espaço desejo”. Esse espaço desejo, a casa sonhada, é aquele que abriga, protege e aconchega, É o espaço que denominamos lar, de onde podemos partir tranquilamente, e para o qual sempre estamos dispostos a retornar, seja para nossos descansos, seja para nossas melhores comemorações. É o nosso Othonom. Lugar idealizado de aconchego; espaço de intimidade; lugar para ser feliz. 2.3.4. Casa Moradia Tem que se sair de casa para melhor querê-la e apreciá-la. (Miguel Unamuno).

Para muitos, a casa não passa de um domicílio. Um lugar onde as pessoas talvez nem mesmo se encontrem, onde pode haver beleza aparente, aliada a um vazio interior. Alguns, nela se escondem, porque não sabem para onde ir. Outros, para lá retornam, dia após dia, mas sem, nunca, verdadeiramente voltar. Dentre esses, muitos postergam, tanto quanto possível, a hora de “estar em casa”. Cheia de silêncios, em suas paredes simbolicamente nuas, é possível que ecoem todos os gritos de revolta ou de medo que seus habitantes vivenciam. Cheia de ruídos, ou de vozes alteradas, podem estar expondo e reforçando a dificuldade de seus moradores revelarem o que se passa em si mesmos. Casa, apenas paredes. Certamente, dentro dessas paredes não existe um lar. As pessoas embaixo desse teto não habitam um espaço. Apenas o ocupam fisicamente, mas não afetivamente. Nesta relação mundo interno e externo estão desconexos; incompletos e destituídos de valor simbólico. É plausível supor que esta falta de carga simbólica e valor afetivo estejam na origem da não identificação com as novas moradas que são entregues nos programas habitacionais numa tentativa de solucionar os problemas de

35 falta de moradia no país. Entretanto, esta não é a casa de nossas brincadeiras de infância. Não é a nossa casa sonhada para a qual desejávamos ir. Não é o lar que dia após dia, queremos retornar. Quando nos recolhemos ao espaço privado da casa não implica um isolamento do mundo exterior tal que este se torne esquecido para nós. Habitar uma casa é habitar o mundo. A casa, em sua objetividade física, é um meio de experimentarmos ser parte desse mundo. Norbeg-Schulz (1984) assinala que A casa e a mesa recebem e reúnem, e tornam o mundo “perto”; sem os frutos “sagrados” do céu e da terra, o lado de dentro permaneceria vazio. (NOBERG-SCHULZ, 1984, p. 9).

Habitar domesticamente é uma atividade que exercemos sempre em relação com o mundo. Entrar em casa é, na verdade, encontrar as coisas que trouxemos do mundo externo para o interno e com as quais estamos familiarizados e nos reconhecemos. Elas nos proporcionam o apoio em nosso lidar diário. Cada indivíduo pode atribuir significados e estabelecer associações muito íntimas com o lugar onde habita. Segundo Norbeg-Schulz (1984), quando habitamos o espaço público reunimos em nossas casas lembranças e trazemos para dentro de nossos espaços privados aquilo que elegemos como representantes de nossas experiências no mundo externo. Esses elementos que trazemos de fora para dentro, passam a fazer parte de nossa vida cotidiana. Passamos então a interiorizar significados e tornamos tudo isso parte inseparável da forma como entendemos nosso espaço doméstico e também o mundo exterior. 2.3.5 Casa Habitada e Família Amar é mudar a alma de casa (Mário Quintana).

“A Casa”, cantada por Toquinho e Vinícius de Morais, é uma casa sem chão, sem paredes e sem teto. Ela é sustentada pela imaginação. A casa que habitamos, pelo contrário, tem tudo isto, mesmo que, simbolicamente, não tenha nada. Precisa de chão – simbólico e afetivo – onde lançar seus alicerces e onde possamos caminhar com leveza, conforto e segurança. E é em nossas histórias de vida que o chão se estabelece. Precisa de paredes – tal qual nossas famílias e nossos laços amorosos. Paredes fortes,

36 consistentes, com aberturas, pelas quais circulam o ar e a luz, e pelas quais se possa sair – e entrar, dando acesso, inclusive, a pessoas “de fora”, porém muito especiais. Não a qualquer pessoa. A “casa-lar” protege e, para proteger, seleciona. Simbolicamente, o contorno que envolve as famílias e os casais pode ser representado por linhas tracejadas, indicativas de fronteiras permeáveis. Não com fronteiras difusas, que mal oferecem contorno e mal permitem a experiência de pertencimento. Não como fronteiras rígidas, típicas de cativeiros físicos e emocionais. São as famílias de fronteiras permeáveis que permitem o crescimento e a expansão de seus filhos. São elas que permitem que, fora de seus limites, geração à geração, os filhos, e herdeiros, possam encontrar seus pares, amando e sendo amados. São elas que permitem que a palavra “casa”, na prática, mereça o nome de lar. Simbolicamente, mesmo que a “residência” – seja num condomínio de luxo ou num apartamento no centro de uma grande metrópole – permite que se viva, com plenitude, a canção de Zé Rodrix “Casa no Campo” (1971), com a qual Elis Regina encantou toda uma geração, sugerindo que chão, paredes e teto podem estar perfeitamente integrados com espaços amplos, claros e luminosos, verdadeiros “lugares para ser feliz”: Eu quero uma casa no campo / Onde eu possa compor muitos rocks rurais / E tenha somente a certeza / Dos amigos do peito e nada mais. Eu quero uma casa no campo / Onde eu possa ficar do tamanho da paz / E tenha somente a certeza / Dos limites do corpo e nada mais. Eu quero carneiros e cabras pastando / Solenes no meu jardim / Eu quero o silêncio das línguas cansadas. Eu quero a esperança de óculos / E um filho de cuca legal / Eu quero plantar e colher com a mão, / A pimenta e o sal. Eu quero uma casa no campo / Do tamanho ideal, pau a pique e sapê / Onde eu possa plantar meus amigos / Meus discos e livros e nada mais. (RODRIX, 1972, In: Elis, Phonogram).

Não é somente o “Aurélio” que apresenta o verbete lar como sinônimo de “família”. Isto significa que, se residirmos sozinhos, não temos um espaço que mereça assim ser denominado? Certamente que não. O lar pode ser algo imenso, como a pátria, a cidade natal, ou algo muitas vezes pequenino, como um cômodo da casa, a velha poltrona ou cadeira de balanço no canto da sala. A palavra lareira tem sua origem semântica na palavra lar e é na cozinha, uma das partes mais íntimas da casa mais onde se acende o fogo. Em Fustel de Coulanges (2011), lemos que o fogo sagrado, além de sua ligação com o culto aos mortos, tinha como caráter essencial pertencer a apenas uma família representando seus antepassados. Cada família tinha seu próprio fogo que não tinha

37 relação alguma com o fogo da casa vizinha. Cada chama – ou lar – protegia apenas a sua família. Essa religião estava circunscrita à casa e não era uma cerimônia pública. Passava-se apenas na intimidade de cada família, em seu ambiente doméstico. O fogo sagrado jamais era colocado fora de casa e era até mesmo oculto aos olhos dos estranhos. Coulanges diz mais: [...] a religião não residia nos templos, mas nas casas; cada um tinha seus deuses; cada deus protegia apenas a uma família, e era deus apenas de uma casa. (COULANGES, 2011, P. 31).

O autor ainda afirma: Fora de casa, bem perto, no campo vizinho há um túmulo. É a segunda morada da família. Lá repousam em comum várias gerações de antepassados; a morte não os separou. Nessa segunda existência permanecem juntos e continuam a formar uma família indissolúvel. (Idem, p. 34).

Casa e família, aqui, podem ser tomados como sinônimos e podemos notar como a vida doméstica – em vida e em morte – era, para os romanos e gregos, tomada completamente pela religiosidade e cheia de simbolismo. Essa ideias e sensibilidades, apesar de em nossos dias a secularização ter tomado o lugar da religião e a casa assumir um caráter mais funcional, ainda permeiam o imaginário em torno do nosso sentido de casa. Novamente observando a escrita chinesa temo o ideograma para família 家族, formado pela junção de casa

家 e casar (mulher que casa) 族. Este símbolo também

pode ser traduzido por clã, linhagem ou estirpe. Novamente temos a figura feminina como ponto central e definidor que dá sentido à ideia ao pictograma. Não podemos falar de um lar que não seja maternal no sentido afetivo do termo. Um lar tem seu início com o casamento e a constituição de uma nova família, uma nova linhagem. Uma linhagem que sempre tem sua origem no útero materno.

Capítulo II

Canções e poemas... Caminhos para uma ideia de casa

39 3. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS O real não está na saída e nem na chegada, ele se dispõe pra gente é no meio da travessia. (Guimarães Rosa).

Métodos de pesquisa são caminhos possíveis a serem trilhados para alcançar as respostas buscadas e os objetivos da pesquisa. Os métodos, descritos de forma simples, são os meios, o “como” a pesquisa será desenvolvida, para dar conta das perguntas formuladas. Em nosso trabalho procuramos seguir o caminho da pesquisa qualitativa. Incialmente, procuramos selecionar canções e poemas que abordam a temática da casa; para posteriormente analisar, por meio da análise do conteúdo, as ideias força presentes no discurso das obras selecionadas. Para a seleção dos dados procuramos, inicialmente, por canções e poemas que apresentassem explicitamente o termo casa – em seu título ou no corpo do texto – ou algum termo que remetesse a ideia de lar. Assim encontramos textos que falavam do lugar, lar, casa, terra, entre outros. Nesse ponto da pesquisa nos deparamos com inúmeras produções que associavam esses termos com outros como família, saudade, natureza, esperança, busca e muitos outros que carregavam – dentro do contexto – o mesmo conceito atribuído a casa. Assim, passamos a buscar também outros poemas e canções que mesmo não tendo o termo casa explícito, traziam em suas estruturas as mesmas ideias presentes nas primeiras obras encontradas. Pudemos então, ampliar significativamente o número de obras sobre as quais nos detivemos. Cabe neste ponto ainda esclarecer o porquê optarmos por investigar a ideia de casa por meio da análise das canções e poemas. Neste ponto tomamos como base para nossa escolha as ideias apresentadas pela teoria das representações sociais de Moscovici (1978; 1985) e Jodelet (1985). Uma das preocupações principais de Moscovici que proporcionou o surgimento da Teoria das Representações Sociais era relacionada à difusão do conhecimento, primordialmente a do conhecimento científico. Ele se interessava no modo como este conhecimento afetava a cultura e como ele era absorvido pelo discurso leigo (MOSCOVICI, 1978, 2003). A partir de seu estudo célebre sobre as representações sociais da psicanálise, do início dos anos de 1960, esta teoria começou a se desenvolver bastante, passando a abarcar diferentes áreas de estudos, não se limitando apenas à

40 difusão dos conhecimentos científicos na sociedade. Uma vez que vários setores da vida profissional apresentam um dinamismo importante, o campo de aplicação e pesquisa do fenômeno das representações sociais tem se ampliou consideravelmente, incluindo o da produção e consumo musical. Pela grande presença da música, (em especial as canções) e da poesia no cotidiano e nos diversos meios de comunicação e nas diversas manifestações culturais, que as colocam como objetos de grande consumo, podemos dizer que elas – música e poemas – também promovem e refletem processos de massificação, que pode apontar para certa homogeneização dos gostos e práticas na sociedade. Neste sentido, podemos apontar para uma relação entre um objeto/fenômeno representado e os indivíduos/grupos que o representam. Esta relação se expressa nos discursos, conversas, ações e práticas efetuados pelas pessoas, que apontam para a forma como elas se relacionam com estes objetos/fenômenos. Quer dizer, representar um objeto/fenômeno, atribuir sentido a ele e comunicar sobre o mesmo é inseri-lo dentro de um contexto sócio-histórico mais amplo. E, desta forma, é definir e redefinir este objeto/fenômeno, este contexto e os indivíduos/grupos que o representam. Assim, podemos entender as canções e os poemas para além da noção de objeto que nos informa um conteúdo, mas como uma expressão cultural que pode nos informar sobre quem as produz e consome.

3.1. A escolha das fontes “O mundo é um conjunto de significados, uma linguagem... Uma coisa é o que acreditamos dizer, outra é o que realmente dizemos”. (Octávio Paz)

É certo que por meio da linguagem o ser humano transforma a realidade em que vive e a si mesmo. Ele constrói a existência humana, ou seja, confere-lhe sentido. E é essa capacidade humana de atribuir, incessantemente, sentidos que promove sua constituição identitária. Para Souza (2000), um dos fenômenos importantes do século XX é o fenômeno da multimídia, que trabalha o som com imagem e movimento, tornando-se um dos eventos marcantes no âmbito técnico, político e cultural. Ao observamos a realidade neste século XXI, nos defrontamos com os mais variados suportes em que filmes e músicas – em todas as suas formas – estão presentes. Estão nos meios de comunicação; nos telefones celulares e smartphones; na Internet, etc.

41 Destacamos o que nos diz Ricoeur (1997): O discurso é uma tentativa incessantemente renovada para exprimir integralmente o pensável e o dizível de nossa experiência [...] compreendemos, então, o que ocorre quando a palavra ascende ao discurso, com sua riqueza semântica. Sendo todas as nossas palavras polissêmicas em certo grau, a univocidade ou a pluralidade de nosso discurso não é obra das palavras, mas dos contextos. (RICOEUR, 1997 p.79).

Todos esses elementos, com sua riqueza simbólica, trazem consigo sentidos e podemos entendê-los como traduções da realidade. Como representações da subjetividade humana, tanto no sentido coletivo como em num sentido singular, essa produção se constitui como produto e também como (re)produtora da sociedade. Quando focamos nosso olhar com uma intenção mais crítica e reflexiva sobre a produção cultural, toda sua diversidade e multiplicidade, as inúmeras formas de manifestação e linguagens, a riqueza de sentidos, sonhos, sentimentos, nos deparamos com o legado de gerações anteriores; suas histórias e experiências. Vemos não somente o que veio antes de nós, mas também aquilo que nos formou e nos forma. Estamos diante de um espelho a olhar para nós mesmo, em busca de reconhecer o que e quem somos. Mas como expressar todo essa busca? Como traduzir de maneira não apenas inteligível, mas também afetiva, esse (re)encontro com nossas origens e conosco? Como entender essa sensibilidade? Com estas questões em mente nos empenhamos em buscar meios que nos permitissem essa aproximação. Com esses questionamentos nos deparamos com os escritos de Heidegger (2005), quando ele nos diz que o homem habita na linguagem. Para este autor o mundo se abre a nossa compreensão por meio da linguagem. Segundo suas palavras isso é “habitar poeticamente”. A partir dessas ideias, acreditamos que um caminho possível de ser percorrido e que pode nos levar mais perto de nossos objetivos é por meio das poesias em todas as suas formas. Entendemos que para tratar essa dimensão afetiva, devemos recorrer a quem lida diretamente com esse nosso lado: os poetas. As criações artísticas são uma manifestação/materialização das sensibilidades, sonhos e desejos humanos. Cantores e poetas possuem a capacidade de transformar palavras e sons naquilo que se encontra no mais profundo da alma humana. Podemos não nos dar conta a princípio, mas são os poetas e artistas que melhor conseguem expressar essas questões. Muito além dos cientistas e acadêmicos – e muitas vezes

42 gerações a sua frente – são os poetas que melhor descrevem nossa realidade subjetiva – mesmo que para isso criem outras realidades. As inúmeras criações artísticas – músicas, pintura, poesia, etc, são linguagens distintas para expressar o que a ciência tenta compreender. Entretanto, esses dois caminhos – arte e ciência – não são irreconciliáveis. Eles não caminham em paralelo sem nunca se encontrarem. Na verdade, são caminhos em zig-zag, constantemente se tocando e entrecruzando. Por vezes se afastam e correm isolados, outras vezes se aproximam e se juntam num único caminho amplo e cheio de curvas. Esta é nossa proposta aqui. Partir de um diálogo entre arte e ciência enriquecendo as possibilidades de compreensão do fenômeno estudado. Para Sartre (1965), a emoção é a estrutura afetiva da consciência, e como consciência afetiva, na sua espontaneidade, se constitui como uma forma de apreender o mundo. O mundo, por sua vez, quando estamos numa postura espontânea de consciência, pode nos aparecer como sendo amável, odiável, apaixonante, etc, e como tendo que ser vivido necessariamente desta maneira. Não pretendemos desenvolver nenhuma nova metodologia – muito menos uma escola artística – mas tão somente buscamos um olhar acadêmico mais sensível para a questão pesquisada à luz da linguagem poética. Assim, nos debruçamos sobre composições musicais e poemas, alargando nosso “caminho” acadêmico, a procura de um entendimento mais próximo de nosso objeto de estudo. Valemo-nos, então, de canções e poemas, entendendo essas produções como uma linguagem que traduz sentidos da realidade. 3.1.1. Música e Canções A música é o vínculo que une a vida do espírito à vida dos sentidos. A melodia é a vida sensível da poesia. [...] A Música é uma revelação mais profunda que qualquer Filosofia. (Ludwig van Beethoven)

É consenso que a música está inserida no cotidiano das pessoas de diferentes maneiras e em várias ocasiões: está presente desde fundo musical para a execução de atividades corriqueiras (como lavar louça ou estudar) até servindo como estímulo para a prática de exercícios físicos ou para o relaxamento. Escutamos e produzimos música com diversos fins, seja para relaxar, para refletir, para dançar ou para nos expressarmos. A música tem princípios que permitem que se expressem sentimentos, sensações e

43 ideias. Há pouca dúvida de que em todas as sociedades a música possui uma função subjetiva, carregando ideias e representações. Refletindo e sendo reflexo de comportamentos. Na forma de canções (que é o poema musicado) ela pode cumprir essa função por suas letras; por emoções que sugere ou pela fusão dos vários elementos que a compõem (MERRIAM, 1964, p. 223). E nem sempre outros elementos da cultura proporcionam a oportunidade de expressão emocional, diversão, comunicação, na extensão encontrada em música. A música é uma linguagem reflexivo-afetiva, capaz de construir sentidos coletivos e singulares. Entendemos como reflexiva toda atividade humana que objetiva predominantemente uma racionalidade; e, como afetivas as objetivações que, embora mediadas por uma racionalidade, contemplam sobremaneira emoções e sentimentos. O processo de criação musical deve ser compreendido sempre como um produto históricosocial, completamente inserido no contexto no qual se dá. Compreendemos o sujeito como constituído e constituinte do contexto social do qual faz parte. Por meio da música, enquanto forma de comunicação, uma linguagem, por meio do significado que ela carrega e da relação com o contexto social no qual está inserida, ela possibilita a esse sujeito a construção de múltiplos sentidos singulares e coletivos. O sentido da música é sempre permeado pela afetividade. Ela é uma expressão do pensamento afetivo e sua função é simbólica, uma vez que revela e traduz uma época, um fato, ou outro objeto qualquer, de forma que é possível afirmar que seu aspecto crucial é sua capacidade em compreender pelo coração Vygotsky (1998). Ao escutarmos uma canção podemos, por meio dela, tornar mais complexos os nossos saberes, definir melhor nossos pensamentos, dar maior precisão às nossas posições, trazer para o presente um objeto que está ausente, e, até mesmo criar objetos imaginários. Assim, o imaginário e as significações se inscrevem no contexto social, estendendo-se às coisas. Percebemos que a canção é refletida, analisada e percebida através de sua letra e melodia. Torna-se, então, um instrumento relevante no reconhecimento social. Não somente a música, mais também outras formas de arte como a poesia, são uma expressão clara da força criadora presente na linguagem humana. Elas apresentamse como uma rica fonte de investigação e são capazes de nos revelar elementos internos

44 de uma sociedade, descortinando relações que por outros meios de investigação seriam inacessíveis. Assim, em nosso estudo, não nos detivemos nos aspectos mais profundos da música como construções melódicas e rítmicas. Interessou-nos muito mais as construções poéticas cantadas que carregam em si inúmeras concepções sobre o contexto social em que foram produzidas. Assim, para nosso estudo, não estamos tratando de uma análise das construções musicais em seus elementos sonoros, mas sim na análise das letras cantados enquanto construções poéticas carregadas de símbolos e afetividade. 3.1.2. Poesia A poesia é conhecimento, salvação, poder, abandono. Operação capaz de transformar o mundo, a atividade poética é revolucionária por natureza; exercício espiritual, é um método de libertação interior. A poesia revela este mundo; cria outro. (Octavio Paz)

Poesia advém do grego poiesis que em sua acepção significa criar, fazer. Em todos os momentos históricos no mundo, houve e há alguém que através de evocações imagéticas, impressões e emoções por meio de sons e ritmos harmônicos criou, recriou e fez da poesia, a linguagem dos sentimentos e das emoções. A história da relação entre poesia e sociedade pode ser observada desde tempos mais antigos. Em suas mais primitivas formas, o propósito social é bem notório. Eliot (1991) nos oferece exemplos desse propósito na produção poética: Antigas runas e cantos, alguns dos quais revelam propósitos mágicos verdadeiramente práticos, destinados a esconjurar o mau-olhado, a curar certas doenças ou a obter as boas graças de algum demônio. A poesia era utilizada primitivamente em rituais religiosos e, quando entoamos um hino, estamos ainda utilizando-a com um determinado propósito social. As primitivas formas do gênero épico e a saga podem ter transmitido aquilo que sustentamos como história antes de se tornar apenas uma diversão comunitária, e antes do uso da linguagem escrita, uma forma de verso regular deve ter sido extremamente proveitosa à memória - e a memória dos primitivos bardos, dos contadores de histórias e dos sábios deve ter sido prodigiosa. (ELIOT, 1991, p. 7).

Na Grécia, a poesia de Homero era fundamentada nos mitos através de narrativas heroicas. Há muito que a poesia acompanha o ser humano sendo provavelmente uma das formas de expressão artística mais antiga que existem e que se desenvolveu ligada umbilicalmente com a linguagem. Segundo Camargo (2004), a poesia tem uma importância fundamental para a formação crítico-reflexiva do sujeito.

45 Ela possibilita ao ser humano o encontro com a cultura humanística, como espaço de revelação e reconhecimento do prazer, da fantasia e da realidade, além de propiciar-lhe uma leitura ampla e crítica dos valores vigentes na sociedade. Para Silva (1989), a poesia é uma arte de criação e construção e não um fenômeno da natureza. É uma criação essencialmente humana. A poesia não existe sem a participação humana. A poesia está em todos os tempos, pois é a maneira de comunicação natural dos homens. Ritmo e linguagem se confundem e não existe povo sem poesia. Ao longo do tempo a poesia foi ganhando e perdendo estilos, formas, e temas. Desde a poesia trovadoresca até hoje existiram várias formas de poesia. Hoje a poesia se moderniza e se reflete em nossa mídia. Com a chegada do termo hipertexto6, a poesia começou a receber figuras, sons, filme. A poesia ocupa espaços e formas distintas, sem, contudo deixar de ser poesia, ou desvincular-se completamente de sua origem. Para Huidobro (1991), a poesia tem duas significações: significação gramatical da linguagem que dá nome a tudo sem mudar o seu sentido real diante do mundo; e a significação mágica, a qual é da maior importância na poesia, pois ela ultrapassa as normas da gramática. O autor explica ainda que na poesia as palavras perdem seu sentido real para dar lugar a um novo sentido, subjetivo ou até irreal das coisas, levam o leitor a alcançar o encantamento. Esta magia é um trabalho de grande relevância que traz a premiação do poeta, em sua construção poética. Ainda segundo Huidobro (idem), O poeta faz mudar de vida as coisas da natureza, recolhe com sua rede tudo aquilo que se move no caos do inominado, estende fios elétricos entre as palavras e ilumina subitamente rincões desconhecidos, e todo esse mundo estoura em fantasmas inesperados. (HUIDOBRO, 1991, p.213).

Desta maneira, temos que os poemas podem figurar como acesso privilegiado para o entendimento da subjetividade humana; de suas sensibilidades e assim permitir compreender melhor as relações entre pessoas e seus espaços. A poesia pode ser considerada então, um fenômeno social, e, como tal, está também sujeita a determinações do espaço e do tempo históricos, Partindo dessas ideias, propomos aqui a utilização dessas obras artísticas – canções e poemas – como portas que podem nos levar mais próximo do objeto que

6

Texto em formato digital, ao qual se agrega outros conjuntos de informação na forma de blocos de textos, imagens ou sons.

