DANIEL ALBUQUERQUE DE ABREU

February 14, 2018 | Author: Ana Clara Valverde Sabala | Category: N/A
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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO NÚCLE...

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO NÚCLEO INTERDISCIPLINAR DE ESTUDOS E PESQUISAS EM DIREITOS HUMANOS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO INTERDISCIPLINAR EM DIREITOS HUMANOS

A SEMÂNTICA DA FAMÍLIA NO JOGO DEMOCRÁTICO BRASILEIRO: UMA ANÁLISE DA CONCEPÇÃO DE ENTIDADE FAMILIAR PROPOSTA PELO ESTATUTO DA FAMÍLIA À LUZ DOS DIREITOS HUMANOS

DANIEL ALBUQUERQUE DE ABREU

GOIÂNIA 2016

DANIEL ALBUQUERQUE DE ABREU

A SEMÂNTICA DA FAMÍLIA NO JOGO DEMOCRÁTICO BRASILEIRO: UMA ANÁLISE DA CONCEPÇÃO DE ENTIDADE FAMILIAR PROPOSTA PELO ESTATUTO DA FAMÍLIA À LUZ DOS DIREITOS HUMANOS

Dissertação apresentada ao Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direitos Humanos da Universidade Federal de Goiás, na linha de pesquisa Fundamentos Teóricos dos Direitos Humanos, como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Mestre em Direitos Humanos, sob a orientação da Profª Drª Helena Esser dos Reis e coorientação da Profª Drª Fernanda Busanello Ferreira.

GOIÂNIA 2016

Ficha de identificação da obra elaborada pelo autor, através do Programa de Geração Automática do Sistema de Bibliotecas da UFG.

Albuquerque de Abreu, Daniel A semântica da família no jogo democrático brasileiro: uma análise da concepção de entidade familiar proposta pelo Estatuto da Família à luz dos direitos humanos [manuscrito] / Daniel Albuquerque de Abreu. - 2016. 371 f. Orientador: Profa. Dra. Helena Esser dos Reis ; co-orientador Dra. Fernanda Busanello Ferreira. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Goiás, Faculdade de Direito (FD), Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos, Goiânia, 2016. Bibliografia. Inclui siglas, abreviaturas. 1. Família. 2. Estatuto da Família. 3. Democracia. 4. Direitos Humanos. I. , Helena Esser dos Reis, orient. II. Título.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO NllCLEO INTERDISCIPLINAR DE ESTUDOS E PESQUISAS EM DIREITOS HUMANOS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO INTERDISCIPLINAR EM DIREITOS ~IUMANOS

ATA DA DEFESA PÚBLICA DA DISSERTAÇÃO DO MESTRANDO DANIEL ALBUQUERQUE DE ABREU Aos trinta e um dias do mês de agosto de dois mil e dezesseis, às nove horas, na sala de vídeo da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás (UFG), foi instalada a sessão pública para julgamento da dissertação final elaborada pelo mestrando do Programa de Pós-graduação Interdisciplinar em Direitos Humanos da Universidade Federal de Goiás, Daniel Albuquerque de Abreu, matriculado sob o número 2014.1444 intitulada: "A semântica da família no jogo democrático brasileiro: uma análise da concepção de entidade familiar proposta pelo Estatuto da Família sob a luz dos Direitos Humanos". Após a abertura da sessão, a profa. Dra. Helena Esser dos Reis (UFG), orientadora e presidente da banca julgadora, deu seguimento aos trabalhos, apresentando os demais examinadores, profa. Dra. Maria Virgínia Leal (UFPE), prof. Dr. Douglas Antônio Rocha Pinheiro (UFG) e a coorientadora profa. Dra. Fernanda Busanello Ferreira. Foi dada a palavra ao mestrando, que expôs seu trabalho. Em seguida, procedeu-se a arguição da dissertação, iniciando pelo membro externo da banca, seguida imediatamente pela resposta do mestrando. Ao final, a banca reuniu-se em separado para avaliação do mestrando. Discutido o trabalho e o desempenho do mestrando foram solicitadas as correções no texto que seguem em anexo a esta ata. A banca julgadora considerou o mestrando ~vr::z.dO ,e foi, então, declarado ~t (;7 u,,D-frr,J ~rrvo 11..v( pelo presidente da banca examinado a. Nada mais havendo a tratar, fOI encerrada a sessão e lavrada a presente ata que será assinada por todos e entregue à Secretaria do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Direitos Humanos, para os fins.

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ra. Helena Esser dos Reis (UFG) Presidente

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Prof. Dr.

ouglas Antônio Rocha Pinheiro (UFG) Membro Interno r--""'

anda Busanello Ferreira (UFG) Coorientadora Praça Universitária c/ I" Avenida - Centro de Aulas D, 4° andar, Setor Universitário, Goiânia - GO Telefones (62) 3209 6532, (62) 3209 6022 e (62) 3209 6026 - ppgidh.ndh.ufg.br

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AGRADECIMENTOS À minha mãe Cléa e à minha irmã Raquel, por serem meu exemplo de força e resiliência. Já enfrentamos muitos desafios e superamos tantas dificuldades; mas, ainda que já calejadas, estendemos as mãos uns aos outros, e, com muito amor, caminhamos sempre adiante. Agradeço, além do apoio que me deram durante o percurso do Mestrado, também a paciência e doçura para comigo. Ao meu pai Austiclínio (in memorian) por ser meu referencial de honestidade, de humanidade e por me fazer acreditar nos meus sonhos. “Há tempo para tudo debaixo do sol”, ele nos dizia. Há quem diga que eu perdi meu pai muito cedo – essas pessoas, porém, jamais saberão o quanto que ganhei, à sua maneira, em cuidados e em amor. À minha orientadora Profa. Helena Esser dos Reis e à minha coorientadora Profa. Fernanda Busanello Ferreira, por, acima de tudo, me acolherem com o coração tão aberto. Agradeço as leituras críticas, sugestões, contribuições, observações e as portas abertas para o constante diálogo. Senti-me, ao longo de todo o processo, verdadeiramente amparado e incentivado por minhas “duas mães”. Este trabalho, escrito por seis mãos, não teria sido realizado sem sua dedicação e apoio. Aos professores e professoras, amigos, amigas e colegas do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Direitos Humanos e da Universidade Federal de Goiás, em especial: Prof. Douglas Pinheiro, Profa. Helena Esser, Profa. Fernanda Busanello (que me recebeu como estagiário docente em Jataí-GO), Profa. Cerise de Castro, Profa. Rosani Leitão, Prof. Ricardo Barbosa, Prof. João da Cruz Gonçalves Neto, Profa. Vilma Machado, Profa. Luciana Dias, Prof. Diógenes Faria de Carvalho, Ana Maria, Marisa Damas, Bia Bonach e Faustino Leite por todo o suporte e auxílio, tanto institucional como acadêmico. Aos meus queridos e queridas Alex Pinheiro, Daniela Cintra, Débora Barros, Elias Menta, Fábio Teles, Fabrício Rosa, Felipe Bambirra, Fernanda Busanello, Flávia Nonato, Flávio Carvalho, Gustavo Mariano, Helena Esser, Hugo Yagi, Joe Jarvis, Lucas Borges, Luisa Coelho, Dra. Marlene Nunes, Marcelly Lopes, Nathalya Yagi, Rafael Lima, Rilene Coutinho, Robert Grenier, Sabrina Fonseca, Sérgio Nunes, Tales Gubes, Teresa Cristina e Zaine Lima. Ao Murilo e às pequeninas Milena e Manuela. Agradeço por tê-los em minha vida e em minha jornada. Aos meus companheiros e companheiras de mestrado Fabrício, Elias, Débora, Paula Fernandes, Tarihan, Ercivaldo, Germana, Fernanda, Marta, Natália Rita, Carolina, Nathália, Alline, Nelson e Mayara pelo carinho, amizade e irmandade.

À CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, pelo apoio financeiro. Ao Deus do amor.

“Enquanto eu estava apaixonado era o homem mais feliz do mundo; mas ninguém pode amar sem um coração, e por isso resolvi pedir a Oz que me dê um coração novo”. (BAUM, L. Frank. O Mágico de Oz. Rio de Janeiro: Zahar, 2013)

Sabali. Paciência.

RESUMO

O objetivo desta dissertação é verificar, por meio de uma abordagem interdisciplinar, se o conceito de entidade familiar proposto pelo Estatuto da Família (Projeto de Lei n o 6.583/2013) é compatível com a democracia brasileira e com os princípios constitucionais e internacionais de Diretos Humanos. Para a realização deste trabalho foi necessário evidenciar e pormenorizar o texto do Projeto de Lei, seus dois Pareceres e os argumentos utilizados pelos Deputados Federais quando da votação do segundo Parecer pela Comissão Especial da Câmara dos Deputados. O estudo foi desenvolvido a partir de averiguações acerca da construção semântica da entidade familiar no Brasil, em um percurso histórico-social a respeito do qual elegemos como significativos quatro marcos, quais sejam: 1) a atuação religiosa do Constituinte de 1987-1988, a qual, em última instância, contribuiu para a redação final do artigo 226 da Constituição Federal de 1988; 2) a interpretação do ordenamento jurídico sob a ótica neoconstitucionalista; 3) a posição de supralegalidade que os tratados internacionais de Direitos Humanos passaram a ocupar no ordenamento jurídico pós-1988, de acordo com o posicionamento majoritário do Supremo Tribunal Federal; e 4) os argumentos prolatados pelos Ministros do Supremo em seus votos quando da decisão acerca da equiparação das uniões homoafetivas às heteroafetivas (ADPF nº 132-RJ e ADI nº 4.277-DF), somados à Resolução nº 175/2013, editada pelo Conselho Nacional de Justiça, que facilitou a conversão das uniões homoafetivas em casamento. Demonstrou-se fundamental também manter um percurso interdisciplinar para refletir acerca da pluralidade de possibilidades construtivas e interpretativas do conceito de entidade familiar identificadas na literatura contemporânea. Esta dissertação ocupou-se ainda da caracterização da democracia brasileira, tendo como marco normativo a Constituição da República Federativa Brasileira de 1988, e adotou como diretrizes teóricas tanto a concepção procedimental de democracia segundo Norberto Bobbio, consubstanciada nas regras do jogo democrático, como a vertente substancial neoconstitucional defendida por Luís Roberto Barroso. Outro importante enfoque foi dado à principiologia constitucional e internacional de Direitos Humanos, a qual, para além da supralegalidade, revelou-se importante para a realização do controle de convencionalidade – sistema de compatibilidade vertical segundo o qual todas as normas infraconstitucionais a serem produzidas no país devem, necessariamente, passar por uma análise de compatibilidade tanto com a Constituição, como pelos tratados de Direitos Humanos, sob pena de padecer de inconstitucionalidade ou de ineficácia, respectivamente.

Por fim, na pesquisa analisou-se a semântica da família no Brasil a partir da ponderação de três argumentos centrais que permeiam o discurso dos Deputados Federais e dos Ministros do STF, no que diz respeito às discussões e confrontos entre o Estatuto da Família, a Constituição, os Direitos Humanos e democracia, quais sejam: a família enquanto instituição naturalizada; a primazia da visão de mundo conferida por cristãos evangélicos em detrimento das demais; e o entendimento de que a democracia se realiza apenas com a satisfação da “vontade da maioria”.

Palavras-chave: Família; Estatuto da Família; Democracia; Direitos Humanos.

ABSTRACT

This thesis aims to verify, by means of an interdisciplinary approach, if the concept of familial entity suggested by the Family Statute (Brazilian Law Project 6,583/2013) maintains compatibility with the Brazilian democracy and with the constitutional and international principles of Human Rights. In order to accomplish this work, it was necessary to evidence the text of the Law Project and its two Opinions, and also to examine in detail the arguments that have been used by the Federal Representatives when voting on the second Opinion at the Special Commission of the House of Representatives. This study was developed through investigations on the semantic construction of familial entity in Brazil, and through a historical and social about which we elected as significant four marks: 1) the religious actions of the Constituent Representatives in 1987-1988 which, ultimately, contributed to the final wording of the Brazilian Federal Constitution’s article 226; 2) the interpretation of the Brazilian legal order through the neo-constitutionalist lenses; 3) the position of supra-legality that the international treaties of Human Rights occupy in the post-1988 Brazilian legal order, according to the positioning of most of the Brazilian Supreme Court members; and 4) the arguments that have been used by the Brazilian Supreme Court members when voting on the equalization of the homo-affective and hetero-affective unions (ADPF 132-RJ and ADI 4.277-DF), in addition to the Resolution 175/2013 edited by the Brazilian National Council of Justice, which facilitates the conversion of homo-affective unions into marriages. Also, the interdisciplinary trajectory was proven fundamental to the reflections on the plurality of constructive and interpretative possibilities of familial entity identified by the contemporary literature. Moreover, this thesis dealt with the characterization of the Brazilian democracy based on the Brazilian Constitution of 1988 as its normative mark, and also on conceptions of democracy by both Norberto Bobbio’s procedural democracy (the rules of the democratic game) and Luís Roberto Barroso’s substantive democracy as theory guidelines for the work. Furthermore, the constitutional and international principiology of Human Rights received a special focus on this thesis, since, in addition to their supra-legal status, they are also essential instruments to the fulfillment of the conventionality control – a system of vertical compatibility according to which all the infra-constitutional legislation to be produced by Brazil must be necessarily and previously submitted to an analysis of compatibility with the Brazilian Constitution and the Human Rights treaties, in order not to suffer from unconstitutionality or inefficiency, respectively. Finally, this research endeavors the analysis

of the semantic of family in Brazil based on the consideration of three central arguments that permeate the discourse of the Federal Representatives and the Supreme Court Ministries, concerning the discussion of and confrontations between the Family State, the Brazilian Constitution of 1988, Human Rights and democracy, which are: the family as a naturalized institution; the primacy of the world view conferred by the evangelical Christians over all the others; and the understanding that democracy cannot be fulfilled by the merely satisfaction of the “will of the majority”.

Key-words: Family; Family Statute; Democracy; Human Rights.

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ABGLT

Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transsexuais

ADI

Ação Direita de Inconstitucionalidade

ADPF

Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental

AIDS

Acquired Immunodeficiency Syndrome – Síndrome da Imunodeficiência Adquirida

ANC

Assembleia Nacional Constituinte

ANIS

Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero

APA

American Psychiatric Association

Art.

Artigo

CADH/69 Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969 CID-10

Código Internacional de Doenças

CIDH

Comissão Interamericana sobre Direitos Humanos

CNBB

Conferência Nacional dos Bispos do Brasil

CNDM

Conselho Nacional dos Direitos da Mulher

CNJ

Conselho Nacional de Justiça

CPCs

Centros Populares de Cultura

CRFB/88

Constituição da República Federativa do Brasil de 1988

DUDH/48 Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 EC

Emenda Constitucional

e.g.

Exempli gratia – por exemplo

g.n.

Grifos nossos

GEDI

Grupo de Estudos em Direito Internacional - Universidade Federal de Minas Gerais

GLF

Gay Liberation Front

HC

Habeas Corpus

HIV

Human Immunodeficiency Virus – Vírus da Imunodeficiência Humana

IBDFAM

Instituto Brasileiro de Direito de Família

IBGE

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

IBOPE

Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística

ICJ

International Comission Jurists

i.e.

Id est – isto é

Inamps

Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social

IP

Protocolo de Internet

ISHR

International Service for Human Rights

LGBTTTI Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transsexuais, Transgêneros e Intersexuais LINDB

Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro

MJDH

Movimento de Justiça e Direitos Humanos

NOW

National Organization of Women

OAB

Ordem dos Advogados do Brasil

OEA

Organização dos Estados Americanos

OMS

Organização Mundial de Saúde

ONG

Organização Não-Governamental

ONU

Organização das Nações Unidas

p.e.

Por exemplo

PL

Projeto de Lei

Prouni

Programa Universidade para Todos

PSF

Programa de Saúde da Família

RE

Recurso Extraordinário

sic

Assim; deste modo; desta forma

STJ

Superior Tribunal de Justiça

STF

Supremo Tribunal Federal

SUS

Sistema Único de Saúde

TSE

Tribunal Superior Eleitoral

UNE

União Nacional dos Estudantes

UNESCO

Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura

WAS

World Association for Sexology

WLM

Women’s Liberation Movement

SUMÁRIO INTRODUÇÃO ................................................................................................................................... 15 CAPÍTULO I – O (DES)EMBARALHAR DAS CARTAS: ACERCA DA ESTRUTURA E DO ESTATUTO DA FAMÍLIA................................................................................................................ 21 1.1. O Estatuto da Família: origem, proposta e justificativa ........................................................... 21 1.1.1. Dois Pareceres (d)e um mesmo Projeto: aproximações e distanciamentos entre as visões dos Deputados Ronaldo Fonseca e Diego Garcia .................................................................................... 23 1.1.2. A votação da Comissão Especial da Câmara dos Deputados ................................................. 38 1.1.3. Os limites da democracia ou a democracia limitada: possíveis confrontos entre o Estatuto da Família, a Constituição Cidadã, os Direitos Humanos e a vontade da maioria? .............................. 45 1.2. Considerações sobre a semântica e os marcos do conceito de entidade familiar no Brasil ... 48 1.2.1. Por famílias e(m) movimento, parte 1: repercussões de dentro para fora ............................... 49 1.2.2. Por famílias e(m) movimento, parte 2: quatro principais marcos que revelam a construção da semântica de família no Brasil .......................................................................................................... 61 1.2.2.1. As cartas e jogadas de uma suposta maioria na Constituinte de 1987-1988 .................. 61 1.2.2.2. As marcas do neoconstitucionalismo e dos princípios de Direitos Humanos no Direito Brasileiro Contemporâneo ........................................................................................................... 69 1.2.2.3. Sobre a supralegalidade dos tratados internacionais de Direitos Humanos no ordenamento jurídico pós-1988 como posicionamento majoritário do Supremo Tribunal Federal ...................................................................................................................................................... 73 1.2.2.4. Breve análise dos votos dos Ministros do STF ao julgarem a ADPF nº 132-RJ e a ADI nº 4.277-DF em 2011 e as repercussões da Resolução no 175 do CNJ ............................................ 80 1.3. O que são famílias? Possibilidades construtivas e interpretativas a partir de um olhar interdisciplinar .................................................................................................................................... 92 CAPÍTULO II – TRILHANDO O JOGO DEMOCRÁTICO BRASILEIRO: MARCOS LEGAIS E CONCENTUAIS............................................................................................................ 106 2.1. As regras do jogo sobre a mesa: a democracia procedimental bobbiana como primeiro lance ............................................................................................................................................................. 108 2.2. Constituição e democracia: a proposta neoconstitucionalista como segundo lance ............. 118 2.3. Sob os trilhos da democracia? A CRFB/88 como marco legal democrático ......................... 128 2.3.1. A CRFB/88 sobre os trilhos procedimentalistas das regras do jogo ..................................... 130

2.3.2. O papel da CRFB/88 no jogo democrático substancialista: delimitando a sétima regra do jogo ........................................................................................................................................................ 138 2.4. Para além de aproximações entre a DUDH/48 e a CRFB/88: os Direitos Humanos na principiologia constitucional e internacional .................................................................................. 144 2.4.1. Para além da supralegalidade das normas internacionais de Direitos Humanos no Brasil: pela observação do controle de convencionalidade no jogo democrático brasileiro .............................. 163 CAPÍTULO III – QUAIS FICHAS CONTINUAM SOBRE A MESA? ANÁLISE E PONDERAÇÕES SOBRE A SEMÂNTICA DA FAMÍLIA BRASILEIRA À LUZ DA DEMOCRACIA E DOS DIREITOS HUMANOS ......................................................................... 171 3.1. “Bela, recatada e do ‘lar’”: as cartadas do heterocentrismo, da naturalização da família e do engessamento dos papéis sociais de homem e mulher, sobretudo nas relações familiares ......... 171 3.2. “Pelo meu país, por Deus, por minha família, pelas pessoas de bem [...]”: a primazia da visão de mundo conferida por uma religião em detrimento das demais e a consequente violação da igual dignidade humana na democracia brasileira ........................................................................ 188 3.3. Democracia é respeitar a maioria, que se manifesta a partir da sua consciência? A relevância dos Direitos Humanos e de uma agenda contra-hegemônica para a democracia, a semântica da família e o Legislativo ................................................................................................ 209

CONSIDERAÇÕES FINAIS ACERCA DE UM JOGO EM ANDAMENTO E DO ANDAMENTO DO JOGO: AS APOSTAS NO AFETO, PLURALISMO, RIQUEZA DE CULTURAS

E

RELIGIÕES,

DIVERSIDADE

E

TOLERÂNCIA

PARA

AS

DESORGANIZAÇÕES E REORGANIZAÇÕES DA FAMÍLIA CONTEMPORÂNEA NA DEMOCRACIA BRASILEIRA....................................................................................................... 239

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................................ 249

REFERÊNCIAS COMPLEMENTARES ....................................................................................... 259 ANEXO A – Projeto de Lei nº 6.583, de 16 de outubro de 2013 ................................................... 266 ANEXO B – Parecer do Relator nº 1 do PL 6.583/2013 pelo Deputado Ronaldo Fonseca (PROSDF) ...................................................................................................................................................... 276 ANEXO C – Parecer do Relator nº 2 do PL 6.583/2013 pelo Deputado Diego Garcia (PHS-PR) ............................................................................................................................................................. 312

INTRODUÇÃO

A Comissão Especial da Câmara dos Deputados aprovou, no mês de setembro de 2015, o segundo Parecer do Projeto de Lei no 6.583/2013, conhecido como Estatuto da Família. Tal Projeto de Lei tem como objetivo maior a sedimentação legal do conceito de entidade familiar, conforme preceitua o artigo segundo de seu texto original: a união “entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união estável, ou ainda por comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes” [grifos no original] (BRASIL, 2013a). Trata-se de um Projeto de Lei controverso, ao menos à primeira vista, na medida em que prevê direitos e políticas públicas voltados a apenas uma forma de entidade familiar: a tradicional, formada entre homem e mulher com fins reprodutivos, embora admitida a família monoparental, formada por qualquer dos pais e seus descendentes. O texto do Projeto de Lei, portanto, deixa à margem das proteções direcionadas à família as uniões formadas por indivíduos de mesmo sexo, assim como aquelas nas quais não houver a geração conjunta de descendentes – seja por vontade dos companheiros ou cônjuges, seja por causas de esterilidade as mais diversas. Ademais, não se encontram abarcadas pelo PL, por exemplo, as famílias afetivas, não construídas necessariamente pelos laços sanguíneos, de casamento ou união estável, como avós(ôs) que vivem com netos(as), tios(as) que vivem com sobrinhos(as); irmãos e irmãs que vivem em conjunto, sob dependência financeira ou não; as relações poliafetivas, marcadas pelo vínculo de convivência de mais de dois indivíduos sob o mesmo teto; e mesmo as eudemonistas, cuja característica principal é a busca da felicidade, do amor, e da solidariedade (DIAS, 2015). Os textos – tanto do primeiro Parecer, elaborado pelo Deputado Federal Ronaldo Fonseca (PROS-DF), como do segundo, subscrito pelo Deputado Federal Diego Garcia (PHSPR) – enfatizam que as uniões homoafetivas não devem ser enquadradas como família, base da sociedade. Ronaldo Fonseca chega a afirmar, nas linhas de seu Parecer, não saber se o homossexualismo1 é ou não patologia a ser tratada, motivo pelo qual entende ser mais salutar 1

Ressaltamos desde já que o termo homossexualismo foi substituído há anos por homossexualidade, em razão de o sufixo -ismo portar consigo carga patológica, segundo Adriana Nunan, em Homossexualidade: do preconceito aos padrões de consumo. No entanto, lembra Maria Berenice Dias, embora no ano de 1974 a American Psychiatric Association (APA) tenha retirado o termo homossexualidade da lista de doenças mentais, foi apenas em 1990 que a Organização Mundial de Saúde (OMS) seguiu o mesmo entendimento. Em que pese nos dias atuais estar em voga o termo homoafetividade, cunhada pela própria Dias, afigura-se-nos importante salientar que, conforme assevera João Silvério Trevisan (2007, p. 37), “qualquer descrição ou definição da atração sexual (ou meramente erótica) entre pessoas do mesmo sexo continuará se carregando de elementos pejorativos enquanto a sociedade mantiver a tendência de estigmatizar esse tipo de tendência. Daí porque me parece frágil”,

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que crianças continuem em abrigos a serem adotadas por casais do mesmo sexo. O Deputado também invoca a proteção divina constante no preâmbulo da Constituição Federal de 1988 para sustentar que todo o ordenamento jurídico, constitucional e infraconstitucional, “é dado sob a proteção de Deus” (BRASIL, 2014b). Nesse sentido, para Fonseca, embora seja o Estado laico, sem religião oficial, a Câmara dos Deputados deve respeitar o credo que considera balizador dos valores da maioria absoluta de religiosos e não religiosos, e que construiu a sociedade brasileira, qual seja o cristão2. Já o parecer de Diego Garcia arvora-se em supostos preceitos fundamentais e valores morais e éticos da sociedade, a fim de que se garantam direitos. O Deputado reconhece as discussões e debates travados na Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988 acerca do que reconher-ce-ia por família na novel Constituição Federal Brasileira e os adota como uma das justificativas legais e morais para a inserção da expressão entre o homem e a mulher no artigo 226 da CRFB/883 – e, consequentemente, os manuseia como justificativa também para sua réplica tal e qual no texto do PL no 6.583/2013. Famílias, afirma o Deputado, presumem a criação e recriação da comunidade humana de forma natural; os demais estilos de viver, como o homoafetivo, não mereceriam o direito à especial tutela do Estado. Essa é a síntese da discriminação positiva sugerida pelo Deputado Diego Garcia em seu Parecer. Por outro lado, o Supremo Tribunal Federal decidiu, em 2011, pela equiparação das uniões estáveis homoafetivas às heteroafetivas no julgamento conjunto da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 132-RJ e da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4.277-DF. Os Ministros da Corte Suprema sustentaram a extensão da conceituação jurídica de família e da especial proteção constitucional para os casais de pessoas do mesmo sexo, independente de procriação, afastado qualquer sentido continua o autor, “qualquer substituição meramente lingüística. Afinal, cada tempo tem a sua maneira de nomear, interpretar e identificar o mundo”. (sic) [grifos no original] 2 De acordo com o Deputado, a família é uma instituição merecedora de proteção e normatização sob a proteção da divindade que rege o credo da maioria religiosa no país e no Ocidente. (BRASIL, 2014b) 3 Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. § 1º O casamento é civil e gratuita a celebração. § 2º O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei. § 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. § 4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes. § 5º Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher. § 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio. § 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. § 8º O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações. (BRASIL, 1988)

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ortodoxo-religioso aos institutos do casamento e da união estável. Seguindo a mesma lógica, o Conselho Nacional de Justiça editou a Resolução no 175/2013, por meio da qual se proíbe que as autoridades competentes recusem a habilitação, celebração de casamento civil ou a conversão de união estável em casamento entre pessoas do mesmo sexo, sob pena de comunicação ao respectivo magistrado corregedor para que tome as providências cabíveis. Os Pareceres tanto de Garcia como de Fonseca rejeitam a decisão do Supremo e criticam-na. Para os Parlamentares, o Egrégio Tribunal usurpou competência do Legislativo e, ao invés de interpretar a Constituição de 1988, trouxe inovação para o mundo jurídico. O Estatuto da Família, ao que parece, levanta-se com pretensões a ser o mecanismo legal a pôr fim à discussão sobre a abrangência do conceito de entidade familiar por meio da interpretação literal do artigo 226 do texto constitucional. Diante dessa realidade latente no Congresso Nacional, no Judiciário e nos lares brasileiros, surgiram várias inquietações – tantas que jamais conseguiríamos abordar no presente trabalho. Em busca da viabilidade da pesquisa, e cientes de que nossas escolhas metodológicas interfeririam nos caminhos que percorríamos (e que deixamos de percorrer, por conseguinte), decidimos ater-nos ao estudo dos argumentos que envolvem e compõem o Estatuto da Família e analisá-los sob a ótica da democracia e dos Direitos Humanos como forma de delimitar o objeto do estudo. Partimos da seguinte problemática: afinal, seria o conceito de família trazido pelo Projeto de Lei compatível com a democracia brasileira e com os princípios constitucionais e internacionais de Diretos Humanos? Para respondermos essa indagação, realizamos pesquisa bibliográfica, que teve por objetivo conhecer as diferentes contribuições científicas disponíveis sobre o tema determinado. Verificamos, assim, as características e inter-relações (sejam harmônicas, interdependentes ou conflituosas) entre democracia, Direitos Humanos e o Estatuto da Família (Projeto de Lei nº 6.583/2013). Tal metodologia, desenvolvida de forma qualitativa e conforme o método dedutivo, deu suporte a todas as fases da pesquisa, uma vez que auxiliou na definição do problema, na determinação dos objetivos e na elaboração das hipóteses. Nesta perspectiva, analisamos, no Capítulo primeiro, os textos do Projeto de Lei 6.583/2013, seus dois Pareceres e os argumentos utilizados pelos Deputados Federais na Câmara dos Deputados quando da votação do segundo Parecer pela Comissão Especial daquela Casa de Leis, desatrelados, nesse momento, de análise crítica. Contudo, foi-nos possível perceber, com base nas discussões registradas, que determinadas categorias conceituais (p.e., democracia, família, vontade da maioria, laicidade estatal, direitos fundamentais e Direitos Humanos) foram utilizadas tanto por defensores quanto por

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opositores ao Estatuto da Família, atribuindo-lhes cargas polissêmicas distintas – por vezes, diametralmente opostas. Tendo em vista tais pluralidades de sentido, julgamos necessário, inicialmente, para o deslinde da pesquisa, averiguarmos como se deu a construção semântica4 de entidade familiar no Brasil. Assim, debruçamo-nos sobre alguns dos percursos históricos e sociais por que passaram os indivíduos e as famílias ao longo do tempo (com foco especial nas transformações pós-Segunda Grande Guerra), e, sobretudo, em quatro marcos por nós eleitos, quais sejam: 1) a atuação religiosa do Constituinte de 1987-1988, marcada pela imposição de valores supostamente compartilhados pela maioria e que contribuíram diretamente para a redação final do artigo 226 da Constituição de 1988; 2) a interpretação do ordenamento jurídico sob a ótica neoconstitucionalista, que tem a Constituição e sua principiologia como vetor principal axiológico de todo o ordenamento pátrio, inclusive para a intepretação jurídica de família; 3) a posição de supralegalidade que os tratados internacionais de Direitos Humanos passaram a ocupar no ordenamento jurídico pós-1988, de acordo com o posicionamento majoritário do STF, dotados de força necessária para até mesmo, em caso de conflito, paralisar a eficácia jurídica de qualquer norma infraconstitucional; e 4) os argumentos a respeito do que deve ser reconhecido como família no Brasil, utilizados pelos Ministros do STF, quando da decisão acerca da equiparação das uniões homoafetivas às heteroafetivas, que levou à Resolução editada pelo Conselho Nacional de Justiça a qual facilitou a conversão daquelas espécies de união em casamento. Ao final do primeiro Capítulo, após analisados os textos e argumentos que envolvem o Projeto de Lei, e de examinados alguns dos percursos históricos e sociais por que passaram os indivíduos e as famílias no pós-Segunda Grande Guerra, foi-nos possível tecer considerações acerca da pluralidade de possibilidades construtivas e interpretativas (co)existentes de 4

Na concepção trazida por Fernanda Busanello Ferreira (2015, p. 48), a qual adotamos neste trabalho, semântica “é o conjunto de sentidos por meio da qual uma sociedade se representa a si mesma”. Para a autora, a semântica “constitui sentidos, conteúdos de sentido”, podendo ser considerada, até mesmo, “uma espécie de ‘memória da sociedade’”, na medida em que nos transmite a história das ideias e dos conceitos. (FERREIRA, 2015, p. 48-50) Entretanto, Ferreira nos adverte que a semântica não é imutável; ao contrário, apresenta-se como sujeita a transformações evolutivas. A evolução semântica, portanto, é relacionada, de forma circular, à mutação das estruturas sociais. O aumento da complexidade social requer mudanças nas estruturas sociais – e, consequentemente, também a semântica social deverá passar por transformações, “sob pena de se perder seu contato com a realidade, isto porque a semântica assume a tarefa de descrever as transformações da sociedade e dos conceitos”. (FERREIRA, 2015, p. 50) Nesse sentido, determinada estrutura semântica pode se transformar em razão da diversificação das situações em que já era empregada (em razão das mutações sociais), e, ao fazer isso, acaba por oferecer a essas situações uma nova alternativa semântica, “desestruturando as seguranças semânticas até então existentes”. (FERREIRA, 2015, p. 50) Trocando em miúdos, estudar semântica é investigar o percurso histórico de um conceito para entender como aquele sentido se sedimentou socialmente. Assim, importa-nos, neste trabalho, examinar algumas das mudanças nas estruturas sociais e jurídicas que tenham levado à transformação da família.

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entidade familiar identificadas na literatura contemporânea sob a abordagem interdisciplinar5. Valemo-nos, ao longo desde Capítulo, do aporte teórico, sobretudo, de Regina Navarro Lins, Douglas Antônio Rocha Pinheiro, Luiz Mello de Almeida, Berenice Bento, Antonio Moreira Maués e Luis Roberto Barroso. No Capítulo segundo, dedicamo-nos à caracterização de outras categorias conceituais utilizadas pelos Deputados Federais para ambas defesa e oposição à aprovação do Estatuto da Família, notadamente a democracia e os Direitos Humanos. Em relação à democracia, esse conceito foi analisado sob os vieses procedimentalista – a partir dos estudos realizados por Norberto Bobbio – e substancialista, conforme as construções de Luís Roberto Barroso. Dessa forma, e ainda em razão das discussões que envolvem o Projeto de Lei, pretendemos evidenciar os contornos e limites da democracia brasileira, compreendida tanto a partir de um conjunto de regras de procedimento, as denominadas regras do jogo, como dotadas de um conteúdo mínimo a ser observado. Na mesma senda, evocamos que eventuais controles e limites à democracia devem seguir um marco normativo aberto, qual seja, a principiologia constitucional e de Direitos Humanos. Cumpre situar/alertar o leitor que, em alusão ao conceito mínimo de democracia proposto por Bobbio, consubstanciado nas regras do jogo, optamos, como procedimento lúdico, por apresentar os títulos e subtítulos da pesquisa em alegoria aos jogos de carta ou de baralho – esses compreendidos de forma genérica. Nesta perspectiva, servimo-nos determinados termos (a exemplo de cartas, cartadas, jogadas, lances, fichas, apostas e jogo democrático) como ilustrações para movimentos, argumentos e procedimentos que envolvem nosso objeto de pesquisa. A utilização de alegorias é justificada pelo intento de trazer um mínimo de leveza ao texto, considerando o esforço intelectual que é próprio dessa espécie de figura de linguagem, mas sem nos distanciarmos do rigor que se exige dos trabalhos acadêmicos. Seu uso, contudo, não tem nenhuma relação com as bases teóricas da chamada “Teoria dos Jogos”. A seguir, também no Capítulo segundo, ocupamo-nos da caracterização dos Direitos Humanos e das relações que mantêm com a democracia – tanto no viés procedimentalista como no substancialista. Ainda na tentativa de afastarmos cargas polissêmicas destoantes das principais características desse conceito, e com aporte teórico em Flávia Piovesan, 5

Cremos que o estudo proposto exige, como de fato exigiu, o diálogo e a contribuição de alicerces teóricos de áreas científicas diversas como o Direito, a Filosofia, as Ciências Sociais, a História e a Psicologia. O confinamento dos estudos de Direitos Humanos, democracia e formações familiares em disciplinaridades distintas é, a nosso ver, retirar a possibilidade de progresso que a transversalidade entre as mais variadas áreas da ciência pode oferecer. (DOGAN, 1996; LEFF, 2001; POMBO, 2003)

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salientamos as possibilidades de a principiologia constitucional dos Direitos Humanos dialogue com os princípios internacionais – esses últimos provenientes dos documentos recepcionados e incorporados constitucionalmente a partir da ratificação, pelo Brasil, de tratados internacionais de Direitos Humanos (seja como normas supralegais, seja como emendas constitucionais), nos termos do artigo 5º, § 2º, da Constituição em vigor. Ao final deste Capítulo, após as caracterizações de democracia e dos Direitos Humanos, apresentamos o tema do controle de convencionalidade, ancorado pelos ensinamentos de Valério de Oliveira Mazzuoli, como um dos limites à democracia (e, portanto, à “vontade da maioria”). De acordo com tal sistema, todas as normas infraconstitucionais a serem produzidas no país – dentre elas, notadamente, as que pretendem dispor sobre o conceito de família no ordenamento pátrio – devem, necessariamente, passar por uma análise de compatibilidade vertical, tanto com a Constituição, como pelos tratados de Direitos Humanos ratificados pelo Brasil. Em vista do percurso trilhado a respeito dos marcos semânticos da família no Brasil e considerando as possibilidades construtivas e interpretativas do conceito de entidade familiar apontadas pela literatura interdisciplinar, foi-nos possível construir o Capítulo terceiro e, com ele, à luz da democracia e dos Direitos Humanos previamente caracterizados, desembaralhar as categorias conceituais das quais lançaram mão os Deputados Federais nas arguições acerca do Projeto de Lei no 6.583/2013. Esse Capítulo, o derradeiro, foi composto por uma análise da semântica da família no Brasil a partir do aporte teórico apresentado ao longo do trabalho e da ponderação de três argumentos centrais que permeiam o discurso dos Deputados Federais e dos Ministros do STF, no que atine aos debates e confrontos entre o Estatuto da Família, a CRFB/88, os Direitos Humanos e democracia, quais sejam: a família enquanto instituição naturalizada; a primazia da visão de mundo conferida por cristãos evangélicos em detrimento das demais; e o entendimento de que a democracia se realiza apenas com a satisfação da “vontade da maioria”. Essa é a proposta do trabalho interdisciplinar que realizamos, e que esperamos ter contribuído para a nossa caminhada em democracia, para a semeadura do conhecimento e para a colheita da solidariedade e do afeto como partes constituintes das relações familiares.

CAPÍTULO I – O (DES)EMBARALHAR DAS CARTAS: ACERCA DA ESTRUTURA E DO ESTATUTO DA FAMÍLIA

1.1. O Estatuto da Família: origem, proposta e justificativa

No dia 16 de outubro de 2013, o Deputado Anderson Ferreira (PR-PE) apresentou à Câmara dos Deputados o Projeto de Lei no 6.583, que, nos termos do seu artigo primeiro, propõe instituir o Estatuto da Família e dispor “sobre os direitos da família, e as diretrizes das políticas públicas voltadas para valorização e apoiamento à entidade familiar” (BRASIL, 2013a). De acordo com a redação original assinada pelo Deputado Ferreira, em específico no artigo 3o, encontram-se obrigados o Estado, a sociedade e o Poder Público a assegurar à entidade familiar a efetivação de direitos tais como saúde, alimentação, educação, cultura, esporte, lazer, trabalho, cidadania e convivência comunitária. No artigo 4o do PL são elencadas diretrizes gerais a serem observadas pelos agentes públicos ou privados envolvidos com as políticas públicas voltadas para família. Já os artigos 5o ao 136 do Estatuto da Família tratam da garantia de direitos à família, por exemplo, a efetivação de políticas públicas; a atenção integral à saúde dos membros da entidade familiar por intermédio do Sistema Único de Saúde (SUS) e do Programa de Saúde da Família (PSF) com absoluta prioridade; a garantia de preferência no atendimento da família que estiver sob ameaças que envolvam álcool e drogas; a “prioridade na tramitação dos processos e procedimentos e na execução dos atos e diligências judiciais, em qualquer instância, em que o interesse versado constitua risco à preservação e sobrevivência da entidade familiar”; e a previsão da disciplina “Educação para a família” nas grades curriculares dos Ensinos Fundamental e Médio (BRASIL, 2013a). Por fim, o PL prevê, nos artigos 14 e 15, a criação dos conselhos de família, entendidos como “órgãos permanentes e autônomos, não jurisdicionais, encarregados de tratar das políticas públicas voltadas à família e da garantia do exercício dos direitos da entidade familiar”. Dentre os objetivos desses conselhos estão os de “auxiliar na elaboração de políticas públicas voltadas à família que promovam o amplo exercício dos direitos dos membros da entidade familiar estabelecidos nesta Lei” e de “propor a criação de formas de participação da família nos órgãos da administração pública” (BRASIL, 2013a). 6

Em língua portuguesa, quando da numeração de leis, decretos, artigos e outros textos considerados oficiais, deve-se empregar os números ordinais até o nono, e os cardinais a partir do número dez.

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No entanto, em que pesem as pretensões do Projeto de Lei em trazer ao ordenamento pátrio diretrizes gerais para a promoção de políticas voltadas à família, ou de assegurar o acesso integral à saúde de seus membros por intermédio do SUS e do PSF, para os fins desse Projeto de Lei, conforme seu artigo 2o, considera-se entidade familiar (e, portanto, únicos legitimados a gozarem dos benefícios e garantias insculpidos no PL) tão-somente “o núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união estável, ou ainda por comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes” [grifos no original] (BRASIL, 2013a). O autor do Projeto, quando da justificação de sua propositura, afirma que, embora a Constituição Federal de 1988, no seu artigo 226, tenha previsto que o Estado deve proteger a família, “o fato é que não há políticas públicas efetivas voltadas especialmente à valorização da família e ao enfrentamento das questões complexas a que estão submetidas às famílias num contexto contemporâneo” (sic) (BRASIL, 2013a). Desse modo, e em vista das “rápidas mudanças ocorridas em sociedade”, o Poder Público deve enfrentar os desafios que envolvem a promoção de políticas públicas que valorizem e fortaleçam a instituição familiar, assevera o Deputado. Ainda de acordo com a justificação, duas são as ideias defendidas pelo Estatuto da Família: a) “o fortalecimento dos laços familiares a partir da união conjugal firmada entre o homem e a mulher, ao estabelecer o conceito de entidade familiar”; e b) “a proteção e a preservação da unidade familiar, ao estimular a adoção de políticas de assistência que levem às residências e às unidades de saúde públicas profissionais capacitados à orientação das famílias” (BRASIL, 2013a). Em razão de todas as benesses e proteções previstas no Projeto de Lei no 6.583/2013 serem condicionadas ao prévio reconhecimento de quem as pleiteia como entidade familiar, a dificuldade central – e, portanto, a discussão central – do Estatuto da Família reside, a nosso ver, justamente no conceito ou na estrutura de família que apresenta. Afinal, o artigo 1 o do texto estipula que a Lei, se e quando aprovada, pretende dispor sobre os direitos da família, subordinando-os ao conceito ou à estrutura de entidade familiar que delimita no artigo 2o. Aliás, o conceito de família estampado no Projeto de Lei, defendido por alguns setores da Câmara dos Deputados e rechaçado por outros, é o foco das arguições de Parlamentares tanto nos dois pareceres exarados ao longo da tramitação do Estatuto da Família como o tema central da votação da Comissão Especial daquela Casa de Leis em setembro de 2015, conforme nos deteremos a seguir.

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Ainda, conforme o sítio eletrônico da Câmara dos Deputados7, a “polêmica sobre conceito de família” transformou-se em tema de enquete cujo objetivo foi o de “avaliar se os cidadãos são favoráveis ou contrários ao conceito incluído no Projeto de Lei 6583/13”. Durante a tramitação do Estatuto da Família, e em atenção às regulamentações internas da Câmara dos Deputados, foi criada em outubro de 2013 uma Comissão Especial para a análise do PL, tendo sido designado como Relator o Deputado Ronaldo Fonseca (PROS-DF). No ano de 2014 o Deputado Fonseca emitiu o primeiro Parecer do PL, mas que não chegou a ser votado no mesmo ano. Em razão disso, foi criada nova Comissão Especial em 2015 e designado novo Relator, o Deputado Diego Garcia (PHS-PR), que proferiu o segundo Parecer do PL, levado a votação na Comissão Especial em novembro daquele mesmo ano e, ao final, aprovado. Os dois próximos subitens serão destinados à apresentação dos argumentos de que se valeram os dois Pareceres e seus respectivos Relatores, e, resumidamente, das discussões da sessão de votação da Comissão Especial, que levou à aprovação do segundo Parecer e redação final do Estatuto da Família em 2015.

1.1.1. Dois Pareceres (d)e um mesmo Projeto: aproximações e distanciamentos entre as visões dos Deputados Ronaldo Fonseca e Diego Garcia

O Deputado Ronaldo Fonseca proferiu, em novembro de 2014, o primeiro Parecer concernente ao Estatuto da Família, alinhado, segundo seu entendimento, “aos preceitos constitucionais e valores morais e éticos de nossa sociedade” (BRASIL, 2014b). Um dos argumentos defendidos pelo então Relator afinca-se na literalidade da Constituição Federal de 1988. Na visão de Fonseca, o artigo 226 da CRFB/88 estabelece o que deve ser entendido por família, e é apenas a partir da satisfação dos requisitos ali estampados que a entidade poderá receber especial proteção do Estado e ser considerada base da sociedade. Ademais, para o Deputado, é necessário que os indivíduos, para encaixarem-se dentro da delimitação de família trazida pelo texto constitucional, cumpram com as obrigações de assecuração de direitos fundamentais às crianças e aos adolescentes trazidas pelo artigo 227, caput, da CRFB/888. 7

Disponível em: . Acesso em 1 abril 2016. Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. 8

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Segundo o que Fonseca sustenta, o Constituinte de 1987-1988 delineou apenas três formatos de entidade familiar: aqueles advindos do casamento, da união estável e o monoparental – a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes. Para o Relator, no entanto, em 2011, o Supremo Tribunal Federal introduziu na jurisprudência, “equivocadamente, um novo conceito de família formada pelos pares homossexuais”, ao julgar conjuntamente a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) no 132-RJ e a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) no 4.277-DF (BRASIL, 2014b)9. A esse respeito, o Relator critica o STF por ter, segundo seu raciocínio, usurpado prerrogativa do Congresso Nacional quando do reconhecimento das famílias homoafetivas. Para o Parlamentar, o Supremo não se ateve ao mandamento constitucional do artigo 226 e parágrafos, de forma que inovou o ordenamento. Outro argumento utilizado pelo Deputado Relator é a diferenciação entre família e relações de mero afeto. Defende que os alicerces da família, por um lado, implicam obrigações e direitos advindos da consanguinidade, a exemplo da paternidade responsável; por outro, implicam também a geração conjunta de novos cidadãos, que somente pode ser obtida por meio da união entre homem e mulher. Tanto a reprodução como a figura da criança, para Fonseca, são essenciais para que o Estado conceda especial proteção à família. Desse modo, e conforme as linhas do Parecer, tão somente a união entre homem e mulher permite a geração de cidadãos e, apenas “dessa instituição, a família, que o Estado teria justificativa de exigir conjuntamente e pessoalmente o cumprimento do dever do art. 227 e de conferir ESPECIAL proteção do Estado. É importante asseverar que apenas da família, união de um homem com uma mulher”, continua Fonseca (BRASIL, 2014b), “há a presunção do exercício desse relevante papel social que a faz ser base da sociedade”. É por esse motivo, explica, que a CRFB/88 traz expressamente, no parágrafo terceiro do artigo 226, o termo “o homem e a mulher”. Assim, de acordo com o Parecer do Parlamentar, não é o afeto, convívio ou a mútua assistência que motiva o Estado a proteger a família, mas sim a geração de descendentes, sua educação e a independência dos novos cidadãos – e esses, destaca, foram as razões e o 9

O então Governador do Estado do Rio de Janeiro propôs Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) em razão de sistemática negação de direitos, em especial os previdenciários, aos homossexuais por parte de dispositivos da legislação estadual fluminense e decisões proferidas pelo Poder Judiciário daquele ente federativo. No mérito, postulou a aplicação do regime jurídico das uniões estáveis de pares de sexos diferentes àqueles de mesmo sexo, à luz da principiologia constitucional, ao invés de uma leitura reducionista da Constituição Federal de 1988 e do Código Civil de 2002. Em sentido semelhante, a Procuradoria-Geral da República propôs Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) com vistas à declaração da obrigatoriedade de reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar brasileira, e que os casais de mesmo sexo possuam idênticos direitos e deverem gozados pelos companheiros de sexos diferentes.

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pensamento do Constituinte de 1987-1988. Afinal, aos olhos do Deputado, “família é família ainda que sem afeto ou felicidade” (BRASIL, 2014b). De forma semelhante, é com base na importância da figura dos filhos e filhas para a constituição de família que o Deputado justifica a especial proteção concedida à família monoparental, embora afirme que “o ideal é que a família se reja pelos ditames jurídicos do casamento, algo reservado ao casal, homem e mulher” (BRASIL, 2014b). Ainda acerca da composição e estruturação de família, outro argumento lançado mão pelo Deputado Ronaldo Fonseca tem lastro no preâmbulo do texto constitucional, em específico o seguinte trecho: “promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL” [grifos no original] (BRASIL, 2014b). Desse modo, em que pese a laicidade do Estado e a não-influência de autoridades eclesiásticas no Brasil, “todo o arcabouço jurídico que o constituinte coloca, incluindo-se a dignidade da pessoa humana, a igualdade perante a lei e demais direitos fundamentais, individuais e coletivos, é dado sob a proteção de Deus” (BRASIL, 2014b). Nesse sentido, para Fonseca, a Câmara dos Deputados deve respeito “ao credo reconhecidamente balizador dos valores da maioria absoluta de religiosos e não religiosos e que construiu nossa sociedade brasileira, bem como todo o ocidente” (BRASIL, 2014b). O Deputado Relator, então, caracteriza a família com base em duas estruturas formadoras sob a proteção de Deus; uma de base religiosa, que deve ser respeitada pelo Estado em atenção à maioria populacional cristã, e outra como instituição natural, que não pode ser modificada. Em suas palavras: não se pode considerar que a família seja invenção da religião, mas ela é reconhecida na Religião como algo essencial à sociedade e merecedora de respeito por parte do Estado; que não deve querer modificá-la, apenas pode ver motivos para protegê-la. Não se trata, portanto, de uma questão religiosa, mas de respeito à opinião da população que, além de ver razões fáticas que fazem da família uma instituição merecedora de proteção e normatização, a consideram o centro do ensino, desenvolvimento e orientação do indivíduo sob a proteção de Deus. (BRASIL, 2014b)

Por outro lado, de acordo com o Parlamentar, das uniões de mero afeto não se presume a reprodução conjunta nem o cumprimento do papel social de criar e educar filhos – razão pela qual não merecem a especial proteção do Estado nem o status de base da sociedade. Conclui ainda que esse tipo de relação não deve ser tutelado pelo Direito de Família, mas pelo Direito Civil. Nos termos do Parecer, toda relação de mero afeto já goza de “instrumentos válidos para que seus integrantes a formatem da maneira que desejarem”, seja pelas vias contratuais ou testamentárias (BRASIL, 2014b).

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Especialmente em relação aos pares homossexuais (que, a seu ver, não constituem famílias, mas relações de mero afeto), Fonseca entende que: Estender o arcabouço jurídico protetivo e obrigacional da família a pares homossexuais gera: a) enriquecimento sem causa por não se presumir deles o ônus de ser base da sociedade; b) discriminação contra o indivíduo não integrante desse tipo de relação; pois haveria o gozo de direitos especiais não extensíveis a todos; não sendo justo obter subsídio Estatal pelo simples fato de conviver com outrem, ao contrário; c) injustiça, pois em nada estaria reconhecida a relevância e o reconhecimento do papel da união do homem e da mulher como sustentáculo da sociedade, razão da existência de especial proteção. [grifo nosso] (BRASIL, 2014b)

Como se percebe da leitura, para o Deputado, a eventual aceitação pela sociedade do comportamento homoafetivo, além de consistir em enriquecimento sem causa, discriminação contra o não-homossexual e injustiça, também “não transforma e não cria, de per si, novo ‘papel social’ identificável nessas relações e não se mostra possível reprodução advinda da união que as possibilite gozar da presunção dada às famílias pelo enlace do homem com a mulher” (sic) [grifos no original] (BRASIL, 2014b). As relações de mero afeto – e, mais uma vez, em especial as homoafetivas – geram, para Fonseca, reflexos negativos concernentes à adoção. Isso porque, segundo o Relator, existe o risco de trauma para a criança em razão da perda ou da falta de convívio com o pai ou a mãe. “Nas relações de mero afeto, sobretudo nas que as pessoas que a compõe forem de mesmo sexo”, afirma, “a criança que sob essa hipótese fosse adotada passaria a ter de maneira irremediável a ausência da figura do pai, ou da mãe”. No entanto, “a adoção por solteiro ou por uma única pessoa, não teria esse condão contrário à plenitude do interesse da criança e teria o paralelo com a família monoparental” (sic) (BRASIL, 2014b). De mais a mais, no entender do Relator, a adoção conjunta por pessoas do mesmo sexo afasta a restituição da condição anterior da criança e não prioriza seus interesses e carências; pelo contrário, trata-se de inseri-la em uma estrutura que lhe é “completamente anômala”, ou de trazê-la “para o meio de um furacão”. Afinal, segue Garcia, “despido de qualquer preconceito”, não está pacificado na sociedade que homossexuais podem formar famílias. Afirma que embora a Organização Mundial de Saúde (OMS) tenha retirado o termo “homossexualismo” da Classificação Internacional de Doenças (CID-10) há mais de vinte anos, “tal atitude não proveio de estudos científicos cabais que fizessem considerar tal comportamento como normal. Ainda são feitos trabalhos científicos que apontam comportamentos ligados ao homossexualismo como relacionados a distúrbios, objeto de estudo na medicina”. E arremata que “Como tais assuntos não estão cabalmente definidos

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pela academia científica, não se pode subordinar a direção da vida de crianças a potenciais riscos” (BRASIL, 2014b). Pontua ainda Fonseca que é fundamental para o bom desenvolvimento da criança e da sociedade ter convívio com a figura do pai e da mãe – “algo observável pelos séculos, testado pela sociedade e amplamente reconhecido como algo bom”. É por esse motivo que, “o fato de crianças estarem em abrigos, como alguns alegam, ‘abandonadas’, não deve ser uma justificativa para, simplesmente, entregá-las à adoção a casais homoafetivos”. Assim, para o Parlamentar, e valendo-se de citação do Cardeal italiano Angelo Bagnasco, antes as crianças continuarem à espera da adoção que imiscuírem-se a essas “novas figuras” de família, que “têm o único objetivo de confundir as pessoas e criar uma espécie de Cavalo de Troia, invenção utilizada pelos gregos na Antiguidade para invadir e destruir a cidade homônima” (BRASIL, 2014b). Por fim, o Parlamentar apresenta um substitutivo ao Projeto de Lei, que, para citar algumas modificações em relação à redação original, inclui o direito à vida desde a concepção e prevê a seguinte alteração na Lei no 8.069/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA): para a adoção conjunta os adotantes devem ser casados civilmente ou manterem união estável conforme o artigo 226 da CRFB/88, além de comprovada a estabilidade da família. Em vista do término das atividades legislativas de 2014 sem que o Parecer subscrito pelo Deputado Ronaldo Fonseca tivesse sido votado, o Projeto de Lei no 6.583/2013 passou, logo no início de 2015, por um arquivamento, um desarquivamento e a designação de nova Comissão Especial destinada a proferir outro parecer ao PL. No início de setembro de 2015 o novo Relator, Deputado Diego Garcia, apresentou o segundo Parecer ao Estatuto da Família. Embora os argumentos de Garcia mais se distanciem do que se assemelhem àqueles defendidos por Fonseca, ambos os Pareceres aparentem seguir o mesmo projeto: a afirmação da literalidade do artigo 226 da Constituição Federal como chave e condição para o reconhecimento de uma entidade familiar. Semelhantemente ao de Fonseca, logo no início o segundo Parecer assevera estar “alinhado aos preceitos constitucionais e valores morais e éticos de nossa sociedade, com o fim de garantir direitos e o desenvolvimento de políticas públicas para a valorização da família”. Também, ao iniciar suas considerações quanto ao mérito da discussão, deixa claro que se faz necessária a atenção à “consciência histórica e humana da Constituição vigente” (BRASIL, 2015a).