46 queremos estudar, a saber, o conceito de casa/lar. A partir da análise dessas obras, buscamos identificar as ideias-força que estariam presente no imaginário e nas relações sociais das pessoas acerca da casa, de sua moradia, dos desejos e do habitar. Através desse olhar será possível identificar elementos que se encontram subjacentes ao ideário e ao conceito de casa, lar e moradia. Como afirma Bachelard (2008, p. 26), “pelos poemas, talvez mais que pelas lembranças, chegamos ao fundo poético do espaço da casa”. Assim, acreditando que tais obras são capazes de nos comunicar mais do que belas palavras, elas tem o poder de transmitir valores e crenças e, por isso, são chaves para compreendermos os elementos subjetivos de uma sociedade e também dos indivíduos.

3.2. As canções e os poemas como representação social Quem não considera a vida de sociedade apenas como simbólica está enganado. (Hugo Hofmannsthal).

Todas as relações humanas ocorrem e constituem campos sociais. Estes campos onde se passam tais relações são espaços, social e historicamente construídos, onde os indivíduos comungam de projetos identitários, mais ou menos próximos, e que limitam ou moldam as ações, atitudes, crenças e valores de todos os que compartilham do campo. Como nos diz Bourdieu (1989), A noção de campo social evoca um espaço relativamente autônomo de relações sociais historicamente situadas, que produz um conjunto de valores, uma ética, traços identitários de um sujeito ideal, naturaliza certos modos de ver e de ser comportar que põem em ação as regras do jogo do campo. (apud CARVALHO, 2005, p.53).

Com este entendimento, procuramos nos apropriar de um referencial teórico que pudesse nos aproximar desses campos sociais. Assim, nos valemos da teoria da Representação Social para sustentar nossa opção por poemas e canções como fonte de investigação. Pautamo-nos principalmente nos trabalhos de Jodelet (1985) e Moscovici (1978; 1985). Também fizemos uso das reflexões teóricas acerca da função da poesia e da literatura segundo a formulação de Antônio Candido (2004), em O Direito à Literatura e Antoine Compagnon (2009), em Literatura Para Quê?. Reproduzimos aqui três questionamentos feitos por Campagnon no referido livro, a saber: a) Quais valores a literatura pode criar e transmitir ao mundo atual?; b) Que lugar deve ser o seu no espaço

47 público?; c) Ela é útil para a vida? A resposta a estas perguntas assinalam positivamente para se pensar na pertinência da literatura em nossas vidas, no que ela é capaz de nos dar como conhecimento acerca da condição humana. Segundo Candido (2004, p. 175), a literatura: [...] é fator indispensável de humanização, e, sendo assim, confirma o homem na sua humanidade [...] Por isso é que nas nossas sociedades a literatura tem sido um instrumento poderoso de instrução e educação, entrando nos currículos, sendo proposta a cada um como equipamento intelectual e afetivo. (CANDIDO, 2004, p. 175).

Da mesma forma, Compagnon (2009, p. 26), nos fala que a literatura é um “exercício de reflexão e experiência de escrita, a literatura responde a um projeto de conhecimento do homem e do mundo”. Vemos então que a literatura nos ajuda a entender aspectos sociais por novas perspectivas. Por meio de representações. Sobre este assunto, Alexandre (2004) define assim as representações sociais: São formas de conhecimento que se manifestam como elementos cognitivos (imagens, conceitos, categorias, teorias), mas que não se reduzem apenas aos conhecimentos cognitivos. Sendo socialmente elaboradas e compartilhadas, contribuem para a construção de uma realidade comum, possibilitando a comunicação entre os indivíduos. Dessa maneira, as representações são fenômenos sociais que têm de ser entendidos a partir do seu contexto de produção, isto é, a partir das funções simbólicas e ideológicas a que servem e das formas de comunicação onde circulam. (ALEXANDRE, 2004, p. 131).

A teoria das representações sociais é uma abordagem sociológica, mais do que psicológica, de psicologia social e dá conta das questões relativas às diferentes percepções que sujeitos socialmente configurados constroem de um mesmo assunto, tema ou objeto. Essa teoria sempre busca ligar um sujeito a um objeto, e tem com este uma relação de simbolização (tomam o seu lugar) e de interpretação (conferem-lhe significações). As características do sujeito e do objeto terão, sempre, incidência sobre o que as representações sociais são (DUARTE, 1994, 1997, 1998, DUARTE & ALVESMAZZOTTI, 2001). Ibañez

(1988)

lista

cinco

importantes

funções

desempenhadas

pelas

representações sociais as quais parecem coincidir com as funções sociais da música apresentadas por Merriam (1964) e revisadas por Freire (1992). As funções apresentadas por Ibañez (1988) são: (a) comunicação social, que corresponderia à função social da música de comunicação, a qual se dá “possivelmente [...] através da investidura da música com significados simbólicos que são tacitamente aceitos pela comunidade” (FREIRE, 1992, p. 21); (b) integração da novidade social, cujo fim é

48 manter a coesão e a estabilidade cultural, que corresponderia à função social da música de contribuição para a continuidade e estabilidade da cultura; (c) legitimação da ordem social, tanto no nível simbólico quanto no nível prático, dando às representações sociais a capacidade de orientar as condutas, que corresponderia às funções sociais da música de impor conformidade a normas sociais, de representação simbólica, de validação das instituições (nível simbólico) e de reação física (nível prático); (d) expressão pessoal, que corresponderia à função de expressão emocional da música “como veículo para a expressão de ideias e emoções não reveladas no discurso comum” (FREIRE, 1992, p. 20); e (e) configuração grupal, que corresponderia também à função social da música de contribuição para a integração da sociedade por a música poder promover “um ponto de união em torno do qual os membros de uma sociedade se congregam” (MERRIAM, apud FREIRE, 1992, p. 23). De acordo com Jodelet (1985), pode-se pensar as representações sociais como modalidades de conhecimento da vida em sociedade destinadas à compreensão da realidade ou do contexto social onde os indivíduos atuam e se relacionam uns com os outros. Trata-se de imagens, conceitos, teorias e categorias elaboradas com fins específicos: contribuir para a construção de uma realidade comum e partilhada entre as pessoas. Nesse sentido, as representações implicam em interpretação da realidade, bem como na elaboração de conhecimentos. Segundo Moscovici, as representações sociais: [...] são conjuntos dinâmicos, seu status é o de uma produção de comportamentos e de relações com o meio ambiente, de uma ação que modifica aquelas e estas e não de uma reprodução desses comportamentos ou dessas relações, de uma reação a um dado estímulo exterior”. (MOSCOVICI apud HOROCHOVSKI, 2004, p. 99).

Isso diz respeito ao modo como os homens se organizam socialmente, como eles pensam, agem, criam imagem do mundo, das pessoas e de si mesmo, ou seja, [...] a maneira pela qual os seres humanos tentam captar e compreender as coisas que os circundam e resolver os ‘lugares comuns’ e quebra-cabeças que envolvem seu nascimento, seus corpos, suas humilhações, o céu que veem, os humores de seu vizinho e o poder a que se submetem. (ibid.).

Assim, a abordagem das representações sociais investiga e apreende os processos, produtos e sentidos comuns aos sujeitos pertencentes a um determinado grupo social. Ao utilizarmos os seus pressupostos não estamos negando ou excluindo a existência de um conhecimento privado, conhecimento pessoal ou teorias subjetivas que

49 justificam as experiências e comportamentos individuais. Mesmo o conhecimento mais idiossincrático está relacionado com um conhecimento social e cultural. Quanto ao estudo da literatura, podemos dizer que ele é de extrema importância para a sociedade. Por meio da literatura podemos compreender o próprio comportamento humano no decorrer do tempo, suas variações, contradições etc. Nesse sentido, da mesma forma que o comportamento humano muda, as intenções comunicativas presentes nos textos também mudam com o tempo, em seus mais variados aspectos. A esse respeito os poemas, antes quase que exclusivamente voltados para representar o estado de alma do poeta, na contemplação do mundo, também passam a refletir aquilo que a sociedade carrega em si; conceitos e concepções de mundo de todo um grupo social e não apenas de um indivíduo. Sobre isso, Todorov (2012) diz que: [...] como a filosofia e as ciências humanas, a literatura é pensamento e conhecimento do mundo psíquico e social em que vivemos. A realidade que a literatura aspira compreender é, simplesmente (mas, ao mesmo tempo, nada é assim tão complexo), a experiência humana. (TODOROV, 2012, p. 77).

Em semelhante perspectiva, Compagnon (2009, p. 47), em seu livro Literatura Para Quê?, toma a literatura como projeto de conhecimento do homem e da vida. Em sua fala a literatura deve, portanto, ser lida e estudada porque oferece um meio de preservar e transmitir a experiência dos outros. Os outros entendidos como aqueles que estão distantes de nós no espaço e no tempo, ou que diferem de nós por suas condições de vida. Os poetas seriam então tradutores e transmissores de sentimentos e conceitos de todo um grupo social. Falando por si mesmos, carregam a voz de muitos. A literatura então, nos torna sensíveis ao fato de que os outros são muito diversos e que seus valores se distanciam dos nossos. Também sobre à função da literatura em sua relação com a vida social, Candido (2004, p.176), no texto O direito à literatura, discute como a literatura comporta um discurso e uma estética capaz de dar ao homem uma cota de humanidade, na medida em que faz com que as pessoas enxerguem melhor o mundo, o seu semelhante, e a si mesmo. Dessa forma, ele afirma que: A função da literatura está ligada à complexidade da sua natureza, que explica inclusive o papel contraditório mas humanizador (talvez humanizador porque contraditório). (CANDIDO, 2004, p.176).

50 Nessa perspectiva, as obras artísticas – poemas e canções – trazem uma mensagem importante sobre a nossa sociedade, já que, sendo construções coletivas, elas carregam em si parte da sociedade que as produziu. São como testemunhos que nos dão acesso ao mundo subjetivo de uma sociedade e assim nos permitem compreender melhor seus produtores que ao final somos nós mesmo. Temos que a teoria das representações sociais parte da premissa que não existe separação entre o universo externo e o universo interno do sujeito. Uma das definições mais utilizadas e reconhecidas sobre a mesma foi feita por Jodelet (1986). Segundo ela, as representações sociais são entendidas como uma noção que está na interface entre o social e o psicológico, como um conhecimento socialmente elaborado e partilhado e que diz respeito ao modo pelo qual apreendemos o mundo e a nossa experiência. É nesse contexto que temos as canções e os poemas como expressão dessas representações. Podemos também citar a concepção de Wagner et al. (1999, p. 96), que define representações sociais como “um conjunto de pensamentos e sentimentos sendo expressado em comportamento verbal e manifesto de atores que constituem um objeto para um grupo social”. De uma forma geral, as representações sociais permitem compreender de que forma um fenômeno se insere numa sociedade, a forma pelo qual ele é entendido, comunicado,

explicado,

relacionado.

Assim,

as

representações

sociais

são

simultaneamente produtos e processos que servem para nos situarmos no mundo, para compreendê-lo e para permitir a comunicação entre os indivíduos. Com isto, pode-se falar do caráter ativo das pessoas ao fazerem representações, pois é uma forma de dar sentido ao mundo, à sociedade e aos fenômenos que ocorrem a sua volta. Cada indivíduo/grupo possui suas próprias experiências/histórias que irão servir como base para a construção de suas representações. Jodelet (2004), aponta o início um novo campo de reflexão e de pesquisa baseados nas relações entre expressão musical e representações sociais. De acordo com ela, baseando-se em modelos de análise semiológica e de comunicação de massa pode-se distinguir diferentes níveis de análises para se colocar em evidência as significações vinculadas por diferentes estilos musicais: 1- o nível de intenção criativa, juntamente com os estudos de estratégias de produção; 2- o nível do produto, em termos de conteúdos e expressões culturais; 3- o nível da interpretação e de exposição, que

51 remetem a processos de ressignificação; 4- o nível da recepção, que envolve a percepção, a apropriação e a ancoragem; 5- e o nível imaginário, que envolve a relação da subjetividade dos receptores com as mensagens compartilhadas ao nível coletivo ou de massa. Baseado neste esquema, nosso trabalho, focaliza mais questões relativas ao 5º nível, ou seja, do imaginário e da subjetividade. Assim, esse trabalho, tem como objetivo analisar e interpretar as letras de algumas dessas canções, percebidas na sua capacidade de evidenciar representações sociais. Parte da pressuposição que as letras das canções e os poemas selecionados são capazes de transmitir o conjunto de sentidos e valores compartilhados de um grupo social apresentando-se como registros dos conceitos e signos coletivos o que remete aos processos identitário da sociedade. Silva (apud HALL, 2000) observa: [...] a representação inclui as práticas de significação e os sistemas simbólicos por meio dos quais os significados são produzidos, posicionando-nos como sujeito. É por meio dos significados produzidos pelas representações que damos sentido à nossa experiência e àquilo que somos. Podemos inclusive sugerir que esses sistemas simbólicos tornam possível aquilo que somos. (SILVA, apud HALL, 2000, p.17).

Esse mesmo autor, validando a pressuposição de que a obra musical pode ser percebida como um dos campos do representacional, observa que a representação se expressa “por meio de uma pintura, de uma fotografia, de um filme, de um texto, de uma expressão oral. A representação não é, nessa concepção, nunca, representação mental ou interior. A representação é, aqui, sempre marca ou traço visível, exterior” (SILVA, 2000, p. 90).

3.3. Análise do conteúdo Ao dizer algo de condensado sobre a realidade, aproximamo-nos já do sonho, ou antes, da poesia. (Hugo Hofmannsthal).

Como ferramenta de investigação, em nosso trabalho, nos valemos da metodologia da análise do conteúdo (BARDIN, 1977). Segundo esta autora, a análise do conteúdo é um conjunto de técnicas de análise das comunicações que utiliza procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição dos conteúdos da mensagem. Nessa perspectiva, esses procedimentos metodológicos adequam-se aos objetivos do presente trabalho, uma vez que buscamos investigar os enunciados e símbolos representativos da ideia de casa – em suas mais variadas dimensões, escalas ou sentidos – por meio dos

52 discursos presentes nas canções e poemas que apresentam de alguma forma o conceito de lar, casa ou moradia. Para a linguística, a linguagem não é mero código que se aprende e aplica, de modo mecânico e automático. Não pode, portanto, ser considerada segundo uma visão mecanicista, que leva a uma produção discursiva acrítica e limitada. Ela – a linguagem – não pode ser estudada independentemente de seu contexto sócio-histórico, pois traz em si os valores e a história social de diferentes tempos e grupos. É nesse contexto que o estudo do conteúdo discursivo se apresenta como ferramenta para a compreensão dos sentidos, símbolos e elementos subjetivos presentes no texto – seja falado, escrito ou encenado – considerando as variáveis históricas, suas nuances, mudanças e permanências, baseando-se na ideia de que o texto diz muito mais que a mera letra, indo muito além das palavras. Existem sentidos internos, que se revelam somente por meio de um olhar sistemático, crítico e sensível. Ao longo do tempo, a análise de conteúdo tem sido cada vez mais valorizada nas abordagens qualitativas, utilizando especialmente a indução e a intuição como estratégias para atingir níveis de compreensão mais aprofundados dos fenômenos que se propõe a investigar. Na sua evolução, tem oscilado entre o rigor da suposta objetividade dos números e a fecundidade sempre questionada da subjetividade. Em qualquer de suas abordagens fornece informações complementares ao leitor crítico de uma mensagem, seja ele linguista, psicólogo, sociólogo, educador, crítico literário, historiador ou outro. A análise de conteúdo constitui uma metodologia de pesquisa usada para descrever e interpretar o conteúdo de toda classe de documentos e textos. Essa análise, conduzindo a descrições sistemáticas, qualitativas ou quantitativas, ajuda a reinterpretar as mensagens e a atingir uma compreensão de seus significados num nível que vai além de uma leitura comum. O método da análise do conteúdo aparece como uma ferramenta para compreensão da construção de significado que os atores sociais exteriorizam no discurso. Permite, assim, ao pesquisador, um entendimento das representações que o indivíduo tem de sua realidade e as interpretações que faz dos significados a sua volta. Bardin, citada por Godoy (1995), apresenta a utilização da análise do conteúdo em três fazes fundamentais: a pré-análise, exploração do material e tratamento dos resultados. Na primeira fase é estabelecido um esquema de trabalho que deve ser preciso, com procedimentos bem definidos, embora flexíveis. A segunda fase consiste o

53 cumprimento das decisões tomadas anteriormente, e finalmente na terceira etapa, o pesquisador apoiado nos dados brutos procura torná-los significativos e válidos. Segundo Olabuenaga e Ispizúa (1989), a análise de conteúdo é uma técnica para ler e interpretar o conteúdo de toda classe de documentos, que analisados adequadamente nos abrem as portas ao conhecimento de aspectos e fenômenos da vida social de outro modo inacessíveis. A matéria-prima da análise de conteúdo pode constituir-se de qualquer material oriundo de comunicação verbal ou não verbal, como cartas, cartazes, jornais, revistas, informes, livros, relatos autobiográficos, discos, gravações, entrevistas, diários pessoais, filmes, fotografias, vídeos, etc. Em geral, os dados advindos dessas diversificadas fontes chegam ao investigador em estado bruto, necessitando, então ser processados para, dessa maneira, facilitar o trabalho de compreensão, interpretação e inferência a que aspira a análise de conteúdo. A análise de conteúdo, em sua vertente qualitativa, parte de uma série de pressupostos, os quais, no exame de um texto, servem de suporte para captar seu sentido simbólico. Este sentido nem sempre é manifesto e o seu significado não é único. Poderá ser enfocado em função de diferentes perspectivas. Por isso, um texto contém muitos significados e, conforme colocam Olabuenaga e Ispizúa: (a) o sentido que o autor pretende expressar pode coincidir com o sentido percebido pelo leitor do mesmo; (b) o sentido do texto poderá ser diferente de acordo com cada leitor; (c) um mesmo autor poderá emitir uma mensagem, sendo que diferentes leitores poderão captá-la com sentidos diferentes; (d) um texto pode expressar um sentido do qual o próprio autor não esteja consciente. (1989, p.185).

Além disso, é importante salientar que sempre será possível investigar os textos dentro de múltiplas perspectivas, conforme expressa Krippendorf (1990): Em qualquer mensagem escrita, simultaneamente, podem ser computadas letras, palavras e orações; podem categorizar-se as frases, descrever a estrutura lógica das expressões, verificar as associações, denotações, conotações e também podem formular-se interpretações psiquiátricas, sociológicas ou políticas. (KRIPPENDORF, 1990, p.30).

Para Morais (Apud OLIVEIRA, 2005), a análise de conteúdo é uma interpretação pessoal por parte do pesquisador com relação à percepção que este tem dos dados. Assim, ele realiza uma leitura e uma interpretação destes dados. Nessa metodologia considera-se também o contexto em que a comunicação (em nosso caso as

54 canções e poemas) se expressa. Os múltiplos significados são considerados e articulados com este contexto onde foram produzidos. Desde forma os aspectos subjetivos estiveram presentes em nossa análise como pano de fundo em todo o processo de interpretação e na construção dos sentidos e significados. Destacamos o que nos fala Boff (2008): O ser humano cria continuamente sentidos e inventa símbolos. Não se contenta com os fatos. Neles discerne valores e significados. Escuta as coisas que são sempre mais que coisas porque se transformam em indicações de mensagens a serem decodificadas. (p. 150).

Segundo Sahlins (1979), a razão simbólica ou significativa toma como qualidade distintiva do ser humano não o fato dele viver num mundo material, circunstância que compartilha com todos os organismos, mas o fato dele viver num mundo significativo criado por ele próprio, qualidade que torna a humanidade única. Nosso trabalho constitui-se de uma pesquisa basicamente bibliográfica. Apesar de nos interessar compreender relações entre indivíduos e suas casas – e isso exige uma aproximação com as pessoas – por questões operacionais de meios para essa aproximação e mesmo de tempo para um verdadeiro mergulho na realidade das pessoas e de suas casas, neste trabalho, como já dito, buscamos um atalho, valendo-nos das obras de artistas – as canções e poemas – tentamos chegar mais próximo das sensibilidades humanas e assim de sua subjetividade. Foi neste espaço invisível mas profundo da imaterialidade das coisas; dos sentidos, símbolos, sentimentos e sonhos, tão bem traduzidos nas canções e poemas que buscamos encontrar – ainda que de maneira breve – uma visão ou relance do conceito de casa e de lar. Assim, partimos em busca de canções e poemas que apresentavam como tema a casa ou o habitar. Não precisamos de muito tempo para notar que além das canções e poemas, muitos filmes também apresentavam a casa como tema central ou pano de fundo – sem o qual toda a trama perderia o sentido – de histórias que, a princípio sem grande impacto, mas, levando-se em consideração a questão do habitar, ganham novos contornos. Assim, fizemos uma breve incursão sobre o universo cinematográfico para trazer alguns elementos para nossa análise. Contudo, nosso foco principal foi o de analisar as canções e os poemas – o que já demandou enorme esforço – uma vez que a linguagem do cinema é sobremodo particular e exigiria um aprofundamento muito maior sobre esse universo.

55 Nosso método de trabalho consistiu em articular texto e contexto social, partindo de uma reflexão sobre como a poesia e a música, na forma de canção, se articulam na sociedade e suas funções sociais, a fim de ver como no texto poético – seja musical ou textual – o conceito de casa é representado e/ou construído. Isso significa que nossa abordagem pressupõe ler o poema e a canção em estudo à luz do conceito de representação social, mas sempre privilegiando, sobretudo o texto poético. A partir de uma perspectiva de estudo que compreende a relação entre literatura e sociedade, analisamos as nossas fontes procurando identificar que concepções sobre a casa e o lar são apresentados. Quais as ideias-força que estão presentes na construção poética e como a casa – ou o lugar entendido como tal – são representados ou expressos. A construção e análise dos dados se deram de forma qualitativa na perspectiva interpretativa das ciências, nas quais, os atos humanos, assim como seus discursos, constroem e carregam significados que tecem os tecidos da história, da sociedade e das pessoas. O paradigma qualitativo busca interpretar o fenômeno que observa. Seus principais objetivos são: a observação; a descrição; a compreensão e o significado. Segundo Teixeira (2009), a pesquisa qualitativa busca compreender a relação entre o fenômeno e a essência, ou seja, entre o fenômeno vivido e aquele que vivencia esse fenômeno. Segundo Oliveira, 2005: A pesquisa qualitativa pode ser caracterizada como sendo uma tentativa de se explicar em profundidade o significado e as características do resultado das informações obtidas através de entrevistas ou questões abertas, sem mensuração quantitativa de características ou comportamento [...] No entanto, é preciso entender quer as abordagens quantitativas e qualitativas não são excludentes e até diríamos que elas se complementam visto que existem fatos que são do domínio quantitativo e outros de domínio qualitativo. (p.166).

Cremos que esteja clara, nesta altura do texto, o porquê de nossa opção por uma pesquisa analítica de cunho qualitativo. Porém não é muito esclarecer que essa escolha se justifica pela busca em deixar o objeto falar de si e por si. Procuramos deixar que a nossa relação com nosso objeto de estudo em que nos debruçamos reverbere sentidos múltiplos. Há que dizer que o método pelo qual pretendemos empreender nossas análises é um método que permite ao observador ser afetado pelo objeto estudado.

Capítulo III

Casa: Memória... Identidade... Promessa

57 4. ANÁLISE DOS DADOS E RESULTADOS Vive aberta a porta da casa / Ninguém entra para furtar. Por que se fecharia a casa? / Quem se lembra de furtar? Pois se há vida na casa, a porta / Há de estar, como a vida, aberta. Só se fecha mesmo a porta / Para quedar, ao sonho, aberta. (Carlos Drummond de Andrade – A Porta da Rua, In: Boitempo, 2006, p. 101).