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No mais, adianta que a construção do Parecer é marcada por sete pontos – e, por essa razão, entendemos ser mais didático que os argumentos do Relator sejam aqui apresentados seguindo a mesma ordem que foram escritos. O primeiro ponto constante no documento foi denominado A competência originária e exclusiva da Constituinte e do Congresso Nacional para legislar em matéria de Direito de Família. Nesse momento Garcia ressalta a importância que o Parlamento tem para um Estado de Direito Democrático e critica o Poder Judiciário quando, “para além de resguardar direitos, cria-os para além de suas funções constitucionais” (BRASIL, 2015a). Notadamente em relação ao conceito e à estrutura de família, Garcia aponta que “o desenho estipulado pela Constituição segue o melhor tanto quanto à técnica, quanto ao conteúdo” e indaga, que configuração de família se identificaria com a base da sociedade e, logo, credora dessa especial atenção do Estado? Seria aquela que cada pessoa tem como sendo sua família, independentemente de qualquer critério objetivo, ou haveria características necessárias para reconhecimento jurídico de um agrupamento como tal? (BRASIL, 2015a)

Assume o Relator que são necessários critérios objetivos pontuais para a caracterização e reconhecimento jurídico de uma entidade familiar, critérios esses delineados no artigo 226 do texto constitucional. Além disso, defende que esse mesmo artigo bem expressa a vontade do Constituinte de 1987-1988, despida de quaisquer preconceitos, conforme evidenciam os anais daquela Assembleia Nacional Constituinte (ANC). Segundo Garcia, muito embora o Constituinte tenha restringido a especial proteção do Estado e a base da sociedade para alguns grupos seletos de indivíduos, não vedou “que outras associações pudessem ser criadas, sob outro argumento, pelo Parlamento, com fundamento não no art. 226, mas no conjunto de dispositivos das garantias fundamentais” (BRASIL, 2015a). Dentre essas “outras associações” que podem ser criadas as quais se refere o Deputado, e que não recebem as proteções constitucionais do artigo 226, encontram-se as associações ou os arranjos entre pessoas de mesmo sexo, por vontade expressa do Constituinte. Nos termos do Parecer: A Constituição de 1988, por sinal, surge quando já havia parceria civil de pessoas do mesmo sexo na Inglaterra, e isso mesmo levou os constituintes a ratificarem, como se encontra nos anais da Constituinte, que a união estável apta a especial tutela seria “entre o homem e a mulher”, com artigos “o” e “a” antecedendo cada palavra, de modo a clarificar qual seria o modelo habilitado para a especial proteção estatal. Isso de modo algum significa proibição a qualquer outro arranjo social que os cidadãos desejassem estabelecer entre si, e não contrariasse a lei. Simplesmente indicavam as situações de especial atenção do Estado com base no art. 226, que é restritivo,

29 propositadamente, por duas expressões: base da sociedade e especial proteção. (BRASIL, 2015a)

Assim, enquanto Fonseca apenas menciona a necessidade de se enxergar o pensamento do Constituinte e de se identificar suas razões na construção do Estado (e, nomeadamente, da estruturação da família), Garcia apresenta conhecimentos mais aprofundados acerca da vontade do Constituinte10 à época, e os motivos que os levaram à redação final do artigo 226 da CRFB/88. O segundo ponto levantado pelo Parecer, Honestidade intelectual e respeito às opiniões divergentes, tem o intuito de “identificar e banir” do ambiente das discussões “algumas falsas dicotomias, que efetivamente desviam do saudável debate de ideias” (BRASIL, 2015a). “Quem não advoga pelo casamento de pessoas de mesmo sexo é homofóbico” é a primeira falsa dicotomia que apresenta. Segundo o Relator, afirmar serem homofóbicas todas as posições que não encampem os interesses do movimento LGBTTTI11 é “um artifício desonesto, porque respeitar a uma pessoa não se confunde com acatar suas práticas ou trabalhar para que seus interesses sejam equiparados a direitos” (sic). Dessa forma, o indivíduo, livre que é, e ainda mais dotado de razão, não tem “dever de acatar interesses ou de [engajar-se] na promoção da ideologia homossexual” (BRASIL, 2015a). Além do mais, nem todos os homossexuais advogam em prol do casamento entre pessoas do mesmo sexo, destaca o Relator. A dicotomia seguinte reportada por Diego Garcia é intitulada “Quem defende a família ‘tradicional’ é fundamentalista”. Nos termos do que expôs o Relator, não é errado defender a família dita tradicional, e nem merece esta ser alvo de ataques. Ademais, e em sentido semelhante, afirma ser “desonesto equiparar o religioso, ou um simples cidadão cuja postura 10

Mais adiante no Parecer, Diego Garcia assevera: “Não é prioridade do constituinte, aqui, [no título VIII da Constituição Federal de 1988, que trata ‘Da Ordem Social’,] tratar dos direitos e garantias fundamentais, desde uma perspectiva do indivíduo, como o faz quando trata dos direitos e garantias individuais no art. 5º. No artigo 226, o protagonista é a sociedade civil, em especial seu núcleo essencial, a família. Não se pode desvirtuar esse fato para afirmar primazia dos afetos individuais, muitas vezes fonte de comportamentos contrários à família, base da sociedade”. Já em momento posterior ele ressalta: “Não se poderia, mediante interpretação, ultrapassar as balizas construídas de modo expresso no texto constitucional, e confirmadas nas atas da que trazem as discussões travadas na Assembleia Constituinte”. Segundo o Relator, o Constituinte delimitou a formação de família pela expressão “o homem e a mulher” com o fim de desestimular o concubinato e de limitar interpretações diversas. (BRASIL, 2015a) 11 A sigla refere-se a Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transsexuais, Transgêneros e Intersexuais. Por vezes é possível perceber o acréscimo das siglas Q (Queers), S (Simpatizantes) e A (Aliados). Ressaltamos que, ao nos referirmos a este movimento a às suas lutas, incluímos aqueles atores sociais considerados por Beth Simmons como não-beneficiários diretos do movimento, embora pertencentes a ele. Em outras palavras, ao abordarmos o movimento LGBTTTI, incluímos, para além da força e da importância dos interessados imediatos desse grupo social, também o valor dos Simpatizantes e Aliados, interessados mediatos, para as lutas de reconhecimento.

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religiosa é conhecida, e que traz argumentos oportunos ao debate, em moldes de razão pública, a um fundamentalista” (BRASIL, 2015a). A terceira dicotomia versa sobre o que o Deputado entende como falácia: “O Estatuto da Família quer excluir várias modalidades familiares”. Garcia defende que o Congresso Nacional tem competência para regulamentar, para que se atinja uma maior eficácia, a especial proteção que a CRFB/88 confere à família. Dessarte, o Projeto de Lei não tem outra intenção senão “colocar a família, base da sociedade, credora de especial proteção, no plano das políticas públicas de modo mais sistemático e organizado, como até então não se fizera”. Por “base da sociedade”, conforme o PL, deve-se entender as seguintes formas de convivência: o casamento, a união estável e a filiação. Nesse sentido, o Estatuto da Família estaria ancorado na circunscrição dos indivíduos aptos a serem reconhecidos como família conforme previsão constitucional, não impedindo “que os cidadãos, mediante seus representantes políticos, advoguem pela inclusão de novos benefícios a outras categorias de relacionamento, mediante argumentos que possam harmonizar-se à razão pública” (BRASIL, 2015a). A quarta e última dicotomia trazida no Parecer, “Não se pode aprovar um Estatuto que não contemple todos os modelos de vida da atualidade”, diz respeito à finalidade do Estatuto da Família. Diego Garcia esclarece que o Projeto de Lei “pretende partir de um consenso definido pela própria Constituição Federal para ir adiante”, ao invés de aumentar o rol de entidades familiares juridicamente reconhecidas (BRASIL, 2015a). A partir do terceiro ponto argumentativo lançado por Garcia, o Parecer passa a guardar mais similitudes pontuais com aquele redigido por Fonseca. Aqui, em A “base da sociedade” e a “especial proteção”: razões da Constituição, razões do Estatuto da Família, o Deputado assevera que, na “nossa sociedade, democrática e tolerante”, existem alguns arranjos familiares “especialmente importantes porque, a partir deles, se cria e se recria, de modo natural, a comunidade humana”. A formação da família, portanto, aos seus olhos, passa pela procriação e possui um status natural e biológico. Aos elegíveis, responsáveis pela “sustentabilidade da própria sociedade civil”, deve ser garantidos a proteção especial do Estado e o caráter de base da sociedade; aos demais, confere-se o respeito e a tutela geral do Estado (BRASIL, 2015a). As condições dessa elegibilidade já foram elencadas pelo Constituinte, reafirma Garcia, e não deixadas “a cargo dos cidadãos definirem os modelos de convivência a serem tidos como base, de modo subjetivo, pois a base neste caso se refere à sociedade como tal, e não ao indivíduo em si mesmo considerado, de modo isolado e particular”. Trata-se, no seu

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entender, de um caso democrático de “discriminação positiva na Constituição, legítima no Estado Democrático de Direito” (BRASIL, 2015a). A respeito das relações entre o Estatuto da Família e a democracia, Diego Garcia sustenta que a redação do artigo 226 da CRFB/88, ponto de partida para a conceituação prevista no artigo segundo do Projeto de Lei do qual é Relator, foi reflexo de duas dimensões da democracia: a espacial (presença de representantes eleitos pela maioria dos cidadãos) e a temporal (preservaram as percepções de família que julgaram amadurecidas ao longo dos tempos, ou mesmo conquistas sociais que perduraram e se mostraram essenciais para a preservação da sociedade). Nas palavras do Parlamentar: Na dimensão espacial, a Assembleia Constituinte trouxe representantes eleitos pela maioria dos cidadãos para conformarem o projeto do novo Estado-nação, naquele momento histórico, cientes de que balizariam a vida para o futuro. Trabalharam na identificação das entidades que traziam as notas necessárias de sustentabilidade da vida em sociedade. Também souberam respeitar a democracia em sua dimensão temporal: resguardaram percepções da Humanidade amadurecidas ao longo de séculos, sem se renderem a modismos que turbam a percepção do que é perdurável. Decidiram dar posicionamento constitucional às situações em conexão profunda com a natureza humana em sua condição social, ao tratar da família, base da sociedade, assim como em sua condição de individualidade, ao trazerem os direitos fundamentais de cada pessoa. [grifos acrescidos] (BRASIL, 2015a)

Nesse sentido, sábio é o texto constitucional, continua o Parlamentar, pois alinha-se a “percepções comuns a todos os povos, avançadas durante milênios, em toda a geografia do planeta”. Segundo os registros do Parecer, História e Antropologia comprovam que o lastro substancial da família é a relação entre o homem e a mulher. A Biologia, por sua vez, conclama a necessidade dos gametas masculino e feminino para que seja gerado um novo indivíduo12. Além disso, também o recém-nascido ou o infante necessita de cuidados e assistência, que, em regra, devem ser providos por pai e mãe, tanto por força “da natureza da vida como pela sociedade”. Entretanto, na ausência de um deles, o poder familiar recairá sobre o remanescente. Eis aqui, e assemelhando-se mais uma vez às linhas perfilhadas por Ronaldo Fonseca, a justificativa do segundo Parecer em relação à proteção da família monoparental, 12

Insta ressaltar que, quando o Relator se reporta à Biologia como sustentáculo da sua argumentação, ele assevera que a disposição cromossômica sexuada da fisiologia humana é de natureza imutável e tangencia levemente a discussão comportamental a respeito de gênero. Nesse esteio, segundo Garcia, “Toda operação que pretende reverter o status físico, nesse sentido, para remodelar, apoia-se, inclusive, na inevitabilidade da condição genética, para impor à pessoa um tratamento de caráter hormonal. Trabalha-se, sempre, sobre a condição de um corpo com referências comportamentais masculinas ou femininas, para então manipulá-las”. [grifos no original] (BRASIL, 2015a)

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biológica ou por adoção: a necessidade de assistência para o desenvolvimento da prole (BRASIL, 2015a). Ao reforçar os critérios utilizados pela CRFB/88 para a tutela diferenciada à família, o Deputado Garcia assevera que se trata do “reconhecimento dos traços de essencialidade da instituição, naturalmente habilitada para a procriação e a criação”. É dizer que, guardando similitudes com o Parecer anterior, as entidades familiares são entendidas por Garcia como um instituto do qual se espera, naturalmente, que haja a procriação e a posterior criação da prole, em razão de serem compostas por indivíduos, homem e mulher, naturalmente habilitados para a concepção, sem qualquer subterfúgio. Todavia, o Deputado esclarece que nada impede que “casais possam deliberar, segundo o livre planejamento familiar, não fazer uso das faculdades reprodutivas. Isso não altera a potencialidade natural. O mesmo quanto às situações de infertilidade, exceção. Como regra geral, homens e mulheres são férteis” [grifos no original] (BRASIL, 2015a). Não cabe ao Estado, portanto, oferecer proteção especial ao afeto individual, nem mesmo a relações sexuais, ou a esse ou àquele modelo de relacionamento dentre os tantos existentes. “Antes”, ratifica Garcia, “se trata de conferir especial auxílio à situação que se identifica como básica na sociedade, revelando-se objetivamente necessária para a geração e criação do gênero humano em sociedade” (BRASIL, 2015a). Para mais, o Parecer aponta que os argumentos ali lançados são racionais, universais, e não provenientes de uma visão exclusivamente religiosa. Para Garcia, tal postura adotada pelos opositores em debate é “antidemocrática, eivada de intolerância religiosa para com cidadãos que professam uma dada fé, sustentados pelo direito fundamental de liberdade de crença”. De acordo com seu texto, “a razão humana é capaz de observar a realidade e dela extrair notas objetivas, permanentes, de seu adequado funcionamento, independentemente da religião”. Em outras palavras, Garcia pontua que as notas objetivas da constituição de família (habilidade natural para procriar e criar) são fruto do trabalho da razão humana, sem que motivos religiosos sejam levados em consideração (BRASIL, 2015a). Na qualidade de quarto fundamento, o Relator aborda A afetividade no Direito de Família, a objetividade do artigo 226 e a solidariedade familiar. Nos termos do documento, muito embora o afeto componha com frequência a vida das relações familiares, o Direito não poderia ali ancorar alguns de seus deveres jurídicos mais importantes e perduráveis (como os derivados das relações familiares), em razão de serem a instabilidade e internalidade características da afetividade. “De todo modo, não cabe ao Direito impor ou administrar sentimentos”, continua Garcia, “mas sim regular condutas da vida em sociedade,

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estabelecendo os mínimos necessários à vida social, compaginando a liberdade individual com a responsabilidade, sendo que ambas as realidades se concretizam em sociedade” (BRASIL, 2015a). Sendo assim, o afeto, enquanto subjetivo e individual, não é considerado elemento jurídico, e nem deve ser levado em consideração para se conceituar ou estruturar uma família. Pelo contrário: “os deveres jurídicos familiares nascem antes da imposição de condutas de solidariedade decorrente das relações estruturais da sociedade, ao redor da criação e procriação humanas”, assegura o Relator, “expressando-se especialmente nos vínculos entre o homem e a mulher, com o fim de constituição de família, e nos vínculos entre pais e filhos” (BRASIL, 2015a). É por esse motivo que, para Garcia, o afeto pode até mesmo estar presente, facultativamente, na gênese das relações familiares ou nas relações outras voluntárias. Entretanto, o seu desaparecimento ou sua ausência não acarretam o desaparecimento também dos deveres próprios das relações familiares calcadas no casamento ou união estável de pessoas de sexos diversos, nem nas de filiação, ou sequer nas de divórcio. Por outro lado, o Direito também não é conivente com expressões de afeto contrárias aos bons costumes, como, e.g., a união entre uma mulher e seu filho, que vivem como se casados fossem. Outras práticas afetivas apontadas pelo Deputado Diego Garcia como incompatíveis com os bons costumes são a pedofilia (“Pedófilos nutrem afeto pela prática sexual com crianças”), a zoofilia (“zoófilos [nutrem afeto] pela prática sexual com animais”) e a poligamia ou o poliamor (“Há também quem se relacione afetiva e sexualmente com duas, três ou mais pessoas, simultaneamente”) (BRASIL, 2015a). No tocante às suas argumentações, a quinta exposta no Parecer se ocupa de Consideração do efeito provisório do STF quando superpôs a atividade legislativa. A Resolução abusiva do CNJ. Nesse tópico o Relator passa a se deter de forma mais profunda às suas críticas face o Poder Judiciário. Segundo o seu entendimento, e com suporte no texto do Parecer anterior, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar conjuntamente a ADPF no 132-RJ e a ADI no 4.277-DF em 2011, “desconsiderou o texto constitucional de 1988, em matéria de união estável, e desbordou de sua competência constitucional, alterando a um só passo norma promulgada pelo Congresso Nacional quando da aprovação do Código Civil de 2002, e o texto constitucional de 1988” (BRASIL, 2015a). Com efeito, de acordo com Garcia, o Supremo Tribunal Federal:

34 não se deteve nas razões históricas e fáticas da existência do direito tal qual se encontrava, senão que o estendera aos pares do mesmo sexo os benefícios que pleiteavam. Limitara-se, sim, a analisar o pleito evocando apenas e tão-somente a igualdade de alguns atributos. Não se detiveram a perscrutar as razões da existência do direito tal qual constava na Constituição. (BRASIL, 2015a)

Ademais, e a respeito da alegada não-observância pelo Supremo das razões históricas e fáticas para que a CRFB/88 tenha restringido o conceito de entidade familiar, o Relator afirma que o Excelso Tribunal “Escora-se no argumento da mais famosa advogada da causa homossexual, para quem estariam superadas a associação entre família e procriação. Ora”, segue Garcia, “até o presente momento, a maior parte dos nascimentos se dá em lares onde o pai e mãe vivem sob união estável ou casamento”. Sob esse fundamento, o Deputado refuta a tese de que “dada a faculdade de se ter, ou não, filhos, a reprodução teria desaparecido da conjuntura da vida a dois” (BRASIL, 2015a). Destaca ainda que, conforme asseveraram os próprios Ministros em seus votos, a competência a respeito do devido tratamento da questão é, na verdade, do Legislativo, órgão de representação majoritária, de sorte que a decisão que equipara as uniões homoafetivas às heteroafetivas não deveria ser tomada como definitiva. Dessa maneira, algumas questões merecem ser debatidas mediante ampla deliberação – já outras não merecem ser mudadas, e é nesse momento que Diego Garcia aponta um paradoxo que chama de aparente equívoco lógico: “age o Congresso Nacional também quando não age”, em inação proposital, deliberada, que deve ser respeitada pelo Judiciário (BRASIL, 2015a). De toda forma, o Projeto de Lei, pelas suas próprias características, não poderia, mesmo caso se propusesse a tanto, alterar categorias inseridas na CRFB/88, a exemplo do rol de entidades familiares juridicamente reconhecidas. Isso se deve, segundo Garcia, em razão de não se tratar de uma Proposta de Emenda Constitucional – essa, sim, capaz de alterar a moldura constitucional. Ainda, outro motivo apontado para a manutenção do rol constitucional de famílias é o dever dos Parlamentares de identificarem e respeitarem as razões dos Constituintes, inclusive as que contribuíram para a redação final do artigo 226 da Carta da República. Ainda acerca de suas críticas ao Poder Judiciário, Garcia entende que os Ministros do Supremo de 2011 e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ)13, ao terem usurpado a competência do Poder Legislativo, parecem “ter-se rendido ao argumento de que haveria 13

Trata-se de crítica à Resolução no 175/2013 do CNJ e à proibição das autoridades competentes de recusem a habilitação, celebração de casamento civil ou a conversão de união estável em casamento entre pessoas do mesmo sexo. O texto da Resolução prevê aos transgressores pena de comunicação ao respectivo juiz corregedor para que tome as providências cabíveis.

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somente homofobia e preconceito como razões para o impedimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo”. Assim sendo, e em “flagrante rompimento com a ordem procedimental constitucional, o CNJ praticou um golpe à democracia e à representação majoritária, introduzindo, à revelia da lei, o fim da exigência de sexos diferentes para o casamento”, assevera o Relator do PL (BRASIL, 2015a). O sexto argumento que sustenta o Parecer de Diego Garcia é denominado A parceria vital: alternativa de lege ferenda para situações diferentes da “base da sociedade”. Nesse momento o Relator cuida das relações outras que não aquelas base da sociedade – e, consequentemente, desatreladas da proteção especial conferida pelo artigo 226 da CRFB/88 –, mas que ainda assim demandam uma proteção diferenciada da tutela geral estatal. Para esses casos que “escapam à condição de essencialidade da sociedade civil”, Garcia sugere a possibilidade legal de formação de uma nova categoria ainda não referendada por Lei, a parceria vital (BRASIL, 2015a). Dessa forma, contanto que não afete direitos indisponíveis de terceiros, a parceria vital estaria “apta a conferir benefícios à sociedade oriunda da reunião deliberada de cidadãos que compartilham residência e esforços na manutenção do lar comum, com intenção de perdurabilidade”. Para a sua configuração, ao contrário da família, não se exigiria a procriação ou criação, mas apenas o reconhecimento de laços de solidariedade e interdependência entre duas pessoas, inclusive para efeitos previdenciários. Também não se afasta a possibilidade dessa Lei ainda abstrata cuidar de possibilidades atinentes à herança, mediante alterações na legislação sucessória (BRASIL, 2015a). Sob a denominação da parceria vital, continua o Parecer, poderiam estar “as uniões de irmãos, amigos e outras quaisquer, independentemente da orientação sexual”, ou seja, todas aquelas “situações não subsumíveis às categorias do art. 226”. Para tanto, seria limitada a uma parceria vital por indivíduo, exigindo-se sua efetiva comprovação à época da instituição, bem como se prescreveria o modo de seu reconhecimento junto aos órgãos competentes do registro civil, com o ônus e o bônus da nova situação”. Referido ônus poderia se expressar, por exemplo, no eventual dever de prestação de alimentos caso um dos parceiros venha a necessitar, mesmo que o vínculo da parceria já se encontre extinto. “Tal procedimento”, arremata Garcia, “iria ao encontro da realização da sociedade livre, justa e solidária, objetivo da República Federativa do Brasil, segundo art. 1º, III” (BRASIL, 2015a). O sétimo argumento capitulado no Parecer foi denominado A família como agente nas políticas públicas: comentários finais ao conteúdo do Projeto. O Deputado Relator destaca que o tema atinente à família é tratado pela Declaração Universal dos Direitos Humanos

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(DUDH) da Organização das Nações Unidas (ONU), assinada pelo Brasil em 1948, e pela Convenção Interamericana sobre Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), que entrou em vigor em 1978. Ainda, Garcia assevera que o nosso Estado Democrático de Direito foi erigido sobre valores como a dignidade da pessoa humana, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, e a promoção do bem de todos, vedado qualquer tipo de preconceito. É nesse contexto, diz o relator, que se encontra a importância da família para o Brasil: ela, a base da sociedade, proporciona o equilíbrio do Estado. “Assim, o Parlamento deve estar atento à natureza própria da família, base da sociedade para cingir-se, em sua atividade legiferante, aos limites intrínsecos da célula fundamental de criação e recriação da vida em sociedade”. Portanto, em decorrência de tamanha relevância que representa a entidade familiar, “não falta razão à preocupação do autor do Projeto de Lei sob apreciação, ao pensar em mecanismos de defesa e valorização da família, base da sociedade, instituindo o ‘Estatuto da Família’, em consonância com a Constituição Federal de 1988” (BRASIL, 2015a). O Relator reforça, uma vez mais, a necessidade da procriação como condição natural para o reconhecimento de entidade familiar, destacando que “diferenciar” não se confunde com “discriminar negativamente”: Apenas não se equivalem, enquanto base da sociedade, às relações entre homem e mulher, exatamente na medida em que estas últimas, como regra, trazem, naturalmente, o suficiente e necessário para a renovação das gerações. Acima de qualquer taxação de preconceito, paira a objetividade do reconhecimento das diferenças, reais, vinculadas à fecundidade. Como regra, nas uniões entre homens e mulheres estão presentes as fontes naturais da geração. Enquanto isso, não há condições para recriação natural da vida social somente a partir de pares do mesmo sexo. (BRASIL, 2015a)

O exercício que se faz, portanto, diz Garcia, é o de descrever a realidade e identificar as diferenças, atentando-se ao respeito à diversidade e ao afastamento da discriminação: é possível reconhecer no par homem-mulher a presença das fontes naturais necessárias à criação e perpetuação da espécie; de outro giro, não se pode apontar nas relações de indivíduos do mesmo sexo a possibilidade de recriação natural da humanidade. Essa é a premissa que justifica a especial proteção do Estado à família. Nesse diapasão, certo é que a sociedade muda, e mudanças justificam equiparações de direitos aos iguais, mas “somente na medida em que se aplicassem idênticas premissas justificadoras da existência oriundas da percepção de mesmos atributos e potencialidades nas relações de direito que se querem igualar, o que não se verifica” (BRASIL, 2015a). Por conseguinte, se casais hetero e homoafetivos não compartilham das mesmas premissas

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justificadoras para o reconhecimento de família, não é possível que comunguem dos mesmos direitos. Quanto à educação voltada para a família, Garcia sublinha que, uma vez que os pais têm direito que seus filhos recebam a educação moral e religiosa conforme as convicções que lhes são próprias – “o que é, de resto, um direito natural reconhecido universalmente –, não há como deixar de proclamar a absoluta precedência dos valores de ordem familiar relativos à moral sexual e religiosa sobre qualquer conteúdo que possa ser veiculado na educação escolar” [grifos no original] (BRASIL, 2015a). Em relação à enquete que esteve à época disponível no sítio eletrônico da Câmara dos Deputados, cujo objetivo era “avaliar se os cidadãos são favoráveis ou contrários ao conceito incluído no Projeto de Lei no 6.583/2013”, o Relator denuncia que houve manipulação14 dos votos para que a opinião contrária ao conceito de família defendido pelo PL ganhasse força (BRASIL, 2015a). No mais, Garcia tece elogios acerca das políticas públicas voltadas à valorização e defesa da célula mater da sociedade constantes no Projeto de Lei que relata, salientando que os “dispositivos analisados servirão como reafirmação de direito já existente e não trarão inovações ao ordenamento jurídico, sendo por isso mesmo suficiente a ação legiferante desta Comissão Especial para o fim de reforço”, como é o caso, para citar alguns, dos Estatutos da Criança e do Adolescente e do Idoso (BRASIL, 2015a). De acordo com Substitutivo ao Projeto de Lei proposto pelo Relator Garcia em setembro de 2015, o artigo segundo passa a ter a seguinte redação: Art. 2º Para os fins desta Lei, reconhece-se como família, base da sociedade, credora de especial proteção, em conformidade com o art. 226 da Constituição Federal, a entidade familiar formada a partir da união de um homem e de uma mulher, por meio de casamento ou de união estável, e a comunidade formada por qualquer dos pais e seus filhos. (BRASIL, 2015a)

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Segundo o Deputado, no mês de julho de 2015 houve um surpreendente número de votos relativos à enquete, e, repentinamente, a tendência que apontava para o sim passou para o não, o que impactou o resultado final. Seguem as conclusões que aponta Garcia: a) mais de três milhões de votos vieram de 66 IPs (protocolos de Internet), sendo que mais de 1,6 milhões vieram de um único IP, todos para a opção não; b) mais de 122 mil votos foram realizados no dia 19 de julho de 2015 de um único IP para a opção não, na cidade de Garanhuns/PE, com população em 112 mil habitantes; c) desse mesmo IP, durante a vigência da enquete, partiram mais de 260 mil votos não; d) mais de 60 mil votos foram dados no dia 7 de julho de 2015 para a opção não em uma cidade nos Estados Unidos, com população de 8.500 habitantes; e) desse mesmo IP, durante a vigência da enquete, partiram mais 216 mil votos, todos para a opção não; f) tomando os IPs com mais de 50 mil votos, quase 3 milhões de votos partiram de um total de 12 IPs, sendo que 99,9999% foram para a opção não. O Parecer, no entanto, não traz quaisquer dados sobre possível manipulação dos dados de votos referentes à resposta sim.

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Em obediência às regras constitucionais e regimentais da Câmara dos Deputados, o Estatuto da Família seguiu para votação acerca da aprovação ou não do Parecer subscrito pelo Deputado Relator Diego Garcia, que será objeto de análise no item que segue.

1.1.2. A votação da Comissão Especial da Câmara dos Deputados A sessão de votação15 pela aprovação ou não do Parecer relatado por Diego Garcia instalou-se em 24 de setembro de 2015. De um lado, cinco16 Deputados votaram pela não aprovação do Parecer; de outro, votaram a favor dezessete17 deles. Durante as discussões da matéria pelos Parlamentares, que se centralizaram acerca do conceito de família insculpido no artigo segundo do Substitutivo do Estatuto da Família, algumas posições merecem destaque. De um lado, Erika Kokay (PT-DF), Bacelar (PTN-BA), Glauber Braga (PSOL-RJ), Maria do Rosário (PT-RS) e Jô Moraes (PCdoB-MG) trazem argumentos e visões que guardam semelhanças, em especial por considerarem o conceito de família trazido pelo Substitutivo ao Estatuto da Família restritivo de direitos e, a despeito da literalidade do artigo 226 da CRFB/88, em desacordo com os princípios constitucionais e de Direitos Humanos. Passemos a uma breve exposição18 de seus discursos proferidos na sessão de votação, acompanhados das adjetivações e das ilustrações enunciadas pelos Parlamentares. A Deputada Erika Kokay, quando da palavra, indaga se a aprovação do Parecer não seria, na verdade, um caminhar para as trevas, um golpe contra a democracia, contra os 15

Em razão de inexistirem, até o presente momento, transcrições ou notas taquigráficas oficiais dos discursos proferidos pelos Deputados, o subitem e as citações foram construídos por meio de transcrições livres nossas a partir dos áudios e vídeos atinentes à sessão de votação, que estão disponíveis no sítio eletrônico da Câmara dos Deputados: . Acesso em: 2 abril 2016. 16 Deputados Bacelar (PTN-BA), Erika Kokay (PT-DF), Glauber Braga (PSOL-RJ), Jô Moraes (PCdoB-MG) e Maria do Rosário (PT-RS). 17 Deputados Aureo (SD-RJ), Anderson Ferreira (PR-PE), Carlos Andrade (PHS-RR), Conceição Sampaio (PPAM), Diego Garcia (PHSPR), Eduardo Bolsonaro (PSC-SP), Elizeu Dionizio (SD-MS), Evandro Gussi (PV-SP), Flavinho (PSB-SP), Geovania de Sá (PSDB-SC), Jefferson Campos (PSD-SP), Marcelo Aguiar (DEM-SP), Pastor Eurico (PSB-PE), Pastor Marco Feliciano (PSC-SP), Prof. Victorio Galli (PSC-MT), Silas Câmara (PSDAM) e Sóstenes Cavalcante (PSD-RJ). 18 Os discursos proferidos pelos Deputados serão, ao longo deste estudo, analisados sob a abordagem francesa da Análise do Discurso. Com efeito, segundo Michel Pêcheux (1995, p. 160), o sentido “de uma palavra, de uma expressão, de uma proposição, etc., não existe ‘em si mesmo’ (isto é, em sua relação transparente com a literalidade do significante), mas, ao contrário, é determinado pelas posições ideológicas que estão em jogo no processo sócio-histórico no qual as palavras, expressões e proposições são produzidas (isto é, reproduzidas)”. É dizer, em outros termos, que “as palavras, expressões, proposições, etc., mudam de sentido segundo as proposições sustentadas por aqueles que as empregam, o que quer dizer que elas adquirem seu sentido em referência a essas posições, isto é, em referência às formações ideológicas [...] nas quais essas posições se inscrevem”. [grifos no original] (PÊCHEUX, 1995, p. 160) As diferenças de sentido de algumas palavras utilizadas pelos Deputados serão trabalhadas mais à frente – o propósito, nesse momento, é expor, relatar seus argumentos para melhor entendermos sua formaç˜so discursiva.

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direitos da população, contra a CRFB/88 – ou até mesmo o seu rasgar. Segundo a Deputada, restringir o conceito de família é esterilizá-la, dizer que não tem importância para o ser humano. Afinal, não existe retrocesso de direitos; muito menos se pode conceber um PL que fere cláusula pétrea asseguradora de direitos e garantias individuais. É imperativo, portanto, diz Kokay, que o indivíduo seja respeitado e tenha a liberdade de estabelecer as suas relações afetivas, ainda mais tendo em vista que elas são mutantes de acordo com as relações sociais, econômicas e culturais (BRASIL, 2015b). Outra reflexão que Erika Kokay traz ao debate versa sobre a laicidade do Estado. Conforme seu pronunciamento, o conceito de família objeto de votação naquela sessão representa ruptura com o Estado laico, na medida em que Deputados pretendem, por meio do PL, transformar o seu mandato na defesa de concepções religiosas. Ao procederem dessa forma, ferem um princípio que é fundamental para que o Estado seja de todos, e para que se assegure a liberdade de credo e de não credo que está prevista na CRFB/88 (BRASIL, 2015b). Nesse esteio, mesmo que os Parlamentares tenham convicções próprias, e que as defendam durante a disputa eleitoral, não podem ferir a Constituição Federal, que, calcada na dignidade humana, já afastou todo ódio homofóbico tantas vezes presentes nos discursos proferidos nas tribunas do Congresso Nacional. Ao contrário: devem ser assegurados os princípios da Revolução Francesa – liberdade e fraternidade – tendo em vista que o afeto e o amor não são coisas menores. O afeto, com efeito, é um valor jurídico, conforme entendimento do Ministro do Supremo Tribunal Federal Celso de Mello, sustenta Kokay (BRASIL, 2015b). Em determinado momento, a Parlamentar chama a atenção para a compreensão de democracia exposta nas fundamentações dos Relatórios e nas exposições orais dos Deputados defensores do PL. Ela afirma que não existe nada mais fascista do que quando a democracia é vista apenas como os direitos das maiorias. Pelo contrário: democracia é também os direitos das minorias. Em verdade, se às minorias não forem assegurados os seus direitos de viver a sua própria humanidade, não pode existir democracia. Assim, a democracia só pode ser verdadeiramente democrática se for plural. O Relatório em votação, portanto, apresenta uma conceituação que só se justifica se for de ordem religiosa, porque nada de científico tem, conclui a Deputada (BRASIL, 2015b). Outro argumento utilizado por Erika Kokay é o de que as famílias homoafetivas não agridem o direito das heteroafetivas de existirem ou adotarem. Ressalta ainda que, embora seja o que se mais discute, o Estatuto da Família não priva do reconhecimento apenas os arranjos homoafetivos em geral, mas também os irmãos e os casais heteroafetivos que

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escolhem não ter filhos ou não podem, por qualquer razão, gerar descendentes (BRASIL, 2015b). O Deputado Bacelar discorda de Kokay quanto ao Parecer constituir um golpe, mas afirma ser anacrônico. Isso porque, para o Deputado, seu artigo segundo fere tratados internacionais de Direitos Humanos dos quais o Brasil é signatário. A Comissão de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos reconhece dentre as possibilidades de constituição de família, dentre outras, a da família homoafetiva. Além disso, assevera, a defesa da família como sendo a união entre pessoas de mesmo sexo ou de sexos diferentes não pode ser tratada como uma questão pessoal; nem políticas públicas devem ser definidas por critérios religiosos (BRASIL, 2015b). Nos dizeres de Bacelar, a postura adotada pelo Estatuto da Família e seu Parecer, ao pretenderem regular a vida privada do indivíduo, é arbitrária e conservadora. Indaga: quem deu poder ao Estado para conceituar família, para dizer qual tipo de relação afetiva pode ser família ou não? Afinal, família não é um fenômeno natural, mas social, em construção. Ela adquire, em cada momento, configurações totalmente diferentes desde os primórdios da humanidade (BRASIL, 2015b). Dessa forma, continua o Deputado, é acertada a posição do STF ao entender que seria discriminação conceituar entidade familiar de outra forma que não a ampliativa de direitos. O posicionamento do Estatuto da Família, ao contrário, exclui, pune e discrimina a família homoafetiva, fomentando a intolerância. O Parlamento deve ter em mente que a sociedade brasileira não é feita de um tipo de família, mesmo que essa família seja majoritária na sociedade (BRASIL, 2015b). Assim como Kokay, também Bacelar acredita que existem motivações religiosas impulsionando o Estatuto da Família. A CRFB/88 não exclui ou veda a possibilidade de arranjos que não sejam por pessoas de sexos diversos, nem muito menos coíbe tratamento equânime entre hetero e homossexual, de sorte que a única explicação que lhe faz sentido à posição do Estatuto da Família é a presença de uma concepção moral e religiosa. Nas suas palavras, “cada um professa a fé que quer; agora, eu não posso substituir a Constituição pela Bíblia. De maneira nenhuma! [...] eu não posso apenas por um sentimento religioso querer padronizar a posição de toda a sociedade” (BRASIL, 2015b). Em seguida, para o Deputado Glauber Braga, o Estatuto da Família é um Projeto antidemocrático, e a interpretação de família ali trazida é reduzida e linear, tendo, inclusive, o STF e o CNJ se manifestado contrários a esse entendimento. Por outro lado, a família por ele adjetivada como forte é aquela que aceita e respeita a diversidade e os direitos de todos. Nesse

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sentido, a sociedade brasileira não pode se submeter a um pensamento único, ou a um monopólio de visão, no que diz respeito ao conceito de família, sob pena de estar o Estado esmagando direitos e interferindo na vida privada do indivíduo (BRASIL, 2015b). Aliás, Braga também se levanta como protetor do Estado laico, e acusa os defensores do Estatuto da Família de utilizarem-se de espaço público, o Legislativo, para estabelecerem um modelo único de família em benefício de apenas uma determinada religião. O Deputado assevera ainda que ninguém tem o monopólio da verdade – e, justamente por isso, não pretende argumentar para excluir ou para fazer com que o pensamento dos seus opositores não seja respeitado (BRASIL, 2015b). A Deputada Maria do Rosário, por sua vez, posiciona-se contrária à aprovação do Parecer por entender que se trata de uma intervenção nas vidas das pessoas, nas próprias famílias. De forma análoga a Bacelar, a princípio, mas depois, aproximando-se mais aos argumentos tecidos por Kokay, a Deputada indaga: Quem poderá, Sr. Presidente, Srs. Deputados e Deputadas, arvorar-se no direito de dizer a alguém, ou a alguma família brasileira como ela deve ser organizar, quais os afetos deve ter, quais as relações devem ser estabelecidas, pessoais? Quem poderá intervir dentro da casa das pessoas? Quem poderá, sem promover a discriminação e a violência, fazer uma Comissão como esta, que não observa preceitos constitucionais mais amplamente estabelecidos? [...] Quem são Vossas Excelências para julgar quem quer que seja? Que religiosidade é esta que fere o princípio do Estado laico; que fere a lei, mas que fere, sobretudo, a lei maior, que é a da amorosidade e do respeito mútuo? (BRASIL, 2015b)

No seu sentir, a Comissão age contra os direitos fundamentais; os Direitos Humanos; as liberdades individuais; a existência das famílias, dos afetos e do respeito mútuo. No entanto, toda proposta legislativa que fere o princípio da não discriminação e que propõe retrocesso de direitos, como o faz o Estatuto da Família, é inconstitucional, conclui. A proteção da família, que deveria ser um espaço de liberdade, aponta a Deputada, mostra-se como locus de intervenção do Estado, dos Deputados e das religiões. Nessa perspectiva, Maria do Rosário assevera que a matéria religiosa está em todo o texto, sobretudo no Parecer. Ao julgarem e imporem seus princípios religiosos à população brasileira como um todo, a todas as famílias, determinados Deputados ferem o conjunto de religiosidades, o direito à liberdade e o direito à família. E arremata: “nem Cristo, nem Jesus é cabo eleitoral de quem quer que seja” (BRASIL, 2015b). A Deputada Jô Moraes, em tom que se assemelha ao de Erika Kokay, sustenta que o Estado deve orientar-se pelos princípios e valores humanos da Revolução Francesa, como a igualdade e a tolerância. A propósito, a Parlamentar considera o Estatuto da Família

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intolerante diante da nova realidade social brasileira ao apontar políticas públicas limitadas e eivadas de preconceitos, deixando milhares de pessoas que vivem em realidades concretas à margem de contemplação de direitos. Na sua visão, tanto o STF quanto o CNJ são instituições absolutamente respeitáveis e merecem, no mínimo, que suas decisões sejam acatadas (BRASIL, 2015b). De outro lado, pronunciaram-se efetivamente em defesa de seus pontos de vista e do Parecer os Deputados Evandro Gussi (PV-SP), Flavinho (PSB-SP), Givaldo Carimbão (PHSAL), Hidekazu Takayama (PSC-PR), Jefferson Campos (PSD-SP), Marcos Rogério (DEMRO), Pastor Eurico (PSB-PE), Ronaldo Fonseca (PROS-DF) e Silas Câmara (PSD-AM). Em suas arguições, sustentam a legitimidade da Câmara dos Deputados para legislar sobre o conceito de família, visto que foram eleitos pelo povo justamente por suas propostas. Também perfilham o raciocínio de que a democracia se faz com a vontade da maioria – e, assim sendo, a maioria acredita que corresponde com os valores da sociedade brasileira a formação da entidade familiar como a união entre pessoas de sexos diferentes, com fins de procriação. Essa é a família que encontra lastro constitucional no artigo 226, e a família que a natureza institui, dizem. No mais, os Parlamentares negam qualquer carga religiosa no PL ou no Parecer em votação. Também aqui os discursos proferidos serão brevemente relatados, acompanhados, mais uma vez, das adjetivações e das ilustrações enunciadas pelos Parlamentares. O posicionamento do Deputado Givaldo Carimbão é no sentido de que os Parlamentares são eleitos para representar a população brasileira: existem maiorias, existem minorias, e todos devem ser respeitados. No entanto, também devem ser respeitadas as decisões do coletivo. O fato de os Deputados votarem que a família é homem e mulher não pode constituir golpe, afirma. A consciência de cada um não pode ser considerada golpe; afinal, a sociedade elege aqueles que serão seus representantes em função de suas propostas. Cada Parlamentar representa uma parcela da sociedade, argumenta Carimbão, e a maior parte da sociedade diz que o Estatuto da Família deve contemplar a união apenas entre homem e mulher. Assim, os Deputados possuem legitimidade dentro da sociedade em razão dos votos que os elegeram, respeitadas as convicções, consciência e compromisso com as bases (BRASIL, 2015b). Silas Câmara, por seu turno, enfatiza que “democracia é respeitar o Relatório do Relator; democracia é respeitar o autor do Projeto; democracia é respeitar, como disse o Deputado Carimbão, a maioria que vai se manifestar aqui a partir da sua consciência e daquilo que representa o melhor para o país”. O Deputado afirma que tem a impressão de que muito

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do que está acontecendo no Brasil neste momento tem a ver com a Nação, no que diz respeito ao seu governo maior, virar as costas para Deus e para as famílias. De acordo com Câmara, somos uma nação cristã e mais de 98% da população declara-se a favor da família brasileira. Portanto, deve-se respeitar, de fato, tanto o direito de liberdade de o Parlamento decidir “essas questões”, como o princípio de liberdade da Nação brasileira (BRASIL, 2015b). Ao se manifestar, Evandro Gussi aponta que inexiste qualquer menção religiosa ou transcendental no Parecer subscrito por Diego Garcia – antes, é um documento racional, jurídico e de ciência. Para o Deputado, o PL está “humildemente” reconhecendo o que a natureza prescreve. E continua com o seguinte raciocínio: podemos até tentar revogar a lei da gravidade pelo STF, mas devemos reconhecer que o ser humano, como ser único e irrepetível, depende de uma entidade sólida e estável capaz de preservar não só a sua criação, mas a sua formação completa. Ademais, Gussi entende que o STF usurpou competência do Poder Legislativo ao inovar a Constituição (BRASIL, 2015b). O Deputado Flavinho, ao se manifestar, sustenta defender a CRFB/88, e não valores religiosos, obscurantistas ou fundamentalistas. Eleito pela base católica, e como cristão que é, juntamente com a grande maioria do País, deixa claro que tem os seus valores. Para Flavinho, nenhum dos Parlamentares presentes está fazendo discurso religioso, seja de uma ou outra denominação; o discurso daqueles que apoiam o Estatuto da Família está centrado, na verdade, em defesa daquilo que se propuseram a defender no começo da legislatura: a família, a Constituição – e a CRFB/88 respalda o Parecer que está sendo apresentado. No entanto, os que entendem a favor das uniões de pessoas do mesmo sexo não podem querer sobrepor ao direito da maioria da população brasileira garantida na Constituição. O Deputado, como um Parlamentar católico, não vai permitir que passem por cima da Constituição e por cima dos valores que são a base da sociedade. “Aqui a gente não ‘tá’ falando de uma minoria de cinco, dez, sessenta mil, cem mil; estamos falando aqui de milhões de pessoas que acreditam nesses valores e que foi garantido na Constituição, inclusive, o casamento religioso”, afirma Flavinho (BRASIL, 2015b). Quando da palavra, o Deputado Ronaldo Fonseca, o primeiro Relator do PL, assegura que o seu Parecer era “mais forte, era mais pesado”, porque incluía a vedação à adoção homoafetiva (BRASIL, 2015b). Noutro momento, o Deputado Jefferson Campos expõe que a minoria tenta impor ao Parlamento uma ditadura que não deve ser aceita (BRASIL, 2015b). Já o Deputado Hidekazu Takayama acredita que é seu direito não aceitar que dois homens ou duas mulheres constituam uma família. Segundo o Parlamentar, se verificados

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quatro mil mortes de homossexuais, verificar-se-á também eles que se exterminam nas suas “briguinhas íntimas”, de forma que quem deveria ir ao cárcere são os próprios homossexuais. “Não há católico nem evangélico nesse negócio”. Ainda, caso prevaleça o argumento de que dois homens ou duas mulheres constituem família, então “daqui a alguns dias vai ter homem com uma vaca e vai virar avacalhação” (BRASIL, 2015b). Para o Deputado Marcos Rogério, “uma coisa é a tolerância, convivência, respeito; outra é redefinição do conceito de família”. As minorias, embora mereçam ser respeitadas, tentam passar a democracia por releituras, o que não deve ser permitido (BRASIL, 2015b). Por fim, o manifesto do Deputado Pastor Eurico foi nos seguintes termos: “Estamos juntos em defesa da família, da moral e dos bons costumes. Abaixo essa desgraça que querem impor na sociedade” (BRASIL, 2015b). Em vista da aprovação do Parecer subscrito por Diego Garcia, o Deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ) e a Deputada Erika Kokay interpuseram recurso com o pedido de que o Projeto de Lei nº 6.583/2013 seja submetido ao Plenário, com base nos artigos 132, § 2º, e 58 do Regimento Interno daquela Casa19. Até o final do mês de julho de 2016 não houve ainda julgamento dos recursos referentes à aprovação do segundo Parecer do Estatuto da Família. Pode-se, contudo, verificar que tanto as posições favoráveis como as desfavoráveis à aprovação do Parecer evocam uma pretensa compatibilidade com o texto constitucional, razão pela qual, como veremos na sequência, fomos impelidos a perquirir a respeito não só dessa, mas de todas as questões (democracia, vontade da maioria, Direitos Humanos) que apareceram como fundamento dos votos proferidos durante a Sessão.

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Art. 132. Apresentada e lida perante o Plenário, a proposição será objeto de decisão: [...] III – das Comissões, em se tratando de projeto de lei que dispensar a competência do Plenário, nos termos do art. 24, II; [...] § 1º Antes da deliberação do Plenário, haverá manifestação das Comissões competentes para estudo da matéria, exceto quando se tratar de requerimento. § 2º Não se dispensará a competência do Plenário para discutir e votar, globalmente ou em parte, projeto de lei apreciado conclusivamente pelas Comissões se, no prazo de cinco sessões da publicação do respectivo anúncio no Diário da Câmara dos Deputados e no avulso da Ordem do Dia, houver recurso nesse sentido, de um décimo dos membros da Casa, apresentado em sessão e provido por decisão do Plenário da Câmara. Art. 58. Encerrada a apreciação conclusiva da matéria, a proposição e respectivos pareceres serão mandados à publicação e remetidos à Mesa até a sessão subsequente, para serem anunciados na Ordem do Dia. § 1º Dentro de cinco sessões da publicação referida no caput, poderá ser apresentado o recurso de que trata o art. 58, § 2º, I, da Constituição Federal. [...] § 3º O recurso, dirigido ao Presidente da Câmara e assinado por um décimo, pelo menos, dos membros da Casa, deverá indicar expressamente, dentre a matéria apreciada pelas Comissões, o que será objeto de deliberação do Plenário. [...] (grifos no original) (BRASIL, 2016b)

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1.1.3. Os limites da democracia ou a democracia limitada: possíveis confrontos entre o Estatuto da Família, a Constituição Cidadã, os Direitos Humanos e a vontade da maioria?

Da leitura do Estatuto da Família e seus Pareceres, e em atenção às discussões engajadas na sessão de votação da Comissão Especial da Câmara dos Deputados, podemos perceber que as controvérsias que circundam o conceito de família estipulado pelo artigo segundo do PL são debatidas lançando-se mão de fundamentos, muitas vezes, comuns, ou que se tangenciam, embora utilizados para sustentar posições diametralmente opostas. Se, de uma perspectiva, alguns Parlamentares defensores do Estatuto da Família ancoram-se na Constituição Federal e no norte de princípios próprios de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, tais como a dignidade da pessoa humana, para sustentar a literalidade do artigo 226 do texto constitucional e a vontade do Constituinte de 1987-1988, que inseriu no texto a expressão “o homem e a mulher”; de outra, um conjunto de Deputados de opinião contrária aponta que a CRFB/88 e os princípios constitucionais – dentre eles a igualmente, a dignidade humana, o respeito à diversidade, a vedação à discriminação – são limites ao que entendem ser uma interpretação reducionista de família. De forma similar, enquanto certo número de Deputados que sustentam o Estatuto da Família, de um lado, invocam amparo legitimamente democrático às suas ações, eis que representam a maioria, tanto pelo viés político (a vontade da maioria dos representantes significa a vontade da maioria da sociedade) como pelo religioso (os valores da maior parcela da sociedade equivalem aos religiosos); por outro lado, uma parcela dos que resistem à aprovação do Estatuto da Família apontam que a democracia, não se resume apenas à vontade da maioria, mas se constitui na salvaguarda do direito das minorias e exige pluralidade para sua efetivação. Neste sentido, e em nome da democracia e da vontade da maioria, alguns Deputados a favor do Estatuto da Família acreditam que, por serem os representantes do povo, legitimados pelos votos que receberam, têm o dever de agir segundo as ideologias que defenderam durante as eleições, e que refletem, tantas vezes, seus pontos de vista pessoais. Assim, no caso de terem se comprometido com a luta pela família tradicional, nada mais certo que sustentá-la na Casa de Leis. Em contrapartida, Parlamentares contrários ao Projeto de Lei levantam que, ainda que tenha suas convicções próprias, a postura do Legislador não pode andar em desacordo com a liberdade e a fraternidade, nem ser pautada em princípios religiosos, muito menos ferir o texto constitucional.

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Os Deputados Relatores do Estatuto da Família ancoram-se nos direitos fundamentais e Direitos Humanos para arguirem que a família merece especial atenção e proteção do Estado conquanto seja calcada na união entre o homem e a mulher com fins de procriação e criação. Sob a mesma fundamentação, reportam ser um direito natural e universal dos pais que seus filhos recebam exclusivamente a educação religiosa e moral que esteja de acordo com suas próprias convicções. Entretanto, os Deputados Bacelar, Glauber Braga e Maria do Rosário asseveram que a Comissão Especial age contra as liberdades individuais, os direitos fundamentais e Humanos por se colocarem contra a existência das famílias, dos afetos e do respeito mútuo. A Constituição, sob esse prisma, não veda a família homoafetiva, mas se opõe ao desrespeito aos Direitos Humanos, à dignidade humana, às diferenças e ao tratamento equânime entre homoafetivos e heteroafetivos. Outra controvérsia que se faz presente nas discussões do Estatuto da Família envolve o princípio da laicidade do Estado brasileiro. Parte dos Deputados contrários ao Estatuto da Família asseveram que os colegas que amparam o PL, por tentarem transformar os seus mandatos em defesa e imposição de princípios religiosos à população como um todo, a todas as famílias, além de ferirem mesmo o direito à família, rompem com o preceito do Estado laico e garantidor da liberdade de credo e de não credo prevista na CRFB/88. Os Relatores, contudo, utilizam-se do princípio da laicidade estatal para fortalecerem seus argumentos. Para Ronaldo Fonseca, o Estado é laico e não possui religião oficial. No entanto, todo o arcabouço jurídico trazido pelo Constituinte de 1987-1988, inclusive a dignidade da pessoa humana, a igualdade perante a

lei e demais direitos fundamentais,

individuais e coletivos, é dado sob a proteção de Deus, conforme o preâmbulo da CRFB/88. Ao seu ver, isso importa em respeito, pela Câmara dos Deputados, do credo que sustenta os valores da maioria absoluta de religiosos e não religiosos e que construiu não apenas a sociedade brasileira, mas todo o Ocidente. A consequência é indiscutível: o único modelo de família admissível no ordenamento pátrio é o composto pela união entre pessoas de sexos diferentes, como consta expresso no artigo 226 da CRFB/88. Diego Garcia, porém, trata da laicidade do Estado sob outro ponto de vista. Afirma que os opositores ao Estatuto da Família não defendem um Estado laico, mas laicista. Ou seja, ao invés lutarem por um modelo de Estado que não interfere nas religiões, e que respeita as diferentes manifestações dos indivíduos, abraçam um modelo que persegue tanto a religião como aqueles que professam sua fé.

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Como se depreende do histórico de discussões que envolvem o Estatuto da Família, a ideia de Estado Democrático de Direito e a figura dos princípios constitucionais e de Direitos Humanos têm se prestado a defender posicionamentos em geral antagônicos. A mesma democracia que, para um, é a satisfação da vontade da maioria, para outro, passa pela atenção dos anseios da minoria. Em sentido semelhante, a Constituição que, de acordo com um lado, protege a dignidade da pessoa humana e aceita que famílias sejam construídas de forma plural, é identicamente invocada pelo outro lado, sob o pretexto de vedar entidades familiares que não presumem a continuidade da sociedade, conforme o artigo 226. Mesmo o princípio da dignidade humana, por uma perspectiva, encontra-se sob a proteção de Deus e deve observar o credo da maioria, enquanto que, por outra, pressupõe respeito à diversidade e proteção ao indivíduo. É, inclusive, em meio a esse emaranhado de categorias conceituais que os Parlamentares discutem acerca da decisão do Supremo Tribunal Federal que equiparou as uniões homoafetivas às heteroafetivas em 2011. Por uma perspectiva, os Ministros usurparam as prerrogativas do Poder Legislativo e inovaram a Constituição Federal ao criarem uma espécie de família que a sociedade brasileira não acredita ser natural; por outra, o Supremo interpretou a Constituição em conformidade com os princípios constitucionais e de Direitos Humanos ao entender que seria discriminação conceituar entidade familiar de forma outra que não a ampliativa de direitos. Em vista da discussão que se reverbera nos Poderes Legislativo e Judiciário, aliada à carga polissêmica que esses agentes vêm conferindo a categorias conceituais sobre as quais erige-se o Estado brasileiro, propomo-nos neste trabalho a identificar e analisar algumas dessas categorias e das discussões levantadas para, ao final, verificar se o conceito de entidade familiar proposto pelo Estatuto da Família é compatível com a democracia brasileira e com os princípios constitucionais e de Diretos Humanos. Nesta senda, pergunta-se: de que forma alguns argumentos lançados pelo Estatuto da Família, por seus relatores e pelos Deputados defensores do PL se distanciam daqueles utilizados pelos Congressistas que são contrários ao conceito de família consignado no texto do Projeto? Existem limites para o Poder Legislativo deitar seu entendimento no tocante à semântica da família? O fato de serem os representantes do povo, eleitos pela maioria, legitima de imediato a concepção de entidade familiar que bem entendem? Nesse viés, em se tratando da vontade da maioria, é esperado que esta deva sempre prevalecer, ou existem freios às decisões tomadas majoritariamente?

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A democracia, por sua vez, confere ao Legislativo total liberdade para o exercício de sua função típica ou é possível que ambos conheçam limites e adstrições a determinadas normas ou a um conteúdo mínimo? Aliás, quando nos referimos à democracia brasileira, ela deve ser entendida por um viés apenas procedimentalista ou também substancialista? Qual o papel que a Constituição desempenha nas leituras dos conceitos de democracia, vontade da maioria e princípios constitucionais de Direitos Humanos? Nos itens anteriores apresentamos o conteúdo do Projeto de Lei no 6.583/2013, assim como os argumentos utilizados em seu texto e pelos representantes da Câmara dos Deputados a favor ou contra a sua aprovação final – argumentações essas, por vezes, utilizadas por ambos os lados da disputa, embora sob diferentes contornos. Cumpre, então, analisar tais argumentos e fundamentações, aliados ao entendimento do STF acerca do que se entende por entidade familiar, mostra-se necessário para o estudo da semântica de família na democracia brasileira na medida em que sinalizam visões mais restritivas ou ampliativas de entidade familiar. Indagaremos se aquelas são possivelmente (re)produzidas, em maior ou menor medida, pela força da religião, e em que medida são providas ou despidas de conteúdos mínimos que as sustentem no contexto atual. Frisamos, desde já, que determinados fundamentos e argumentos presentes nos discursos serão revisitados, destacados e aprofundados no Capítulo terceiro. Assim, antes de prosseguirmos às verificações das propostas acima apresentadas, ocupar-nos-emos a identificar as possibilidades interpretativas de entidade familiar, para que, em momentos posteriores, possamos investigar as demais inquietações atinentes à democracia, à vontade da maioria, aos Direitos Humanos e à exegese da Constituição da República Federativa do Brasil. Para tanto, como recorte metodológico, optamos por levar em consideração quatro marcos que reputamos principais à construção da semântica da família, os quais serão abordados em itens subsequentes.

1.2. Considerações sobre a semântica e os marcos do conceito de entidade familiar no Brasil

De início, abordaremos alguns dos movimentos sociais que, de forma mais abrangente, contribuíram para a mudança nas mentalidades e nas configurações individuais e familiares – sobretudo no continente americano, a partir da segunda metade do século XX. Em seguida, serão apresentados os quatro marcos que consideramos centrais no que atine à construção da semântica da família brasileira. Dessa forma, recortamos e analisamos

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como primeiro marco a atuação religiosa confessional do Constituinte de 1987-1988, a qual contribuiu para a redação final do artigo 226 da Constituição Federal de 1988 – artigo esse que representa um dos principais argumentos dos Deputados que defendem o Estatuto da Família. O segundo marco se refere à interpretação do ordenamento jurídico (e, por conseguinte, à interpretação do artigo 226 da CRFB/88) sob a ótica neoconstitucionalista, que prima pelo valor axiológico da Constituição Federal. Já o terceiro marco visa analisar a posição de supralegalidade que os tratados internacionais de Direitos Humanos passaram a ocupar no ordenamento jurídico pós-1988, de acordo com o posicionamento majoritário do Supremo Tribunal Federal, e também quais as consequências desse evento para a interpretação do artigo 226 da CRFB/88. Ao final, apontamos como quarto marco a decisão prolatada pelos Ministros do STF acerca da equiparação das uniões homoafetivas às heteroafetivas – momento em que serão analisados os votos dos Ministros –, somada à Resolução nº 175/2013, editada pelo Conselho Nacional de Justiça, que facilitou a conversão das uniões homoafetivas em casamento.