Não é de hoje que se multiplicam até a exaustão os estudos e narrativas sobre as cidades. Seminários, instalações e intervenções proliferam sobre o espaço urbano. Não chega a ser surpreendente e se faz até necessário, uma vez que a cidade se tornou um espaço privilegiado. Mas nesse ambiente cabe perguntar qual o destino da casa. A casa já rendeu muito romances, por vezes apresentada com leveza e cheia de delicadezas, por vezes de forma impessoal, povoada pela solidão. A casa sempre exerceu um enorme fascínio para literatos, poetas e artistas em geral. Inúmeras canções e poesias falam sobre o lar, seus encantos ou a dor da perda. Cantam os sonhos de encontrar um lugar para repousar ou a eterna nostalgia e desejo de regresso à casa de infância. O cinema também é rico em exemplos de tramas em que a casa ocupa lugar de destaque. Seja uma casa amaldiçoada que tanto povoa e atemoriza o imaginário, seja a casa como locus central da trama ou mesmo como o personagem principal. Desde a Antiguidade podemos encontrar referências sobre a casa e o morar. Desde o fogo sagrado dos gregos e romanos – que já mencionamos – que simbolizavam os deuses dos lares7, que figuravam o centro da vida doméstica e até mesmo o próprio sentido de casa, até nossos dias, onde a moradia perde antigos e ganha novos contornos e funções, fruto das mudanças culturais, o sentido primevo da casa mantem-se – ainda que sob diferentes estruturas e com certas transformações – intrínseco na subjetividade humana. Um dos primeiros intelectuais brasileiros a voltar à atenção para a importância da casa na estruturação da sociedade brasileira foi Gilberto Freyre. Em sua obra “Oh de Casa!” de 1979, faz uma síntese das suas descobertas em torno da casa brasileira e de sua projeção sobre um tipo nacional de homem. Nesta obra, Freyre afirma que a relação daquele que estuda a casa é semelhante a do psicanalista, quando estuda a relação do homem com o útero materno. De certa forma, ao analisarmos a casa estamos estudando também a subjetividade humana e, em última instância, analisando nós mesmos.

7

Daí provem os termos, lar e lareira.

58 Em um país cujo desenvolvimento urbano resultou no atendimento desigual do direito à habitação, chama à atenção a frequência com que os temas da moradia precária e do desabrigo aparecem, por exemplo, na música popular brasileira ao longo do século XX. De O Orvalho Vem Caindo, de Noel Rosa (1934), à Saudosa Maloca, de Adoniran Barbosa (1957), passando por Ave-maria no Morro, de Herivelto Martins (1942), pululam na memória de nosso cancioneiro as imagens dos barracões de zinco, “sem telhado, sem pintura”, das portas de barraco sem trinco, da cama reduzida à folha de jornal, da “tauba” caindo e doendo no coração da população pobre, empurrada para a periferia dos grandes centros urbanos. Independentemente do tipo de arte ou do modelo que se desenha da casa, seu sentido último e mais profundo pode ser percebido, não menos pelo discurso que se faz da casa do que pela própria recorrência do tema nas obras ao longo dos tempos. Através das diferentes culturas, a casa foi cantada e poetizada, geração após geração, sempre manifestando um papel central, um fascínio ou mesmo um sentido de respeito e até mesmo veneração. A casa é, para todos um símbolo marcado na alma e nas mentes. Buscando evitar estender demais o texto, focaremos apenas alguns exemplos de como a casa – em suas diferentes dimensões ou sentidos – foi retratada e como essa ideia-força encontra-se gravada de maneira profunda no imaginário humano. Na poesia brasileira encontramos diversas obras que tem a casa como tema. Um exemplo é o livro Corpo, Novos Poemas, Publicado em 1984, e que é um dos grandes livros da última fase de Carlos Drummond de Andrade. Na verdade, trata-se de sua última coletânea de poemas que publicou em vida. Nessa obra, o poeta de Itabira nos traz uma obra fortemente voltada para as questões urbanas, a exemplo de uma suíte de poemas inteiramente dedicada à favela com o título de Favelário Nacional, publicada em Corpo (1984). Numa rápida folheada pela obra drummondiana encontramos vários poemas que abordam, de modo mais ou menos direto, a construção civil, a memória das casas, o convívio e o isolamento em edifícios, o diálogo entre habitação e paisagem, entre outros temas e motivos. Lembramos de “Construção” e “A rua diferente” (de Alguma Poesia, 1930); “Privilégio do mar” e “Noturno à janela do apartamento” (de Sentimento do Mundo, 1940), “Edifício Esplendor” (de José, 1942), “Edifício São Borja” (de A Rosa do Povo, 1945), “Opaco”, “Morte das casas de Ouro Preto” (de Claro Enigma, 1951), “Domicílio” (de Fazendeiro do Ar, 1955), “A um hotel em demolição” (de A Vida Passada a Limpo, 1959), “O mar, no living”, “Aspectos de uma casa” (de As Impurezas

59 no Branco, 1973) e de vários poemas da série Boitempo. Claro que se trata de uma lista grosseira, pois muitos desses poemas tratam também de outros temas, alheios à questão habitacional (a qual, por seu turno, pode aparecer em poemas sobre outros assuntos). Especificamente em relação a “Favelário Nacional”, o poema chama a atenção pela diversidade de perspectivas que reúne, com observações agudas sobre a paisagem, a arquitetura, os topônimos, os confrontos entre a cidade legal e a ilegal, os dilemas entre remoção e urbanização da favela, a fome, o lixo, a morte etc. Nesta obra, Drummond confessava sua impossibilidade de identificação com o destino dos favelados. Também apresenta sua frustração e a perda de sua fé no poder redentor da poesia. Entretanto, o título do livro – O Corpo, rico em significados, lança luz sobre os vários corpos habitados por todos nós: este físico e mortal que carregamos desde o nascimento, o corpo sensual, sensorial e afetivo, e o corpo geográfico e urbano. A própria casa pode ser entendida como um corpo. Assim, não à toa, na obra drummondiana, há desde poemas sobre relações amorosas até observações sobre o “corpo” de nossas cidades. Ainda podemos encontrar outros exemplos de poetas que voltaram seu olhar para essa questão. É o caso de Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto e outros autores canônicos. Encontramos muitos poemas sobre a pobreza em que o morar desempenha importante papel. Em nossa análise, tratamos as obras em conjunto sem, necessariamente, diferenciá-las ou separar em categorias. O que serviu de fio condutor foi tão somente, a forma como a casa é representada/simbolizada nessas obras. Assim, não foi feita uma classificação ou distinção dos poemas e canções nem tampouco algum recorte temporal. A abordagem que buscamos foi focar mais no conceito de casa apresentada e menos na forma como esse conceito é mostrado. As diferentes canções e poemas foram analisados por meio de uma leitura crítica que também buscou, sempre que possível, focar as nuances históricas de sua produção. Como já esclarecemos, preferimos transcrever as canções e poemas e sua totalidade, tanto em respeito ao autor e a sua obra, como em respeito ao leitor que, assim terá a liberdade de, a partir das leituras, seguir sua própria reflexão. Acreditamos que assim, possibilitamos um diálogo tanto mais rico quanto mais dinâmico.

60 4.1 A Casa Cantada e Encantada Há um sono de pessoas e pequenos animais capturados, inofensivos, suspensos, protegidos pelo cimento, espreitados pelo vento, um sono solidário, tão puro!, que a casa perde seu caráter hostil e também ela boia na noite, grande flor muda que, ao primeiro grito se despetala. (Carlos Drummond Andrade – esboços de uma casa).

Como apontamos antes, o espaço da casa não é produzido apenas por objetos materiais e, por isso, não pode ser tomado exclusivamente por seus caracteres objetivos. Há toda uma dimensão subjetiva, produzida por fluxos imateriais que constituem igualmente a casa. Vai desde as “matérias menos densas” como os cheiros, as temperaturas, as cores, os sons até os imaginários que se sobrepõem à configuração arquitetônica. A casa possui um encanto para quem nela mora. Uma casa de fazenda, com varanda, pomar, janelas grandes e escancaradas, paredes com reboco desmanchando, rede de dormir armada, cheiro de comida em forno de lenha, cheiro de esterco de cavalo, barulho das galinhas no poleiro, isso tudo e muito mais se imbrica no imaginário. Construímos essa ideia de casa e do rural historicamente de tal maneira que podemos experimentar subjetivamente essa casa mesmo não estando nela. Quando falamos da sensibilidade acerca do lar, em essência, estamos nos referindo ao imaginário que está presente na alma humana. Para tratar dessas sensibilidades podemos recorrer a quem lida diretamente com esse nosso lado. Estamos falando dos poetas e artistas. As criações artísticas são uma manifestação/materialização das sensibilidades, sonhos e desejos humanos. Cantores e poetas possuem a capacidade de transformar palavras e sons aquilo que se encontra no mais profundo da alma humana. Assim, no ano de 1980, chegava ao público uma canção que rapidamente se tornaria uma das canções infantis mais repetidas. De autoria de Vinícius de Morais em parceria com Toquinho, A Casa, com uma letra simples, bem ao estilo da dupla, descrevia uma casa que simplesmente não existia. Ao menos não em uma forma concreta. Era uma casa muito engraçada / Não tinha teto, não tinha nada. / Ninguém podia dormir na rede / Porque na casa não tinha parede. / Ninguém podia entrar nela não, / Porque na casa não tinha chão. / Ninguém podia fazer pipi, / Porque banheiro não tinha ali. / Mas era feita com muito esmero, / Na rua dos bobos, número zero. (Vinícius e Toquinho, Polygran, 1980)

61 Diz a canção que nesta moradia, as mais diferentes e simples atividades do cotidiano e da vida doméstica são impraticáveis pela ausência daquilo que dá forma concreta a uma casa, ou seja, paredes, teto e outros elementos construtivos que nos veem à mente quando mencionamos o termo casa. Entretanto, a canção finaliza com uma expressão que remete a outra dimensão do morar: o cuidado com que esta casa foi feita. “Com muito esmero.” Nos deparamos, aqui, com a dimensão subjetiva do afeto que é fundamental para a construção daquilo que conhecemos como lar. Ao habitarmos, tomamos o ponto específico em que nos inserimos como nosso “ponto zero”, ou seja, como nossa referência em relação ao espaço mais amplo (BOLLNOW, 1969). Temos nossa própria rua dos bobos, número zero. Nosso espaço do afeto, para além do espaço do abrigo. A dupla de compositores coloca, na canção, que esta casa é visível apenas para os bobos. Aqueles que não enxergam o mundo com a mesma sagacidade que se consideraria normal pelas demais pessoas. Essa expressão logo nos traz a mente outra obra, dessa vez um poema, de Clarice Lispector: Das Vantagens de Ser Bobo, publicado no livro A Descoberta do Mundo (1999). Em seu poema lemos: “[...] O bobo tem oportunidade de ver coisas que os espertos não veem [...]”. É essa a ideia de bobo que estaria presente na composição de Toquinho e Vinícius. Um bobo capaz de ver além do que outras pessoas conseguem. Capaz de enxergar uma casa além de suas paredes ou da ausência delas. Capaz de adentrar os espaços subjetivos do afeto. Podemos começar a perceber com a ajuda dessas obras aquilo que muitas vezes passa despercebido num primeiro olhar (os poetas geralmente tem essa capacidade de nos mostrar uma realidade para além da realidade). Enxergar uma casa é mais do que observar suas paredes e estruturas arquitetônicas. Perceber uma casa é enxergar o que existe além dos seus blocos, tijolos e vigas. Experienciar a casa é sentir o esmero com que foi feita e entender sua dimensão subjetiva para aqueles que a habitam. Não foi à toa que estas obras focalizaram o espaço da moradia – sua forma, formação, constituição, significados e usos – para retratar a sociedade ou o momento específico de uma sociedade – seja ela real ou ficcional. Por meio de uma leitura da obra de Freyre, Leitão (2009), faz uma análise sobre a formação, usos e significados dos espaços privados a partir da relação destes com o espaço público. Em sua obra, Quando o Ambiente É Hostil, a autora defende a tese que nossos espaços públicos não exercem a

62 sua função de locais de convivência e interação, de lazer e troca, onde o contato com o outro pode se dá, possibilitando a real experiência de viver a cidade. Antes, nossos espaços de uso coletivo apresentam-se como perigosos e pouco atrativos, sendo o lugar do medo do outro, da hostilidade. Servindo meramente como lugares de passagem e de trânsito. Para a autora, o caráter desses espaços públicos é fruto da relação entre a casa e a rua no período da constituição da sociedade canavieira – principalmente no nordeste do Brasil, mas não exclusivamente – onde todo privilégio e importância eram dados à primeira, enquanto a segunda era renegada como espaço inferior destinado aos escravos, estranhos, pobres e rejeitados. O que se explicita aqui é que a compreensão dos processos de desenvolvimento, nascimento e morte das cidades, as dinâmicas de formação e reprodução do espaço urbano, podem e devem ser analisadas tanto numa perspectiva macro – numa análise das conjunturas regionais, nacionais e internacionais – como numa perspectiva micro – numa dimensão local – mas também – e talvez aqui tenhamos um vislumbre de novidade – numa perspectiva nanométrica, ou seja, uma análise das relações dos indivíduos com os espaços citadinos, com seus espaços de intimidade e suas interações com sua casa. Para tornar mais clara essas ideias, basta observarmos algumas dessas obras artísticas que têm como tema a casa ou lar. Talvez uma das obras mais conhecidas de nossa MPB, de autoria de Adoniram Barbosa, a canção Saudosa Maloca e suas diversas versões, sendo a mais conhecida, provavelmente, a versão gravada pelo conjunto Demônios da Garoa. Com uma poesia singela e emblemática, essa obra narra o lamento de quem perde seu lugar no mundo, sua “saudosa maloca” mas que mesmo assim, continua sua vida, buscando seu lugar de reconhecimento. E para isso, carregando consigo a memória de sua antiga morada que, mesmo sendo humilde, foi onde se passaram “os dias felizes” da vida. Se o senhor não “tá” lembrado, dá licença de contar / Que aqui onde agora está esse edifício “arto” / era uma casa “véia”, um palacete assobradado. / Foi aqui, seu moço, que eu, Mato Grosso e o Joca, construímos nossa maloca. / Mas um dia, nós nem pode se “alembrá”, veio os “homi” com as ferramenta: o dono “mandô” derrubar. / “Peguemo” todas nossas coisas e fomos “pro” meio da rua/ apreciar a demolição. / Que tristeza que nós sentia. Cada “táuba” que caia doía no coração. / Mato Grosso quis gritar mas em cima eu falei: os “homi” tá com a razão, nós arranja outro lugar. / Só se “conformemo” quando o Joca falou: / Deus dá o frio conforme o cobertor. / E hoje nós pega palha nas grama do jardim / E pra se “esquecê” nós “cantemo” assim: / Saudosa maloca; maloca querida / “dim dim donde” nós “passemo” / dias feliz das nossas vidas. (Adoniran Barbosa, Odeon, 1957).

63 Nessa canção encontramos elementos interessantes, pois ao mesmo tempo em que registra o valor e os laços afetivos da moradia, onde se passam os dias felizes e onde há o reconhecimento de si, também retrata uma realidade forte e dura, a perda da moradia e a expulsão de seu lugar de abrigo e de afeto. Outro exemplo da ideia da casa como lugar de reconhecimento e afeto está na canção Lá Onde Moro (1970) da dupla Tião Carreiro e Pardinho. Nesta canção podemos perceber valores e símbolos que estão associados não somente ao lugar/casa mas também à própria ideia de vida plena. Lá onde eu moro, é um recanto encoberto, /mas parece um céu aberto, / cheio de tanta beleza! / lá onde eu moro, minha vida é mais vida, / a paisagem colorida / pela própria natureza! Lá onde eu moro, quem desejar conhecer, / eu ensino com prazer, / com toda satisfação! / a minha casa não é lá muito bonita, / mais quem me fizer visita, / eu recebo de coração! Lá onde eu moro, é cercado de arvoredo, / o sol se esconde mais cedo, / demora surgir o luar. / constantemente, corre água cristalina / lá no alto da colina- / como é lindo a gente olhar! Lá onde eu moro, a gente não fica triste- / tristeza lá não existe, embora seja um recanto! / lá onde eu moro, é mesmo um paraíso / nos lábios só tem sorriso, / nos olhos não se vê pranto. Lá onde eu moro, quando é madrugada, / gorjeia a passarada, prenúncio de um novo dia: / o xororó pia triste na queimada, ao longe, lá na invernada, / a codorninha assobia. Por nada troco meu pedacinho de terra, / minha casa ao pé da serra, / meu campo vestido em flor! / chão abençoado, recanto dos passarinhos- / onde eu moro é um ninho / de paz, ternura e amor! (Luíz de Castro/Tião Carreiro, Warner Music, 1970).

É perceptível, na construção poética dessa canção, a relação estabelecida entre a natureza – sempre como um lugar idílico, um paraíso perdido – e a casa como espaços sinônimos ou, no mínimo, complementares. Seguindo essa mesma inclinação, encontramos outro clássico do samba de composição de Candeia e imortalizada pelo consagrado cantor e compositor Cartola. Na canção Preciso Me Encontrar – canção composta por Candeia a pedido jornalista e escritor Juarez Barroso em 1976 – embora não seja mencionado o termo casa, encontramos nitidamente retratada a eterna busca pelo lugar de reconhecimento e identificação. O lugar das raízes e do afeto que é apresentado como um espaço de natureza bela e preservada onde, enfim, encontra-se o sossego a paz e o conforto. Vou por aí a procurar, / Rir pra não chorar. / Deixe-me ir preciso andar, / Vou por aí a procurar, / Rir pra não chorar. / Quero assistir o sol nascer, / Ver as águas dos rios correr, / Ouvir os pássaros cantar, / Eu quero nascer quero viver.../ Deixe-me ir preciso andar, / Vou por aí a procurar, / Rir pra não chorar. / Se alguém por mim perguntar, / Diga que eu só vou voltar, / Depois que eu me encontrar... / Quero assistir o sol nascer, / Ver as águas dos rios

64 correr, / Ouvir os pássaros cantar, / Eu quero nascer quero viver... / Deixe-me ir preciso andar, / Vou por aí a procurar, / Rir pra não chorar. / Deixe-me ir preciso andar, / Vou por aí a procurar, / Rir pra não chorar. (CANDEIA, 1976, Marcos Pereira).

Um fato curioso sobre essa canção é que quando foi composta, Candeia encontrava-se em uma cadeira de rodas – resultado de uma briga em que se envolveu – e, ao apresentar seus versos ao seu amigo Cartola – que imortalizou a obra com sua voz – foi surpreendido com o comentário a respeito dos primeiros versos da obra: “preciso andar”, questionando como seu amigo, agora paralítico, começava uma canção dizendo que precisa andar. Não deixa de ser emblemático este fato, uma vez que a canção é um lamento e um desejo por algo que se deseja com todas as forças e que está perdido – uma perda irrecuperável, como já comentamos – onde o compositor revela seu desejo íntimo de se encontrar, mas também de poder andar e correr. O verso central desse samba é o que diz “se alguém por mim perguntar, diga que eu só vou voltar depois que me encontrar”. Essa afirmação mostra que há na composição a questão implícita do “quem sou?”. A busca pela identidade que só pode ser encontrada em um lugar idealizado ou no paraíso perdido. Podemos dizer que este lugar trata-se da casa. Mesmo que não seja real ou concreta. Uma casa perdida mas que deve ser buscada. Essa busca é evidenciada no trecho “Sair por aí” procurando encontrar algo, ou encontrar a si mesmo, como explicita o próprio título da canção. Não foi apenas no samba que a busca pelo lugar no mundo foi cantada. Também no rock nacional, esse anseio pelo lugar de reconhecimento e satisfação serviu de inspiração. Depois do insucesso da campanha pelas Diretas Já, em meio a um clima de poucas certezas onde o regime militar vivia seus momentos finais, surgem inúmeras bandas de rock pop com clara influência de artistas estrangeiros. É neste cenário que Renato Russo e a Legião Urbana surgem lançando seu primeiro álbum em 1985. (Bandas como Ultraje a Rigor e Ira também lançariam seus primeiros álbuns nesse mesmo ano). Com o disco As Quatro Estações de 1989, a Legião Urbana virou a maior banda de rock do Brasil e Renato Russo passou a ser ídolo máximo de toda uma geração. Este álbum é considerado por fãs e críticos como o melhor e mais inspirado trabalho do grupo. Também foi o mais vendido. Neste disco podemos ver textos de Camões, a filosofia de Rousseau e textos bíblicos e budistas. A poesia de Renato

65 chegava ao auge da forma e se tornava ainda mais precisa sobre os problemas do seu tempo. Também é nesse trabalho da banda que encontramos um dos maiores sucessos do grupo e também um dos mais controversos. Mais do que polêmica, o canção Meninos e Meninas, desde o seu lançamento tem sido interpretada de diferentes maneiras. Não entraremos na questão mais discutida pelos fãs e diversos analistas da obra de Renato Russo que é a expressão da bissexualidade na canção. O próprio Renato Russo chegou a mencionar em entrevista que a canção trata da sua fase de adolescência, quando ele tinha doze anos de idade. Aqui vamos nos ater aos trechos sobre a busca por um lugar de reconhecimento. A busca de si mesmo. Quero me encontrar, mas não sei onde estou / Vem comigo procurar algum / lugar mais calmo / Longe dessa confusão e dessa gente que não se respeita / Tenho quase certeza que eu não sou daqui. Acho que gosto de São Paulo / Gosto de São João / Gosto de São Francisco e São Sebastião / E eu gosto de meninos e meninas. Vai ver que é assim mesmo e vai ser assim pra sempre / Vai ficando complicado e ao mesmo tempo diferente / Estou cansado de bater e ninguém abrir / Você me deixou sentindo tanto frio / Não sei mais o que dizer. Te fiz comida, velei teu sono / Fui teu amigo, te levei comigo / E me diz: pra mim o que é que ficou? Me deixa ver como viver é bom / Não é a vida como está, e sim as coisas / como são / Você não quis tentar me ajudar / Então, a culpa é de quem? A culpa é de quem? Eu canto em português errado / Acho que o imperfeito não participa do / passado /Troco as pessoas / Troco os pronomes Preciso de oxigênio, preciso ter amigos / Preciso ter dinheiro, preciso de / carinho / Acho que te amava, agora acho que te odeio / São tudo pequenas coisas e tudo deve passar Acho que gosto de São Paulo /E gosto de São João / Gosto de São Francisco e São Sebastião / E eu gosto de meninos e meninas. (RUSSO, 1989, EMI).

Assim como no samba de Candeia, o rock pop de Renato Russo expressa a mesma angústia de encontrar um lugar no mundo. “Preciso me encontrar, mas não sei onde estou”. Logo nos primeiros versos da canção, já pode-se perceber o espírito préadolescente que não consegue se encaixar em nada, que não se identifica com ninguém. O poeta quer se encontrar, quer ter certeza de quem é, mas não sabe onde está, nem dentro de si, nem socialmente. Os versos “estou cansado de bater e ninguém abrir. Você me deixou sentindo tanto frio” se tornam emblemáticos quando nos mostra o anseio por adentrar um mundo interno – a casa – para se proteger do frio e dos perigos do mundo externo. É poético e extremamente simbólico.