1.2.1. Por famílias e(m) movimento, parte 1: repercussões de dentro para fora

O estudo acerca da semântica da família e dos marcos dessa entidade pode ser percebido de formas e enfoques diferenciados ao se considerar, em conjunto ou em separado, “aspectos como constituição, origem, questões psicanalíticas, de gênero, comportamentos de crianças, adolescentes, dicotomia entre público e privado, relações de poder” (ALMEIDA, 2011, p. 17). Sob os prismas da História e da Psicanálise, a francesa Elisabeth Roudinesco dedica-se ao exame dos percursos da família e distingue três grandes períodos na “evolução”, no movimento da entidade familiar. O primeiro deles é marcado pela família “tradicional”, cuja maior preocupação consiste na transmissão de patrimônio. Os pais, segundo esse modelo, são os responsáveis pela escolha do futuro cônjuge de seu filho ou filha, sem levarem em conta a vida sexual ou afetiva dos futuros casais. “Nessa ótica”, ressalta Roudinesco (2003, p. 19), “a célula familiar repousa em uma ordem do mundo imutável e inteiramente submetida a uma autoridade patriarcal, verdadeira transposição da monarquia de direito divino”. Na segunda fase apontada pela autora há o surgimento, entre o final do século XVIII e meados do XX, da família dita “moderna”, sendo a sua característica principal a lógica afetiva. Aqui, o casamento, legitimador do amor romântico, tem por essência a reciprocidade dos sentimentos e dos desejos entre os pares. Valoriza-se também a divisão de tarefas entre os

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pares, de modo que a educação de seus filhos passa a ser entregue ao Estado como sua responsabilidade. Nos dizeres de Roudinesco (2003, p. 19), a “atribuição da autoridade tornase então motivo de uma decisão incessante entre o Estado e os pais, de um lado, e entre os pais e as mães, de outro”. A partir da segunda metade do século XX, diz a historiadora, formou-se a família “contemporânea”, ou “pós-moderna” – trata-se da terceira fase. As uniões desse período se distinguem pela busca de relações íntimas ou pela realização sexual dos pares. Se nas construções “tradicionais” a autoridade do pai é intransponível; nas “modernas” a autoridade é dividida entre pais-Estado e pai-mãe, e a transmissão da ordem, nessa configuração, “vai se tornando então cada vez mais problemática à medida que divórcios, separações e recomposições conjugais aumentam” (ROUDINESCO, 2003, p. 19). Em que pese a valia dos estudos empreendidos por Roudinesco, parece-nos necessário um olhar sobre os movimentos, nem sempre lineares ou evolutivos20, por que passa a família desde a segunda metade do século XX. Dito de outra forma, “precisamos compreendê-la [a família] como grupo social cujos movimentos de organização-desorganização-reorganização mantêm estreita relação com o contexto sociocultural” (CARVALHO, 2003, p. 15). Em sentido semelhante, a filósofa e psicóloga Sylvia Leser de Mello (2003, p. 51-52) afirma que as transformações por que passou a sociedade brasileira nos últimos quarenta anos, e, “mais ainda, os processos de mudanças nas condições de vida de um imenso contingente de pessoas, que se deslocou do campo para as cidades”, causaram não apenas modificações de caráter socioeconômico ou político, mas afetaram ainda “o delicado equilíbrio das relações entre os membros dos grupos familiares”. Ainda de acordo com a autora, essas mudanças “ocorrem nas concepções que os sujeitos fazem de si mesmos, em como representam o lugar que ocupam no mundo social, como um todo, e não apenas no interior da família”. As transformações na subjetividade, por esse ângulo, não são inócuas; ao contrário: “acarretam percepções diferentes dos papéis respectivos, ocasionam reavaliações de expectativas e redefinem as situações segundo regras que têm origem no modo como os sujeitos percebem a realidade” (MELLO, 2003, p. 52). Dessa forma, nossa análise, nesse momento, partirá do terceiro grande período no movimento da entidade familiar registrado por Roudinesco – a família “contemporânea” ou 20

A respeito da não-linearidade da entidade familiar, o jurista Geraldo Romanelli (2003, p. 78) assevera que “a vivência familiar nunca é apenas a reposição de formas de conduta ou de modelos já estabelecidos, nem a família é instituição dedicada a assegurar a continuidade inalterada do processo de reprodução social. Ao contrário, a ação da família, como grupo de convivência, é marcada por uma dinâmica intensa, que demanda de seus integrantes um constante exercício de repensar o presente e o futuro, o que nos leva a reorganizarem continuamente suas estratégias”.

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“pós-moderna” da segunda metade do século XX – e das transformações nas subjetividades masculina e feminina amparados pelos estudos e narrativas da psicanalista Regina Navarro Lins no segundo volume da obra O Livro do Amor. De acordo com Lins, os Estados Unidos da América experimentaram, no pós-Guerra, um período de abastada prosperidade e de bem-estar social, com destaque para o American Way of Life: um modelo de estilo de vida americano que tem por referencial a classe média branca, bem remunerada e inserida no mercado de consumo, e exportado para todo o mundo – inclusive para o Brasil. O pós-Guerra foi marcado também, como afirma Lins (2013, p. 235), por “grandes avanços científicos, tecnológicos e mudanças culturais e de comportamento”, a exemplo das transmissões televisivas iniciadas na década de 1950, marco que simboliza mudanças nos meios de comunicação. A autora, acerca das primeiras representações das famílias na televisão, destaca que: As adoráveis esposas e donas de casa brigavam com os maridos que proviam o sustento da casa, geralmente se aproveitando deles como um toque despreocupado. As imaculadas mães da TV reinavam sobre casas e crianças superlimpas. Esta imagem artificial, projetada para dentro da casa dos ricos e pobres, serviu para fazer com que algumas pessoas questionassem seus próprios lares não tão perfeitos. (LINS, 2013, p. 236)

Às mulheres era constantemente vendida a imagem de uma esposa bela e tranquila, e os aparelhos domésticos lhes eram apresentados como facilitadores das tarefas domésticas e ferramentas para o alcance de mais tempo livre. No entanto, segundo Lins (2013, p. 236), melhores “padrões de limpeza e atrativos pessoais promovidos pela TV, revistas femininas, literatura doméstica e anúncios davam às donas de casa mais a fazer e mais com que se preocupar”. Tal preocupação feminina se justificava em razão de que, naqueles idos, as esposas eram tidas como a chave para o sucesso de seus filhos e seus casamentos. Se o casamento não vai bem, ou chega ao rompimento, a culpa era das esposas. Aliás, a autora pontua que o amor que as mulheres viviam voltava-se inteiramente para o casamento, a maternidade e as convenções sociais, deixando seus talentos de lado; enquanto os homens encontram “uma válvula de escape nas suas atribuições de chefe de família utilizando-se das chamadas ‘liberdades’ masculinas” 21 (LINS, 2013, p. 238).

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Todavia, embora homens e mulheres possuísses papéis bem definidos dentro da sociedade e dentro da sua entidade familiar, Lins (2013, p. 241) ressalta que, muito antes da revolução sexual de 1960, “os americanos se preocupavam acerca da sua identidade sexual”.

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Para amenizar a submissão feminina enquanto membro da família e da sociedade, passou-se a aconselhá-las a usar o “jeitinho feminino”, conceituado por Lins como “um falso poder destinado a manter a submissão feminina dentro das relações homem-mulher que conferem supremacia ao masculino” (LINS, 2013, p. 241). No entanto, não se percebe paridade entre homem e mulher nessas relações, na medida em que o homem continua sendo a referência, quem exerce o poder de tomar as decisões finais e importantes, enquanto a mulher subsiste na dependência da vontade masculina. Nesse ínterim, no Brasil reproduzia-se a ideia de que “a natureza feminina conduz as mulheres ao casamento, à maternidade e, consequentemente, ao cumprimento do papel de dona casa” como um destino natural que fora traçado para toda e qualquer mulher, parte de sua essência. Esse é o modelo que contribuía, reafirma a autora, para a estabilidade e harmonia da família (LINS, 2013, p. 244). Os sinais de mudança nas mentalidades e configurações individuais e familiares envolvem, para Lins, a desmistificação da sexualidade dos indivíduos, a dominação do homem sobre a mulher e as formas de pensar e viver o amor, o casamento e a sexualidade. Trata-se, portanto, não somente de mudanças culturais, mas também de mudanças morais. No final dos anos 1940 e início dos anos 1950 foram publicados, respectivamente, O comportamento sexual do homem e O comportamento sexual da mulher por Alfred Kinsey. Ambas as obras tratam da realidade das condutas sociais humanas, que, à época, eram fortemente reprimidas e silenciadas, conforme aponta Lins. O relatório Kinsey foi utilizado também “por grupos confinados às margens da sociedade, que se apoiaram nos dados coletados para reivindicar direitos” (LINS, 2013, p. 251). De outro lado, e de forma semelhante, o orgasmo feminino passa a ser admitido, embora ainda envolto de cautela. Em 1966 foi publicada a obra A conduta sexual humana, da qual seguiram pesquisas que evidenciavam “o papel essencial do gozo feminino, liberado do dever de maternidade, pela primeira vez desde a origem da humanidade, em função da livre vontade da interessada” (LINS, 2013, p. 252). Frente à possibilidade de a mulher atingir “licitamente” o orgasmo, o homem passa a se preocupar com problemas relacionados à ereção e à ejaculação precoce – abrindo espaço para a denominada Revolução Sexual. Regina Navarro Lins observa que, até meados do século XX, a maioria dos jovens ocidentais partilhavam o mundo de seus pais, em especial seus valores. No entanto, após a Segunda Grande Guerra, em vista do extermínio que se causou e a destruição das cidades nipônicas de Hiroshima e Nagasaki, “a ameaça da bomba atômica paira na cabeça dos jovens.

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Com o sentimento de insatisfação que isso provoca, eles começam a questionar os valores de seus pais” e contestar o American Way of Life (LINS, 2013, p. 267). Disso resulta a ruptura da comunicação familiar, no sentido de que os filhos recusam as regras impostas pelos pais, e os pais veem-se incapazes de penetrar no mundo dos filhos. Dessa forma, “Em vez de se enquadrar nos papéis determinados pela sociedade, os jovens estavam dispostos a buscar uma verdadeira liberdade, com emoções diferentes e novas sensações [..] regados a jazz, drogas, sexo livre e pé na estrada” (LINS, 2013, p. 268). As antigas relações familiares que mantinham o patriarcalismo, ou seja, o homem-pai no topo do poder e fundadas na divisão sexual de tarefas e no controle da fecundidade da mulher passaram a enfrentar novas ofensivas, desta vez lançada por parte dos movimentos apontados por Lins como de Contracultura: Movimento Hippie, Movimento Feminista, Movimento Gay/LGBTTTI e Revolução Sexual. No entender do economista Armando Ferreira de Almeida Júnior (1996), e acerca das influências desse movimento sobre as transformações do modo de se viver família, A contracultura não foi propriamente um movimento anti-capitalista. Ao mesmo tempo, manifestou-se contra a cultura estabelecida. Exatamente porque o que ela põe em questão é tão antigo quanto a civilização. Depois dela passamos a lutar por um novo modo de viver já. Aqui e agora. A contracultura plantou uma nova ideia de família, de casamento, das relações sexuais; de uma outra atitude para com a natureza, para com o próprio corpo e para com Deus. Ela cobrou uma adequação da superestrutura às mudanças na infraestrutura do mundo ocidental.

A nova forma de viver, aqui e agora, característica da Contracultura, manifesta-se na Revolução Sexual por meio da persecução do primeiro objetivo da liberdade sexual: a gratificação sexual. Um dos facilitadores desse estilo de vida adotado pelos jovens da década de 1960 foi o fato de que, logo em 1961, chegou ao mercado a pílula anticoncepcional, considerada por Lins (2013, p. 270) como “a principal responsável pela mudança radical de comportamento amoroso e sexual observada a partir dos anos 1960”. Se, de um lado, o sexo começou a ser pensado de forma dissociada da procriação e mais aliado ao prazer; de outro, permitiu-se à mulher dar passos em direção à liberdade da maternidade “indesejada” e da repressão, além de conferir-lhe possibilidades de reivindicar o sincero direito de fazer do seu corpo o que bem entenderem (LINS, 2013, p. 270). O advento da pílula anticoncepcional, aliás, não trouxe benefícios apenas às mulheres; começaram também a se dissolver as fronteiras entre masculino e feminino, atenuando sua distinção. Ainda, o fato de o sexo não estar mais vinculado à procriação, observa Lins, faz com que as práticas hetero e homossexuais se aproximem, o que motivou muitos

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homoafetivos a mostrarem à sociedade que não existe apenas uma forma de sexualidade – assunto que abordaremos mais à frente. Outro movimento da Contracultura que nasceu na década de 1960 foi o Hippie22. Também nesse contexto sociocultural pautado no “desejo simples e elementar de felicidade da vida humana”, os processos de mudanças tanto nas condições de vida como nas concepções que os sujeitos fazem de si mesmos afetaram as relações entre os membros dos grupos familiares. O movimento parte do princípio de que o sistema juntamente com os valores que se nos impõem são injustos e geram infelicidade. Assim, como sente ser impossível mudar o mundo, como atitude de vida “o hippie se dispõe a transformar a si próprio, animado pelo projeto novo de ser feliz, a despeito e à margem do sistema”23 (LINS, 2013, p. 280). Essa nova forma de viver hippie exteriorizava-se por uma forma “incomum” não apenas de se vestir, mas também de se expressar. “Rockeiros, freaks, beatniks, cabeludos, psicodélicos, motoqueiros, filhos da guerra fria, andarilhos, malucos, Yppies, hippies. Independentemente do nome que lhes seja dado, já estavam por aí contestando os costumes estabelecidos”, ressalta Almeida Júnior (1996). Na comunidade, continua Lins, onde eram deixados de lado os ditames do capitalismo para entrarem em maior contato com a natureza, os moradores distribuíam entre si as funções a serem desempenhadas, e as decisões eram tomadas coletivamente. Era na vivência dessa realidade que os aderentes ao Movimento Hippie propunham um conceito diferente de família. Nos dizeres de Almeida Júnior (1996): “Não pregavam a antropofagia ou o incesto. Porém, questionavam na prática até a monogamia”. A segunda metade do século XX trouxe também sinais de mudança na mentalidade social em relação à mulher, em parte em decorrência da publicação de O segundo sexo de Simone de Beauvoir. Apesar da profundidade da obra, dois pontos da obra são brevemente destacados por Lins: o entendimento de que o gênero, tanto masculino como feminino, é socialmente construído, e a sua convicção de que, caso as mulheres dependessem economicamente dos homens para viverem, seriam sempre o segundo sexo. São nesses fundamentos que se ancora, em parte, o Movimento Feminista.

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Regina Lins (2013, p. 280) esclarece que o termo “hippie” derivou da palavra de língua inglesa hipster, “que designava as pessoas nos EUA que se envolviam com a cultura negra. Em 6 de setembro de 1965, o termo hippie foi utilizado pela primeira vez, num artigo em um jornal de San Francisco, Califórnia, EUA”. [grifos no original] 23 A autora enfatiza também a diferença entre a contracultura e a luta política: “Em vez de alterar o sistema de poder, [o aderente à contracultura] pretendia, pela transformação interior e da conduta cotidiana, ‘mudar a vida’, quem sabe construindo-se como novo ser de uma Nova Era, espécie de amostra grátis do futuro. Acreditavam que ‘revolução’ não era a crença à qual você aderira, a ‘organização’ a que pertencia ou o partido em que votava, mas sim o que você fazia durante o dia – o seu modo de viver”. (LINS, 2013, p. 284)

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Ainda de acordo com Regina Navarro Lins, o movimento feminista, para além da Revolução Francesa em 1789, nasceu dentro de um contexto de grande consciência política: nos Estados Unidos, em 1963, ocorreram em Birmingham, Alabama, marchas por direitos civis e em Washington, D.C, o discurso de Martin Luther King conhecido como “Eu tenho um sonho”; em 1964, o 36o presidente estadunidense assinou a Lei dos Direitos Civis, com previsão de vedação à discriminação sexual no emprego; em 1965, Washington foi tomada por uma marcha de 15 mil estudantes protestando contra a Guerra Fria. No ano de 1966, foi fundada a National Organization of Women (Organização Nacional para as Mulheres), conhecida como NOW, e cujo objetivo é a luta e defesa dos direitos das mulheres e a promoção de igualdade de gênero. A busca pelo reconhecimento da igualdade entre homem e mulher levou, por exemplo, ao episódio que se denominou Bra-Burning, ou A queima dos sutiãs, quando cerca de quatrocentas ativistas do Women’s Liberation Movement (Movimento de Liberação das Mulheres – WLM) se reuniram em Atlantic City, Estados Unidos, no dia 7 de setembro de 1968, para protestarem contra a realização do concurso de beleza Miss America. Apesar do nome que leva o acontecimento, creditado pela mídia, não houve uma queima de sutiãs propriamente dita. Segundo as narrativas de Lins (2013, p. 289), as ativistas “colocaram no chão do espaço sutiãs, sapatos de salto alto, cílios postiços, sprays de laquê, maquiagens, revistas, espartilhos, cintas e outros ‘instrumentos de tortura’” próprios da exploração comercial da figura feminina. Ato contínuo, foi sugerido que ateassem fogo nesses objetos, mas a ideia não foi levada a cabo – nem sutiãs foram queimados. Foi também em razão da busca da igualdade dos sexos e da diluição de papéis e posições sociais que o vestuário, nas décadas de 1960 e 1970, passou por transformações. Lins reconhece na diminuição do uso de saias o desaparecimento dos papéis sociais. Para a autora, nesse período, “Já não é tão simples distinguir os sexos. Os rapazes deixam crescer o cabelo e usam colares e braceletes; as moças dissimulam suas formas sob blusões soltos” (LINS, 2013, p. 290). No Brasil, o movimento feminista perdeu força em razão do Golpe de 1964 e da promulgação do Ato Institucional nº 5 – AI-5, em 1968. Em razão de a ditadura instalada no país ter coibido e punido quaisquer movimentos de caráter libertário e revolucionário, foi apenas em 1985, ano de criação do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), que o movimento volta a ganhar espaço e atenção pública. Três anos mais tarde, e como consequência das conquistas que o movimento obtivera no país, a nova Constituição Federal

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trouxe maiores garantias de direitos das mulheres, vedando qualquer discriminação entre sexos e afirmando serem homens e mulheres iguais em direitos e obrigações. Nos dias atuais vêm ganhando expressão as Marchas das Vadias (Slutwalk), cuja primeira edição se deu em Toronto, Canadá, em 2011 e, no Brasil, em São Paulo, no mesmo ano. A Marcha iniciou-se, de acordo com as sociólogas Carla Gomes e Bila Sorj (2014), “como reação à declaração de um policial, em um fórum universitário sobre segurança no campus, de que as mulheres poderiam evitar ser estupradas se não se vestissem como sluts (vagabundas, putas, vadias)” (sic). A declaração do policial foi tomada como um exemplo aceito pela população de como “a violência sexual é justificada com base no comportamento e corpo das mulheres” – assim, a primeira Slutwalk “teve como principais bandeiras o fim da violência sexual e da culpabilização da vítima, bem como a liberdade e a autonomia das mulheres sobre seus corpos”. Sob ângulo adjacente, também “as lutas de lésbicas e gays pela conquista da legitimidade social para suas relações amorosas apontam para questionamentos profundos dos fundamentos estruturadores do ideário de família conjugal”, acrescenta o sociólogo Luiz Mello. Para o autor, as lutas por que passam as uniões homoafetivas no que atine ao seu reconhecimento social e jurídico como entidades familiares estão associadas à afirmação ou negação ao que denomina “mito da complementaridade dos sexos e dos gêneros, uma vez que a competência moral e social para desempenhar as funções atribuídas à instituição familiar, especialmente no que diz respeito à parentalidade, tem sido restrita ao casal homem-mulher” (MELLO, 2005, p. 17). Semelhantemente ao que ocorre com as mulheres, é nesse contexto de opressão e questionamento dos valores heterossexistas e por vezes machistas 24 que predominam na sociedade brasileira que, para Mello, gays e lésbicas emergem no cenário político ao longo do século XX: São homens e mulheres que, transcendendo os limites de classe, sexo, gênero, raça, etnia, religião, geração, nacionalidade e orientação ideológica – enfim, transcendendo praticamente todas as fronteiras –, trazem em seus pensamentos e atos, ainda que de forma nem sempre intencional e deliberada, a marca (estigma) im(ex)plícita da transgressão, desafiando fundamentos básicos da normatividade social por meio de suas vivências amorosas e sexuais. (MELLO, 2005, p. 18)

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O autor entende que, “A um Estado controlado basicamente por homens associam-se, como atores sociais importantes, Igrejas, cujos postos de comando também são ocupados por homens, que pautam sua atuação política em crenças e em valores socialmente definidos como masculinos, muitas vezes numa feição claramente machista”. (MELLO, 2005, p. 19)

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No entender de Regina Navarro Lins (2013, p. 291), “A moralidade da Igreja e de setores conservadores sempre tentou bloquear as tentativas de normalizar a situação das minorias sexuais. Dessa opressão surgiu, no século XX, o Movimento Gay”. Um dos marcos dessa mobilização – que nasceu Gay, mas que atualmente denominase Movimento LGBTTTI – para além do surgimento da pílula anticoncepcional, ocorreu em 28 de junho de 1969, em Nova York, Estados Unidos, quando o Stonewall Inn, um bar LGBTTTI, foi invadido pela polícia, numa inspeção rotineira. Entretanto, pela primeira vez, os frequentadores reagiram, forçando os guardas, debaixo de zombarias, a se retirarem do local. Lins (2013, p. 292) narra que, na noite seguinte, ao perceberem que polícia havia voltado ao local, dessa vez com aparato antichoque, os frequentadores “fizeram fila, cantando e dançando: ‘Nós somos meninas de Stonewall/ temos o cabelo cacheado/ não usamos roupa de baixo/ e mostramos nossos pelos púbicos”. Travou-se um embate entre aquela parcela da comunidade LGBTTTI e a polícia nova-iorquina, que feriu não apenas os confrontantes, mas também transeuntes. “Vinte e quatro horas mais tarde”, continua a autora, “as janelas de Stonewall estavam cobertas por slogans políticos: ‘Viva o Poder Gay’. Os primeiros panfletos aparecem: ‘Os homossexuais estão se revoltando? Pode apostar seu belo traseiro nisso’” (LINS, 2013, p. 292-293). Após o conflito de Stonewall foi criado o Gay Liberation Front (Frente de Libertação Gay – GLF) que, no interregno de seis meses, já havia proferido discursos em 175 campi universitários, trazendo à ruína a ideia silenciosa da discrição homossexual. Em 28 de junho de 1970, e por uma visibilidade da afirmação LGBTTTI, foram realizadas as primeiras Marchas do Orgulho Gay nas cidades estadunidenses de Nova York, Los Angeles, San Francisco e Chicago. O então Movimento Gay, hoje LGBTTTI, formado por uma nova minoria em reivindicação de sua legitimidade frente à maioria, nasceu “disposto a mostrar que a heterossexualidade não é a única forma de sexualidade normal, questionando o privilégio dos machos e, dessa forma, contribuindo bastante para a reflexão feminista”. Em razão da sua força, foi responsável ainda, nos Estados Unidos e na Europa, pela reavaliação e mudança legislativas e por atitudes menos conservadoras quanto à sexualidade e ao gênero em geral, aponta Lins (2013, p. 294). Assim como o Movimento Feminista, também o Movimento Gay/LGBTTTI padeceu do silêncio em razão do endurecimento da ditadura militar. Na segunda metade dos anos 1970, surgem as primeiras organizações do movimento homossexual, como o Somos - Grupo

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de Afirmação Homossexual, de São Paulo – o que, para cientista social Regina Facchini (2011, p. 12-13), indica a sua aspiração a reivindicar direitos universais e civis plenos por meio da afirmação de projetos de “politização da questão da homossexualidade em contraste às alternativas presentes no ‘gueto’ e em algumas associações existentes no período anterior ao seu surgimento”. Assim, a “primeira onda” do Movimento Gay/LGBTTTI, aliada aos Movimentos Feminista e Negro, propunha a “transformação para o conjunto da sociedade, no sentido de abolir vários tipos de hierarquias sociais, especialmente as relacionadas a gênero e a sexualidade”. A autora cita como pertencentes a essa fase do Movimento o grupo Somos de Afirmação Homossexual25, de São Paulo, e o jornal Lampião da Esquina26, editado no Rio de Janeiro, que “promoviam a reflexão em torno da sujeição do indivíduo às convenções de uma sociedade sexista, gerando espaços onde a diversidade sexual podia ser afirmada” (FACCHINI, 2011, p. 13). Ao final da década de 1970, em São Paulo, de acordo com João Silvério Trevisan (2007, p. 339; 340), instalaram-se “reuniões de um grupo de homossexuais interessados em organizar-se para discussão e atividades liberacionistas”, nas quais já se debatia mesmo acerca de temas afetos à “quebra de papéis sexuais, à ruptura do modelo heterossexistas de relacionamento amoroso e à polivalência amorosa como proposta potencialmente transformadora”. É a partir desse momento que se inicia, na década de 1980, a atuação do Grupo Gay da Bahia, que coordena, entre os anos de 1981 e 1985, uma campanha nacional pela despatologização da homossexualidade27, ou seja para retirar o antigo homossexualismo do código de doenças do Inamps (FACCHINI, 2011). 25

Somos, de acordo com João Silvério Trevisan (2007, p. 345), e conforme publicado em uma edição do jornal Lampião em 1979, é um nome “expressivo, afirmativo, palindrômico, rico em semiótica e sem contraindicações”. 26 Nas palavras de Trevisan (2007, p. 338-339), o surgimento deste periódico pode ser considerado “fato quase escandaloso para as pudicas esquerda e direita brasileiras, acostumadas ao recato, acima de tudo. Com sua redação instalada no Rio de Janeiro, mas mantendo uma equipe editorial também em São Paulo, Lampião vinha, bem ou mal, significar uma ruptura: onze homens maduros, alguns muito conhecidos e respeitados intelectualmente, metiam-se num projeto em que os temas tratados eram considerados ‘secundários’ – tais como sexualidade, discriminação racial, artes, ecologia, machismo – e a linguagem empregada era comumente a mesma linguagem desmunhecada e desabusada do gueto homossexual. Além de publicar roteiros de locais de pegação guei nas principais cidades do país, nele começaram a ser empregadas palavras proibidas ao vocabulário bem-pensante (como viado e bicha), de modo que seu discurso gozava de uma saudável independência e de uma difícil eqüidistância inclusive frente aos diversos grupos da esquerda institucionalizada. Tratava-se de um jornal que desobedecia em várias direções”. (sic) [grifos no original] 27 Tal entidade civil começou a liderar, desde 1981, “uma campanha nacional para que o Ministério da Saúde não mais adotasse o Código 302.0 da Classificação Internacional de doenças, debaixo do qual se incluía o homossexualismo como ‘desvio e transtorno sexual’. A campanha recebeu o apoio de entidades como a Associação Brasileira de Psiquiatria e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), além de numerosas personalidades e de 353 parlamentares de todo o país. O debate chegou inclusive à Assembléia Legislativa de São Paulo, onde a deputada Ruth Escobar […] sofreu violento ataque de setores conservadores e

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A “segunda onda” sustentada pela autora “corresponde a um período de aumento da visibilidade pública da homossexualidade, na década de 1980, com a lenta expansão de um mercado de bens e serviços destinado ao público homossexual e a chegada da epidemia da Aids28”. Nesse período atuaram os grupos Triângulo Rosa e Atobá, do Rio de Janeiro, e o Grupo Gay da Bahia, e uma das mudanças ali conquistadas foi a adoção do termo orientação sexual, ao invés de opção sexual. De acordo com Facchini (2011, p. 14-15), o “uso do termo ‘orientação sexual’ implica afirmar que não se trata de escolha individual racional e voluntária, mas não se trata também de uma determinação simples”. Durante a Constituinte de 1987-1988, o Grupo Triângulo Rosa foi o responsável pela articulação do Movimento LGBTTTI para reivindicar fosse incluída na novel Constituição Federal a expressão orientação sexual onde hoje estão dispostos o inciso IV do artigo 3 o e no caput do artigo 6o do texto constitucional29. A medida, embora sinalizadora do combate à discriminação contra o homoafetivo, não obteve êxito. A “terceira onda” defendida pela autora revela que os projetos de prevenção coordenados pelos grupos passaram a ser financiados por programas públicos de combate à AIDS, o que permitiu que alguns deles se organizassem como Organizações Não Governamentais (ONGs). Ademais, outra característica que lhe é marcante constitui na “diferenciação de vários sujeitos políticos internos ao movimento: lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais, com foco em demandas específicas de cada um desses coletivos” (FACCHINI, 2011, p. 16). Merece destaque também a fundação, em 1995, do Movimento Brasileiro de Defesa dos Direitos dos Homossexuais, hoje denominada Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), tendo sido considerada a maior rede LGBTTTI na América Latina. A ABGLT, para além de investir esforços no combate à AIDS e em prol de diversas articulações com órgãos públicos, também “promove uma série de chegou a desmaiar no auge dos debates parlamentares. No começo de 1985, e certamente em função das pressões, o Conselho Federal de Medicina finalmente acedeu, passando o homossexualismo para o Código 206.9, debaixo da denominação ‘outras circunstãncias psicossiciais’ – juntamente com o desemprego, desajustamento social e tensões psicológicas; a existência desse novo Código seria aparentemente apenas para efeito de controle estatístico do Inamps, quando do atendimento médico previdenciário”. (sic) (TREVISAN, 2007, p. 367-368) 28 Acrônimo para Acquired Immunodeficiency Syndrome, ou, em língua portuguesa, SIDA (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida). 29 Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: [...] IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (BRASIL, 1988)

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ações no âmbito legislativo e judicial, orientadas para acabar com diferentes formas de discriminação e violência contra a população LGBT” afirma (FACCHINI, 2011, p. 16), a exemplo de campanhas voltadas à sensibilização de Parlamentares e da população em favor da aprovação de medidas legislativas que combatam a homolesbotransfobia. É, então, a partir das lutas desses indivíduos – sejam ou não ativistas do Movimento LGBTTTI, seja ou não perante o Poder Judiciário – que se processam não só a construção social da conjugalidade homoafetiva, mas também a institucionalização de vínculos familiares no Brasil. Nessa lógica, e em vista do que foi levantado sobretudo por Carvalho, Lins e Facchini, destacamos umas das conclusões de Mello (2005, p. 20) quando afirma que, cada vez mais, vem crescendo a) a autonomia da sexualidade em relação à reprodução e à conjugalidade; b) o questionamento acerca da suposta naturalidade da família e do sistema de sexo e gênero; e c) a ampliação do campo semântico de Direitos Humanos e de cidadania, para que englobem os direitos sexuais e reprodutivos. E prossegue o autor: Daí talvez advenha o temor de que o ingresso dos homossexuais na esfera das práticas social e juridicamente definidas como familiares possa radicalizar ainda mais a “crise da família” e a “desestruturação familiar”, objeto de tantos discursos entre os defensores de uma moral e de um modelo de família com pretensões de validade universal, que reagem com indignação e intolerância a todas as transformações que os próprios heterossexuais já vêm produzindo em suas famílias, redefinindo valores, hábitos, tradições e comportamentos até recentemente compreendidos como “naturais”, “sagrados” e, portanto, imutáveis. (MELLO, 2005, p. 20)

Todos os mo(vi)mentos trazidos nas linhas acima, por óbvio, e por não se tratar do objeto central deste trabalho, configuram apenas uma parte dos períodos, dos contextos socioculturais e das lutas sociais que influenciaram não apenas a compreensão de família a partir da segunda metade do século XX (segundo a ótica da organização-desorganizaçãoreorganização), mas também do indivíduo e, até mesmo da forma de se entender o constitucionalismo no país. Poder-se-ia afirmar, com base nos autores visitados, que a compreensão e construção da família correlacionam-se, numa conexão causa-consequência, com as manifestações políticas de visibilidade e com as transformações por que passaram do ser humano e seus valores ao longo dos tempos. Por outro lado, na esfera do ordenamento jurídico brasileiro, a semântica da família será abordada a partir de quatro marcos que, conforme já foi adiantado, julgamos importantes na construção de sua história: 1) a Constituinte de 1987-1988, que redigiu o artigo 226 do

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atual texto constitucional; 2) a leitura neoconstitucional da CRFB/88, apoiada sobre os princípios constitucionais, em especial os de Direitos Humanos; 3) o posicionamento do Supremo Tribunal Federal acerca da supralegalidade dos tratados internacionais de Direitos Humanos no ordenamento pátrio; e 4) a leitura do Supremo a partir da decisão de 2011, que, juntamente com a Resolução do Conselho Nacional de Justiça de 2013, reconheceu a entidade familiar com caráter amplo. São desses marcos que ocupar-nos-emos em seguida.