66 As atividades cotidianas e íntimas que se realizam no interior da casa também são cantados nos versos “te fiz comida. Velei teu sono”; assim como as relações afetivas tão próprias do meio familiar: “fui teu amigo”. Vemos, ainda que implicitamente, a ideia de lar presente na canção. Renato Russo ainda coloca o quanto o objeto dessa busca é fundamental para sua vida. “Preciso de oxigênio, preciso ter amigos. Preciso ter dinheiro, preciso de carinho”. Vemos aqui tanto as necessidades mais objetivas: “oxigênio” e “dinheiro”, quanto os anseios subjetivos: “amigos” e “carinho”. A casa seria o lugar capaz de suprir, ainda que simbolicamente, essa procura. Essa busca pelo lugar de origem ou a terra natal é um tema bastante recorrente na literatura a exemplo do poema Canção do Exílio de Gonçalves Dias. "Minha terra tem palmeiras, / Onde canta o Sabiá; / As aves que aqui gorjeiam, / Não gorjeiam como lá. / Nosso céu tem mais estrelas, / Nossas várzeas têm mais flores, / Nossos bosques têm mais vida, / Nossa vida mais amores. / Em cismar, / sozinho, à noite, / Mais prazer encontro eu lá; / Minha terra tem palmeiras, / Onde canta o Sabiá. / Minha terra tem primores, / Que tais não encontro eu cá; / Em cismar - sozinho, à noite - / Mais prazer encontro eu lá; / Minha terra tem palmeiras, / Onde canta o Sabiá. / Não permita Deus que eu morra, / Sem que eu volte para lá; / Sem que desfrute os primores / Que não encontro por cá; / Sem que ainda aviste as palmeiras, / Onde canta o Sabiá." (DIAS, 1843)

O exílio e o sofrimento advindo da separação da terra natal é um tema tão antigo quanto a humanidade. Até nas Escrituras Sagradas encontramos referências que atestam como a partida força e a perda repentina do lar – ou casa – deixa marcas profundas em nós e em nossa subjetividade. O lamento do povo de Israel é entoado pelos que seguiram cativos para a Babilônia nos dá uma ideia dessas marcas. Junto aos rios da Babilônia nos assentamos e choramos, lembrando-nos de Sião. Nos salgueiros, que há no meio dela, penduramos as nossas harpas. Porquanto aqueles que nos levaram cativos, nos pediram uma canção; e os que nos destruíram, que os alegrássemos, dizendo: cantai-nos um dos cânticos de Sião. Mas como entoaremos o cântico do Senhor em terra estranho? Se eu me esquecer de ti, ó Jerusalém, esqueça-se a minha destra da sua destreza. Apegue-se-me a língua ao paladar, se me não lembrar de ti, se não preferir Jerusalém à minha maior alegria. (Salmos 136: 1-6)

Assim como o lamento pelo exílio foi entoado na forma de salmos, o regresso do povo de Israel também mereceu cânticos, dessa vez de alegria: Quando o Senhor trouxe de cativeiro os que voltaram à Sião, estávamos como os que sonham. Então a nossa boca se encheu de riso e a nossa língua de cânticos; então se dizia entre as nações; grandes coisas fez o Senhor por estes. Grandes coisas fez o Senhor por nós, e por isso estamos alegres. (Salmos 126: 1-3).

67 Talvez a mais famosa – mas não a única – das história sobre o retorno seja a epopeia de Ulisses (Odisseu) no conto Odisseia, onde o herói enfrenta os mais diversos perigos numa viagem de dez anos para regressar à sua tão amada Ítaca, onde sua esposa e filho o aguardam. Esses exemplos revelam o quanto a ideia de casa é fundamental e está presente em nosso imaginário sustentando e reforçando nossas crenças. A crença da casa como nosso lugar no mundo (BACHELARD, 2008), nosso lar e, ainda mais do que isso, como parte de nós mesmos. Tanto é assim que em muitos textos clássicos o termo casa é usado como sinônimo de “homem”. Em outros é usada para designar origem ou família. Quando o personagem bíblico Josué exige dos israelitas, que saíram do Egito em busca da Terra Prometida, uma decisão ele declara: “Escolhei hoje a quem sirvais [...] porém eu e minha casa serviremos ao Senhor”8. Também temos o termo casa para indicar lugares sagrados: a casa de Deus (LEITÃO, 2007), ou lugares além da nossa existência: o túmulo é a casa eterna ou a última morada. No filme A Casa Adormecida9, baseado na obra de Stephen King, logo no início é apresentada nas legendas a frase: “A casa é o corpo que colocamos sobre o nosso próprio corpo”. Podemos dizer que o que acontece na casa, acontece conosco. Segundo Bachelard (2008), a casa é um ser antropomorfo, semelhante ao ser humano, onde o sótão é a memória, onde ficam guardadas as lembranças, as coisas antigas e vividas. A casa, nesse sentido, seria um espaço de identificação dos seus moradores. Um local de enraizamento e de memória daqueles que a habitam. Um exemplo claro desse enraizamento é apresentado no filme curta-metragem A Casa em Pequenos Cubinhos10 de 2008, do cineasta Kunio Kato. No filme é contada a história de um senhor que, hoje, solitário, não abandona sua casa que fica em uma região que está sendo inundada. Conforme a água inunda, o idoso constrói com tijolos mais um nível em sua casa. Assim os andares de baixo vão ficando submersos, caindo no esquecimento. Um dia seu cachimbo favorito cai na água e, para recuperar um objeto perdido, o senhor faz um mergulho nos cômodos antigos de sua casa. É um mergulho em suas memórias. Essa busca acaba por se tornar em uma viagem por suas lembranças. 8

Josué, 24:15, Bíblia Sagrada. Antigo e Novo Testamento. Tradução de João Ferreira de Almeida. 2ª ed. revista e corrigida. Sociedade Bíblica do Brasil. 9 Rose Red. 10 Tsumiki no ie, Disponível no Youtube:. Acessado em 5 jun. de 2015 .

68 O personagem vai revivendo a história dele, de sua família e da casa. Um reencontro com os momentos vividos em sua casa e uma ressignificação de sua própria condição. É um encontro consigo mesmo. O encontro que foi cantando por Cartola no samba de Candeia. Esse aspecto e essa dimensão subjetiva da casa; essa função de espaço de memória e de identidade; são mais perceptíveis nas casas mais antigas que fazem parte de nosso imaginário como a “casa da avó/avô”, casa que representa e guarda a memória e tradição familiar. É a casa a guardiã das histórias familiares. Ao falarmos de memória precisamos compreender que esse termo não se refere a uma reconstituição do passado em nossa mente. Ela é mais uma reconstrução que é continuamente atualizada (CANDAU, 2012). Essa atualização se dá sempre a partir do presente. A memória nos dá a ideia que o que passou não está perdido para sempre e pode ser acessível por meio das lembranças. Ainda segundo Candau (2012), “a memória, ao mesmo tempo em que nos modela, é também por nós modelada”. Identidade e memória estão, dessa forma, ligados de forma indissociável. Segundo Bachelard, [...] é graças à casa que um grande número de nossas lembranças estão guardadas e se a casa se complica um pouco, se tem porão e sótão, cantos e corredores, nossas lembranças têm refúgios cada vez mais bem caracterizados. Voltamos a eles durante toda a vida em nossos devaneios. (BACHELARD, 2008, p.24).

Diante das grandes e aceleradas mudanças que veem se desenrolando na cidade (e que são alvo de acalorados debates) cada vez mais se torna necessária a existência de um espaço onde as lembranças possam ser preservadas e estejam acessíveis para nós. Assim, a despeito das transformações do desenho urbano, a casa configura-se como um espaço de permanência. Da porta para dentro as mudanças e os ritmos da cidade são percebidos de forma particular. O espaço da casa é, em certo sentido, mais emocional do que pragmático. Ao tratarmos de formação da identidade, não podemos perder de vista que se trata de um processo complexo e envolto pela cultura, uma vez que ocorre ao longo da trajetória humana. A constituição da identidade não se dá apenas numa idade específica. Podemos então falar de uma identidade psicossocial, social e historicamente construída. Trata-se de um movimento complexo que envolve uma multiplicidade de fatores,

69 variáveis, situações, histórias, relações e pessoas. Portanto, para se conhecer a identidade de alguém, é preciso conhecer o histórico, o caminho, os sentidos e os significados que sustentam tal identidade. Estes, Segundo Gomes (2000), podem ser acessados por meio da linguagem. E não podemos imaginar um espaço mais privilegiado do que a casa para se perceber tais histórias e relações. Weston (2002), nos fala que a casa continua a ser a unidade essencial do ambiente humano construído. E, as várias formas como o espaço da casa pode ser estruturado e organizado passa a representar o modo como o habitar doméstico é praticado. Entender essa relação entre a casa e os seus habitantes pode revelar os mecanismos e estratégias usadas na construção do habitar e da própria identidade desses moradores. De acordo com Camargo (2010), a casa física, considerada na concretude de sua matéria e na configuração física dessa materialidade, carrega o sentido de proteção. Implica também a interação entre os aspectos físicos e os subjetivos, ou seja, a memória e as emoções do indivíduo. Assim, a casa atua como repositório da memória e da identidade do indivíduo. Ela é a porta por onde entramos em nossas lembranças para nos encontrarmos e por onde retornamos à nossa “Ítaca”. 4.2 Os Três Tempos da Casa Contar é muito, muito dificultoso. Não pelos anos que já se passaram. Mas pela astúcias que têm certas coisas passadas – de fazer balancê, de se remexerem dos lugares. O que eu falei foi exato? Foi. Mas teria sido? Agora, acho que nem não. São tantas horas de pessoas, tantas coisas em tempos, tudo miúdo, recruzado. “– Você tem saudade do seu tempo de menino, Riobaldo?” – ele me perguntou quando eu estava explicando o que era o meu sentir. Nem não. Tinha saudade nenhuma. O que eu queria era ser menino, mas agora, naquela hora, seu pudesse possível. Por certo que eu já estava crespo da confusão de todos. (Guimarães Rosa - Grande Sertão: veredas, 1956).

Os conceitos de tempo e de espaço fazem parte do conhecimento humano desde a era mais primitiva. Gregos, egípcios e babilônicos já refletiam sobre eles. Percebiam o tempo e as modificações que ocorriam em seu espaço habitado observando as interações com o meio ambiente. Hoje, diversas áreas das ciências estudam o espaço e o tempo. As mais recentes teorias sobre esses dois termos acabaram desfazendo a concepção newtoniana que vigorava desde o século XVII e que via o espaço e o tempo como algo absoluto. Após a apresentação da Teoria da Relatividade de Albert Einstein tempo e espaço passaram a ser vistos não mais como absolutos. Eles estão na verdade

70 intimamente ligados e são na verdade relativos. Hoje entende-se que tempo e espaço podem ser percebidos de forma diversa e de maneira subjetiva. Essas observações são interessantes e nos servem para entendermos como os homens tentam formular neles mesmos a noção de espaço e como eles procuram notar que essa noção se faz como uma referência para sua existência e de sua vivência subjetiva. Heidegger (2005) já propunha a ligação entre espaço e lugar. Este autor considera o espaço como fundamental para a vida psíquica do indivíduo. Este autor chama a atenção para a importância da ação de habitar, pois é por meio dela que se faz a relação do homem com o espaço. Bollnow (2008) nos diz que essa ação de habitar objetiva a construção de um espaço de referência. Assim, esse espaço de habitação está intimamente ligado à casa. Quando nos debruçamos nas obras artísticas que trazem a casa – ou o sentido de lar – como tema, podemos notar que este conceito se mostra numa perspectiva afetiva-temporal. Assim como o espaço torna-se lugar conforme atribuímos sentidos a ele, o tempo adquire novos matizes de acordo com o sentimento que lhe é atribuído. Podemos perceber assim, três tempos onde a casa é experienciada. Uma casa pode estar no tempo passado, apresentando-se como uma memória carregada de nostalgia. Ela também pode ser vista em um tempo futuro, como uma casa que é desejada, planejada e sonhada. Figura assim, como uma promessa ou um desejo de conquista. A casa ainda pode estar no presente. Sendo o reflexo do que é vivido ou sentido. A casa no presente é, portanto, a casa da experiência. Os tempos Presente, Passado e Futuro não seguem uma linha sequencial vindo do passado em direção ao futuro, tendo o presente apenas como uma passagem, antes esse fluxo é marcado por idas e vindas, seguindo tanto para frente como para trás, eles não são estanques nem podem ser separados sem se perder seu sentido. Assim, as diferentes concepções da casa também não se mostram isoladas e independentes, tampouco seguem uma corrente ou fluxo de desenvolvimento. Tal como o passado e o futuro se relacionam – não como causa e consequência, mas como inter-relacionados – a casa memória e a casa promessa não estão isoladas. Tanto uma como a outra, se mesclam, assim como o presente se volta para o passado e lhe atribui sentidos.

71 Nas palavras de Freyre (1979), Que o arquiteto como urbanista, como educadores, como sociólogos, precisam pensar no tempo tríbio: o tempo que funde passado, presente e futuro num só tempo fluente e confluente (FREYRE, 1979, p. 38).

Nos poemas e canções que nos propusemos a analisar, pudemos ver claramente essas relações e representações. Estando sempre presentes como ideias-força sobre a casa, os sentimentos de nostalgia, perda, saudade, desamparo, assim como esperança, desejo, realização, também as ideias de intimidade, conforto e identidade norteavam o sentido de casa e de lar. 4.2.1. Casa do Passado como lugar de aconchego: Memória da casa O senhor tem saudades de Itabira ainda hoje? Tenho uma profunda saudade e digo mesmo: no fundo, continuo morando em Itabira, através das minhas raízes e, sobretudo, através dos meus pais e dos meus irmãos, todos nascidos lá e todos já falecidos. É uma herança atávica profunda que não posso esquecer. (Entrevista de Drummond a Geneton Moraes Neto, em Dossiê Drummond, p. 62).

A temática do exílio e da saudade apresenta uma dimensão de universalidade, pois não se conhece praticamente nenhuma literatura que, numa época ou noutra, em poesia ou em prosa, não tenha tido a sua expressão. A literatura universal, desde os seus primórdios, dá um lugar de destaque ao sentimento de perda e saudade. Cantando temas como ausência e partida. Já mencionamos o lamento do povo de Israel cantado nos Salmos11 e a famosa canção do exílio de Gonçalves Dias12. Também já comentamos sobre o sentimento de perda na concepção freudiana que está na origem do desejo e também do impulso criativo que move o ser humano e o leva a criar. O arquiteto polonês Witold Rybczynsky (1943), refletindo sobre o que a ideia de nostalgia, vai nos dizer que; [...] esta forte consciência da tradição é um fenômeno moderno que reflete um desejo por hábitos e rotinas em um mundo caracterizado por mudanças e inovações constantes. A reverência ao passado se tornou tão forte que quando as tradições não existem elas frequentemente são inventadas. (RYBCZYNSKY, 1943, p. 23).

O autor ainda questiona se este desejo por uma tradição seria um anacronismo ou um reflexo de uma insatisfação mais profunda. Afinal o que nos fascina tanto no passado que estamos sempre a buscar? 11

Ver páginas 67.

12

Idem.

72 Novamente notamos aqui a mesma ideia de perda e busca por proteção que estaria na origem da concepção de casa. Freyre (1979) também registra que: A relação do homem com a casa é para o analista desse aspecto com complexo quase que o que é a relação do homem com o ventre materno, o ventre gerador, o abrigo do útero, para o psicanalista. (FREYRE, 1979, p. 36).

Lembramos o que nos diz Bachelard (2008), ao se referir a casa: A casa não vive somente no dia-a-dia, no curso de uma história, na narrativa de nossa história. Pelos sonhos, as diversas moradas de nossa vida se interpenetram e guardam os tesouros dos dias antigos. Quando na nova casa, retornamos as lembranças da infância [...] lembranças de proteção. [...] as lembranças do mundo exterior nunca há de ter a mesma tonalidade das lembranças da casa. Evocando lembranças da casa, adicionamos valores e sonho. Nunca somos verdadeiros historiadores; somos sempre um pouco poetas, e nossa emoção talvez não expresse mais que a poesia perdida. (BACHELARD, 2008, pp. 25-26).

Podemos ver essas tonalidades vívidas que a casa possui em nossas lembranças analisando a canção A Casa Amarela de Ivete Sangalo (2008): Papai pintou / A casa de amarelo / A frente toda / Parece um castelo / Lá no jardim / Anão e cogumelo / Mamãe achou legal / E até discreto. /Ah, foi um sonho / um, que sonhei / Ah, foi um sonho / Me tratavam / Como um rei. / Lá do meu quarto / Dá pra ver / Os girassóis / Lá da varanda / Grandes portas / De cristais. / Mamãe vestida / De rainha / E de condão / Papai valente / Enfrentando / O dragão. (SANGALO, 2008. Universal Music).

Vemos na composição deste álbum infantil, fruto da parceria da cantora Ivete Sangalo e Saulo Fernandes, como elementos da realidade infantil são apresentados mesclados com fantasias. O universo colorido simbolizado pelo amarelo da casa nos passa a intensidade da lembrança e da afetividade sentida pela casa. A mãe mostrada como rainha e o pai como o corajoso herói; o jardim enfeitado com cogumelos e girassóis; a casa é o castelo e abrigo contra o dragão – os perigos do mundo externo. Um sonho tão vívido que não deixa dúvida do quanto essa casa onírica está entranhada na memória afetiva e é percebida como o lugar de segurança e aconchego para onde se deseja voltar. Possivelmente o exemplo mais belo de canções sobre a casa perdida de nossa MPB é Casinha Pequenina13. Esta canção é considerada por muitos musicólogos como a primeira manifestação popular musical tipicamente brasileira. Mario de Andrade,

13

Atribuída a autor desconhecido, a "Casinha Pequenina" teve a origem pesquisada pelo musicólogo Vicente Sales, que acredita ser seu criador o paraense Bernardino Belém de Souza. Outra autoria possível, mas não comprovada, seria a dos atores Leopoldo Fróes e Pedro Augusto em 1902.

73 estudioso da cultura brasileira, publicou em sua obra Modinhas imperiais. "Casinha Pequenina". Segundo o historiador Mozart de Araújo (1964), a modinha brasileira se diferencia das canções de outros povos pelo seu conteúdo de lirismo, de ternura e de saudade. Mario de Andrade definiu: "Modinha é um suspiro de amor". Em 1929 o cantor e compositor Paraguassu, nome artístico de Roque Ricciardi, gravou Casinha Pequenina com arranjos de sua autoria. Foi gravada posteriormente por diversos artistas, sendo a versão de Nara Leão (1975) a mais conhecida. Tu não te lembras da casinha pequenina / Onde o nosso amor nasceu? / Tu não te lembras da casinha pequenina / Onde o nosso amor nasceu? / Tinha um coqueiro do lado / Que coitado de saudade /Já morreu! / Tinha um / coqueiro do lado / Que coitado de saudade / Já morreu! / Tu não te lembras das juras e perjuras / Que fizeste com fervor? / Tu não te lembras das juras e perjuras / Que fizeste com fervor? / Daquele beijo demorado, prolongado Que selou / O nosso amor? / Daquele beijo demorado, prolongado /Que selou / O nosso amor? (LEÃO, 1975, Philips).

Sem dúvida ao ouvir essa canção é impossível não se comover e sentir vividamente todo o sentimento de saudade que o compositor certamente vivenciava ao compor essa poesia. Nos identificamos de imediato com toda a carga afetiva e somos de certa forma levados à casinha pequenina, tão solitária mas recheada de lembranças. Cada canto dessa pequena casa carrega recordações e o questionamento, quase um apelo, se essa lembrança ainda vive no outro – o amado – nos chega como um lamento. Na “casinha pequenina”, lugar onde nasce o amor, onde foram feitas “juras de amor”, com tanto fervor que ficaram para sempre marcados na memória afetiva. Agora é apenas uma casinha que guarda as lembranças. Última testemunha da história de amor pois, até mesmo o “coqueiro do lado” já não existe mais, tendo sucumbido à saudade. No filme Casinha Pequenina (1963), Amâcio Mazzaropi canta uma composição também carregada do mesmo sentimento. Em A Dor da Saudade, vemos um questionamento carregado de lamento sobre a universalidade desse sentimento de falta. A dor da saudade / Quem é que não tem / Olhando o passado / Quem é que não sente / Saudade de alguém. Da pequena casinha / Da luz do luar / Do vento manhoso / Soprando do mar A dor da saudade / Quem é que não tem / Olhando o passado / Quem é que não sente / Saudade de alguém. E até das mentiras /Que fazem sonhar / De alguém que se foi / Pra não mais voltar. / A dor da saudade / Quem é que não tem / Olhando o passado / Quem é que não sente / Saudade de alguém. Vá embora saudade / Da minha casinha / Que eu quero bem. (MAZZAROPI, 1968).

74 Afinal, quem pode olhar para seu passado sem sentir a falta de alguém ou de algo? Vemos o quanto esse sentimento faz parte de todos. A casa que se manifesta às nossas memórias e que nos traz tantos sentimentos; a casa nostálgica da infância ou de fases felizes da nossas vidas não é necessariamente uma casa física – quase nunca o é – ela é muito mais uma casa onírica que existe em nossas lembranças e é carregada de fantasias e afetos. Lembramos dela oniricamente. Atribuímos valor e sentimentos e assim essa casa é bem mais uma construção de nossa afetividade – nosso mundo subjetivo – do que uma casa objetiva concreta. Não significa que esta casa concreta não exista. Pode ser a casa onde moramos na infância. A casa de nossos avós onde passamos as férias escolares. Pode ser a rua onde crescemos e experienciamos nossos primeiro contatos sociais quando fizemos os primeiros amigos. Essa casa pode ser até mesmo a cidade natal que por imposições da vida fomos forçados a deixar para trás. Assim como Gonçalves Dias cantou sua saudade da terra “onde gorjeia o sabiá”, muitos outros artistas fizeram de sua saudade inspiração para obras poéticas que são testemunhos de suas dores pessoas, mas que tem também um pouco de cada um de nós. É o caso da composição de Belmote e Amaraí, de 1966, intitulada Saudade da Minha Terra. Em 1966, Belmonte, nome artístico de Pascoal Zanetti Toradelli, conheceu Domingos Amaraí Sabino da Cunha, mais conhecido como Amaraí. Juntos gravaram o sucesso Saudade da Minha Terra no álbum de mesmo nome. Escrita em homenagem a sua terra natal – Barra Bonita, São Paulo, com acordes melodiosos e uma letra que retrata e enaltece a vida simples do campo, essa composição acaba se tornando uma das maiores expressões da música sertaneja. Lemos em seus versos: De que me adianta viver na cidade / Se a felicidade não me acompanhar / Adeus paulistinha do meu coração / Lá pro meu sertão eu quero voltar / Ver a madrugada quando a passarada / Fazendo alvorada começa a cantar / Com satisfação, arreio o burrão / Cortando o estradão, saio a galopar / E vou escutando o gado berrando / Sabiá cantando no jequitibá. Por Nossa Senhora, meu sertão querido / Vivo arrependido por ter te deixado Esta nova vida aqui na cidade / De tanta saudade eu tenho chorado Aqui tem alguém, diz que me quer bem / Mas não me convém, eu tenho / pensado / Eu vivo com pena, mas esta morena / Não sabe o sistema que eu / fui criado / Tô aqui cantando, de longe escutando / Alguém está chorando com o rádio ligado. Que saudade imensa do campo e do mato / Do manso regato que corta a campina / Aos domingo eu ia passear de canoa / Nas lindas lagoas de águas cristalinas / Que doce lembrança daquelas festanças / Onde tinha danças e lindas meninas / Eu vivo hoje em dia sem ter alegria / O mundo judia mas também ensina / Estou contrariado, mas não derrotado / Eu sou bem guiado pelas mãos divinas.

75 Prá minha mãezinha já telegrafei / Que já me cansei de tanto sofrer / Nesta madrugada estarei de partida / Prá terra querida que me viu nascer / Já ouço sonhando o galo cantando / O inhambu piando no escurecer / A lua prateada clareando as estradas / A relva molhada desde o anoitecer / Eu preciso ir pra ver tudo ali / Foi lá que nasci, lá quero morrer. (BELMONTE; AMARAÍ, 1966, MP Music).

O canto de saudade da terra natal é também a anúncio do retorno às origens. Depois de experimentar a vida na cidade grande e sofrer todos os tormentos devido a não adaptação a essa realidade urbana, o poeta decide regressar à vida no campo. É um reencontro com a verdadeira felicidade que não pode ser alcançada longe de casa. Longe da casa primeira. Simbolicamente essa casa primeira também é cantada como a figura materna no último verso onde se lê “pra minha mãe já telegrafei”. Não foi a mais ninguém que foi feito o anúncio do regresso, mas à mãe. Casa, terra natal e mãe, seriam a representações do mesmo objeto de desejo. O arrependimento por deixar o “sertão querido”, a saudade do “campo e do mato” são manifestações da falta do lar. Esse desejo exige o regresso imediato: “nesta madruga estarei partido”. Não há mais tempo a perder. A contrariedade da cidade não é a uma derrota. No lugar de nascimento é onde se deseja morrer. Poeta paraibano, arquiteto de formação, Jessiê Quirino também vai cantar o regresso ao lar. Em sua composição Voltando pro Nordeste, o autor, com um espírito bem mais leve e alegre, vai entoar versos de esperança e satisfação no caminho de volta para sua terra natal. Seu motorista, siga pro nordeste / Que eu sou cabra da peste, quero ver o meu xodó / Mas na carreira, não passe de uma centena, / Ligue o rádio, puxe a antena, / Sintonize num forró. Daqui pra frente são três dias de viagem, / Eu já to vendo miragem. É a saudade matadeira / Sinto o balanço da minha rede amarela, / Quando o carro na banguela embiloca na ladeira / Nesse balanço eu sinto cheiro de cachaça, / De rolinha com fumaça, cheiro quente de beiju / Ouço o ciscado do frango de capoeira, / Dos pinto na piadeira, / Mugido de boi-zebu. Eu tô sentindo cheiro azedo de "goiabada", / Cheiro bom de tripa assada subindo do fogareiro / Escuto o berro da "oveia" desgarrada, / Chocaiado da boiada, / Aboio do boiadeiro, / Escuto o choro dos meninos arengando, / Só tem doze se criando e a tudim eu quero bem / Não vejo a hora de chegar naquela sala / De abrir a minha mala, distribuir os terém. Seu motorista, lá no fim desse asfalto / O senhor pare que eu salto / Que minha goela deu um nó / Tá vendo aquela dentro daquela rede amarela? / Adivinhe quem é ela / Ela é o meu xodó. (QUIRINO, 2006).

Considerado um artista que preenche a lacuna deixada pelos menestréis do pensamento popular nordestino, Jessiê Quirino atrai público e crítica pelo seu estilo singular. Com influências de poetas populares como Zé da Luz, e Zé Laurentino, mas

76 também de poetas mais clássicos como Manuel de Barros, Acenso Ferreira e Guimarães Rosa, Jessiê mescla o lirismo poemas e causos sempre tendo como universo a imagem do nordeste. Em Voltando pro Nordeste, vemos a alegria do retorno cantada de forma ritmada onde o viajante já sente os prazeres de sua terra antes mesmo de sua chegada. É a esperança do reencontro com seu “xodó” e de todas as belezas de sua terra que animam e impulsionam. Mais que a dor ou o arrependimento da partida, nem a frustração de não se adaptar a vida urbana, é o amor pela sua terra e a vontade de provar novamente a “cachaça” e o “beiju” que animam o viagem no balaço da estrada, comparado ao ritmo do forró. É o desejo de deitar novamente na rede e sentir os odores do sertão que já produz a visão do seu lugar; de sua casa. Saindo um pouco dos espaços rurais – matuto e caipira – nos voltamos agora para o território mais urbano. No Rio de Janeiro do início do século XX, temos o surgimento de um novo estilo musical que hoje é um típico gênero nacional. A ascensão do samba na música popular brasileira, a partir da década de 1920, teve em José Barbosa da Silva, conhecido e eternizado como Sinhô, um dos seus grandes pilares. Manuel Bandeira, em Crônicas da província do Brasil (2006), assim escreveu: "[...] o que há de mais povo e de mais carioca tinha em Sinhô a sua personificação mais típica, mais genuína e mais profunda". Foi o compositor mais popular da segunda década do século XX. Certamente Sinhô foi um dos mais populares compositores de samba das primeiras décadas do século passado. José Barbosa da Silva nasceu no ano em que o Brasil, oficialmente, acabou com o regime de escravidão e também cresceu na era republicana. Dois acontecimentos políticos e sociais que, sem dúvidas, impulsionaram a consolidação da música brasileira. Até os primeiros anos do século XX, o samba permanecia restrito às camadas populares, às áreas pobres do Rio. Sinhô, já na segunda década do século XX, se tornou um dos criadores e divulgadores do gênero nascido da mistura com a música tocada pelos migrantes afro-baianos que ocuparam o Rio de Janeiro. Participando dessas rodas de samba, que ainda cultivam as características lúdico-religiosas dos descendentes de negros africanos, Sinhô buscou inspiração para compor muitos de seus sambas. Além de importante figura na história do teatro musicado do Rio de Janeiro, Sinhô foi um grande cronista da vida urbana e política da capital do país, teve o mérito de estabelecer a ponte entre a cultura popular e as classes média e alta da sociedade carioca. O trânsito que o compositor tinha nas altas rodas da sociedade carioca também

77 foi de muita utilidade para popularizar o samba entre as pessoas que ainda mantinham na música europeia suas referências. Segundo Bandeira (2006), "Ele era o traço mais expressivo ligando os poetas, os artistas, a sociedade fina e culta às camadas profundas da ralé urbana. Daí a fascinação que despertava em toda a gente quando levado a um salão". A história de Sinhô também está ligada a história do urbanismo do Rio de Janeiro. Contratado pelo prefeito Prado Júnior, o urbanista francês Alfred Agache elaborou, em 1927, um extenso plano de remodelação da cidade do Rio de Janeiro, que incluía a demolição do morro da Providência, situado próximo da zona portuária da cidade. Muito discutido pela imprensa da época, o projeto inspiraria o samba "A Favela Vai Abaixo". Conta-se que os moradores em pânico protestaram e recorreram ao sambista que procurou o ministro de estado para interceder junto ao prefeito. O ministro, conhecedor da sua fama de bom sambista, lhe disse para oficializar o pedido através de um samba. Foi aí que Sinhô cantou os versos: Minha cabocla, a Favela vai abaixo / Quanta saudade tu terás deste torrão / Da casinha pequenina de madeira / que nos enche de carinho o coração. Que saudades ao nos lembrarmos das promessas / que fizemos / constantemente na capela / Pra que Deus nunca deixe de olhar / por nós da malandragem e pelo morro da Favela / Vê agora a ingratidão da humanidade / E o poder da flor sumítica, amarela /que sem brilho vive pela cidade / impondo o desabrigo ao nosso povo da Favela. Minha cabocla, a Favela vai abaixo / Arruma as "troxa", vamo embora pro Bangú / Buraco Quente, adeus pra sempre meu Buraco / Eu só te esqueço no buraco do Caju. Isto deve ser despeito dessa gente / porque o samba não se passa para ela / Porque lá o luar é diferente / Não é como o luar que se vê desta Favela / No Estácio, Querosene ou no Salgueiro / meu mulato não te espero na janela / Vou morar lá na Cidade Nova / pra voltar meu coração para o morro da Favela. (ALVES, 1999, Cedar).

Qual foi o real valor desses versos para impedir a demolição dos barracos é difícil dizer. Contudo o morro da Providência permaneceu. A Semelhança de Saudosa Maloca de Adoniram Barbosa, esta canção retrata o conflito existente na cidade pelo direito à moradia. Ainda em um contexto histórico que pouco se discutia sobre as questões, uma como está é emblemática. A saudade que sentirá da favela com a sua demolição, a perda do lugar e da casa, é retratada aqui juntamente com a crítica quanto ao preconceito existente com relação à população desses locais. A falta de apresso pelo samba nascente é atribuída ao não conhecimento dos encantos que existem no morro.

78 Consagrado ao deus Apolo e às musas – divindades ligadas às artes e à poesia – o monte Parnaso na Grécia foi a inspiração para o movimento literário conhecido como Parnasianismo. Caracterizado pelo respeito às regras de versificação e pelo preciosismo, opondo-se ao romantismo e tendo origem na França por volta de 1850, chega ao Brasil timidamente já nos anos de 1880, tendo como um de seus primeiros representantes Luiz Caetano Pereira Guimarães Júnior, mais conhecido por Luís Guimarães Júnior. Contemporâneo de Machado de Assis – fundador do Realismo no Brasil – publicou em 1880 o livro Sonetos e Rimas – obra inaugural do Parnasianismo em terras brasileiras. Nesta obra encontramos o soneto Visita à Casa Paterna. Como a ave que volta ao ninho antigo / Depois de um longo e tenebroso inverno. / eu quis também rever o lar paterno, / O meu primeiro e virginal abrigo. Entrei. Um Gênio carinhos e amigo, / O fantasma talvez do amor materno, / Tomou-me as mãos, olhou-me grave e terno, / E, passo a passo, caminhou comigo. Era esta a sala... (Oh! Se me lembro! E quanto!) / Em que da luz noturna à claridade / Minhas irmãs e minha mãe... O pranto Jorrou-me em ondas... Resistir quem há-de? / Uma ilusão gemia em cada canto, / Chorava em cada canto uma saudade. (GUIMARÃES, 2010, p. 33)

De inspiração claramente autobiográfica, o poema canta a volta às origens e nele vemos novamente a figura materna. O espaço de morar é retratado como o seio materno. Um espaço sagrado de saudades e memórias. A não ser pela partícula “Lar paterno” – além do título do soneto – a figura do pai não se faz presente. O pai é o pater famílias, proprietário da casa, representando toda a carga simbólica do patrimonialismo colonial presente na formação social do Brasil. O espaço da casa é reservado ao feminino: “Minhas irmãs e minha mãe”. Cumpre lembrar que o tema da casa na obra de Guimarães Júnior surge como uma exceção no contexto do Parnasianismo brasileiro que, com seu rigor formal e preciosismo; sua busca pelo classicismo e objetividade se opunha ao sentimentalismo e subjetivismo dos românticos. Esse mesmo desinteresse vai perdurar na produção do Simbolismo, que mais preocupado com valorização das manifestações metafísicas e espirituais, buscando atingir o etéreo, distanciou-se do mundo real e não viu na casa um tema de valor lírico. Somente com o Modernismo a materialidade do espaço de morar seria visto como fonte de inspiração poética. É nesse contexto que surgem as obras de Drummond – que já mencionamos – Manuel Bandeira e Mário de Andrade.

79 Poeta de alma e ofício, Drummond era mineiro de Itabira: “por isso sou triste, orgulhoso: de ferro”, confessou no poema Confidência do Itabirano (2003). Segundo José Guilherme Merquior (1976), o livro José (1942) marca, na obra de Drummond, um momento de modernização estilística. Neste livro, encontramos o poema Viagem na Família que para Merquior (idem), constitui o primeiro grande voo do lirismo em Drummond. No deserto de Itabira / a sombra de meu pai / tomou-me pela mão. / Tanto tempo perdido. / Porém nada dizia. / Não era dia nem noite. / Suspiro? Voo de pássaro? / Porém nada dizia. Longamente caminhamos. / Aqui havia uma casa. / A montanha era maior. / Tantos mortos amontoados, / o tempo roendo os mortos. / E nas casas em ruína, / desprezo frio, umidade. / Porém nada dizia. A rua que atravessava / a cavalo, de galope. / Seu relógio. Sua roupa. / Seus papéis de circunstância. / Suas histórias de amor. / Há um abrir de baús / e de lembranças violentas. / Porém nada dizia. No deserto de Itabira / as coisas voltam a existir, / irrespiráveis e súbitas. / O mercado de desejos / expõe seus tristes tesouros: / meu anseio de fugir; / mulheres nuas; remorso; / Porém nada dizia. Pisando livros e cartas, / viajamos na família. / Casamentos; hipotecas; / os primos tuberculosos; / a tia louca; minha avó / traída com as escravas, / rangendo sedas na alcova. / Porém nada dizia. Que cruel, obscuro instinto / movia sua mão pálida / sutilmente nos empurrando / pelo tempo e pelos lugares / defendidos? / Olhei-o nos olhos brancos. / Gritei-lhe: Fala! Minha voz / vibrou no ar um momento, / bateu nas pedras. A sombra / prosseguia devagar / aquela viagem patética / através do reino perdido. / Porém nada dizia. Vi mágoa, incompreensão / e mais de uma velha revolta / a dividir-nos no escuro. / A mão que não quis beijar, / o prato que me negaram, / recusa em pedir perdão. / Orgulho. Terror noturno. / Porém nada dizia. Fala fala fala fala. / Puxava pelo casaco / que se desfazia em barro. / Pelas mãos, pelas botinas / prendia a sombra severa / e a sombra se desprendia / sem fuga nem reação. / Porém ficava calada. / E eram distintos silêncios / que se entranhavam no seu. Era meu avô já surdo / querendo escutar as aves / pintadas no céu da igreja; / a minha falta de amigos; / a sua falta de beijos; / eram nossas difíceis vidas / e uma grande separação / na pequena área do quarto. A pequena área da vida / me aperta contra seu vulto, / e nesse abraço diáfano / é como se eu me queimasse / todo, de pungente amor. / Só hoje nos conhecermos! / Óculos, memórias, retratos / fluem no rio do sangue. / As águas já não permitem / distinguir seu rosto longe, / para lá de setenta anos... Senti que me perdoava / porém nada dizia. As águas cobrem o bigode, / a família, Itabira, tudo. (ANDRADE, 2003).

Aqui, o poeta mineiro, apresenta o espaço doméstico como o espaço familiar, absolutamente inseparável da memória de Itabira, da figura do pai, da mãe e da infância. A casa também aparece como um cenário onde se desenrola o teatro da existência criados pelo poeta. São apresentados acontecimentos da vida social e natural: nascimentos, separações e morte. Assim o poeta, mediante a imagem desse lugar-casaambiente, cria a experiência de estar-se no mundo. Drummond, por meio desse espaço,

80 nega a presentificação, quebrando a percepção linear do tempo. Espaço e tempo são sujeitos de uma experiência poética. Com um belo exemplo de intertextualidade, Jessiê Quirino, por meio de uma paródia do famoso poema Vou-me Embora pra Pasárgada, de Manuel Bandeira, faz um jogo com a ideia de tempo e espaço no seu poema Vou-me Embora Pro Passado. Vou-me embora pro passado / Lá sou amigo do rei / Lá tem coisas "daqui, ó!" / Roy Rogers, Buc Jones / Rock Lane, Dóris Day / Vou-me embora pro passado. Vou-me embora pro passado / Porque lá, é outro astral / Lá tem carros Vemaguet / Jeep Willes, Maverick / Tem Gordine, tem Buick / Tem Candango e tem Rural. Lá dançarei Twist / Hully-Gully, Iê-iê-iê / Lá é uma brasa mora! / Só você vendo / pra crê / Assistirei Rim Tim Tim / Ou mesmo Jinne é um Gênio / Vestirei calças de Nycron / Faroeste ou Durabem / Tecidos sanforizados / Tergal, Percal e Banlon / Verei lances de anágua / Combinação, califon / Escutarei Al Di Lá / Dominiqui Niqui Niqui / Me fartarei de Grapette / Na farra dos piqueniques / Vou-me embora pro passado. No passado tem Jerônimo / Aquele Herói do Sertão / Tem Coronel Ludugero / Com Otrope em discussão / Tem passeio de Lambreta / De Vespa, de Berlineta / Marinete e Lotação. Quando toca Pata Pata / Cantam a versão musical / "Tá Com a Pulga na Cueca" / E dançam a música sapeca / Ô Papa Hum Mau Mau / Tem a turma prafrentex / Cantando Banho de Lua / Tem bundeira e piniqueira / Dando sopa pela rua / Vou-me embora pro passado. Vou-me embora pro passado / Que o passado é bom demais! / Lá tem meninas "quebrando" / Ao cruzar com um rapaz / Elas cheiram a Pó de Arroz / Da Cachemere Bouquet / Coty ou Royal Briar / Colocam Rouge e Laquê English Lavanda Atkinsons / Ou Helena Rubinstein / Saem de saia plissada Ou de vestido Tubinho / Com jeitinho encabulado / Flertando bem de fininho. E lá no cinema Rex / Se vê broto a namorar / De mão dada com o guri / Com vestido de organdi / Com gola de tafetá. Os homens lá do passado / Só andam tudo tinindo / De linho Diagonal / Camisas Lunfor, a tal / Sapato Clark de cromo / Ou Passo-Doble esportivo / Ou Fox do bico fino / De camisas Volta ao Mundo / Caneta Shafers no bolso / Ou Parker 51 / Só cheirando a Áqua Velva / A sabonete Gessy / Ou Lifebouy, Eucalol / E junto com o espelhinho / Pente Pantera ou Flamengo / E uma trunfinha no quengo / Cintilante como o sol. Vou-me embora pro passado / Lá tem tudo que há de bom! / Os mais velhos inda usam / Sapatos branco e marrom / E chapéu de aba larga / Ramenzone ou Cury Luxo / Ouvindo Besame Mucho / Solfejando a meio tom. No passado é outra história! / Outra civilização... / Tem Alvarenga e Ranchinho / Tem Jararaca e Ratinho / Aprontando a gozação / Tem assustado à Vermuth / Ao som de Valdir Calmon / Tem Long-Play da Mocambo / Mas Rosenblit é o bom / Tem Albertinho Limonta / Tem também Mamãe Dolores / Marcelino Pão e Vinho / Tem Bat Masterson, tem Lesse / Túnel do Tempo, tem Zorro / Não se vê tantos horrores. Lá no passado tem corso / Lança perfume Rodouro / Geladeira Kelvinator / Tem rádio com olho mágico / ABC a voz de ouro / Se ouve Carlos Galhardo / Em Audições Musicais / Piano ao cair da tarde / Cancioneiro de Sucesso / Tem também Repórter Esso / Com notícias atuais. Tem petisqueiro e bufê / Junto à mesa de jantar / Tem bisqüit e bibelô / Tem louça de toda cor / Bule de ágata, alguidar / Se brinca de cabra cega / De

81 drama, de garrafão / Camoniboi, balinheira / De rolimã na ladeira / De rasteira e de pinhão. Lá, também tem radiola / De madeira e baquelita / Lá se faz caligrafia / Pra modelar a escrita / Se estuda a tabuada / De Teobaldo Miranda / Ou na Cartilha do Povo / Lendo Vovô Viu o Ovo / E a palmatória é quem manda. Tem na revista O Cruzeiro / A beleza feminina / Tem misse botando banca / Com seu maiô de elanca / O famoso Catalina / Tem cigarros Yolanda / Continental e Astória / Tem o Conga Sete Vidas / Tem brilhantina Glostora / Escovas Tek, Frisante / Relógio Eterna Matic / Com 24 rubis / Pontual a toda hora. Se ouve página sonora / Na voz de Ângela Maria / "— Será que sou feia? / — Não é não senhor! / — Então eu sou linda? / — Você é um amor!..." / Quando não / querem a paquera / Mulheres falam: "Passando, / Que é pra não enganchar!" / "Achou ruim dê um jeitim!" / "Pise na flor e amasse!" / E AI e POFE! e quizila / Mas o homem não cochila / Passa o pano com o olhar / Se ela toma Postafen / Que é pra bunda aumentar / Ele empina o polegar / Faz sinal de "tudo X" / E sai dizendo "Ô Maré! / Todo boy, mancando o pé / Insistindo em conquistar. No passado tem remédio / Pra quando se precisar / Lá tem Doutor de família / Que tem prazer de curar / Lá tem Água Rubinat / Mel Poejo e Asmapan / Bromil e Capivarol / Arnica, Phimatosan / Regulador Xavier / Tem Saúde da Mulher / Tem Aguardente Alemã / Tem também Capiloton / Pentid e Terebentina / Xarope de Limão Brabo / Pílulas de Vida do Dr. Ross / Tem também aqui pra nós / Uma tal Robusterina /A saúde feminina. Vou-me embora pro passado / Pra não viver sufocado / Pra não morrer poluído / Pra não morar enjaulado / Lá não se vê violência / Nem droga nem tanto mau. / Não se vê tanto barulho / Nem asfalto nem entulho / No passado é outro astral Se eu tiver qualquer saudade / Escreverei pro presente / E quando eu estiver cansado / Da jornada, do batente / Terei uma cama Patente / Daquelas do selo azul /Num quarto calmo e seguro / Onde ali descansarei / Lá sou amigo do rei Lá, tem muito mais futuro /Vou-me embora pro passado. (QUIRINO, 2011).

Ao tratar o tempo como um lugar geográfico para onde deseja ir e onde se pode ser mais feliz, o Jessiê Quirino, deixa patente o anseio que tem pelo retorno não a uma casa ou cidade, mas a um estado de plena satisfação. É no passado onde as coisas são mais verdadeiras e belas. Onde a simplicidade e a tranquilidade ditam o ritmo da vida. Onde as relações sociais e afetivas são mais ternas. Já mencionamos o significado da palavra Othonom14. É interessante que também é o título da breve crônica de Noemi Tamas (2012): É domingo de manhã e eu pergunto ao meu pai como vai a vida dele. Minha vida vai muito bem minha filha, muito bem, mas eu quero ir pra casa, chega de férias. Tem um lugar no seu carro? Hesito, nem sei o que responder. Tem sim pai, você me ensina o caminho? Ele para, pensa, e me diz: infelizmente eu não posso lhe ajudar minha filha, porque eu nunca estive aqui. Estamos sentados na sala de jantar da casa em que ele vive há pelo menos 30 anos. Embora rodeado por objetos absolutamente familiares e reconhecidos como tal, ele não se sente em casa. Talvez anseie pela casa da infância, ou a memória amálgama afetiva de todos os lugares casa que o acolheram. Não sei, mas ele tem insistido que neste hotel, ele não quer ficar mais. (TAMAS, 2012). 14

Em húngaro a palavra Othonom quer dizer minha casa, o meu lar, a minha terra, o meu país.

82 Esse breve e singelo relato – certamente de uma experiência real vivida pela autora – nos mostra uma situação comovente. O pai não reconhece mais a casa onde mora, embora viva a mais de 30 anos no mesmo lugar. Na verdade, em suas memórias, anseia pela casa da primeira infância. Seu lugar pueril e onde encontram-se as lembranças mais doces e sua vida. É para lá que deseja regressar, mas não sabe o caminho. Não lembra como chegou no “quarto de hotel” em que se transformou a casa onde mora. Em que momento de sua vida a casa deixou de ser o seu lar, certamente não saberá responder. Agora ele já não encontra mais seu lugar no mundo. Voltamos então a lembrar o que nos diz Freud sobre origem dos desejos. O anseio pelo abrigo que perdemos no nascimento é o que nos faz construir um passado idealizado onde éramos mais felizes, onde estávamos mais seguros. Onde podíamos ser nós mesmos. Assim, projetamos nesse passado onírico nossa casa; mais ainda, fazemos desse passado nossa morada perdida, nosso paraíso perdido. Para onde sonhamos ardentemente regressar. 4.2.2. Casa do Presente como lugar de intimidade: Vivendo a casa. A arquitetura como construir portas, / de abrir; ou como construir o aberto; construir, não como ilhar e prender, / nem construir como fechar secretos; construir portas abertas, em portas; / casas exclusivamente portas e teto. O arquiteto: o que abre para o homem / (tudo se sanearia desde casas abertas) portas por-onde, jamais portas-contra; / por onde, livres: ar luz razão certa. Até que, tantos livres o amedrontando, / renegou dar a viver no claro e aberto. / Onde vãos de abrir, ele foi amurando / opacos de fechar; onde vidro, concreto; / até fechar o homem: na capela útero, / com confortos de matriz, outra vez feto. (João Cabral de Melo Neto – Fábula de Um Arquiteto, 1975).

Em 1986, Donald Woods Winnicott, publica um livro que já pelo seu título nos chama a atenção: Tudo Começa em Casa15. Os artigos reunidos nessa coletânea demonstram a convicção de Winnicott de que a estrutura da sociedade reflete a natureza do indivíduo e da família. Médico pediatra e psicanalista infantil, trabalhou durante a 2ª Guerra Mundial com crianças separadas de seus pais e de suas casas. Nesse trabalho pôde constatar a importância do brincar e dos primeiros anos de vida na construção da identidade pessoal. Boa parte dos conceitos da teoria Winnicottiana se refere ao "desenvolvimento emocional primitivo", cujos efeitos, segundo ele, são de importância

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Título original: Home Is Where We Start From. Ganhou uma versão em português em 1989, pela editora Martins Fontes.