1.2.2. Por famílias e(m) movimento, parte 2: quatro principais marcos que revelam a construção da semântica de família no Brasil

A Constituição de 1988, por vezes, é acusada de omissa ou silente em relação ao reconhecimento de algumas expressões familiares, a exemplo da homoafetiva. A jurista Maria Berenice Dias (2015, p. 273) chega a afirmar que “O repúdio social a segmentos marginalizados acaba intimidando o legislador, que tem enorme resistência em chancelar lei que vise a proteger a quem a sociedade rejeita. Por puro preconceito”, continua a autora, “não aprova projetos voltados a minorias alvo da discriminação. Tem medo de desagradar o eleitorado e colocar em risco a sua reeleição”. No entanto, e apoiados na literatura que lhe diz respeito, consideramos que essa omissão ou silêncio apontada por Dias é, na verdade, aparente, conforme veremos.

1.2.2.1. As cartas e jogadas de uma suposta maioria na Constituinte de 1987-1988

O legislador constituinte, longe de ser intimidado pelas reivindicações ao reconhecimento da família homoafetiva, ou da não-discriminação em razão de orientação sexual, (im)pôs suas crenças nas linhas da CRFB/88, sobretudo as de ordem religiosa. Para angariar ares de legitimidade, como veremos no primeiro marco ora apresentado, o Parlamentar apresentou-se como representante de uma suposta maioria30.

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O conceito de democracia será melhor trabalhado no Capítulo seguinte, mas, desde já, adiantamos que, em se tratando de um Estado democrático, é vedado que a vontade da maioria impere de forma que se exceda, ou mesmo que limite os direitos das minorias. A democracia, portanto, para que seja legítima, requer mais que o cumprimento da vontade majoritária: traduz-se também na proteção e respeito às minorias. É por esse motivo, e aliado à sua potencialidade como violadora de direitos das minorias, que apresentamos o “maior número de constituintes evangélico da história nacional” como uma suposta maioria legítima atuante na ANC (PIERUCCI, 1996, p. 182). Se, de um lado, afirmam-se maioria por serem numerosos na Constituinte e por acreditarem ser representantes de todos os brasileiros cristãos; de outro, justificam a legitimidade democrática de seus atos por terem vencido as eleições de 1986 por maioria de votos, sustentando uma posição unívoca à revelia do pluralismo inerente à democracia.

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Paulo Bonavides e Paes de Andrade (2002), em sua obra a respeito da história constitucional brasileira, detiveram-se acerca do estudo do perfil ideológico da Constituinte. Segundo os juristas, houve, na ocasião, a substituição da ação partidária pela movimentação de grupos, razão pela qual a imprensa acusou a organização de lobbies de interesse, os mais variados,

“como

influenciadores

ou

deformadores

da

vontade

da

Constituinte”

(BONAVIDES; ANDRADE, 2002, p. 476). Um dos lobbies mais representativos na Constituinte de 1987-1988 foi o evangélico31. O também jurista Douglas Antônio Rocha Pinheiro (2008, p. 13), após ter-se debruçado sobre os Diários da última Assembleia Nacional Constituinte, com fins de investigação a respeito da identidade religiosa e a laicidade do sujeito constitucional brasileiro, afirma que a presença do religioso na ANC foi estampada logo no próprio Regimento, que dispunha no artigo 46: “A Bíblia Sagrada deverá ficar sobre a mesa da Assembléia Nacional Constituinte, a disposição de quem quiser dela fazer uso” (sic). Entretanto, antes mesmo que se formasse a Constituinte, um processo coletivo de tomada de decisão por parte da liderança da Igreja Assembleia de Deus foi ponto crucial para a quantidade elevada de representantes evangélicos na ANC. Apesar de a igreja ter-se envolvido no processo constituinte por meio de candidaturas de fiéis, foi de fundamental importância o lançamento do livro Irmão vota em irmão, escrito pelo líder assembleiano Josué Sylvestre, cujo objetivo era o estímulo do evangélico a votar nos seus irmãos de fé, como forma de se afirmar enquanto crente (PINHEIRO, 2008). 31

Os termos protestante e evangélico são usualmente empregados no Brasil de forma sinonímica, de acordo com Douglas Pinheiro (2008, p. 54) e Paul Freston (1993, p. 1). Com efeito, na visão de Magali do Nascimento Cunha (2007, p. 13), evangélico é “o termo mais comumente designado como referência aos cristãos nãocatólicos no Brasil. O termo consagrado na história geral, ‘protestante’, raramente foi e tem sido utilizado para identificar esse grupo no Brasil; ele é mais usado por historiadores e estudiosos da Teologia e da Religião”. A despeito da relação de proximidade de sentido entre os dois vocábulos, Ricardo Quadros Gouvêa (2012, p. 27), na obra Piedade pervertida, tece críticas à indistinção dos termos (e do comportamento): “Sabemos que o número de evangélicos no Brasil cresce a cada década. Mas quão protestantes são os evangélicos hoje? As igrejas evangélicas que mais crescem são aquelas que sequer celebram o Dia da Reforma, que não se vêem como herdeiras da reforma protestante, igrejas cujos membros sequer se declaram protestantes. Mesmo nas igrejas históricas o adjetivo ‘protestante’ está em desuso, e o termo ‘evangélico’ é empregado com mais freqüência”. (sic) Para o autor, as tendências evangelicals têm por característica o abandono do ímpeto reformador, o que as torna distanciadas da sociedade e da cultura, individualistas. Com efeito, afirma Gouvêa (2012, p. 28), a Reforma Protestante não significa um mero acontecimento histórico, mas “um paradigma cristão de pensamento e de conduta” de caráter mutante, “sempre em transformação, para que possa melhor cumprir a sua missão”. Para o autor, em decorrência do abandono do princípio protestante, a Bíblia passou a ser “lida somente através de óculos doutrinários que não permitem que ela fale por si mesma”; as igrejas evangélicas “passaram a ser sacramentalistas, assim como também exigem de seus membros que sigam uma rígida proposta de conduta, sem a qual são considerados condenados e são afastados da comunhão do corpo de Cristo”; pastor e templo tornamse objetos sagrados que mediam a fé entre o indivíduo e o divino. (GOUVÊA, 2012, p. 30). Dessa forma, e atentando-nos também à utilização do termo por Pinheiro (o autor bem lembra que essa é a expressão 1) utilizada pelo próprio grupo de Constituintes não-católicos; e que 2) gera uma vinculação simbólica muito mais evidente com os Evangelhos do Novo Testamento), é que faremos uso doravante de evangélico, e não de protestante para a caracterização do lobbie a que nos referimos.

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O resultado das estratégias evangélicas, que já se desenvolviam desde 1982, culminou em 1986 na eleição do “maior número de constituintes evangélicos da história nacional32 ” (PINHEIRO, 2008, p. 61). Assim, de acordo com Antônio Flávio Pierucci (1996, p. 182), Já em janeiro de 1987 a grande imprensa noticiava a articulação de “blocos evangélicos” como o primeiro passo da montagem de uma estratégia conjunta de atuação na Constituinte. Chamou-se a atenção, desde logo, para o fato de serem eles o primeiro grupo de constituintes ligados a diversos partidos a ter a iniciativa da formação de um bloco suprapartidário; e, em segundo lugar, para o objetivo comum que os unia acima de suas diferentes filiações partidárias: procurar barrar na Constituinte as iniciativas por eles consideradas anticristãs, como por exemplo a legalização do aborto.

Em relação ao mandato político exercido pelos evangélicos aos tempos da Constituinte, Pinheiro assevera que esse significante passou por uma reocupação 33 semântica, e estabelecido, ao final, pelo tripé vocação-profetismo-martírio. Conforme o autor, “o mandato é um martírio, na medida em que o constituinte deve sofrer na carne as conseqüências de sua profissão de fé” (sic) [grifos no original] (PINHEIRO, 2008, p. 66). No entanto, precedem ao martírio a vocação e o profetismo. “O candidato, sujeitando-se ao pleito eleitoral, atende a um chamado irrevogável feito pelo próprio Deus a quem Lhe aprouve. Nesses termos”, assevera, “a vitória nas urnas é uma confirmação do discernimento da comunidade, que soube ouvir a voz divina, lançando o candidato adequado – afinal, se Deus suscita um propósito é porque diligenciará para que ele seja cumprido”. Também afigura-se profético o mandato, levando-se em consideração que o profeta é aquele “denunciante das realidades do plano divino” (PINHEIRO, 2008, p. 66-68). Assim, ao denunciar, “o profeta se desincumbe do mister que lhe é designado e a responsabilidade pelo mau comportamento se transfere para o destinatário da profecia, que não pode mais argüir ignorância do pecado perante a sua consciência, a comunidade e a divindade” (sic) (PINHEIRO, 2008, p. 68). Para o autor, essa reocupação semântica do significante de mandato político atende a um duplo movimento: a) sacralização do secular, ou seja, a transformação da Constituinte pelo deputado em “terra de missão, fazendo do mandato um equivalente funcional do ministério consagrado e da figura do parlamentar, um presbítero 32

Pierucci (1996, p. 164) assevera que “Para os setores intelectualizados e laicos da população, à surpresa diante do tamanho do grupo vinha juntar-se a descoberta de um forte pedigree conservador, que resultava em reforço à pressão conservadora sobre a nova Carta”. [grifos no original] O autor chama ainda a atenção para o fato de que, a partir de janeiro de 1987, os evangélicos passaram “a ter presença mais constante e destacada na grande imprensa laica, no Diário da Constituinte pelo rádio e pela televisão, e em outros noticiários radiofônicos e televisivos de grande audiência”, ao invés de se circunscreverem apenas a “seus próprios meios confessionais de comunicação de massa (jornais, revistas, rádios e programas de TV) [...]”. (PIERUCCI, 1996, p. 168) 33 Pinheiro (2008, p. 69) esclarece que a utilização do termo “reocupação” foi utilizada “como sendo a atribuição de um novo conteúdo semântico a um significante qualquer, já existente”.

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missionário”; e b) secularização do sagrado, isto é, a legitimação do sagrado em instâncias seculares por meio, e.g., de um “código de comunicação específico entre a bancada evangélica e seu eleitorado” (PINHEIRO, 2008, p. 69-71). A ANC foi palco de reiteradas autoafirmações34 por meio da invocação da maioria35 cristã e/ou moral36 da sociedade brasileira em defesa dos bons costumes. Não por acaso que Pinheiro (2008, p. 81) refere-se a alguns evangélicos da Constituinte como uma maioria moralista conservadora37; também não por coincidência que, para Pierucci (1996, p. 180, 173), os Deputados Constituintes evangélicos eleitos, considerados como “conservadores na esfera cultural e fundamentalistas na esfera religiosa”, passaram a sinalizar sua vontade “de presença pública como guardiões da moralidade privada, como também de seu mais rasteiro fisiologismo”. A respeito das questões que versavam sobre o ethos social, essa maioria moralista, que se legitimava como “representantes de Deus, do Deus do povo”, ancorava-se habitualmente nos chamados bons costumes, como se servissem, afirmou o deputado Costa Ferreira (PFLMA) “de freios aos instintos animalescos que moram em cada um de nós e que a moral domina” (PIERUCCI, 1996, p. 174; PINHEIRO, 2008, p. 82). Os símbolos utilizados para

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Segundo o entendimento de Pierucci (1996, p. 164), “Durante muito tempo sustentando suas crenças longe da arena política, pretendiam agora, que seus pontos de vista religiosos, minoritários em um país de tradição católica e de reconhecido pluralismo confessional, tivessem sua normatividade imposta, pela Constituição, a todos os brasileiros”. 35 A esse respeito, manifesta-se Pierucci (1996, p. 174): “Curiosos tempos esses, em que uma corrente religiosa minoritária pode, falando em nome de Deus, falar com plausabilidade em nome da maioria: ‘A maioria do nosso povo acredita em Deus e a Constituição deve expressar a vontade dessa maioria’”. 36 Ou, em outras palavras, “moralidade privada convencional”, segundo Pinheiro (2008, p. 79) e Pierucci (1996, p. 184). Na oportunidade, à guisa de ilustração, Pinheiro (2008, p. 79) traz o pronunciamento do então deputado Antônio de Jesus (PMDB/GO): “A questão, polêmica por excelência, comporta exame a partir de múltiplos ângulos – social, político, econômico, humano, religioso. É sob esses dois últimos aspecto que desejo focalizá-la, no breve lapso de tempo que disponho, trazendo ao Plenário da Assembléia Nacional Constituinte algumas considerações ditadas por minha consciência de homem a serviço de Deus e profundamente identificado com o povo brasileiro – sua índole mística, suas crenças, seus anseios, seu respeito e acatamento aos valores morais e éticos subjacentes em nossa cultura. Nobres Constituintes, a condição de Ministro Evangélico permitiu-me compreender uma verdade insofismável sobre a nossa gente: a fé cristã está arraigada em todos nós; somos uma nação de espiritualistas, sustentada mais pela intensa religiosidade de seus filhos do que pelas riquezas materiais, que, embora abundantes no território pátrio, temos deixado escorrer pelos dedos das mãos. Sr. Presidente, se somos cristãos – evangélicos e católicos, ou se, pertencendo a qualquer outra fé, acreditamos na onipotência e na misericórdia divina, como poderemos aceitar o aborto?” (sic) [grifos no original]. Também Pierucci (1996, p. 164) cita Antônio de Jesus, o qual corrobora com a visão moral (em)pregada: “Tudo o que for louvado ali [na novel Constituição Federal] deve ser praticado, tudo o que for condenado ali deve ser proscrito”. 37 Pinheiro (2008, p. 81) explica que os constituintes evangélicos utilizavam o significante moral não como aquilo que é justo para todos, mas como “o que é bom para nós”. É por essa razão que utiliza o termo moralista, “que não guarda qualquer juízo prévio depreciativo, mas, antes, busca solucionar os possíveis equívocos que tal polissemia poderia ocasionar”. Frisa Pierucci (1996, p. 178) que os deputados constituintes evangélicos “não são conservadores sem o dizerem; eles se dizem conservadores. A retórica é religiosa, moralista e explicitamente bíblica: a Bíblia diz, preceito bíblico, Sodoma e Gomorra...”.

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tanto, segundo Pierucci (1996, p. 178), “são bíblicos e patriarcais: a família, o sexo, a mulher em seu lugar, o corpo da mulher, o estupro, o feto”. Uma das ofensas a esses tais bons costumes, e, portanto, merecedora de uma postura denunciadora, foi o homossexualismo, quando das discussões acerca da concepção e defesa da família na Constituição Federal. Como observa Denise Duarte Bruno (1995, p. 79) acerca da ANC, “Os comportamentos que destoam da moral vigente e o homossexualismo são referidos pela maioria dos congressistas como causas para desagregação familiar”. Aliás, e por oportuno, Luiz Mello (2005, p. 18) constata em Novas famílias: conjugalidade homossexual no Brasil contemporâneo que “o conflito existente entre uma visão de mundo laica e outra religiosa constitui núcleo dos embates em torno do reconhecimento da legitimidade da conjugalidade homossexual”. A bancada evangélica na Constituinte, em usurpação da vontade do povo38, mobilizouse acerca da concepção de família na Constituição. A propósito, Pierucci (1996, p. 185) chega a afirmar que foi na Comissão da Família, Educação e Cultura, mais especificamente na Subcomissão da Família, do Menor e do Idoso, que os Deputados evangélicos mais fizeram estardalhaço, “ocupando sistematicamente espaço na grande imprensa com seus pontos de vista moralistas, sua obstinada cruzada contra as medidas consideradas progressistas e anticristãs nas questões de aborto, planejamento familiar, casais não-casados etc” (sic). As posições defendidas acerca da família (como uma instituição natural e não social, fundada sobre valores cristãos, composta por um casal heteroafetivo e com fins de procriação), aos olhos de Bruno, deixam claro que a entidade foi estruturada em torno das diferenças entre os sexos. Na verdade, embora não seja esse o cerne de sua pesquisa, a autora menciona ainda que “A parcela de congressistas declaradamente religiosos tem significativa participação no debate de temas relacionados à família, identificando na lei divina a ‘naturalidade’ da hierarquia nas relações familiares”. Ainda a respeito das discussões legislativas que importassem na ampliação dos direitos na esfera da família na Constituinte, Luiz Mello (2005, p. 19) assevera que: Os confrontos entre sujeitos sociais que possuem distintas concepções de família emergem, também, como a materialização dos embates ideológicos entre visões de mundo includentes e excludentes. Se as primeiras expressam o entendimento de que a cidadania e os direitos humanos devem ser assegurados ao mais amplo e variado conjunto de indivíduos, as segundas ancoram-se na compreensão de que apenas os indivíduos que se enquadram nos limites dos valores e práticas sociais dominantes devem ser reconhecidos, incondicionalmente, como cidadãos e seres humanos. 38

De acordo Pierucci (1996, p. 174), na ocasião da Constituinte foi reeditado o vezo “de usurpação de representação da ‘vontade do povo’ que religiosos se conferem pelo privilegiado acesso que têm ao conhecimento da ‘vontade de Deus’”.

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Na Comissão de Soberania e Direitos do Homem e da Mulher, o ponto de atrito entre conservadores e progressistas, no entender de Pierucci, foi a proposta de proibição da discriminação contra os homossexuais. A mobilização forte e contrária de reconhecimento dos direitos dos homoafetivos foi legitimada, nos dizeres do Deputado Salatiel Carvalho (PFL/PE), por uma suposta maioria nacional: “os evangélicos não querem que os homossexuais tenham igualdade de direitos porque a maioria da sociedade não quer” (PINHEIRO, 2008, p. 86). “Eis aí:” – brada Pierucci (1996, p. 175) – “foi na defesa dos costumes tradicionais – ditos ‘cristãos’ – e da moral sexual convencional – dita ‘cristã’ – que eles se erigiram em porta-vozes da maioria dos brasileiros, a qual eles ‘sabem’ ser uma ‘maioria moral’”. Em seus escritos, Pierucci destaca palavras-chave que denotam uma pretensão que ele considera ilegítima por parte da bancada evangélica. Ressalta que, no período da Constituinte, os Deputados evangélicos passaram por um processo de autoafirmação, tanto no Congresso como perante o povo (de “tradição católica e de reconhecido pluralismo confessional”), justamente em razão de não serem numericamente a maioria no país (PIERUCCI, 1996, p. 164). Em que pese os pontos de vista evangélicos minoritários terem buscado legitimidade na suposta maioria moral, Pierucci (1996) aponta o toque de usurpação39 presente na representação evangélica (como também ocorre na representação católica) na ANC e no espaço público, na medida em que, de forma articulada, pressionaram os legisladores e demais Poderes motivados por seus interesses políticos e de suas corporações religiosas, em nome de Deus e do povo de Deus. A respeito da alegada usurpação, entende o autor que: A seu modo, portanto, cada um dos grandes ramos do cristianismo se auto representa como representante do povo para exercer sobre este diferentes formas de tutela política, vinculando o variegado estoque de valores cristãos de diferentes maneiras a diferentes agendas políticas, apresentadas sempre como genuinamente “populares”. [grifos no original] (PIERUCCI, 1996, p. 175)

Noutra oportunidade, também na Comissão de Soberania e Direitos do Homem e da Mulher, o Deputado Antônio de Jesus (PMDB/GO) subiu à tribuna da Constituinte, referindose ao Grupo Gay da Bahia – recentemente declarado de utilidade pública pela Câmara Municipal de Salvador –, em nome da “conservação da família” e do combate à “heresia”, 39

Pierucci (1996, p. 174) sustenta o ato de usurpação de delegação por parte dos Congressistas evangélicos por se imporem como representantes da “vontade do povo” a) em razão do suposto acesso privilegiado que têm do conhecimento da “vontade de Deus”; e b) por falarem em nome de uma pretensa maioria, uma “maioria moral”, que partilha de valores específicos ligados à religiosidade.

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para expressar que “só poderia ser de utilidade pública uma organização que se propusesse à ‘recuperação de homossexuais ou portadores de desvios de conduta’” (PINHEIRO, 2008, p. 86). Ademais, conforme sublinhamos brevemente no item anterior, e de acordo com o que sustenta Pinheiro (2008, p. 87), o dispositivo que previa que ninguém seria prejudicado ou privilegiado em razão de sua orientação sexual, foi atacado pelos Constituintes evangélicos e pela imprensa. Na ocasião, o Deputado Costa Ferreira (PFL/MA) asseverou que “Prever constitucionalmente o fim por preferências sexuais seria trazer para o Brasil a maldição de outros países. Seria uma maldição igual à que existiu em Sodoma e Gomorra” [grifos no original] (PIERUCCI, 1996, p. 177). No excerto seguinte, o Deputado Salatiel Carvalho (PFL/PE) se pronuncia acerca de eventuais garantias constitucionais imprestáveis para portadores de anomalias sexuais40: Salatiel Carvalho (PFL/PE) – A inclusão da expressão “Orientação Sexual” na alínea “f”, inciso III, art. 12, passa a estabelecer a garantia constitucional aos portadores e praticantes de qualquer impulso, tendência ou inclinação sexual. Permitir que tal expressão seja mantida no texto do Projeto é, no mínimo, contribuir para uma Constituição contraditória, já que consideramos fundamental e básico a nova Carta Constitucional ser precisa e clara nos dispositivos que defenderão a moral, os bons costumes e a família. (...) É sabido que a inclusão do termo “Orientação Sexual” atende à solicitação dos grupos homossexuais. Se o parágrafo pretende garantir constitucionalmente o homossexualismo, já é falho por garantir uma anomalia sexual, que, mesmo sendo uma realidade, não deve receber garantia constitucional explícita. [grifos no original] (PINHEIRO, 2008, p. 87)

Em determinada altura, o Deputado Nelson Aguiar (PMDB-ES) afirmou que a AIDS é uma retribuição da prática homossexual, em referência à passagem bíblica de Romanos, capítulo 1, versículo 27: “E, semelhantemente, também os homens, deixando o uso natural da mulher, se inflamaram em sua sensualidade uns para com os outros, homens com homens, cometendo torpeza e recebendo em si mesmos a recompensa que convinha ao seu erro” (BÍBLIA SAGRADA). Também o Deputado Eliel Rodrigues teve a oportunidade de se manifestar acerca de moral e de reprovabilidade cristã: Eliel Rodrigues (PMDB/PA) – Achamos que inserir no texto constitucional essa expressão [orientação sexual] é permitir a oficialização do homossexualismo, muito em breve, como prática normal das pessoas, e que deve ser aceito pacificamente. (...) Não se trata, portanto, da necessidade de respeito a uma característica própria, adquirida ou normal, das pessoas, como o sexo, a cor, a posição social, a religião, etc., e, sim, de uma deformação de ordem moral e espiritual, reprovável sob todos os pontos de vista genuinamente cristãos, constituindo-se num dos maiores veículos de disseminação do mal terrível da AIDS. Achamos que o adequado é deixa-lo com o

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No entender de Dias (2009, p. 28), “Posturas mais conservadoras ainda tendem a explicar a homossexualidade como uma anomalia dos tempos presentes. Objeto de intolerância social, é vista como um ato de indignidade”.

68 seu livre arbítrio, com o seu livre direito de escolha de seu próprio caminho, porquanto cada um é livre para direcionar a sua vida e tornar-se responsável pelos seus atos, diante de Deus e dos homens, mas não oficializar sua conduta. Deus ama o pecador, mas aborrece-o o pecado. Seu propósito é o arrependimento por parte dos que trilham caminhos pervertidos. [...] (sic) [grifos no original] (PINHEIRO, 2008, pp. 87-88)

Foi em nome da pretensa “‘maioria moral’, medida com o metro da moralidade privada convencional, religiosa mas não denominacional, que eles lutaram”, assegura Pierucci (1996, p. 175), tanto “contra o homossexualismo (considerado por eles perversão e falta de vergonha que atraem a maldição de Deus sobre um povo)”, como “contra o feminismo (que destrói a hierarquia da família patriarcal)41”. Convém asseverar, por oportuno, que o argumento utilizado pelos Deputados à época, qual seja o do ethos exemplar a ser seguido, na visão de Pinheiro (2008, p. 88), “perpassa boa parte das tomadas de posição evangélicas, mesmo que nem sempre de modo expresso” e, pelo que nos parece, continua ainda nos dias atuais42. Foi, portanto, com base na pretensa legalidade do discurso da maioria e da moralidade cristã que o artigo 226 da CRFB/88 recebeu como parte de sua redação a expressão o homem e a mulher para que não pairassem dúvidas acerca de qual entidade familiar essa mesma maioria moralista – empréstimo do termo utilizado por Pinheiro e Pierucci – e preconceituosa43 – empréstimo do termo utilizado por Maria Berenice Dias – reconheceu e codificou como a única possível. Em detrimento à literalidade do artigo 226 da CRFB/88 à presença do ethos cristão que carrega consigo, juntamente com seus valores, proibições, inibições, exclusões, opressões e coações (PINHEIRO, 2008), a literatura jurídica contemporânea recomenda seja o texto constitucional interpretado à luz dos princípios ali contidos, especialmente o da dignidade da pessoa humana, aliados aos provenientes dos tratados internacionais de Direitos Humanos, e 41

Em relação ao feminismo e a Constituinte, embora não seja objeto específico de nossa pesquisa, trazemos a seguinte argumentação de Bruno: nas oportunidades em que os Constituintes manifestaram sua preocupação na manutenção da família tradicional, também explicitaram que a própria entidade familiar passava por um momento de crise. No entanto, arremata a autora que “A identificada crise da família, no caso, não é atribuída a uma reação feminina contra a dominação masculina, a qual constitui a reivindicação de igualdade expressa pelo movimento feminista, nem é relacionada a uma crise do humanismo. É, porém, atribuída à desagregação moral da sociedade pela liberalização dos costumes e pela difusão de comportamentos imorais. Frente a isso, em várias intervenções, observa-se a preocupação em elaborar um texto constitucional com capacidade para manter o núcleo familiar”. (BRUNO, 1995, p. 90) 42 Pinheiro (2008, p. 101), ao retratar o Pós-Constituinte, assevera que, de fato, “reforçou-se uma identidade religiosa monoteísta do sujeito constitucional, excluindo-se, pois, inúmeras expressões de religiosidade existentes no país, o que demonstra que a postura do Estado em relação à pluralidade em questões de fé não é tão inclusiva quanto se afirma”. 43 Dias se refere aos preconceitos como “valores morais de extrema e subjetiva discussão nas sociedades políticas”. Ademais, para a autora, “Na ótica jurídica, é inconcebível reconhecer preconceitos na medida em que podem lesar a garantia constitucional da igualdade e da identidade pessoal. Inadmissível que convicções religiosas possam inibir a busca de soluções dentro do sistema jurídico”. (DIAS, 2009, p. 32)

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não com base na simples letra da lei, desatrelada da principiologia que lhe sustenta. Em outras palavras, de acordo com a proposta neoconstitucional – segundo marco por nós recortado –, o intérprete da Constituição deve buscar não a simples descrição da norma (p.e., a literalidade do artigo 226 da CRFB/88), mas a concretização dos Direitos Humanos e fundamentais inseridos ao longo do texto constitucional, a partir dos valores que dele emanam.