83 crucial para o indivíduo por se estenderem para além da infância. Ele desenvolve o conceito de "mãe suficientemente boa". O título da obra winnicottiana – Tudo começa em casa –, é bastante sugestivo e nos leva a pensar em uma possível aproximação entre as preocupações teóricas do psicanalista inglês e aquelas que ocuparam o filósofo francês Gaston Bachelard que concede um papel central à casa em suas reflexões sobre o espaço. Se, para Bachelard (2008), a casa é analisada enquanto um espaço que, por excelência, cria as raízes do homem no mundo, para Winnicott (1983) a casa é o lugar onde o mundo do ser humano se inicia. Outro conceito desenvolvido por Winnicott é do "objeto transicional" (WINNICOTT, 1983; 1985), representado classicamente pelo “cobertorzinho” a que muitos pequenos se agarram numa determinada fase. "Esse objeto é ao mesmo tempo uma coisa objetiva – existe num mundo compartilhado – e subjetiva – para seu dono, ele faz parte de uma fantasia, possui vida própria". A nossa casa é recheada desses objetos e ela própria pode ser entendida como tal. Assim, não seria ousado afirmar que ambos os autores – Winnicott por meio da psicanálise e Bachelard, por meio da fenomenologia – pensam a casa como um espaço fundamental para a formação do ser humano e sua constituição enquanto indivíduo. As palavras do próprio Bachelard (2008) não nos deixam dúvida quanto a essa conexão: Com efeito, a casa é, à primeira vista, um objeto rigidamente geométrico. Somos tentados a analisá-la racionalmente. Sua realidade inicial é visível e tangível. É feita de sólidos bem talhados, de vigas bem encaixadas. A linha reta predomina. O fio de prumo deixou-lhe a marca de sua sabedoria, de seu equilíbrio. Tal objeto geométrico deveria resistir a metáforas que acolhem o corpo humano, a alma humana. Mas a transposição para o humano ocorre de imediato, assim que encaramos a casa como um espaço de conforto e intimidade, como um espaço que deve condensar e defender a intimidade. Abre-se então, fora de toda racionalidade, o campo do onirismo. (BACHELARD, 2008, p. 64).

Ao escolher a casa como local constitutivo do ser, Bachelard reafirma a importância do espaço para pensar os fundamentos da existência humana. A casa é uma das maiores forças de integração para os pensamentos, as lembranças e os sonhos do homem. Nessa integração, o princípio de ligação é o devaneio. Sem ela, o homem seria um ser disperso. Ela – a casa – mantém o homem através das tempestades do céu e das tempestades da vida. É o corpo e é a alma. É o primeiro mundo do ser humano. Antes

84 de ser jogado no mundo, o homem é colocado no berço da casa. (BACHELARD, 2008). Não pretendemos lançar aqui uma teoria ou corrente interpretativa unindo os pensamentos desses dois autores. Não é objetivo deste trabalho e nos falta aprofundamento nas duas correntes epistemológicas de cada um deles, para não falar também na pouca maturidade e experiência acadêmica que não nos permite seguir por esse caminho. Buscamos apenas trazer à luz de nossas reflexões elementos que nos auxiliam na formulação de nosso estudo. Procurando olhar para a casa enquanto espaço de afetividade e intimidade, entendemos seu espaço como essencial para a constituição psíquica dos indivíduos e para a formação de sua subjetividade. Winicott e Bachelard, trazem elementos que nos ajudam nessa busca. Com esse esclarecimento podemos seguir adiante. Agora, seguindo as palavras de Blaise Pascal (1988), em seus Pensamentos, que diz que o fato de ninguém querer ficar na própria casa é a origem de toda infelicidade. Como entender essa contradição? A casa é a referência do ser humano. Mas existe o querer fugir. Deixar o ninho e alçar voo. Esse anseio por deixar o lar é retratado no clássico livro O Mágico de Oz, do escritor norte-americano L. Frank Baum e também na também clássica versão musical para o cinema, dirigida por Victor Fleming e protagonizada por Judy Garland. Publicada originalmente em 1900, considerada atemporal, a história de O Mágico de Oz usa a longa jornada como metáfora para a autodescoberta. O livro também fala sobre amizades verdadeiras e família. Sobre a casa e o amor ao lar. Na história, temos a personagem Dorothy Gale que após uma discussão com a família deseja ir embora para qualquer outro lugar. Fugir e encontrar um local em que pudesse ser livre. A casa, nesse momento é um lugar repressor. (No filme, todo o ambiente é apresentado em tons de sépia para tornar visível essa sensação, em contraste com o brilho do Technicolor em que a terra de Oz é mostrada). Nas palavras de Cecília Meireles no poema “Eis a Casa”: Eis a casa / menos que de ar / imponderável, / no entanto é branca de camélia e tem perfume de cal. / Com seus corredores / Suas escadas / O alpendre. As janelas uma a uma / Vê-se o mar. As montanhas. O trem passando. O gasômetro. / Veem-se as árvores por cima com suas flores / A casa imponderável. / Mas de cimento madeira tijolos ferro vidro. / A pintura prateada das grades cheira a óleo a fruta a luz. / A água a pingar cheira a musgo / soa metálica, trêmula / insetos pássaros líquidos / pequenas estrelas /

85 clarins muito longe / Peitoris gastos de braços antigos / Sombras de borboletas / Eu sei quem comprou a terra / quem pensou nos desenhos / quem carregou as telhas / Passam legiões de formigas pelos patamares / Eu sei de / quem era a casa / quem morou na casa / quem morreu / Eu sei quem não pode / viver na casa / É uma casa / com seus andares / suas escadas / seus / corredores varandas / aposentos / alvenaria / muros / imponderável / Uma / casa qualquer / Cruz que se carrega / Imponderavelmente, para sempre, às costas. (Meireles, 1998, p. 1872).

Surge em meio ao cotidiano uma casa “imponderável”. Carregamos nossas casas às costas. Todas elas! Para a personagem de Frank Baum, toda essa carga passa a ser opressiva. Na verdade, ela ainda não se encontrou dentro desse ambiente. Para ela a casa onde mora não é o lugar “suficientemente bom”. Quando é levada para a terra encantada de Oz, enfrenta uma série de aventuras que a levam a descobrir as verdadeiras características suas que até então desconhecia. Nessa experiência de autoconhecimento ela percebe o significado de lar e família. Assim, sua jornada de autodescoberta é na verdade uma jornada em direção à sua casa. Quando descobrimos quem somos, nos deparamos como o nosso lar; espelho de nós mesmos. Apesar da história começar com o desejo de partida, no final temos o reencontro da personagem Dorothy Gale com a sua casa, reconhecendo que “não há lugar como o nosso lar”. O tema da partida de casa é mostrado com muita beleza e sentimentalidade no curta-metragem de animação O Farol16 (2010), do cineasta taiwanês, radicado em Los Angeles, EUA, Po Chou Chi. Carregado de sutilezas e simbolismos, o filme que já ganhou 27 prêmios internacionais, trata delicadamente da relação entre pai e filho. Em pouco mais de sete minutos, sem apresentar nenhum diálogo, o filme mostra o crescimento, o aprendizado, a partida, o retorno e o envelhecimento dos personagens. No curta-metragem, é contada a história de pai e filho que moram em um farol em uma pequena ilha. Nesta animação, é bastante emblemático a casa ser o farol. Nas noites mais escuras e nas tempestades, é o farol que guia os navios no mar. Ele é um sinal de esperança e um aviso aos navegadores de que estão finalmente próximos de um porto. O Farol é a casa, o lar, o porto seguro, o sinalizador de que está tudo certo, o abraço do pai. Os barcos a um só tempo simbolizam as conquistas, mas também as idas

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The Lighthouse, Disponível no Youtube: . Acessado em 5 de jun. de 2015.

86 e vindas, partidas e retornos. O ambiente doméstico é sutilmente retratado. Sentado ao piano, o pai ensina seu filho a tocar o instrumento. Pode-se ver porta-retratos e outros objetos comuns em qualquer casa. O filho, ao crescer, parte para longe. Deixa seu ninho e lança-se no voo. Por muito tempo não volta. Cartas são escritas, o pai espera, as estações mudam, e o inverno chega. Após muito tempo, depois de constituir sua própria família, o filho finalmente regressa e encontra seu pai já velho, mas ainda a tempo de relembrar os momentos felizes em frente ao piano. É simbólico e comovente o detalhe de que nesse momento a posição do pai e do filho invertem-se. O curta termina com a nova família ocupando a casa-farol, mostrando simbolicamente que voltamos para o começo. Por mais longe que alcemos voo, levamos conosco as marcas de nossa casa que nos trazem de volta sempre. De uma maneira literal ou apenas simbólica. Da mesma forma que a partida da casa é retratada no filme de O Farol, a chegada ao novo lar e a constituição de uma nova família é cantada na canção da banda Legião Urbana, composta por Renato Russo O Mundo Anda Tão Complicado (1991). Nesta canção temos a descrição de um casal que começa uma nova vida: Gosto de ver você dormir / Que nem criança com a boca aberta / O telefone chega sexta-feira / Aperto o passo por causa da garoa / Me empresta um par de meias / A gente chega na sessão das dez / Hoje eu acordo ao meio-dia / Amanhã é a sua vez / Vem cá, meu bem, que é bom lhe ver / O mundo anda tão complicado / Que hoje eu quero fazer tudo por você. / Temos que consertar o despertador / E separar todas as ferramentas / Que a mudança grande chegou / Com o fogão e a geladeira e a televisão / Não precisamos dormir no chão / Até que é bom, mas a cama chegou na terça / E na quinta chegou o som / Sempre faço mil coisas ao mesmo tempo / E até que é fácil acostumar-se com meu jeito / Agora que temos nossa casa / é a chave que sempre esqueço / Vamos chamar nossos amigos / A gente faz uma feijoada / Esquece um pouco do trabalho / E fica de bate-papo / Temos a semana inteira pela frente / Você me conta como foi seu dia / E a gente diz um pro outro: / Estou com sono, vamos dormir! / Vem cá, meu bem, que é bom lhe ver / O mundo anda tão complicado / Que hoje eu quero fazer tudo por você / Quero ouvir uma canção de amor / Que fale da minha situação / De quem deixou a segurança de seu mundo / Por amor. (RUSSO, 1991, EMI).

A composição retrata o cotidiano de uma nova família que se constitui. A chegada da mobília e dos objetos que comuns numa residência. Mais do que isso a canção fala das relações que são estabelecidas dentro dessa nova casa e também o mundo exterior. A rotina de trabalho e o regresso para o lar, o convite para os amigos se fazerem presentes, e sobretudo a ideia de abrigo que está presente na casa que protege das complicações do mundo e permite a construção de uma nova família. Assim, a casa concentra as condições para que possa ser um ambiente suficientemente bom. A casa é o terreno habitado pelo homem e ele o ocupa com

87 intimidade. Buscamos o lugar onde nos sentimos em casa. Mas O que significa exatamente a tão repetida expressão “sentir-se em casa”? Em Sonata de Outono17, filme de 1978, dirigido por Ingmar Bergman, a personagem Charlotte Andergast, interpretada por Ingrid Bergman, é uma pianista de renome internacional, que passou a vida viajando, distante das duas filhas. Os anos já lhe pesam, e ela, novamente viajando em um trem e distanciando-se das filhas, diz: “Eu me sinto tão deslocada. Tenho tanta saudade de casa! Mas quando chego em casa, vejo que eu sinto saudade de alguma outra coisa.” Esta frase, magistralmente construída pelo dramaturgo e cineasta sueco, parece-me ainda mais significativa em nossa língua portuguesa, onde a palavra saudade tem um sentido muito próprio carregado de sentimento. Os anos viajando por conta de sua atividade artística impediram que Charlotte Andergast encontrasse seu lugar no mundo. Sem referências físicas – a casa – e sem laços afetivos pois sua relação com as filhas é prejudicada pelo distanciamento, a personagem não encontra um lugar em que se sinta em casa. A casa, enquanto nosso lugar no mundo, nosso ponto de referência é também nosso ponto de partida de onde podemos sair e para onde podemos regressar. As despedidas e os regressos podem ser apenas simbólicos, mas também podem ser experimentados literalmente. De um modo ou de outro, nossa casa é o nosso refúgio do mundo e em oposição a ele, sempre está a nossa espera para nos receber de volta. Sendo uma casa física ou simbólica. Dito de outra forma, a casa é o lugar de onde o sujeito pode partir em busca de sua sobrevivência. O sujeito parte em busca de novos encontros com outros sujeitos. A casa também é o lugar do regresso para onde o sujeito volta em segurança depois de aventurar-se pelo mundo. Com essas reflexões lembramos dos versos da canção de Milton Nascimento na cação Encontros e Despedidas de 1985, composta em parceria com Fernando Brant. Mande notícias / Do mundo de lá / Diz quem fica / Me dê um abraço / Venha me apertar / Tô chegando. / Coisa que gosto é poder partir / Sem ter planos / Melhor ainda é poder voltar / Quando quero. / Todos os dias é um vai-e-vem / A vida se repete na estação / Tem gente que chega prá ficar / Tem gente que vai / Prá nunca mais. / Tem gente que vem e quer voltar / Tem gente que vai, quer ficar / Tem gente que veio só olhar / Tem gente a sorrir e a chorar / E

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Título original em inglês Love Song.

88 assim chegar e partir. / São só dois lados / Da mesma viagem / O trem que chega / É o mesmo trem / Da partida. / A hora do encontro / É também, despedida / A plataforma dessa estação / É a vida desse meu lugar / É a vida desse meu lugar / É a vida... / Lá lá Lá Lá Lá... / A hora do encontro / É também, despedida / A plataforma dessa estação / É a vida desse meu lugar / É a vida desse meu lugar / É a vida. (NASCIMENTO; BRANT, 1985, Barclay).

Já se comentou muito sobre a temática supostamente espírita desses versos de Milton, entretanto não seguiremos nessa linha de discussão e deixando de lado qualquer especulação sobre essa questão, procuramos observar aquilo que nos parece mais evidente na letra da canção. As constantes idas e vindas, partidas e chegadas, encontros e despedidas. Em nossas vidas estamos ou na condição daquele que parte para uma jornada – metafórica ou real – ou na condição daquele que fica e aguarda pelo regresso de quem foi. Estamos sempre a nos despedir ou a reencontrar alguém ou algo. E nossa casa, ora é o outro de quem nos despedimos, ora é a “plataforma da estação” para onde regressamos – ou desejamos regressar. Ao falarmos de viagens e jornadas, temos que lembrar também da ideia de caminho. A estrada que se descortina diante de nós, que tanto pode nos levar para mais e mais longe de casa como pode nos conduzir de volta para o nosso lugar. Bachelard (2008, p. 31), chega mesmo a perguntar “que pode haver de mais belo que um caminho? É símbolo e a imagem da vida ativa e variada”. Toda pessoa deveria falar de suas estradas e encruzilhadas. É precisamente essa beleza que é cantada com extrema delicadeza por Luiz Gonzaga na canção Estrada de Canindé (1950), composta em parceira com Humberto Teixeira: Ai, ai, que bom / Que bom, que bom que é / Uma estrada e uma cabocla / Cum a gente andando a pé / Ai, ai, que bom / Que bom, que bom que é / Uma estrada e a lua branca / No sertão de Canindé / Artomove lá nem sabe se é home ou se é muié / Quem é rico anda em burrico / Quem é pobre anda a pé / Mas o pobre vê nas estrada / O orvaio beijando as flô / Vê de perto o galo campina / Que quando canta muda de cor / Vai moiando os pés no riacho / Que água fresca, nosso Senhor / Vai oiando coisa a grané / Coisas qui, pra mode vê / O cristão tem que andá a pé. (GONZAGA; TEIXIRA, 1950, Vitor).

O “andar a pé” permite a observação dos detalhes mais singelos e também mais belos do caminho. É uma relação íntima e prazerosa. “O orvalho beijando a flor”, o contato com as águas do riacho, o luar, todos detalhes que só quem caminha pode ver e sentir. Podemos perceber dois aspectos interessantes. Para seguir o caminhando esse lugar – metafórico-simbólico ou literal – é conhecido daqueles que o atravessam. É um caminho onde se pode reconhecer os detalhes e facilmente saber que direção tomar. O

89 caminho também é lugar de reconhecimento. Se a trajeto é feito a pé, então não pode ser muito longo. Não podemos nos afastar demais de nossa casa tem tomar caminhos desconhecidos sem corrermos o risco de nos perdermos. Perdemos nossas referências e também nos perdermos de nós mesmos. O caminho nos leva de casa para o mundo e nos traz de volta ao lar. A casa, nosso espaço de morar, nossa habitação, enquanto espaço reconhecível e de reconhecimento, estando na base de nossa formação enquanto sujeito, simboliza o que temos de mais íntimo e idiossincrático. Somos a nossa casa. Não é à toa que muitas vezes ouvimos ou até mesmo repetimos a expressão “sua casa é a sua cara” ou mesmo “quero uma casa que tenha a minha cara”. Mas afinal o que estamos realmente dizendo com essas expressões? Em 2010, o cantor e compositor sertanejo Leo Magalhães, gravou a canção Minha Casa é a Minha Cara: Outro final de semana e eu de bobeira / É mais um domingo com gosto de segunda-feira / Pedaços da foto na sala de estar / O vinho e o copo no mesmo lugar / E a solidão não sara. Meu mundo parou no instante da sua partida / Até o relógio na instante perdeu a batida / O retrato ao lado da televisão / Sapatos e roupas jogados ao chão / Minha casa é minha cara Por que, vou arrumar a casa se até minha vida / Tá bagunçada e tão esquecida / Saudade me deixa de cabeça tonta / Por que, me levantar da sala e procurar a cama / Pois quando eu vou pro quarto o coração reclama / A falta de você que já passou da conta. (MAGALHÃES, 2010, Independente).

A solidão de uma casa onde se viveu uma história de amor que chegou ao fim; o tédio e a sensação de tempo perdido por não se ter quem se deseja perto; a sensação de que a vida parou, tudo isso é contato ao descrever a situação em que a casa se encontra. A desorganização do ambiente doméstico: “vinho e copo no mesmo lugar”; “pedaços de foto na sala de estar”, reflete a estado de desordem em que se encontra este morador. Desordem por não ter a pessoa amada. A casa é mais do que o palco onde esta cena se desenrola. Ela é parte de daquele que a vivencia. É o seu reflexo. Arnaldo Antunes consegue nos mostrar vividamente essa ideia com a canção A Casa é Sua, composição de 2009 em parceria com Ortinho. Não me falta cadeira / Não me falta sofá / Só falta você sentada na sala / Só falta você estar / Não me falta parede / E nela uma porta pra você entrar / Não me falta tapete / Só falta o seu pé descalço pra pisar / Não me falta cama / Só falta você deitar / Não me falta o sol da manhã / Só falta você acordar / Pras janelas se abrirem pra mim / E o vento brincar no quintal / Embalando as flores do jardim / Balançando as cores no varal / A casa é sua / Por que não

90 chega agora? / Até o teto tá de ponta-cabeça / Porque você demora / A casa é sua / Por que não chega logo? / Nem o prego aguenta mais / O peso desse relógio / Não me falta banheiro, quarto / Abajur, sala de jantar / Não me falta cozinha / Só falta a campainha tocar / Não me falta cachorro / Uivando só porque você não está / Parece até que está pedindo socorro / Como tudo aqui nesse lugar / Não me falta casa / Só falta ela ser um lar / Não me falta o tempo que passa / Só não dá mais para tanto esperar / Para os pássaros voltarem a cantar / E a nuvem desenhar um coração flechado / Para o chão voltar a se deitar / E a chuva batucar no telhado / A casa é sua / Por que não chega agora? / Até o teto tá de ponta-cabeça / Porque você demora / A casa é sua / Por que não chega logo? / Nem o prego aguenta mais / O peso desse relógio. (ANTUNES, 2009. Rosa Celeste).

O clipe18 dessa canção é ainda mais interessante. Ao cantar que nada lhe falta na casa, na verdade o poeta diz o oposto. No clipe, enquanto a canção segue com sua letra, – bastante característica desse compositor – uma série de objetos domésticos, comuns em qualquer residência são descritos como existentes nessa habitação, mas que pela ausência da pessoa amada para fazer uso dos mesmos, eles simplesmente desaparecem. Não havendo quem os utilize perdem portanto o seu valor e o seu sentido. Uma vez que o que mais interessa ao morador não está presente, a presença de todos os outros objetos se torna em ausência. Tempo e espaço encontram-se em desordem. A presença vira ausência. Os espaços estão vazios. A casa encontra-se vazia. Novamente, a casa enquanto continuação da identidade do seu habitante, reflete esse estado de ânimo e tudo se torna ausência assim como está ausente o objeto de desejo: a pessoa amada. A casa sem seus habitantes desaparece. A e pessoas, assim vivem uma relação dialética em que um se reflete no outro. A casa é continuação de nós mesmos. Seguindo essa ideia da casa enquanto corpo, o mesmo Arnaldo Antunes vai nos brindar com outra canção, A Nossa Casa (2004), em que, com um belo jogo de palavras – bem ao seu estilo – a casa é apresentada como nós mesmos, nosso corpo e tudo o que nos rodeia. Na nossa casa amor-perfeito é mato / E o teto estrelado também tem luar / A nossa casa até parece um ninho / Vem um passarinho pra nos acordar / Na nossa casa passa um rio no meio / E o nosso leito pode ser o mar / A nossa casa é onde a gente está / A nossa casa é em todo lugar / A nossa casa é de carne e osso / Não precisa esforço para namorar / A nossa casa não é sua nem minha / Não tem campainha pra nos visitar / A nossa casa tem varanda dentro / Tem um pé de vento para respirar / A nossa casa é onde a gente está / A nossa casa é em todo lugar (ANTUNES, 2004, Rosa Celeste/BMG).

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Disponível no Youtube, em: . Acessado em 5 de jun. de 2015.

91 De maneira muito poética, Arnaldo Antunes está nos dizendo que a casa é o nosso corpo. Assim, onde quer que formos ela nos acompanha e temos a vastidão do universo para colocar nosso lar. Não é que não temos um lugar como ponto de referência. Aqui o poeta está expressando que onde quer que formos é possível, sim, atribuirmos significado ao espaço que nos cerca, preenchendo todos os cantos de afeto e assim transformar um espaço em lugar. Nosso lugar. Além de espaço fundamental para nossa formação enquanto Ser, a casa também é testemunha da nossa vida mais íntima. Segundo Rybczynski (1996), a ideia de intimidade e de privacidade surge como uma consequência das transformações das condições da vida urbana. O autor nos diz: A domesticidade é um conjunto de emoções sentidas, e não um único atributo. Ela está relacionada à família, à intimidade, à devoção ao lar, assim como a uma sensação da casa como incorporada – e não somente abrigo. (RYBCZYNSKI, 1996, p. 85).

Para Rybczynski (idem), a domesticidade caseira dependia do desenvolvimento de uma consciência interior. Extrapolando um pouco essa ideia, podemos nos valer novamente de alguns conceitos da psicanálise para uma possível aproximação do que queremos entender. Essa não é de forma alguma uma tarefa original. Leitão (2009) faz exatamente esse esforça ao trabalha o conceito de identificação de Freud para explicar a relação entre os elementos socioespaciais e a sociedade. Diz a autora: O conceito-chave da psicanálise que permite explicar sob que artimanha psíquica se dá esse fenômeno na vida humana é o conceito de identificação. A identificação é o mecanismo psíquico a partir do qual o sujeito se constitui e se reconhece em sua condição humana. A ideia-força que o conceito traz à tona é a questão da imprescindibilidade do outro. (LEITÃO, 2009, p. 143).

Nas palavras do poeta Vincent Monteiro, citado por Bachelard (2008): Quem não tem no fundo do coração / Um sombrio castelo de Elseneur, / Como as pessoas do passado / Construímos em nós mesmos pedra / por pedra um grande castelo assombrado? (MONTEIRO, Vincent. Vers sur verr, p. 15, apud BACHELARD, 2008, p. 65).

Bachelard ainda nos apresenta as palavras do poeta André Lafon (1913): Sonho com uma morada, casa baixa de janelas / altas, três degraus gastos, rasos e esverdeados. / Morada pobre e secreta com ar de gravura antiga / que só vive em mim e onde eu entro às vezes, / Sentando-me para esquecer o dia cinzento e a chuva. (LAFON, André. Poésies. Le rêve d’um logis, p. 91. Apud, BACHELARD, 2008, p. 65).

92 Destacamos ainda o que nos diz Camargo (2010): O verdadeiro ato de habitar um espaço doméstico só pode ser conhecido, e bem conhecido, por aqueles que o fazem – e em privacidade, longe de olhares estranhos. (CAMARGO, 2010, p. 12).

Casa é recanto interior, podemos entrar nela, mas ela está dentro de nós. É o que há de mais íntimo. Somos a casa, estamos nela. Ela está em nós e ao nosso redor. Essa relação simbiótica e dialética que experienciamos em nossas casas; em nossos espaços de morar, é constituidora de nossa identidade; guarda de nossa intimidade. Dentro de casa vivemos nossas experiências familiares. Os conflitos, descobertas, alegrias, frustrações, medos, realizações, são todas vividas no interior da casa – tanto a casa que nos abriga como a casa que abrigamos em nós. Essas relações foram cantadas pelo cantor e compositor Renato Russo na canção Pais e Filhos (1989): Estátuas e cofres e paredes pintadas / Ninguém sabe o que aconteceu / Ela se jogou da janela do quinto andar / Nada é fácil de entender /Dorme agora / É só o vento lá fora. / Quero colo! Vou fugir de casa / Posso dormir aqui com vocês? / Estou com medo, tive um pesadelo / Só vou voltar depois das três. Meu filho vai ter nome de santo / Quero o nome mais bonito / É preciso amar as pessoas / Como se não houvesse amanhã / Porque se você parar pra pensar / Na verdade não há / Me diz, por que que o céu é azul? / Explica a grande fúria do mundo / São meus filhos / Que tomam conta de mim. / Eu moro com a minha mãe / Mas meu pai vem me visitar / Eu moro na rua, não tenho ninguém / Eu moro em qualquer lugar. / Já morei em tanta casa / Que nem me lembro mais / Eu moro com os meus pais. / É preciso amar as pessoas / Como se não houvesse amanhã / Porque se você parar pra pensar / Na verdade não há. / Sou uma gota d'água / Sou um grão de areia / Você me diz que seus pais não te entendem / Mas você não entende seus pais. /Você culpa seus pais por tudo, isso é absurdo / São crianças como você / O que você vai ser / Quando você crescer. (RUSSO, 1989, EMI).

Logo nos primeiros versos podemos perceber que o poeta está descrevendo um ambiente doméstico. “Estátuas e cofres e paredes pintadas”. São as testemunhas de uma tragédia: o suicídio de uma garota, aparentemente sem explicação. Mais do que a descrição de uma casa, os versos iniciais carregam mais significados. As estatuas representam o “não falar”; Os cofres podem ser entendidos como segredos; paredes pintadas remetem a materialidade da casa e seu isolamento do mundo. Também evocam a noção de passado. Aqui temos claramente a ideia da casa enquanto lugar de segredos e de distanciamento do exterior. As relações interpessoais que se dão no interior da casa, no ambiente familiar também se faz presente na composição. Os pais amorosos quem dizem ao filho: “dorme agora. É só o vento lá fora”, remetem ao sentido de segurança e proteção da casa. A busca por essa segurança é percebida na expressão: “quero colo” e também em “estou

93 com medo. Tive um pesadelo. Posso dormir aqui com vocês?”, enquanto “vou fugir de casa” apresenta um conflito e o desejo de partir. Singelamente também temos a ideia do nascimento de uma nova família; um novo lar. “Meu filho vai ter nome de santo. Quero o nome mais bonito”, é o momento da escolha do nome para o filho que está para chegar. Depois da chegada do filho, vemos o seu desenvolvimento e os questionamentos feitos aos pais: “me diz, por que é que o céu é azul”, “explique a grande fúria do mundo”. E finalmente, a inversão dos papeis: “são meus filhos que tomam conta de mim”, o momento em que são os filhos que agora cuidam dos pais idosos. As diferentes estruturas familiares e modos de morar são apresentados também. Como se fossem várias vozes a contar cada uma a sua história: “eu moro com a minha mãe mas meu pai vem me visitar”; “eu moro na rua, não tenho ninguém. Eu moro em qualquer lugar”, “já morei em tanta casa que nem me lembro mais”, “eu moro com meus pais”. São diferentes depoimentos que narram a realidade de quem tem os pais divorciados, os que vivem nas ruas sem família, quem por diferentes motivos vivem mudando para outros lugares e não conseguem estabelecer laços com um lugar, uma família com pais e filhos. Não podemos negar que Renato Russo foi um poeta excepcional e que marcou toda uma geração com suas canções que muitas vezes tinham caráter autobiográfico. Na canção Pais e Filhos ele conseguiu a um só tempo tratar de temas fortes e impactantes como o suicídio; sérios e controversos como as relações familiares; belos e encantadores como amor que devemos demonstrar a todo momento “como se não houvesse amanhã”. Com essa composição ele também conseguiu apresentar elementos simbólicos da casa e do lar e o quanto esses elementos estão presentes em todos os lares não importando a configuração familiar. Ainda tratando ideia de intimidade do lar, lembramos da composição de Agepê, com a parceira de Canário, de 1975, Moro Onde Não Mora Ninguém: Moro onde não mora ninguém / Onde não passa ninguém / Onde não vive ninguém / É lá onde moro / E eu me sinto bem / Moro onde moro. / Não tem bloco na rua / Não tem carnaval / Mas não saio de lá / Meu passarinho me canta a mais linda / Cantiga que há / Coisa linda vem do lado de lá / Coisa linda vem do lado de lá / Moro onde moro ... (eu também moro...) / Uma casinha branca / No alto da serra / Um coqueiro do lado / Um cachorro magro amarrado / Um fogão de lenha, todo enfumaçado / É lá onde moro / Aonde não passa ninguém / É lá que eu vivo sem guerra / É lá que eu me sinto bem. (AGEPÊ, 1975, Continenal).

94 O sentir-se bem, está, para o compositor, associado ao isolamento. Não necessariamente ao isolamento total do mundo, onde nenhum contato existe, mas a possibilida de ter um lugar especial, íntimo e privado para recolher-se quando se desejar. A “casinha branca” simples mas confortável, a companhia do “cachorro magro”, leal companheiro, “a mais linda canção” entoada pelo passarianho, tudo isso cercado pela natureza no “alto da serra”, ladeado por um “coqueiro”, é um lugar no mundo do poeta. O lugar de peertencimento e reconhecimento, onde pode se sentir bem. Onde se sente verdadeiramente em casa. Essa mesma ideia também é encontrada na canção de autoria de Chico Bhô, Tião Carreiro e Cravinho, grava da voz do cantor sertanejo Daneil, no ano de 2003, Moradia: Eu moro lá num recanto / Onde ninguém me amola / Numa casa ao pé da serra / Mora eu e a viola / O sapo mora no brejo / O sabiá na gaiola. / Minha voz mora no peito / E meus versos na caxola / Tatu mora no buraco / Aranha mora na teia / O anel mora no dedo / O brinco mora na orelha / Coração mora no peito / O sangue mora na veia / Gente boa mora em casa / Criminoso na cadeia / Porco mora no chiqueiro / O boi mora na invernada / Pescador mora no rancho / Boiadeiro nas estradas / Boêmio mora na rua / Sereno na madrugada / A lua mora no céu / E o vento não tem morada / A perdiz mora no campo / O bem-te-vi no sertão / Baleia mora no mar / Lambari no ribeirão / Rato mora no paiol / O morcego no porão / Eu moro nos braços dela / E ela em meu coração / Palhaço mora no circo / A rima na poesia / O uirapuru lá na mata / Na festa mora a alegria / O rico mora no centro / Pobre na periferia / Num casebre em Nazaré / Morou a virgem Maria. (CHICO, CARREIRO; CRAVINHO, 2003, Warner Music Brasil).

Também por meio de um jogo de palavras, em que associa o lugar de moradia de diferentes seres, a composição nos mostra a importância de entendermos bem nosso lugar. As diferentes relaões que podem ser estabelecidas com nossos espaços. É interessante que na canção também é feita certa crítica social, ao fazer referência aos espaços reservados para as diferentes classes sociais. Na casa, nos guardamos do mundo. É onde onde protegemos e protegemos nossa intimidade. É no interior da casa que guardamos nossos tesouros. Luiz Gonzaga vai cantar poeticamente esse esforço que fazemos de nos resguardarmos dos olhos do mundo externo na canção Ô de Casa, composta em 1946, com parceria de Mario Rossi. Ô de casa! / Ô de fora! / Como vai? / Vou muito bem! / Como vai a sua senhora? / Né da conta de ninguém! / Como vai sua senhora, senhor? / Não é da conta de ninguém, viu? / As crianças vão remando / O roçado deu capim / O feijão está bichando / O engenho deu cupim / Sua roça está sumindo / Vive tudo ao Deus-dará / Com o sol fico dormindo / Com a chuva não vou lá / Passo a noite no riacho / Passo o dia no paiol / Eu não sou roupa de baixo / Pra tomar banho de sol / Ô de casa! / Ô de fora! / Como vai? / Vou muito bem! / Como vai a sua senhora? / Né da conta de ninguém! / Como vai sua senhora, senhor? / Não é da conta de ninguém, viu? (GONZAGA; ROSSI, 1946, Victor).

95 Quando questionado sobre como estaria “sua senhora” a resposta imediata do poetá de que “não é da conta de ninguém”, é ao mesmo tempo uma busca por manter resguardada sua intimidade como uma declaração de que aquilo que ocorre no interior do lar é de interesse apenas daqueles que fazem parte do núcleo familiar. Aqueles que são de dentro. O jogo do “Ô de casa” e “Ô de fora”, não é simplesmete uma forçade expressão. É a delimitaão de uma fronteira que deve ser respeitada sempre. Mesmo aos visitantes mais regulares esses limites são bem esclarecidos e deve-se sempre ser lembrados. A casa abre as portas para os de fora, mas sempre sob certos limites. Os espaços mais íntimos, os quartos e alcovas não são de livre acesso. A cozinha se abre aos amigos proximos e parentes, mas as regras à mesa são ditadas pelos de dentro. Para todos os demais visitantes, a sala é o espaço que lhes cabe. Essa ideia é reafirmada em Leitão (2014) quando nos diz: O espaço do morar estabelece, ainda uma barreira à invasão do que é público, coletivo, não familiar. No limite, diz não à convivência social indesejada. (LEITÃO, 2014, p. 45).

A casa também é o lugar para o recolhimento e a reflexão. Onde os pensamentos podem ser melhor organizados. É na intimidade do lar que analisamos a nós mesmos. É do interior da casa que observamos o mundo. Compositor mineiro Vanderli Catarina, mais conhecido como Vander Lee, em sua canção Meu Jardim (2005), Tô relendo minha lida, minha alma, meus amores. / Tô revendo minha vida, minha luta, meus valores / Refazendo minhas forças, minhas fontes, meus favores. / Tô regando minhas folhas, minhas faces, minhas flores. / Tô limpando minha casa, minha cama, meu quartinho. / Tô soprando minha brasa, minha brisa, meu anjinho. / Tô bebendo minhas culpas, meu veneno, meu vinho. / Escrevendo minhas cartas, meu começo, meu caminho. / Estou podando meu jardim / Estou cuidando bem de mim. (LEE, 2005, Indie Records).

A identidade está relacionada à personalização das pessoas que usam seus ambientes e os marcam segundo sua individualidade. Um processo essencial para que alguém se sinta identificado ou pertencente a um entorno é o que se entende por apropriação. Na apropriação, o sujeito interage dialeticamente com o entorno, o que resulta numa transformação mútua. Na canção de Vander Lee podemos perceber o processo em que o indivíduo, no interior de sua casa, busca seu canto de intimidade para poder refletir. Rever toda a sua vida e suas relações. “Relendo minha vida”, “meus amores”, “revendo meus valores” e “refazendo minhas forças”. A casa é o espaço que permite todo esse processo de releitura e de tomada de consciência de si. Limpar a casa,

96 a cama e o quarto, são metáforas de consertar tudo que não está indo bem, colocar as coisas no seu devido lugar. A casa é o referencial, o parâmetro. Também na casa nos recolhemos para expiar nossas culpas e reunir forças para assumir as consequências de nossas ações. Por ser parte tão significativa daquilo que nos distingue dos demais – nossas crenças, atitudes e valores – a casa pode oferecer um espaço de reconhecimento da nossa identidade, em especial para nós mesmos. A rua e os demais espaços públicos são para abrigar a diversidade dos indivíduos. É o lugar do coletivo; do comum. Na casa é favorecida a distinção pessoal na medida em que em seu interior a pessoa encontra-se consigo mesma. Ela é o espaço do particular; do singular. Nesta perspectiva, pensar o ambiente, o espaço, a casa e são possibilidades de pensar as identidades dos sujeitos alocados em um tempo histórico, em um espaço social, pensar suas trocas simbólicas, suas marcas constituidoras de identidades. “Não há lugar como nosso Lar”. O nosso lugar, o nosso centro de significado, o fundamento da nossa identidade. Haveria algum outro “lugar” no mundo em que alguém pode sentir-se mais feliz, confortável e seguro do que em casa? Por certo que não. 4.2.3. Casa do Futuro como lugar de sonhos: Promessa da casa A nossa casa, Amor, a nossa casa! / Onde está ela, Amor, que não a vejo? / Na minha doida fantasia em brasa / Constrói-a, num instante, o meu desejo! / Onde está ela, Amor, a nossa casa, / O bem que neste mundo mais invejo? / [...] Sonho... que eu e tu, dois pobrezinhos, / Andamos de mãos dadas, nos / caminhos / Duma terra de rosas, num jardim, / Num país de ilusão que nunca vi. / E que eu moro - tão bom! - dentro de ti. (Florbela Espanca – A Nossa Casa, In: A Mensageira das Violetas: antologia, 1999).

A poetisa portuguesa, Florbela Espanca, autora dos versos acima, traz em seu poema “Casa”, aspectos fortes como sonho, realidade, amor, fantasia e ilusão. Ela é certamente um das personalidade mais fascinantes da literatura portuguesa. Nascida na virada do século XIX para o século XX, viveu numa época de grande efervescência cultural entretanto, no momento histórico em que a poesia era um desafio para as mulheres. O Poema em epígrafe, Nossa Casa, foi publicado inicialmente no livro Charneca em Flor de 1931, e é considerado, como quase todos os poemas da autora, com um forte apelo erótico. Nele podemos encontrar outros elementos que nos ajudam a refletir mais sobre a casa e a busca pela morada ideal.

97 Florbela Espanca, assim como outros poetas, sofreu por toda a vida a aflição inerente a essa busca pela qual as almas mais sensíveis passam. Ela própria nos diz sobre isto em correspondência: Às vezes sinto em mim uma elevação de alma, o voo translúcido duma emoção em que pressinto um pouco do segredo da suprema e eterna beleza; esqueço a minha miserável condição humana, e sinto-me nobre e grande como um morto. (SILVA, 2011 p.14).

A sede de infinito em Florbela era algo constante. Refletindo esta agonia de encontrar seu lugar refere-se constantemente a outros planos, ambientes ideias, outras vidas, tempos ditosos em que possuía uma existência tranquila e venturosa. É nesse contexto que a poetisa portuguesa vai falar sobre a casa. Casa que anseia em um novo plano. Sempre vinculada ao amor e ao desejo. A nossa casa, Amor, a nossa casa! / Onde está ela, Amor, que não a vejo? / Na minha doida fantasia em brasa / Costrói-a, num instante, o meu desejo / Onde está ela, Amor, a nossa casa, / O bem que neste mundo mais invejo? / O brando ninho aonde o nosso beijo / Será mais puro e doce que uma asa? / Sonho... que eu e tu, dois pobrezinhos, / Andamos de mãos dadas, nos caminhos / Duma terra de rosas, num jardim, / Num país de ilusão que nunca vi. / E que eu moro - tão bom! - dentro de ti / E tu, ó meu Amor, dentro de mim. (ESPANCA, 1931).

Podemos falar que essa casa, ou mais precisamente esse anseio pela casa, é fruto da saudade e de um querer utópico. Sempre projetada no futuro, simbolizando o estado de plena satisfação, segurança e felicidade. Sempre associada a um amor, é um sonho, um devaneio, que ao mesmo tempo se lamenta por não alcançar, também anima e aumenta o desejo de buscar. Construímos um modelo; uma imagem da casa que queremos. Temos esse desejo em nós de forma tão íntima que podemos descrever com os mínimos detalhes desse lugar que idealizamos. Detalhes visíveis mas sobretudo detalhes invisíveis. No poema de Noemi Jaffe, Oração pela Casa, de 2012, podemos ter uma bela descrição desse lar desejado: Deus, que está no céu, e que dizem ser onisciente, onipotente e onipresente: faça com que minha casa tenha muitos potes e que em cada um deles caiba uma tampa correspondente; faça também com que, em vários destes potes, haja um pedaço de torta de espinafre, uma fatia de pizza de muzzarela no máximo de anteontem e um resto de suflê de cenoura. Faça com que as roupas de lã não juntem bolinhas de pelo e que, se isso acontecer, que naquele momento eu tenha um daqueles rolos com velcro que é só passar e as bolinhas somem. Outrossim, peço também que haja um cachorro vira-lata e que ele não tenha muitas roupas, mas ao menos um agasalho e, este sim, poderá até juntar bolinhas de pelo. Não peço muitos banheiros, mas sim que em cada um deles haja um recipiente apropriado para as escovas de dentes e

98 que eu me lembre de trocá-las quando as cerdas cederem, porque acontece frequentemente que eu me esqueça. Que na geladeira haja, mesmo depois que eu volte de uma viagem, ao menos ovos, um resto de arroz, tomates e alguma fruta. E por favor, eu imploro, que essa fruta não seja maçã que, apesar de nutritiva, é uma fruta tão sem graça. Peço que sempre haja, nas gavetas do banheiro: uma pinça, duas tesouras de tamanhos diferentes, esparadrapo, band-aid, aspirina, soro e líquido de dakin. Admito que haja panes elétricas, pintura descascada e até rachaduras, mas por favor, eu lhe rogo, vazamentos não. Que numa tarde chuvosa de domingo, quando eu estiver sozinha e já tiver ido ao sacolão, corrigido lições e escrito duas resenhas, eu descubra, na prateleira do corredor dos quartos, aquele suplemento de jornal que eu vinha procurando há algumas semanas e que tem um artigo que eu queria tanto ler. Que a minha casa tenha uma bagunça mediana, não demais a ponto de inviabilizar o trânsito nem de menos a ponto de parecer inabitada. Que os documentos não fiquem espontaneamente mudando de lugar e desaparecendo das pastas e que haja pastas, muitas pastas, mas que eu me lembre de colocar nelas etiquetas indicando seu conteúdo. Que aqueles documentos desaparecidos combinem, uma vez a cada dois meses, de aparecer junto com as chaves, as meias e as fotografias do casamento dos meus pais. Rezo, enfim, Senhor, e sem negligência pelo móvel que há tanto tempo e tão fielmente me serve, que num dia, num dia nem tão distante, eu possa adquirir uma cama como a do hotel em que me hospedei apenas por uma noite em uma cidadezinha da Califórnia. De resto, meu Deus, agradeço-lhe com veemência que, logo aqui, a duas quadras desta que chamo de casa, mas que na verdade é como uma casca de mim, um ótimo estofador tenha aberto seu estabelecimento e que tenha consertado, com muito esmero e por um preço bastante justo, o meu sofá. (JAFFE, 2012).

Essa “oração” resume bem nossa preocupação quanto à casa dos sonhos. Nela – na casa – vivemos. Não apenas no sentido de sobreviver, mas de viver plena e intensamente. Relacionamo-nos com os objetos da casa e com o mundo. Desde os mais banais afazeres domésticos até a própria decisão de adquirir/construir uma casa, é cercada por uma carga simbólica e por um desejo que é maior que a necessidade de abrigo. Depositamos na casa nossos sonhos e a ela confiamos nossa segurança. Nas palavras de Dayse Sene: Tijolo, / sobre tijolo… / se constrói / a sua moradia. / Sonho, / sobre sonho…/ se alcança o infinito. (SENE, s/d).

É a partir da conexão de cada tijolo – real ou subjetivo – que erguemos nosso sonhos. Nossa casa é o espaço que congrega tudo aquilo que faz de nós que somos e que nos permite viver e experienciar o mundo. Falamos anteriormente do filme baseando na obra de Frank Baum, O Mágico de Oz. Esta obra do cinema também é famosa pela sua canção tema. Quem nunca ouviu e não se emocionou com Over The Rainbow? “Muito além, sobre o arco-íris, há um lugar, onde o céu sempre azul nos faz sonhar, onde a gente consegue os sonhos realizar”. Com o mesmo espírito de busca e desejo a canção é uma obra singela que nos emociona.

99 Em algum lugar além do arco-íris, bem lá em cima / Existe uma terra sobre a qual ouvi falar / Uma vez em uma canção de ninar. / Em algum lugar além do arco-íris, os céus são azuis / E os sonhos que você ousa sonhar / Realmente se tornam realidade. / Um dia, vou desejar a uma estrela / E acordar onde as / nuvens estão longe de mim / Onde os problemas derreteram como balas de / limão /Muito acima do topo das chaminés / É lá que você vai me achar. / Em algum lugar além do arco-íris, pássaros azuis voam / Pássaros voam por / cima do arco-íris / Então por que eu não posso? / Se pequenos e felizes pássaros azuis voam / Acima do arco-íris / Por que eu / não posso? (Harold Arlen, E.Y. Harburg, 1939).

Especialmente escrita para ser interpretada por Judy Garland no filme O Mágico de Oz, de 1939, esta canção personifica as esperanças e sonhos de juventude sobre um mundo ideal de amor e alegria. Chegou a ganhar o Oscar de melhor canção original e até hoje é uma das mais belas e mais interpretadas canções. Sua melodia melancólica e letra simples é um canto tanto de lamento quanto de esperança. A casa como contingência da condição humana nos remete a Heidegger (2005), quando em sua obra, Ser e o Tempo, fala da busca constante do lugar essencial. Ainda mais interessante é que para Heidegger essa busca essencial do ser se expressa pela linguagem poética. Lembra-nos a casa poética de que fala Bachelard (2008). Sobre essa busca humana vamos encontrar em Milton Nascimento uma das mais belas composições da MPB, Caçador de Mim, de autoria de Sérgio Magrão e Luiz Carlos Sá composta em 1981: Por tanto amor / Por tanta emoção / A vida me fez assim / Doce ou atroz / Manso ou feroz / Eu, caçador de mim / Preso a canções / Entregue a paixões / Que nunca tiveram fim / Vou me encontrar / Longe do meu lugar / Eu, caçador de mim / Nada a temer senão o correr da luta / Nada a fazer senão esquecer o medo / Abrir o peito a força, numa procura / Fugir às armadilhas da mata escura / Longe se vai / Sonhando demais / Mas onde se chega assim / Vou descobrir / O que me faz sentir / Eu, caçador de mim. (MAGRÃO; SÁ, 1981, Philips).

Sempre estamos em busca de nosso lugar. Os caminhantes antigos, os nômades do deserto, os nossos caminhantes andarilhos de rua ou os que não são andarilhos, mas moram na rua, esses também estão incluídos na busca do seu lugar: ter uma casa que vá além do corpo. Milton cantou de maneira emblemática essa procura. Sabe que é preciso audácia e “nada temer”. E que se poderá ir mais longe através dos sonhos. Não saber exatamente onde chegará, mas sabe que descobrirá o que o impulsiona nessa “caçada” por si mesmo. René Cazelles (1953), citado por Bachelard (2008) questiona:

100 A casa inencontrável em que respira essa flor de lavas, em que nascem as tempestades, a extenuante felicidade, quando deixarei de procura-la? (CAZELLES, 1953, p. 23, apud BACHELARD, 2008, p. 66).

Bachelard (idem), continua dizendo: Assim, uma imensa casa cósmica existe potencialmente em todo sonho de casa [...] uma casa tão dinâmica permite ao poeta habitar o universo. Ou, noutras palavras, o universo vem habitar na casa. (BACHELARD, 2008, p. 67).