1.2.2.2. As marcas do neoconstitucionalismo e dos princípios de Direitos Humanos no Direito Brasileiro Contemporâneo

Antes de mais nada, ressaltamos que, a respeito da proposta do neoconstitucionalismo e sua repercussão na hermenêutica constitucional, teceremos comentários sucintos – afinal, a questão será tratada de forma mais densa no Capítulo segundo. Neste momento, nosso intuito é apresentar essa perspectiva do constitucionalismo, que se funda, sobretudo, no respeito e promoção da dignidade da pessoa humana, e suas implicações para construção da semântica de família no Brasil. Na compreensão de Luís Roberto Barroso, o constitucionalismo faz parte da síntese histórica44 do Estado Democrático de Direito brasileiro, chegando mesmo a considerar a nova

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Tal síntese histórica, diz o autor, compreende, na Europa, o pós-Segunda Grande Guerra, e com ele a Lei Fundamental de Bonn (Constituição alemã) de 1949, a Constituição italiana de 1949, a instalação do Tribunal Constitucional Federal em 1951, a reconstitucionalização de Portugal (1976) e Espanha (1978). No Brasil, a Constituição Federal de 1988 e o processo de redemocratização por que passou o país são apontados por Barroso como responsáveis por promover uma travessia bem-sucedida de um regime autoritário para um Estado Democrático de Direito. Contudo, é importante salientarmos que, por trás desses acontecimentos históricos, residem um acúmulo de afirmação de lutas, demandas sociais, movimentos de protesto e manifestações políticas por visibilidade. Nesse sentido, Solon Eduardo Annes Viola e Thiago Vieira Pires asseveram que, logo após o golpe militar na década de 1960, um grupo de pessoas no Estado do Rio Grande do Sul, movidas pela solidariedade aos perseguidos pelo regime e pela defesa dos direitos civis e políticos, passou a atuar de forma espontânea, embora organizada de forma precária. O crescimento desse grupo e de suas ramificações possibilitou o surgimento do Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH). Dessa maneira, continuam os autores, a “segunda metade dos anos 1960 acompanhou o surgimento de movimentos sociais em defesa da democracia e dos sonhos de uma sociedade mais livre e equânime. Os trabalhadores, as classes médias e os estudantes reorganizaram-se e passaram a ocupar as ruas das grandes cidades, denunciando as violências e arbitrariedades e exigindo o fim da ditadura”. (VIOLA; PIRES, 2013, p. 317) Em âmbito nacional, conforme relatam Cláudio Vicentino e Gianpaolo Dorigo, participaram ativamente para a redemocratização do país – e, em última instância, para a valorização de princípios como a dignidade da pessoa humana, a liberdade e a igualdade, tão caros à visão neoconstitucionalista do Direito brasileiro –, e.g., a União Nacional dos Estudantes (UNE); os trabalhadores (mediante duas greves principais, uma em Osasco/SP e outra em Contagem/MG); os artistas, mediante apelo às plateias; os integrantes dos CPCs (Centros Populares de Cultura), criados por estudantes no início da década de 1960 e que procuravam aproximar a arte das massas; o movimento Cinema Novo, que afastava-se dos padrões estadunidenses e discutia problemas sociais e culturais brasileiros; o ativismo do Grupo Gay da Bahia; o periódico O Lampião da Esquina, a primeira revista brasileira dedicada ao público homossexual; o Somos: Grupo de Afirmação Homossexual, conhecido também como Grupo Somos, a primeira comunidade brasileira organizada com fins de ampliação da inserção dos homossexuais na sociedade e em defesa dos direitos (à época) GLS; e os participantes das campanhas Diretas Já!.

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visão constitucional como a primeira “revolução profunda e silenciosa ocorrida no direito contemporâneo” 45 (BARROSO, 2013, p. 287-289). Tal pressuposto parece fortalecer a relevância desse segundo marco histórico-jurídico justamente em razão de que, à medida que nos aproximamos de uma hermenêutica fixada à luz da principiologia constitucional, com vistas à transformação e emancipação social, e a partir inclusive das manifestações políticas por visibilidade, estamos nos aproximando também do ideal de democracia e da vedação ao retrocesso. A partir do neoconstitucionalismo defendido pelo autor, a Constituição figura como centro do sistema jurídico, de sorte que todo o ordenamento deve ser interpretado conforme sua axiologia. É dizer, em outras palavras, que para toda interpretação jurídica é necessariamente também interpretação constitucional – inclusive a atinente ao Direito de Família. Nesse esteio, o princípio46 ou valor constitucional fundamental necessário à democracia é o da dignidade da pessoa humana, inscrito no artigo 1o, III, da CRFB/8847. Assim, a complexidade da vida contemporânea, com o seu o pluralismo de visões, valores e interesses, e aliada às demandas por justiça e pela promoção e preservação de Direitos Humanos, faz com que essa nova visão constitucional atue como paradigma para a reelaboração de conceitos e categorias jurídicas. De forma similar, o neoconstitucionalismo, a

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Apesar de se referir como uma “revolução” ocorrida no Direito contemporâneo, o autor entende ser necessário “reavivar as virtudes da moderação e da mediania, em busca de equilíbrio entre valores tradicionais e novas concepções”. (BARROSO, 2013, p. 289) 46 Na concepção de Barroso, a qual adotamos neste trabalho, princípio, para além de sua eficácia, aplicabilidade direta e imediata, ou dimensão axiológica e ética, deve ser entendido a partir do seu status como norma jurídica. Na moderna dogmática constitucional, a CRFB/88 passa a ser vista como “um sistema aberto de princípios e regras, permeável a valores jurídicos suprapositivos, no qual as idéias de justiça e de realização dos direitos fundamentais desempenham um papel central”. (sic) (BARROSO; BARCELLOS, 2003, p. 33) Assim, princípios e normas desempenham funções diferentes no ordenamento. As normas em geral, e as constitucionais em particular, enquadram-se em duas categorias: os princípios e as regras. Normalmente, assevera o autor, as regras contêm relato mais objetivo, descritivo de conduta, com incidência restrita às situações específicas às quais se dirigem, na modalidade ou tudo ou nada. Caso duas normas entrem em conflito, portanto, apenas uma deverá prevalecer. Já os princípios têm maior teor de abstração, não especificam conduta a ser perfilhada e incidem sobre uma pluralidade, às vezes, indeterminada, de situações – podendo haver a colisão de princípios! –, com vistas à realização do que chama da justiça no caso concreto. Além disso, enquanto o conteúdo dos princípios é voltado para preservar valores (isonomia, moralidade, eficiência) ou alcançar fins (justiça social, desenvolvimento nacional, redução de desigualdades), as normas limitam-se a traçar condutas a serem tomadas para o seu cumprimento adequado, normalmente, sem a necessidade de um “processo de racionalização mais sofisticado”. (BARROSO; BARCELLOS, 2003, p. 35-37) Por fim, nas palavras do autor, “Em uma ordem democrática, os princípios freqüentemente entram em tensão dialética, apontando direções diversas. Por essa razão, sua aplicação deverá se dar mediante ponderação: à vista do caso concreto, o intérprete irá aferir o peso que cada princípio deverá desempenhar na hipótese, mediante concessões recíprocas, e preservando o máximo de cada um, na medida do possível. Sua aplicação, portanto, não será no esquema tudo ou nada, mas graduada à vista das circunstâncias representadas por outras normas ou por situações de fato”. (sic) [grifos no original] (BARROSO; BARCELLOS, 2003, p. 33-34) 47 Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] III - a dignidade da pessoa humana. (BRASIL, 1988)

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partir dos princípios constitucionais, passa a atribuir sentido aos textos legais. Não qualquer sentido aleatório, arbitrário ou relativo, mas um cuja essência se mantém conexa à axiologia constitucional, pautada na principiologia, nos Direitos Humanos e nas garantias fundamentais contidos na Lei Maior. Os Direitos Humanos, nesse sentido, passaram a ocupar uma posição de proeminência no ordenamento jurídico. Trata-se, em síntese, de princípios (explícitos e implícitos) de aplicação imediata previstos tanto na CRFB/88 como em diplomas internacionais de que o Brasil seja signatário, em especial a Declaração Universal de Direitos Humanos de 194848. Entretanto, e em que pese sua natureza aberta, também os Direitos Humanos devem ser interpretados a partir de um conceito mínimo, fixado na principiologia constitucional, em especial o da dignidade da pessoa humana. É a partir, portanto, da compreensão da Constituição como um sistema aberto de princípios e regras, permeado por valores jurídicos suprapositivos, que desempenham um papel central em nome de ideais como o de justiça é que pode haver realização dos Direitos Humanos, compreendidos esses como, para além de normas supralegais, verdadeiros princípios constitucionais. Ainda, no que diz respeito ao neoconstitucionalismo e suas implicações no conceito de entidade familiar, citamos as seguintes considerações de Barroso. Ao afirmar que a hermenêutica contemporânea não surgiu para derrotar a hermenêutica tradicional, e sim para “atender às necessidades deficientemente supridas pelas fórmulas clássicas”, o autor toma como exemplo o conceito constitucional de família: Até a Constituição de 1988, havia uma única forma de se constituir família legítima, que era pelo casamento. A partir da nova Carta, três modalidades de família são expressamente previstas no texto constitucional: a família que resulta do casamento, a que advém das uniões estáveis e as famílias monoparentais. Contudo, por decisão do Supremo Tribunal Federal, passou a existir uma nova espécie de família: a que decorre das uniões homoafetivas. Veja-se, então, que onde havia unidade passou a existir uma pluralidade. (BARROSO, 2013, p. 334-335)

Como observa o autor, também a concepção de família deve ser estudada sob os novos olhos da hermenêutica contemporânea. Isso se justifica pelo fato de que, além tratar-se a nova hermenêutica de “um conjunto de novas categorias, destinadas a lidar com as situações mais complexas e plurais [...]”, como são aquelas que envolvem entidades familiares, as normas e 48

A Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 (DUDH/48) impacta o ordenamento jurídico brasileiro pós-88 por três razões principais: a) o conceito contemporâneo de Direitos Humanos, utilizado também pelo Brasil, foi cunhado pela DUDH/48; b) muitos dos tratados internacionais de Direitos Humanos tiveram origem graças à aprovação da DUDH/48; c) vários dispositivos da CRFB/88 são reproduções de enunciados de documentos de Direitos Humanos, dentre eles a DUDH/48.

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axiologia constitucionais irradiam-se por todo o sistema jurídico, inclusive no âmbito infraconstitucional – trata-se da constitucionalização do Direito (BARROSO, 2013, p. 335). Nesse esteio, é possível apontarmos que a validade e as normas do Direito Civil, mais notadamente do Direito de Família (ou Direito das Famílias, como advoga Maria Berenice Dias), mostram-se condicionadas aos valores, aos fins públicos e aos comportamentos contidos na principiologia e nas regras constitucionais, verdadeiros vetores de interpretação de todas as normas jurídicas. Sob essa ótica, o neoconstitucionalismo e a constitucionalização do Direito repercutem nos limites da democracia, na medida em que estabelece limitações à autonomia da vontade dos particulares, “subordinando-a a valores constitucionais e ao respeito a direitos fundamentais”. Na mesma toada, repercutem também na interpretação das relações entre particulares49, inclusive as que têm por propósito íntimo a constituição de famílias. Dessa forma, o intérprete, quando do manuseio do conceito de entidade familiar, e a fim de alcançar os valores e fins constitucionais, antes mesmo de aplicar a norma na sua literalidade (como pretendem os Deputados que defendem a reprodução tal e qual do artigo 226 da CRFB/88 no Estatuto da Família), deve “verificar se ela é compatível com a Constituição, porque, se não for, não deverá fazê-la incidir [...]” (BARROSO, 2013, p. 380; 390). Por compatível com a Constituição, o autor se refere ao seu conteúdo axiológico com vistas à garantia da dignidade da pessoa humana. De mais a mais, é no contexto da interpretação de família conforme o neoconstitucionalismo que o autor aborda o que entende como a segunda revolução por que passa o Direito contemporâneo, com “destaque para a afetividade em prejuízo de concepções puramente formais ou patrimoniais” (BARROSO, 2013, p. 395). Passa-se ao reconhecimento, nessa nova ótica, não da interpretação de família como aquela restrita ao texto da norma constitucional na sua literalidade, mas com alicerce na pluralidade que os princípios constitucionais e de Direitos Humanos garantem. Com efeito, também os princípios internacionais de Direitos Humanos ganharam destaque tanto no texto constitucional como na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Nesse sentido, para além de criarem obrigações recíprocas entre Estados soberanos, os tratados internacionais de Direitos Humanos estabelecem também deveres ao Poder Público das nações que os ratificam em relação a seus jurisdicionados – e, por essa razão, a posição 49

Ressaltamos, desde já, que a constitucionalização do Direito repercute não apenas nas relações entre particulares, mas também na atuação dos Três Poderes. Dessa maneira, segundo Luís Roberto Barroso (2013, p. 378), tanto os particulares como o Executivo, o Judiciário e o Legislativo estão submetidos a limites na sua atuação.

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que ocupam no ordenamento jurídico pátrio refletem o terceiro marco para a construção da semântica da família no Brasil.

1.2.2.3. Sobre a supralegalidade dos tratados internacionais de Direitos Humanos no ordenamento jurídico pós-1988 como posicionamento majoritário do Supremo Tribunal Federal

Na visão de Antonio Moreira Maués, os tratados de Direitos Humanos não constituem instrumentos que criam tão-somente obrigações recíprocas entre os Estados, mas possuem como peculiaridade o objetivo de proteger a pessoa humana. Para tanto, se necessário, os Estados-Partes devem ajustar o direito interno às normas internacionais. “Não se trata de casualidade, portanto”, diz o autor, “que o conteúdo dos tratados de direitos humanos frequentemente se sobreponha ao conteúdo das Constituições, uma vez que a garantia dos direitos da pessoa humana é uma área comum aos dois sistemas” (MAUÉS, 2013, p. 42). Antes da promulgação da CRFB/88, o Supremo Tribunal Federal entendia que os tratados internacionais eram incorporados ao ordenamento pátrio no nível legal – quer dizer, no mesmo nível das leis ordinárias, abaixo da Constituição Federal, e, por isso, passíveis de revogação em razão de vigência de lei que lhes for superiormente hierárquica (cláusula hierárquica), lei que lhes for posterior (cláusula cronológica) ou de lei específica sobre o objeto em questão (cláusula da especialidade). De forma inédita, aponta Maués, a Carta de 1988, no § 2º do artigo 5o, trouxe menção aos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. Mais adiante, com a Emenda Constitucional no 45/2004, conhecida como responsável pela Reforma do Judiciário, acresceram-se ao ordenamento três disposições sobre Direitos Humanos que Maués (2013, p. 31) reputa como importantes para o estudo dessa espécie de tratados: a) a previsão de incorporação dos tratados internacionais de Direitos Humanos com status de emendas constitucionais, desde que aprovados pelo mesmo quorum que se exige para as emendas, segundo o § 3º do artigo 5o; b) a adesão agora constitucionalizada do Brasil ao Tribunal Penal Internacional, nos termos do § 4º do artigo 5o; e c) e a previsão do incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal nos casos de grave violação dos Direitos Humanos, conforme o § 5º do artigo 109 do texto constitucional. No entanto, em que pese a Carta Magna consignar que os direitos e garantias ali expressos não excluem outros decorrentes dos tratados internacionais em que o Brasil seja parte, de ter valorizado expressamente o direito internacional dos Direitos Humanos e de ter

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criado novos instrumentos para que Estado brasileiro cumpra com as obrigações no que atine à proteção e efetivação dos Direitos Humanos, foi apenas em 2008 que o Supremo reavaliou seu posicionamento. Ao final do julgamento do Recurso Extraordinário (RE) nº 466.343/SP, conforme consta na ementa do acórdão50, concluíram os Ministros ser ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito, em decorrência de insubsistência de previsão constitucional, uma vez que o artigo 5º, LXVII, e §§ 1º, 2º e 3º, da Constituição Federal51 deve ser interpretado à luz do art. 7º, § 7º, da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica – CADH/69)52. Ao examinar os votos prolatados, Maués (2013, p. 28) identifica duas teorias que fundamentam a nova interpretação acerca do posicionamento dos tratados internacionais de Direitos Humanos no ordenamento pátrio: de um lado, para a maioria dos Ministros, esses tratados “passam a ter status normativo supralegal, permanecendo em nível hierárquico inferior à Constituição, porém, superior às demais leis”; de outro, para a minoria deles, deve ser reconhecida sua hierarquia constitucional, “passando-os a compor, juntamente ao texto constitucional, o bloco de constitucionalidade53” (sic). Nenhum Ministro defendeu a tese da supraconstitucionalidade, ou seja, de que os tratados que versem sobre Direitos Humanos sejam hierarquicamente superiores ao texto constitucional. Segundo a tese minoritária no Supremo, à qual se filiou, por exemplo, o Ministro Celso de Mello, todos os tratados internacionais de Direitos Humanos ratificados pelo Brasil, 50

Disponível em: . Acesso em 26 maio 2016. Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] LXVII - não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel; […] § 1º As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. § 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. § 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. (BRASIL, 1988) 52 Artigo 7º - Direito à liberdade pessoal [...] 7. Ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar. (BRASIL, 1992) 53 Segundo Pedro Lenza (2011, p. 701), o bloco de constitucionalidade cuida, em matéria de legislação e controle de constitucionalidade, do “que deverá servir de parâmetro para que se possa realizar a confrontação e aferir a constitucionalidade”. O autor destaca que, após o advento da EC no 45/2004, “pode-se afirmar ter havido ampliação do ‘bloco de constitucionalidade’ na medida em que se passa a ter um novo parâmetro (norma formal e materialmente constitucional), qual seja, nos termos do art. 5.º, § 3.º, os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em 2 turnos, por 3/5 dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”. [grifos no original] (LENZA, 2011, p. 701-702) 51

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mesmo os aprovados antes da Emenda Constitucional no 45/2004, já possuem caráter materialmente54 constitucional, compondo o chamado bloco de constitucionalidade. Dessa forma, ressalta Maués, o § 3º do artigo 5º da CRFB/88 atribui hierarquia formalmente55 constitucional aos tratados de Direitos Humanos aprovados com base no quorum ali prescrito. Sob essa ótica, o status de norma constitucional equiparada a emenda constitucional tem caráter apenas de reforço à constitucionalidade desses tratados, que já são, de toda sorte, materialmente constitucionais por força do o § 2º do artigo 5º do texto constitucional. A tese majoritária, ao revés, perfilha o entendimento de que os tratados internacionais que versem sobre Direitos Humanos possuem status de supralegalidade, a não ser que tenham sido aprovados em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, caso em que serão equivalentes às emendas constitucionais. Antonio Maués (2013, p. 32) destaca três razões apresentadas pelos Ministros do STF para aderirem a essa corrente: a) a supremacia formal e material da Constituição sobre todo o ordenamento jurídico, consubstanciado na possibilidade de controle de constitucionalidade, inclusive dos diplomas internacionais; b) o risco de uma ampliação inadequada da expressão “direitos humanos”, que permitiria uma produção normativa alheia ao controle de sua compatibilidade com a ordem constitucional interna; c) o entendimento de que a inclusão do § 3º do art. 5º implicou reconhecer que os tratados ratificados pelo Brasil, antes da EC nº 45, não podem ser comparados às normas constitucionais. [grifos acrescidos]

No entanto, mesmo sob a perspectiva da supralegalidade, as normas inseridas nos tratados internacionais que versem sobre Direitos Humanos, ainda que não comparadas às emendas constitucionais, possuem a força necessária para “paralisar a eficácia jurídica de toda e qualquer disciplina normativa infraconstitucional com eles conflitante” (MAUÉS, 2013, p. 33). Embora o autor reconheça que, na prática, “a opção pela tese da constitucionalidade ou da supralegalidade não levará a decisões diferentes”, assinala que da adoção da tese de supralegalidade em detrimento da de constitucionalidade decorre uma consequência: nega-se “que os tratados de direitos humanos possam servir de parâmetro de controle de constitucionalidade, ou seja, eles não integram o conjunto de disposições com base nas quais se analisa a constitucionalidade das leis e outros atos normativos”. No caso da adoção da tese 54

Possui caráter materialmente constitucional, de acordo com Lenza (2011, p. 225) “aquele texto que contiver as normas fundamentais e estruturais do Estado, a organização de seus órgãos, os direitos e garantias fundamentais”. 55 Ainda de acordo com Lenza (2011, p. 225), o texto formalmente constitucional é aquele “que elege como critério o processo de sua formação, e não o conteúdo de suas normas”. Dessa maneira, qualquer regra contida na Constituição, seja pela via do constituinte primário ou secundário, terá o caráter de constitucional.

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da constitucionalidade, segue o autor, permitir-se-ia que os tratados de Direitos Humanos, ao lado da Constituição Federal, fossem acionados como mecanismos de controle de constitucionalidade para fiscalizar a validade das leis (MAUÉS, 2013, p. 33). Apesar das diferenças existentes entre as duas correntes, Maués chama à atenção a seguinte semelhança entre ambas – e, ao final, uma conclusão: no caso concreto em comento, qual seja a discussão acerca da ilicitude a prisão civil de depositário infiel, não apenas a legislação infraconstitucional foi interpretada à luz da Convenção Americana de Direitos Humanos, mas também a própria CRFB/88. Como diz o autor, mesmo o dispositivo inserto no artigo 5o do texto constitucional56 teve sua força normativa “esvaziada”, impedida de ser aplicada, a não ser que esse conteúdo fosse, a posteriori, aprovado por meio de emenda constitucional (que, nos termos da tese da supralegalidade, está acima das normas dos tratados internacionais). Aliás, continua Maués, mesmo se dispositivo de mesma natureza fosse posteriormente aprovado por meio de emenda, ainda assim estaria sujeito à revisão em decorrência da proibição do retrocesso. É devido a essa semelhança entre as teses que o autor sustenta que “ambas as hipóteses abrem a possibilidade que a Constituição57 – e não apenas as leis infraconstitucionais – seja interpretada de maneira compatível com os tratados internacionais de direitos humanos”, sem que se altere a supremacia da CRFB/88 (MAUÉS, 2013, p. 34). Assim, conclui o autor, ainda que se adote majoritariamente a tese de que tratados internacionais de Direitos Humanos ocupam uma posição de supralegalidade no ordenamento jurídico pátrio, abaixo da CRFB/88, é possível (e, para Maués, desejável) que, para além das normas infraconstitucionais, seja também a Constituição Federal de 1988 interpretada à luz desses mesmos tratados ratificados nacionalmente. O autor reitera que, em que pese a supralegalidade excluir a possibilidade de que os tratados de Direitos Humanos sejam utilizados como parâmetro de controle de constitucionalidade (cabendo apenas à CRFB/88 ser invocada como causa de pedir, a menos

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Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] LXVII - não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel. (BRASIL, 1988) 57 Em seu artigo intitulado Supralegalidade dos tratados internacionais de direitos humanos e interpretação constitucional, Antonio Maués (2013, p. 34-36) destaca quatro casos em que interpretou-se a Constituição Federal a partir da utilização de tratados de Direitos Humanos, notadamente a CADH/69: o princípio da presunção de inocência (artigo 5º, LVII); o direito à razoável duração do processo como garantia fundamental (artigo 5º, LXXVIII); as garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa (artigo 5º, LV); a nãorecepção pela CRFB/88 da exigência de diploma de Curso Superior para o exercício da profissão de jornalista, prevista no artigo 4º, V, do Decreto-Lei nº 972/1969.

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que tenham sido incorporados ao ordenamento jurídico como emenda constitucional), o entendimento jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal indica que tais tratados vêm sendo utilizados não somente como parâmetro para a interpretação de normas infraconstitucionais, mas também de constitucionais. Nas palavras do autor, o STF utiliza os tratados de direitos humanos como parâmetros de interpretação constitucional, uma vez que eles fornecem critérios hermenêuticos para definir o conteúdo das normas constitucionais. Ao julgar a validade de atos do poder público perante a Constituição, o STF analisa os direitos humanos reconhecidos nos tratados internacionais para definir de que maneira as disposições constitucionais devem ser interpretadas. (MAUÉS, 2013, p. 44)

Outro enfoque sobre o qual Maués se debruça se dá a partir do estudo de experiências de países estrangeiros: seria o nível hierárquico dos tratados de Direitos Humanos realmente a única variável que ajuda a entender seu impacto no direito doméstico de uma nação? Apesar da importância de esses tratados ocuparem uma hierarquia ao menos supralegal (o que garante uma proteção contra sua revogação por possíveis leis ordinárias posteriores), o autor aponta que a preocupação não se cinge apenas a esse prisma, mas devese observar também outra variável: a maneira como se utilizam os tratados para interpretarem a Constituição em harmonia com eles mesmos; ou seja, se os tratados são observados ou não pelos Tribunais como critérios de interpretação do texto constitucional, e se o texto constitucional harmoniza-se com aquele dos tratados. Maués (2013, p. 42) observa também que, ao ratificar um tratado de Direitos Humanos, e, com ele, certas proteções atinentes ao direito de constituir família, por exemplo, determinado Estado assume obrigações, e, dentre elas está a de “examinar se o conjunto de atos praticados pelos poderes públicos, inclusive aqueles de caráter legislativo, respeitam as disposições do tratado”. Dessa forma, na hipótese de incompatibilidade do direito interno com o tratado, i.e., a aplicação de uma lei doméstica conduzir à violação de normas internacionais, deve o Estado, para dar fim ao descumprimento de suas obrigações, proceder com a revisão ou revogação da norma interna58. Dito de outra forma: caso surja incompatibilidade entre uma norma internacional que protege a livre constituição de núcleo familiar e uma legislação doméstica que restrinja, de alguma forma, o conceito dessa entidade para fins de proteção do Estado, a lei interna deve ser, mandatoriamente, revista ou revogada, para que se cumpra a obrigação contraída internacionalmente.

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É dizer também, por outro lado, que o não-conhecimento por uma nação das decisões tomadas pelos Tribunais Internacionais pode causar-lhe a permanência na constante situação de inadimplência perante a comunidade internacional, ressalta Maués..