Essa “casa cósmica” tem sido fonte de inspiração de poetas de todas as línguas. Inúmeras canções foram feitas, sempre traduzindo em versos o mesma anseio. A realização de uma vida inteira. A eterna busca pelo regresso a casa de infância – ou o retorno ao útero materno – nos faz projetar uma casa no futuro, análoga e simétrica à casa do passado. Mesmo que esse seja um passado inventado, tão fruto de nossos sonhos e devaneios como a casa futura. Mas não é a materialidade ou o quanto a casa é real. Importa que o nosso desejo por criar; o desejo de arquitetar, nos impele a essa busca. A necessidade de encontrar nosso lugar no mundo, nos faz buscar algo que não sabemos ao certo, mas elegemos a casa, nossa morada, como esse objeto a ser alcançado. Nossos temores e frustrações serão esquecidas ao chegarmos nessa casa ideal. Lá seremos felizes e estaremos satisfeitos. Mas isso enquanto estamos buscando. E essa busca, como já dissemos, é sempre uma busca por um objeto que está para sempre perdido. E por isso mesmo é tão essencial ao ser humano. A impossibilidade de se alcançar essa casa não nos impede de sonhar com ela. Essa impossibilidade não nos aparece como um dado objetivo, antes nossos desejos subjetivos que nos fez desejar e sendo fruto de nossa subjetividade não nos é dada objetivamente. Assim nossa busca segue na direção de um paraíso que perdemos e para o qual desejamos retornar, mesmo que este seja um paraíso perdido para sempre. Em muitas composições o lugar dos sonhos e a casa ideal são retratados como paisagens idílicas e bucólicas. Lugar de sossego e paz onde o contato com a natureza é sinônimo de felicidade e a vida segue em um ritmo sereno em contraste com a agitação dos grandes centros urbanos. A canção Casa no Campo de Zé Rodrix, composta em 1972, chegou a ser gravada por ele mas ficou imortalizada na voz de Elis Regina. Eu quero uma casa no campo / Onde eu possa compor muitos rocks rurais / E tenha somente a certeza / Dos amigos do peito e nada mais / Eu quero uma

101 casa no campo / Onde eu possa ficar do tamanho da paz / E tenha somente a certeza / Dos limites do corpo e nada mais / Eu quero carneiros e cabras pastando / Solenes no meu jardim / Eu quero o silêncio das línguas cansadas / Eu quero a esperança de óculos / E um filho de cuca legal / Eu quero plantar e colher com a mão, / A pimenta e o sal / Eu quero uma casa no campo / Do tamanho ideal, pau a pique e sapê / Onde eu possa plantar meus amigos / Meus discos e livros e nada mais. (RODRIX, 1972, Phonogram).

O próprio compositor chegou a dizer, em entrevista, sobre essa canção que ela era um “retrato de sua geração”. Na composição, o autor expressa a sua vontade de fugir. Ele chegou mesmo a fazer uma crítica a sua canção dizendo que seria melhor ter uma “casa no meio do mundo”, onde pudesse ver tudo e ser visto. Independente das críticas feitas pelo autor ou por qualquer outros críticos, como o próprio Zé Rodrix mencionou, ela retrata um momento histórico e aqui nos interessa justamente compreender melhor esse momento e ideia de casa nesse contexto. Podemos ver pela letra da canção certa relação com o arcadismo que tinha dentre suas características a intensa valoração e idealização da natureza. A exaltação do sossego e o campo como lugar ideal; a tranquilidade; a paz e a simplicidade de uma vida fora da agitação urbana, mostram a ânsia por um paraíso. Esse é o sonho por muitos acalentado: fugir do dia a dia agitado da cidade; sair dessa rotina cansativa e estressante; viver no campo, lugar de paz, tranquilidade e sossego. Também projetando no futuro esse desejo de alcançar um lugar ideal e de plena felicidade, o poeta recifense Manuel Bandeira, vai nos trazer no seu mais famoso poema Vou-me Embora Pra Pasárgada. Vou-me embora pra Pasárgada / Lá sou amigo do rei / Lá tenho a mulher que eu quero / Na cama que escolherei / Vou-me embora pra Pasárgada / Vou-me embora pra Pasárgada / Aqui eu não sou feliz / Lá a existência é uma aventura / De tal modo inconsequente / Que Joana a Louca de Espanha / Rainha e falsa demente / Vem a ser contraparente / Da nora que nunca tive / E como farei ginástica / Andarei de bicicleta / Montarei em burro brabo / Subirei no pau-de-sebo / Tomarei banhos de mar! / E quando estiver cansado / Deito na beira do rio / Mando chamar a mãe-d'água / Pra me contar as histórias / Que no tempo de eu menino / Rosa vinha me contar / Vou-me embora pra Pasárgada / Em Pasárgada tem tudo / É outra civilização / Tem um processo seguro / De impedir a concepção / Tem telefone automático / Tem alcaloide à vontade / Tem prostitutas bonitas / Para a gente namorar / E quando eu estiver mais triste / Mas triste de não ter jeito / Quando de noite me der / Vontade de me matar / — Lá sou amigo do rei — / Terei a mulher que eu quero / Na cama que escolherei / Vou-me embora pra Pasárgada. (BANDEIRA, 2001 p. 8).

Segundo seu autor, esse poema foi o de "mais longa gestação". Publicado no livro Libertinagem, de 1930. O nome Pasárgada, quer dizer campo dos persas e suscitou na imaginação do poeta uma paisagem fabulosa, um país das delícias.

102 É interessante o fato de que alguns verbos estão no presente “Lá tenho a mulher que desejo” ou “Lá sou amigo do rei”; enquanto outros estão no futuro: “Na cama que escolherei”. Isso pode denotar a confiança do poeta que no futuro seu sonho seria realidade. O autor fala como se já estivesse lá ou estivesse, em algum momento estado lá, ou ainda com certeza de que estará. Bandeira constrói o poema de modo a projetar um futuro que se torna real, talvez porque em seu devaneio de fato fosse real. Isso demonstra a profundidade de seu desejo de estar no Campo dos Persas. Sua Pasárgada, lugar idílico e fantástico. A posição de Bandeira, tanto no mundo literário eleito pela Academia Brasileira de Letras em 1940, quanto nas suas relações políticas, o tornaram amigo de personalidades importantes – dos "reis". Na verdade, o fato de que, no poema, sua amizade com o rei lhe concede benefícios, chega a ser irônica se pensarmos que na vida real ele também tinha amigos influentes. Mas isso não era suficiente para garantir sua felicidade. Muito mais do que status e qualquer benefício que isso poderia lhe trazer, o que ele realmente desejava eram coisas simples que estavam em Pasárgada. Enfim, o poema de Bandeira representa uma utopia; um lugar fantástico, nascido nos devaneios do poeta. Lugar onde tudo é possível. Representa um desejo de fuga. O poeta deseja fugir da morte. Ele busca realização. Anseia por fazer aquilo de que lhe foi negado em sua vida. Dois extremos estão representados: o presente e o imaginário; o que o poeta nega e o que deseja. Pasárgada é o Éden de Bandeira. É seu paraíso perdido. O cantor Gilson encantou o Brasil no ano de 1975, quando, em parceira com Joran lançou a canção Casinha Branca. É até hoje uma das canções mais regravadas e executadas da MPB e nos faz refletir. Eu tenho andado tão sozinho ultimamente / que nem vejo à minha frente nada que me dê prazer... / sinto cada vez mais longe a felicidade / vendo em minha mocidade tanto sonho perecer / eu queria ter na vida simplesmente / um lugar de mato verde pra plantar e pra colher / ter uma casinha branca de varanda um quintal e uma janela / só pra ver o sol nascer / às vezes saio a caminhar pela cidade / à procura de amizade / vou seguindo a multidão / mas eu me retraio olhando em cada rosto / cada um tem seu mistério / seu sofrer, sua ilusão / eu queria ter na vida simplesmente / um lugar de mato verde pra plantar e pra colher / ter uma casinha branca de varanda / um quintal e uma janela / só pra ver o sol nascer. (Gilson e Joran, 1975, CBS).

Apesar do tom saudosista e claramente melancólico da canção, assim como o poema de Bandeira, ela ressalta o desejo de encontrar no futuro um lugar melhor onde finalmente possa se sentir em casa e onde se pode ser feliz. Os sonhos da mocidade que

103 se perdem, a felicidade que se encontra cada vez mais distante, a solidão latente, tudo isso só aumenta mais o desejo de encontrar de ter uma vida simples e essa vida simples é representada pela imagem de uma “casinha branca de varanda”. É nessa casa onde a felicidade se encontra. Essa felicidade, lugar de descanso e realização são descritos na canção de Roberta Miranda que ficou imortalizada na voz de Jair Rodrigues, Sua Majestade o Sabiá (1985). Meus pensamentos tomam forma e eu viajo / Eu vou pra onde Deus quiser / Um vídeo tape que dentro de mim retrata / Todo meu inconsciente / De maneira natural / Ah! tô indo agora pra um lugar todinho meu / Quero uma rede preguiçosa pra deitar / Em minha volta sinfonia de pardais / Cantando para a majestade, o sabiá / A majestade, o sabiá. / Tô indo agora tomar banho de cascatas / Quero adentrar nas matas onde oxossi é o deus / Aqui eu vejo plantas lindas e cheirosas / Todas me dando passagem. / Perfumando o corpo meu. / Ah! tô indo agora pra um lugar todinho meu. / Quero uma rede preguiçosa pra deitar / Em minha volta sinfonia de pardais. / Cantando para a majestade, o sabiá / A majestade, o sabiá / Esta viagem dentro de mim foi tão linda. / Vou voltar à realidade, pra este mundo de meu Deus / É que o meu eu este tão desconhecido / Jamais será traído, pois este mundo sou eu / Ah! tô indo agora pra um lugar todinho meu. / Quero uma rede preguiçosa pra deitar / Em minha volta sinfonia de pardais. / Cantando para a majestade, o sabiá / Ah! tô indo agora pra um lugar todinho meu. / Quero uma rede preguiçosa pra deitar / Em minha volta sinfonia de pardais / Cantando para a majestade, o sabiá. (MIRANDA, 1985, Universal Music).

Em um tom que mescla a melancolia e a esperança, a canção descreve a alegria do encontro com o lugar de descanso. Esse encontro é apresentado como o fim de uma viagem; um retorno às origens onde finalmente se pode descansar em “uma rede preguiçosa” e desfrutar das “plantas lindas e cheirosas”; ouvira sinfonia dos pássaros. Sentir-se em casa! Percebemos que a casa que idealizamos e que projetamos no futuro como um lugar de realizações e felicidade é em essência o desejo de um retorno. Uma volta á casa que construímos em nossa memória afetiva como lugar de segurança e conforto. O espaço de morar onde nos formamos enquanto Ser e onde construímos nosso espaço de conforto e reconhecimento. Podemos ousar dizer que as três casas – casa-memória, casa-identidade e casa-promessa – são em síntese representações da mesma casa que se manifesta em três tempos – passado, presente e futuro – em uma tríade temporalidade. Nossa casa sonhada é a mesma que perdemos e também aquela que experienciamos. Nosso paraíso sonhado é também aquele abrigo que perdemos. Vivemos em busca desse lugar idealizado e nessa busca construímos a nós mesmos.

Capítulo IV

Por hora... Algumas considerações

106 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Descobrir consiste em olhar para o que todo mundo está vendo e pensar numa coisa diferente. (Roger Von Oech).

Iniciamos o trabalho sem ter claramente em nossa mente aonde ele nos levaria. A tarefa que empreendemos foi tentar rastrear um discurso acerca da casa. Tentamos, por meio de uma leitura de canções e poemas, por meio da análise do conteúdo (BARDIN, 1977), e fundamentados na teoria das representações sociais (MOSCOVICI, 1978, 1985; JODELET, 1985, 1991). Tomamos de empréstimo alguns conceitos da psicanálise (FREUD, 1973; WINNICOTT, 1983, 1985, 1989) seguindo um roteiro não linear, pois que não nos interessava traçar um caminho evolucionário do conceito de casa, mas tão somente iniciarmos uma reflexão, sobre como a ideia de casa – e todas as suas múltiplas derivações e extensões – é apresentadas nos discursos feitos em canções e poemas reproduzidos ao longo do texto. Buscamos priorizar canções da nossa MPB e poemas da literatura brasileira, mas não nos limitamos a esses. A exemplo da canção Over The Rainbow e do poema Nossa Casa de autoria da poetisa portuguesa Florbela Espanca. Algumas citações de outros poetas ocorreram no trabalho mas limitaram-se a referências feitas em outras obras que tomamos como referencial para nossas reflexões. Como em qualquer trabalho acadêmico, nos deparamos com alguns limites. Muitos temas e questões – de relevância inquestionável para as ciências humanas – poderiam ter sido agregadas ao texto. Entretanto, além do limite temporal que somos obrigados e respeitar, fomos limitados por uma questão maior: a pouca maturidade do autor. Assim, buscamos a todo momento nos valer de referências teóricas que pudessem embasar nosso pensamento e permitir um melhor entendimento das questões estudadas. Dentro desse aporte teórico foram fundamentais os trabalhos de Lúcia Leitão: A Casa Nossa de Cada Dia19 (2007), Quando o Ambiente é Hostil (2009) e Onde Homens e Coisas se Encontram (2014); o trabalho do filósofo francês Gaston Bachelard, A Poética do Espaço (2008); as reflexões de Witold Rybczynski em seu livro Casa: pequena história de uma ideia (1996); a obra de Joseph Rykwert A Casa de Adão no Paraíso (2009) e os escritos de Martin Heidegger Ser e o Tempo (2005) e Construir, Habitar, Pensar20 (2015). Obviamente que muitas outras obras foram consultadas,

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Organizado em parceria com professor Luiz Amorim

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Conferência Segunda Reunião de Darmastad

107 principalmente para auxiliar na seleção da obras – canções e poemas – que foram analisadas e como forma de ampliar os horizontes de reflexão. O objetivo a que nos propusemos foi, para nós, bastante desafiador. Nossa intensão era de investigar nas obras musicais e nos poemas, considerando-os como discursos que carregam consigo uma gama de conceitos e uma carga simbólica reflexo da sociedade que as produziu, a ideia que era manifesta sobre a casa e o lar. Assim, nosso objetivo foi o de investigar nas canções e poemas as ideias que a sociedade tem construído sobre a casa e o lar. Assim como Bachelard (2008) nos diz que a casa é uma das maiores forças de integração para os pensamentos, as lembranças e os sonhos do homem, tentamos verificar se essa ideia-força se faz presente nas canções e poemas analisados. O que pudemos constatar é que de fato a concepção de lar e de casa enquanto lugar de abrigo e também lugar desejado se faz presente nessas obras se apresentando como um tema recorrente nas obras de músicos e poetas que cantaram e poetizaram a casa colocando-a como uma referência carregada sempre de simbolismo e afetividade. Refletindo sobre o papel que é atribuído à casa e aos espaços de moradia, percebemos que a qualidade do espaço e da habitação humana está ligada ao conceito de lugar central enraizador; ponto de referência de um sujeito corpóreo no mundo. A casa é a apresentada como representação única e singular; vívida e situada na subjetividade dos sujeitos. A casa é entendida como a continuidade do sujeito tanto biológica quanto simbolicamente. Nesta perspectiva, pensar o ambiente, o espaço e a casa são possibilidades de pensar as identidades dos sujeitos dentro de um tempo histórico e em um espaço social. É pensar suas trocas simbólicas, suas marcas constituidoras de identidades e modos a dialogar. Essas trocas entre o sujeito e sua casa estão na base do processo de identificação ou pertencimento que um sujeito atribui ao seu entorno. Acreditamos que de nosso esforço aquilo que pudemos encontrar de mais significativo encontra-se na identificação de três tempos em que a casa é representada nas obras estudadas. Pudemos perceber que uma primeira casa é aquela projetada para o passado. Uma casa-memória onde encontramos os traços de uma afetividade intensa e geralmente associada a infância. Uma segunda projeção da casa é a casa-identidade que se projeta no tempo presente. Ela é o espaço de pertencimento e de segurança. Finalmente, uma terceira projetação da casa é a que se lança para o futuro. Trata-se da casa-promessa ou casa-esperança. Figura como uma casa idealizada e que é sonhada e

108 desejada. Sempre como uma promessa de felicidade e realização. Ao identificarmos a casa-memória, em muitas obras, vimos que ela sempre se mostra como uma casa perdida que não existe mais ou que por circunstâncias da vida foi deixada para trás. Ele evoca um sentimento de nostalgia. É para lá que desejamos voltar. Lembramos aqui o que nos diz Freud sobre origem dos desejos. A luz do pai da psicanálise, torna-se plausível a ideais de que o anseio pelo abrigo que perdemos no nascimento – o útero materno – é o que nos faz construir um passado idealizado onde éramos mais felizes, onde estávamos mais seguros. A casa seria então um substitutivo simbólico desse primeiro abrigo. Nosso desejo é o de recuperar – ainda que simbolicamente – a segurança do ventre materno. A casa-passado é esse símbolo e por isso estaria na origem de nossas memórias afetivas mais profundas. Projetamos em um passado onírico nossa casa; mais ainda, fazemos desse passado nossa morada perdida, nosso paraíso perdido. Para onde sonhamos ardentemente regressar. Muitas canções e poemas cantam esse anseio pela regresso ou a dor da perda da casa irreversivelmente perdida. Em Casinha Pequenina, Nara Leão canta: “tu não te lembras da casinha pequenina onde o nosso amor nasceu?” é um lamento pela casa testemunha de uma fase feliz que ficou no passado e não parece ter esperança de voltar. Sobre essa perda Bachelard (2008), nos diz: A casa não vive somente no dia-a-dia, no curso de uma história, na narrativa de nossa história. Pelos sonhos, as diversas moradas de nossa vida se interpenetram e guardam os tesouros dos dias antigos. Quando na nova casa, retornamos as lembranças da infância [...] lembranças de proteção. (BACHELARD, 2008, pp. 25).

A casa-passado é nosso baú de tesouros. É parte de quem nós somos e invariavelmente está ligada à nossa identidade, pois é a partir dessa casa primeva que vamos perceber todas as outras casas. A constituição de nossa identidade está umbilicalmente associada a nossa noção de lugar. Heidegger (2015) nos diz que a única possibilidade que o homem tem para ser e estar no mundo é habitando-o. Assim, temos que a casa é o espaço privilegiado no processo de constituição de identidade do indivíduo; a casa-identidade. Uma casa se projeta no presente e figura como nossa referência no mundo. No espaço

109 privado da casa podemos ser nós mesmos. A casa, portanto, é o refúgio no qual permitimos a nós expressar-nos integralmente. A noção da casa enquanto esse refúgio não deixa de estar ligada à casa-passado. Tentamos sempre recriar a nossa casa perdida no presente. Tomando de empréstimo um conceito da psicanálise de Winnicott, podemos dizer que a casa concentra as condições para que possa ser um ambiente “suficientemente bom”. A casa é o terreno habitado pelo homem e ele o ocupa com intimidade. Nos versos de Arnaldo Antunes podemos ver o quanto a casa e o indivíduo podem ser representados como um só ser: Na nossa casa amor-perfeito é mato / E o teto estrelado também tem luar / A nossa casa até parece um ninho / Vem um passarinho pra nos acordar / Na nossa casa passa um rio no meio / E o nosso leito pode ser o mar / A nossa casa é onde a gente está / A nossa casa é em todo lugar / A nossa casa é de carne e osso / Não precisa esforço para namorar / A nossa casa não é sua nem minha / Não tem campainha pra nos visitar / A nossa casa tem varanda dentro / Tem um pé de vento para respirar / A nossa casa é onde a gente está / A nossa casa é em todo lugar (ANTUNES, 2004, Rosa Celeste/BMG)

A casa-identidade também é nosso lugar de privacidade. Espaço de intimidade. Segundo Rybczynski (1996), a ideia de intimidade e de privacidade surge como uma consequência das transformações das condições da vida urbana e essa domesticidade dependeria do desenvolvimento de uma consciência interior: A domesticidade é um conjunto de emoções sentidas, e não um único atributo. Ela está relacionada à família, à intimidade, à devoção ao lar, assim como a uma sensação da casa como incorporada – e não somente abrigo. (RYBCZYNSKI, 1996, p. 85).

Essa privacidade deve ser preservada. Como canta Luiz Gonzaga, o que é privativo da vida interna da casa “não é da conta de ninguém” que seja de fora. A casa abre as portas para o mundo externo, mas impõem limites. Assim, pensar o ambiente da casa é uma possibilidade de pensar as identidades dos sujeitos alocados em um tempo histórico e em um espaço social; é pensar suas trocas simbólicas, suas marcas identitárias. Temos, por fim, a casa-promessa. Aquela que se projeta para o futuro. Projetase para o futuro, mas tem na casa-memória que habita nossas memórias, seu modelo. Heidegger nos fala, na obra Ser e o Tempo (2005), sobre a busca constante do lugar essencial. Sempre estamos a buscar esse lugar ideal. Podemos falar que esse lugar ou essa casa, ou ainda mais precisamente, esse anseio pela casa, é fruto da saudade da

110 casa-memória-passado. É um querer utópico. Sempre projetada no futuro, simbolizando o estado de plena satisfação, segurança e felicidade, a casa-promessa se apresenta para nós como o paraíso que tanto buscamos. Vemos assim, que os três tempos ou as três projeções da casa – casa-memória, casa-identidade e casa-promessa – são em essência uma só casa. Assim como não se pode pensar o tempo como uma linha contínua num fluxo que viria do passado em direção ao futuro, não podemos pensar que as três projeções da casa sejam momentos estanques isolados. A casa-memória que evoca nossos sentimentos de saudade e nostalgia, é nosso modelo – associado ao estado de segurança do útero materno. A casaidentidade não está desconectada desse modelo. Nossa identidade tendo como fundamento nosso lugar de pertencimento está assim vinculada à nossa primeira noção de casa – a casa-memória. Nossa casa idealizada – a casa-promessa, tem na nossa primeira ideia de casa – casa que se projeta para o passado – seu modelo, pois é sempre uma busca ao estado de proteção e segurança. Temos então três manifestações da mesma casa expressa nas obras poéticas analisadas. Neste ponto em que chegamos, poderíamos refazer o trabalho, alçando novas perspectivas. Poderíamos, ao invés de ouvir/ler poemas e canções sobre a casa, escutar as vozes dos que nela habitam. Assim seria possível fazermos novas reflexões e chegarmos a outras respostas. Ao nos questionarmos se respondemos ou não aos nossos objetivos, a resposta, pode ser positiva, na medida em que fizemos uma leitura das obras poéticas que nos propusemos e encontramos nelas, alguns discursos que apresentam conceitos sobre a casa e o lar. Por outro lado poderíamos dizer que nossos objetivos ainda não foram totalmente respondidos. Talvez nunca respondamos como desejamos. Há ainda, outro e importante aspecto do paralelo entre arquitetura e música que pode ser abordado. Segundo Cullen (1983), o homem, ao passear pela cidade, deve ser surpreendido a cada nova perspectiva, a cada novo cenário que se revela. Os versos dos poemas e canções que selecionamos para nossas reflexões também nos surpreendem a cada palavra. Constitui-se, assim em uma verdadeira aula de arquitetura. Seja para leigos ou para os profissionais e acadêmicos do meio. Assim, chegamos ao final deste trabalho – mas não ao final da pesquisa que não pode ser esgotada em tão poucas páginas e breves reflexões. Cabe mencionar que um dos limites que nos fizeram frente foi o fato de não encontrarmos uma conclusão para

111 nosso trabalho. Entretanto essa é uma questão que antes de ser um problema se mostra como uma perspectiva atrativa. Desejamos mesmo que essa seja uma porta aberta. Até o momento mal adentramos no átrio dessa imensa casa que é o campo da investigação científica. Muitos cômodos ainda estão aguardando para serem explorados. Esta casa, com seus quartos e alcovas se mostra para nós como um instigante mistério a ser desvelado. Esperamos de alguma forma ter contribuído mesmo que minimamente para a construção do conhecimento no campo da arquitetura e o urbanismo que ainda nos é tão novo. Que outros autores possam se utilizar o que aqui está escrito para prolongar a pesquisa e seguir abrindo novas portas para novos cômodos e adentrando novas casas.

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