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Aliás, de acordo com o autor, não apenas a Suprema Corte de uma dada nação, mas também seus Tribunais das instâncias que lhe são inferiores devem contribuir para tal cumprimento obrigacional quando reconhecida sua competência para aplicar as normas internacionais diretamente. Por consequência, as perguntas que devem ser feitas pelo magistrado que aplica uma disposição constitucional ou internacional são idênticas59, de sorte que “a diferença entre as teses da supralegalidade e da constitucionalidade no Direito brasileiro deve ser relativizada” (MAUÉS, 2013, p. 43-44). Afastando-nos do panorama do Judiciário, e adentrando-nos no do Poder Legislativo, Maués conclui que no âmbito do processo legislativo se exige “seja feita a análise da compatibilidade dos projetos de lei com os tratados de direitos humanos”; isto é, mesmo os Projetos de Lei, antes da dotação de validade e eficácia na esfera jurídica, devem passar por uma prévia análise pelo Legislativo para que não se legifere em desconformidade com os tratados de Direitos Humanos. Em relação ao Poder Executivo, por sua vez, devem ser “anulados os atos administrativos que contrariem tais tratados” (MAUÉS, 2013, p. 45). O autor sustenta, portanto, que é vedado aos Poderes Judiciário, Executivo e Legislativo desenvolverem suas atividades sem que se atentem à compatibilidade de seus atos com as normas e princípios constantes nos tratados internacionais de Direitos Humanos ratificados pelo Brasil, incluindo, por óbvio, os dispositivos que protegem os direitos dos indivíduos de formarem livremente suas entidades familiares. Ainda, cabe ressaltar que, conforme preceitua o Direito Internacional, a ratificação de um tratado gera o compromisso de que esse Estado cumpra com as obrigações com as quais se comprometeu sob pena de, em caso de violação, ser responsabilizado60 internacionalmente (PIOVESAN, 2013, p. 112-113). Com efeito, embora a sociedade internacional seja descentralizada, e falte poder central vinculante e mecanismos mais eficazes de coação estatal, a responsabilidade internacional dos Estados, como princípio fundamental do Direito Internacional Público, tem por finalidade, “em última análise, reparar e satisfazer, respectivamente, os danos materiais e éticos sofridos por um Estado em decorrência de atos praticados por outro” 61 (MAZZUOLI, 2015, p. 614) [grifos no original]. 59

“o Estado está autorizado a usar seu poder coercitivo nesta determinada situação?” (MAUÉS, 2013, p. 43). A esse respeito, Valério Mazzuoli (2015, p. 613) assevera que, “Quando um agente ou funcionário do Estado erra e comete violação de direito de outrem, ou quando um tribunal interno deixa de aplicar um tratado vigente, negando eventual direito a um estrangeiro protegido por esse tratado, é o Estado para o qual o agente trabalha que, em princípio, responde pelo dano na órbita internacional (ainda que os indivíduos que o compõem nada tenham a ver com o ilícito cometido)”. 61 Notadamente na esfera das violações estatais de Direitos Humanos, acrescenta Valério Mazzuoli, também se opera a responsabilização internacional do Estado em razão das suas relações com as pessoas sujeitas à sua jurisdição – seja por ação negativa ou positiva –, e não apenas entre Estados. Os prejuízos, pela regra geral, 60

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O entendimento dos tratados internacionais de Direitos Humanos pelo STF como normas supralegais no ordenamento pátrio marca a semântica da família no Brasil, portanto, no sentido de que as possibilidades construtivas e interpretativas de entidade familiar não devem ser lidas conforme qualquer entendimento aleatório, religioso ou político, mas sim juntamente com o texto constitucional, em respeito aos tratados internacionais ratificados pelo Brasil e as garantias que trazem consigo ao livre exercício e formação da entidade familiar pelo indivíduo. Afinal, de acordo com a tese da supralegalidade, caso seja sancionada uma lei infraconstitucional que pretenda dispor sobre o conceito de entidade familiar, e se a referida lei conflitar com direitos e garantias insculpidos em tratados internacionais de Direitos Humanos ratificados pelo Brasil, poderá ter sua eficácia jurídica paralisada. Nesse sentido, não cumprindo o Brasil com as obrigações advindas da ratificação de determinado tratado internacional de Direitos Humanos que proteja a liberdade de constituir família, deverá ser responsabilizado no âmbito internacional. Mais adiante, no Capítulo terceiro, apresentaremos alguns casos em que EstadosPartes infringiram normas internacionais concernentes a Direitos Humanos, família e diversidade sexual e, em consequência, foram responsabilizados e condenados a repararem os prejuízos causados às respectivas vítimas. O presente momento, contudo, requer que nos voltemos ao quarto e último marco que elegemos como fundamental para a construção semântica da família no Brasil: a decisão – considerada por Dias (2015, p. 275) como “histórica” – por meio da qual o Supremo, em 2011, reconheceu a união estável homoafetiva como espécie de entidade familiar, em equiparação à heteroafetiva, prevista no artigo 226, § 3º, da CRFB/88. A mencionada decisão, em conjunto com o entendimento esposado pelo Superior Tribunal de Justiça62, no sentido de que inexistem óbices legais à celebração de casamento entre pessoas de mesmo sexo levou à edição da Resolução 175, em 2013, pelo devem ser reparados pelo Estado infrator das normas internacionais, seja por meio de restituição in natura, de indenização (compensação) ou a satisfação, individualmente ou em combinação, conforme o artigo 34 do Projeto da Comissão de Direito Internacional das Nações Unidas sobre Responsabilidade Internacional dos Estados, o primeiro projeto (draft) de Convenção Internacional sobre responsabilidade do Estado por atos internacionalmente ilícitos, aprovado pela Comissão de Direito Internacional das Nações Unidas em 1996. 62 Em outubro de 2011 o Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgou o Recurso Especial n o 1183378/RS e decidiu pela possibilidade jurídica do casamento entre duas mulheres no Estado do Rio Grande do Sul, que já viviam em união estável há alguns anos. As autoras do processo haviam ingressado com o pedido de casamento perante um cartório gaúcho, o que lhes foi negado. Também na esfera judicial o pedido foi julgado improcedente pelo magistrado de primeira instância e pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Remetidos os autos do processo ao STJ pela via recursal, os Ministros entenderam, por 4 votos a 1, pela inexistência de vedação expressa a que pessoas do mesmo sexo se habilitem para o casamento. Segundo os termos do acórdão, consideraram ainda constitucionalmente inaceitável qualquer vedação implícita à união em razão da orientação principiológica conferida pelo STF no julgamento da ADPF no 132/RJ e da ADI no 4.277/DF. O inteiro teor do acórdão está disponível em < http://goo.gl/3Z5Jyq >. Acesso em: 27 fevereiro 2016.

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Conselho Nacional de Justiça, acerca da habilitação, celebração de casamento civil, ou de conversão de união estável em casamento, entre pessoas de mesmo sexo.

1.2.2.4. Breve análise dos votos dos Ministros do STF ao julgarem a ADPF nº 132-RJ e a ADI nº 4.277-DF em 2011 e as repercussões da Resolução no 175 do CNJ

O quarto marco histórico-jurídico brasileiro concernente à semântica de família ocorreu primeiramente em 2011, quando Supremo Tribunal Federal julgou, em 2011, de forma conjunta, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 132-RJ e a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4.277-DF, que tratavam sobre negação de direitos, em especial previdenciários, aos homossexuais por parte de dispositivos da legislação estadual do Estado do Rio de Janeiro e de decisões proferidas pelo Poder Judiciário fluminense. No mérito, o então Governador do Estado do Rio de Janeiro postulou a aplicação do regime jurídico das uniões estáveis de pares de sexos diferentes àqueles de mesmo sexo, à luz da principiologia constitucional, ao invés de uma leitura reducionista da Constituição Federal de 1988 e do Código Civil de 2002. Em sentido semelhante, foi proposta Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) pela Procuradoria-Geral da República com vistas à declaração da obrigatoriedade de reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar brasileira. Foi pedido também que os casais homoafetivos possuam idênticos direitos àqueles gozados pelos companheiros heteroafetivos. Na presidência do Ministro Cezar Peluso, e presentes na sessão os(as) Ministros(as) Celso de Mello, Marco Aurélio, Ellen Gracie, Gilmar Mendes, Ayres Britto, Joaquim Barbosa, Ricardo Lewandowski, Cármen Lucia, Dias Toffoli e Luiz Fux, as ações 63 foram votadas conjuntamente.

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Outrossim, participaram no processo como Amici Curiae, ou seja, como interventores assistenciais ou interessados na causa, Conectas Direitos Humanos; Instituto Brasileiro de Direito de Família - IBDFAM; Grupo Arco-íris de Conscientização Homossexual; Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais - ABGLT; Grupo de Estudos em Direito Internacional da Universidade Federal de Minas Gerais - GEDI-UFMG e Centro de Referência de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros do Estado de Minas Gerais - Centro de Referência GLBTTT; ANIS - Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero; Associação de Incentivo à Educação e Saúde de São Paulo; Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB e a Associação Eduardo Banks. Em nome dessas entidades, falaram, respectivamente, o Professor Oscar Vilhena; a Dra. Maria Berenice Dias; o Dr. Thiago Bottino do Amaral; o Dr. Roberto Augusto Lopes Gonçalez; o Dr. Diego Valadares Vasconcelos Neto; o Dr. Eduardo Mendonça; o Dr. Paulo Roberto lotti Vecchiatti; o Dr. Hugo José Sarubbi Cysneiros de Oliveira e o Dr. Ralph Anzolin Lichote.

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O primeiro voto, subscrito pelo Relator Ayres Britto, embora tenha feito uso de termos como “preferência sexual alheia”, considerou que é na CRFB/88 que “se encontram as decisivas respostas para o tratamento jurídico a ser conferido às uniões homoafetivas”, respeitando-se quatro características: a durabilidade, o conhecimento pelo público, a continuidade e o propósito ou anseio de se constituir família. Não se trata, portanto, de um vínculo de caráter patrimonial, seja privado ou empresarial, mas de uma “união essencialmente afetiva ou amorosa” (BRASIL, 2011c). O Ministro utiliza a diferenciação de sexo como sinônimo da diferenciação de gênero, todas iguais à dicotomia macho/fêmea – isso para argumentar que a CRFB/88 não considera o sexo do indivíduo – enquanto algo anatômico, natural64, biológico, erótico e pertencente aos domínios do instinto – como fator de discriminação, preconceito ou “desigualação jurídica”. Por esse motivo, acrescenta Ayres Britto, que “não se é mais digno ou menos digno pelo fato de se ter nascido mulher, ou homem” (sic) [grifos no original] (BRASIL, 2011c). Nesse esteio, o Ministro justifica que o termo o homem e a mulher constante no artigo 226, § 3o, do texto constitucional tem a intenção de ressaltar a vedação de hierarquia entre o homem e a mulher, como era legítimo em tempos pretéritos. A expressão também revela estratégia de reforço do direito de liberdade da mulher, que, também (mas não só) no passado era vítima de comentários preconceituosos caso não contraísse matrimônio oficialmente (BRASIL, 2011c). Por outro lado, pondera que tudo o que não está proibido é, portanto, permitido. Assim, e em vista de um “intencional silêncio do Constituinte”, a CRFB/88 entrega o desempenho das funções sexuais, da sexualidade e da própria capacidade de amar das pessoas naturais ao seu livre arbítrio, quaisquer que sejam as suas “preferências”, “orientações” ou “tendências”. Tal liberdade foi inserta no rol dos direitos fundamentais do indivíduo por consistir em expressão da autonomia da vontade, assim como emanação direta do princípio da dignidade da pessoa humana. Também evidencia o Ministro que não é possível que se alegue que os heteroafetivos perdem se os homoafetivos ganham, nem que se traga qualquer prejuízo a terceiros (BRASIL, 2011c). A respeito da figura jurídica da família, o Ministro assevera tratar-se de “fato cultural e espiritual ao mesmo tempo (não necessariamente como fato biológico)”, mais próxima do seu significado como núcleo doméstico, não ortodoxo, que preocupada com a variedade ou

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Em determinado momento Ayres Britto afirma inexistir a menor possibilidade de dissociação entre o órgão sexual e a pessoa em que tal órgão encontra-se sediado. Afinal, continua, no terreno da sexualidade humana, é impossível negar a forte e ostensiva presença da natureza. (BRASIL, 2011c)

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não de sexos das pessoas que a compõem. Assim sendo, “quanto maior o número dos espaços doméstica e autonomamente estruturados”, afirma o Ministro, “maior a possibilidade de efetiva colaboração entre esses núcleos familiares, o Estado e a sociedade, na perspectiva do cumprimento de conjugados deveres que são funções essenciais à plenificação da cidadania, da dignidade da pessoa humana e dos valores sociais do trabalho” (BRASIL, 2011c). Para Britto, a CRFB/88 não atrela a formação de entidade familiar a qualquer formalidade, seja cartorária, celebração civil ou liturgia religiosa; ao contrário: a Constituição limita o seu discurso

a reconhecer a família como instituição social privada

e voluntariamente constituída entre pessoas adultas com o propósito de felicidade, ao mesmo tempo que mantém com o Estado e a sociedade civil uma relação tricotômica (BRASIL, 2011c). Esse entendimento de entidade familiar a que se refere o Ministro pode ser estendido para acolher outros membros: filhos (consanguíneos ou não, adotados por homoafetivos ou heteroafetivos, casados, em união estável ou solteiros), avós, netos, sobrinhos e irmãos em razão de ser o principal local onde se concretizam os direitos fundamentais. Esse aspecto contribui para que a família, por instituição amorosa, afetiva e solidária que é, receba “a mais dilatada conceituação jurídica e a mais extensa rede de proteção constitucional” (BRASIL, 2011c). No mais, tendo se manifestado acerca conceito de família segundo aspectos culturais e de acordo com o animus constitucional, Ayres Britto ressalta que é em vista desse continente não-reducionista que devem ser interpretados os institutos do casamento, da união estável, da adoção etc. Caso contrário, assevera, implicar-se-ia “forçar o nosso Magno Texto a incorrer, ele mesmo, em discurso indisfarçavelmente preconceituoso ou homofóbico” [grifos no original] (BRASIL, 2011c). O segundo a votar, Ministro Luiz Fux, assevera que os direitos fundamentais revelamse como “parâmetros para a criação e a constituição de organizações e instituições estatais e para o procedimento”, sendo o processo jurisdicional o locus da proteção desses mesmos direitos fundamentais. Nesse sentido, a jurisdição, para o Ministro, “precisa estar dirigida à consagração dos direitos fundamentais, como, de resto, a atividade estatal como um todo – do contrário, perde-se a própria razão de ser do Estado” (BRASIL, 2011c). Para Fux, o julgamento conjunto tem como questão a “violação de direitos fundamentais inerentes à personalidade dos indivíduos que vivem sob orientação sexual minoritária”. Como assevera, a homossexualidade, para além de uma orientação (e não uma opção), é um fato da vida (e não uma ideologia), uma característica da personalidade do

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indivíduo (e não uma crença). Em razão disso, os homoafetivos são pessoas que, assim como as demais, constituem entre si contínuas relações de afeto e assistência recíprocos, cujo objetivo é a constituição de família (BRASIL, 2011c). O Ministro acredita que inexiste qualquer inconstitucionalidade, ilegalidade ou vedação para o estabelecimento de uniões entre pessoas do mesmo sexo – por esse motivo, afirma, a questão não é saber se as uniões homoafetivas encontram respaldo na CRFB/88, mas qual o tratamento jurídico a ser conferido a essas uniões minoritárias, de modo constitucionalmente adequado e, particularmente, contramajoritário (BRASIL, 2011c). Fux enfatiza que a “consagração da garantia institucional da família serve à preservação do instituto como ambiente e veículo de realização dos direitos fundamentais”, e não para a preservação, por si só, do modelo tradicional ou biparental, composto de pai, mãe e filhos. Ao contrário: a CRFB/88, pós-positivista que é, consagra a família como verdadeiro instrumento com vistas à proteção da “dignidade dos seus integrantes e do livre exercício de seus direitos fundamentais, de modo que, independentemente de sua formação – quantitativa ou qualitativa –, serve o instituto como meio de desenvolvimento e garantia da existência livre e autônoma dos seus membros” (BRASIL, 2011c). O conceito pós-1988 de família, portanto, segundo o Ministro, carrega consigo aspectos meramente instrumentais, despido de qualquer materialidade. Isso significa que a Constituição não se preocupa com o aspecto material, com a substância, a matéria da norma, mas apenas com o processo de sua geração, com a forma e meios de proteger direitos. Ou seja, a CRFB/88 traz no seu artigo 226 e parágrafos a forma ou os meios para que sejam exercidos os direitos atinentes às famílias, mas não estabelece a quem são assegurados esses direitos (BRASIL, 2011c). Do ponto de vista ontológico, segundo o Ministro, família não se caracteriza por relações de consanguinidade, mas pelo verdadeiro amor familiar entre os membros, a comunhão, a existência de um projeto de vida em comum, a certeza quanto à existência dos vínculos fortes que os ligam em identidade (BRASIL, 2011c). Dessa maneira, assim como nada distingue ontologicamente o casamento das uniões estáveis heteroafetivas, exceto um ou outro detalhe solene, de forma semelhante, não se encontra qualquer distinção ontológica entre as uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo e de sexos diversos, razão pela qual tanto uma como a outra está incluída no conceito e tratamento constitucional diferenciado de família (BRASIL, 2011c). No entanto, assim como as uniões estáveis heteroafetivas, também as homoafetivas deverão, em cada caso concreto, comprovar a existência da convivência conjunta, duradoura e

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estabelecida com o propósito de constituir família. A respeito da publicidade, Fux admite algum temperamento, em vista de que muitos relacionamentos homoafetivos foram e têm sido mantidos em segredo, pelas mais diversas razões (BRASIL, 2011c). Em relação à expressão o homem e a mulher, o Ministro entende que foi inserida no texto constitucional “para tirar da sombra as uniões estáveis e incluí-las no conceito de família”. Para ele, seria “perverso conferir a norma de cunho indiscutivelmente emancipatório interpretação restritiva, a ponto de concluir que nela existe impeditivo à legitimação jurídica das uniões homoafetivas, lógica que se há de estender ao art. 1.723 do Código Civil65” (BRASIL, 2011c). Quanto ao mais, Fux aponta que o desprezo das uniões homoafetivas afronta a dignidade da pessoa homossexual e viola seus direitos de isonomia e personalidade, na medida em que lhe nega tratamento igualitário no que atine à sua autonomia de realizar seus projetos de vida conforme deseje. Ainda, na mesma toada que Ayres Britto, Luiz Fux reconhece que a união homoafetiva, por si só, “não tem o condão de lesar a ninguém, pelo que não se justifica qualquer restrição ou, como é ainda pior, a limitação velada, disfarçada de indiferença” (BRASIL, 2011c). Adiante, no aditamento de seu voto, o Ministro, citando o entendimento da filósofa Nancy Fraser acerca dos danos causados pela injustiça por não-reconhecimento, aponta que: a diferenciação social entre heterossexuais e homossexuais está fundada em uma ordem de status social, como padrões institucionalizados de valor cultural que constituem a heterossexualidade como natural e normativa e a homossexualidade como perversa e desprezível. O resultado é considerar gays e lésbicas como outros desprezíveis aos quais falta não apenas reputação para participar integralmente da vida social, mas até mesmo o direito de existir. [grifos no original] (BRASIL, 2011c)

Ao final, reconhece a conquista emancipatória que vêm galgando primeiro as mulheres, e agora os homoafetivos, em decorrência das evoluções por que passam a sociedade. Nos dizeres de Fux, seu voto a favor da procedência do pedido faz parte de algo “que não deixa de ser ousadia judicial – mas a vida é uma ousadia, ou, então, ela não é nada – é o momento de uma travessia” (BRASIL, 2011c). A Ministra Cármen Lúcia foi a terceira votante. De início, afirma que a escolha ou a opção pela convivência homossexual é individual, íntima, verdadeira manifestação da liberdade individual de cada um. Assim, considerando o quadro social contemporâneo, que

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Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.

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evidencia por meio de dados a realidade das uniões de pessoas do mesmo sexo, a Ministra entende perfeitamente razoável que se interprete os artigos 1.723 do Código Civil e 226 da CRFB/88 em consonância com o que dispõe a própria Constituição em seus valores adotados como princípios (BRASIL, 2011c). No que concerne ao parágrafo terceiro do artigo 226, em especial à expressão o homem e a mulher, Cármen Lúcia assevera que, contrariamente ao que fora afirmado na tribuna, não é exato que aquela referência à mulher “pretendesse significar a superação de anterior estado de diferenciação inferiorizante de cada uma de nós. O histórico das discussões na Assembléia Constituinte demonstram que assim não foi” (sic) (BRASIL, 2011c). Por outro lado, também ao contrário do que já havia sido afirmado na tribuna, sustenta que não se pode “afirmar que há mera repetição do que posto no inc. I do art. 5º e no § 3º do art. 226. Cuidam-se de temas que se equilibram, mas não se confundem” (BRASIL, 2011c). Em verdade, para a Ministra, é exato que a referência expressa a homem e mulher garante a eles, às expressas, o reconhecimento da união estável como entidade familiar, com os consectários jurídicos próprios. Não significa, a meu ver, contudo, que se não for um homem e uma mulher, a união não possa vir a ser também fonte de iguais direitos. Bem ao contrário, o que se extrai dos princípios constitucionais é que todos, homens e mulheres, qualquer que seja a escolha do seu modo de vida, têm os seus direitos fundamentais à liberdade, a ser tratado com igualdade em sua humanidade, ao respeito, à intimidade devidamente garantidos. (BRASIL, 2011c)

Para ser livre, em um Estado Democrático de Direito, o indivíduo necessita também de liberdade de “escolha sexual”, e que seja coibida toda forma de discriminação. Nesse sentido, a CRFB/88 sinaliza que o artigo 226 do texto constitucional não pode ser interpretado de forma que contrarie os princípios constitucionais que fundamentam o pluralismo político e social (BRASIL, 2011c). Em seguida, o Ministro Ricardo Lewandowski, ao votar, traça inicialmente o histórico da noção de família abrigada ao longo das Constituições brasileiras, sempre atrelada ao casamento, a exceção da CRFB/88. Da leitura do texto constitucional vigente, o Ministro constata a existência de ao menos três configurações familiares: a formada pelo casamento, a constituída pela união estável e a denominada monoparental (BRASIL, 2011c). A respeito das uniões estáveis, Lewandowski entende que “não há como enquadrar a união entre pessoas do mesmo sexo em nenhuma dessas espécies de família, quer naquela constituída pelo casamento, quer na união estável, estabelecida a partir da relação entre um homem e uma mulher, quer, ainda, na monoparental” (BRASIL, 2011c).

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O Ministro afirma que não está interpretando a CRFB/88 à luz do direito ordinário, mas tentando “integrar os conceitos explicitados na Lei Maior com o Direito de Família, por indicação do próprio legislador constituinte”. Em seguida, Lewandowski aponta que, nas discussões

travadas

na

ANC,

“a

questão

do

gênero

na

união

estável

foi

amplamente debatida, quando se votou o dispositivo em tela, concluindo-se, de modo insofismável, que a união estável abrange, única e exclusivamente, pessoas de sexo distinto” (BRASIL, 2011c). Em razão de perceber impossível a equiparação das uniões homoafetivas às heteroafetivas, mas na tentativa de enquadrar juridicamente as relações entre pessoas do mesmo sexo, o Ministro sustenta poder caracterizá-las como uma forma outra de entidade familiar: um quarto gênero, não previsto no rol encartado no art. 226 da Carta Magna, a qual pode ser deduzida a partir de uma leitura sistemática do texto constitucional e, sobretudo, diante da necessidade de dar-se concreção aos princípios da dignidade da pessoa humana, da igualdade, da liberdade, da preservação da intimidade e da não-discriminação por orientação sexual aplicáveis às situações sob análise (BRASIL, 2011c).

Assim, diz Lewandowski, as uniões de pessoas do mesmo sexo não são proibidas pelo ordenamento jurídico pátrio e devem ser reconhecidas pelo Direito, caso públicas, continuadas e duradouras, como espécie de entidade familiar distinta das uniões estáveis heterossexuais, já que essas, por definição legal, são formadas exclusivamente por casais de “gênero diverso”. Em que pese a diferenciação, devem ser aplicadas as regras do instituto que lhe é mais próximo, qual seja, a união estável de pessoas de sexos diversos, continua o Ministro, mas somente nos aspectos em que guardam semelhanças (BRASIL, 2011c). No entendimento do Ministro, esse quarto gênero – não uma união estável homoafetiva, mas uma união homoafetiva estável – é merecedor, portanto, da proteção estatal, diante do rol meramente exemplificativo do artigo 226 da CRFB/88 e em homenagem aos princípios e valores insculpidos no Texto Maior (BRASIL, 2011c). Em seguida, o Ministro Joaquim Barbosa ressalta que as uniões compostas por indivíduos de orientação homoafetiva, segundo vários especialistas, existem desde sempre, assim como as heteroafetivas, e possivelmente sempre existirão. “O que varia e tem variado”, explica, “é o olhar que cada sociedade lança sobre elas em cada momento da evolução civilizatória e em cada parte do mundo” (BRASIL, 2011c). Na sua visão, o texto constitucional não proíbe o reconhecimento jurídico das uniões homoafetivas – ao contrário: a CRFB/88 estabelece que o rol de direitos fundamentais não se

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esgota naqueles expressamente elencados, mas podem emergir a partir dos princípios que a própria Constituição adotou ou dos tratados internacionais firmados pelo Brasil. Justifica-se, ademais, o reconhecimento das uniões afetivas de pessoas do mesmo sexo em razão da proteção dos direitos fundamentais e dos princípios da igualdade, da dignidade da pessoa humana e da não discriminação (BRASIL, 2011c). Para Barbosa, a inserção da expressão o homem e a mulher no texto constitucional referente à união estável representa o “coroamento de um processo histórico surgido na jurisprudência cível e que objetivava a inclusão social e a superação do preconceito existente contra os casais heterossexuais que conviviam sem a formalização de sua união pelo casamento” (BRASIL, 2011c). O Ministro Gilmar Mendes, por sua vez, exarou em seu voto que “a ideia de opção sexual está contemplada [na] ideia de exercício de liberdade, [de] autodesenvolvimento”. Em vista disso, por inexistir um modelo que abrigue de forma institucionalizada “essa opção”, as restrições legais impostas findam contribuindo efetivamente para a discriminação de uma minoria cujos direitos – direitos fundamentais básicos – devem ser protegidos (BRASIL, 2011c). Por outro lado, o fato de a CRFB/88 proteger a união estável entre pessoas de sexos diversos não significa e nem poderia significar uma negativa à proteção das uniões homoafetivas. Ou seja, a expressão o homem e a mulher não pode obstruir o reconhecimento das uniões entre pessoas do mesmo sexo, como se se tratasse de uma proibição ou exclusão. Essa possibilidade, para Mendes, não advém do artigo 1.723 do Código Civil, nem do 226 da CRFB/88, mas dos princípios constitucionais (BRASIL, 2011c). Para o Ministro, em relação às uniões entre pessoas de mesmo sexo, a tendência mundial é a crescente afirmação de seus Direitos Humanos. Aponta que, por exemplo, em países como a Holanda, Bélgica, África do Sul e Argentina, as uniões homoafetivas são equiparadas às heteroafetivas, inclusive quanto ao casamento, podendo se apresentar sob diferentes designações, como same-sex marriage, equal marriage, same-gender marriage ou, simplesmente, casamento. Em outros países, como na Inglaterra e nos Estados Unidos, as relações homossexuais são protegidas em decorrência da sua vinculação com o conceito de união estável (BRASIL, 2011c). É também com base nos direitos à liberdade e ao desenvolvimento da personalidade defendidos pelo Ministro, além do reconhecimento de minoria, que ele sustenta o dever de se reconhecer as uniões homoafetivas e os deveres que delas advêm, embora esse caminho perpasse concepções, dentre outras, culturais, filosóficas e religiosas (BRASIL, 2011c).

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Acerca da possibilidade de as uniões homoafetivas serem retiradas do limbo jurídico e integrarem o rol de entidades familiares, Gilmar Mendes assim se posiciona: A inexistência de expressa vedação constitucional à formação de uma união homoafetiva, a constatação de sua aproximação às características e finalidades das demais formas de entidades familiares e a sua compatibilidade, a priori, com os fundamentos constitucionais da dignidade da pessoa humana, da liberdade, da autodeterminação do desenvolvimento do indivíduo, da segurança jurídica, da igualdade e da vedação à discriminação por sexo e, em sentido mais amplo, por orientação sexual, apontam para a possibilidade de proteção e de reconhecimento jurídico da união entre pessoas do mesmo sexo no atual estágio de nosso constitucionalismo. [grifos no original] (BRASIL, 2011c)

O Ministro, por conseguinte, afirma a possibilidade de a união homoafetiva ser abarcada pelo conceito de família pelo Judiciário, mas como uma solução provisória até que o Poder Legislativo se manifeste. Mendes reconhece, também, que talvez seja difícil para o Supremo elencar todas as distinções que poderia ocorrer entre as duas formas de união estável (hetero e homoafetiva), de sorte que deverão ser aplicados às uniões homoafetivas todos os dispositivos que regulam a união estável heteroafetiva, naquilo que for possível e cabível, e não irrestritamente. Nesse esteio, conclui o Ministro Gilmar Mendes, “a equiparação pura e simples das relações, tendo em vista a complexidade do fenômeno social envolvido, pode nos preparar surpresas as mais diversas” (BRASIL, 2011c). Na sequência, segundo o Ministro Marco Aurélio, em seu voto, o cerne daquele debate travado no Supremo é “saber se a convivência pública, duradoura e com o ânimo de formar família, por pessoas de sexo igual deve ser admitida como entidade familiar à luz da Lei Maior, considerada a omissão legislativa” (BRASIL, 2011c). Para tanto, é necessário que se entenda o Direito como detentor de critérios distintos dos da moral, apesar de Direito e moral caminharem juntos. Com efeito, “as garantias de liberdade religiosa e do Estado Laico impedem que concepções morais religiosas guiem o tratamento estatal dispensado a direitos fundamentais”, afirma o Ministro, “tais como o direito à dignidade da pessoa humana, o direito à autodeterminação, o direito à privacidade e o direito à liberdade de orientação sexual” (BRASIL, 2011c). Marco Aurélio segue expondo as transformações por que vêm passando o entendimento de entidade familiar, a respeito das quais transcrevemos um excerto: O reconhecimento de efeitos jurídicos às uniões estáveis representa a superação dos costumes e convenções sociais que, por muito tempo, embalaram o Direito Civil, notadamente o direito de família. A união de pessoas com o fim de procriação, auxílio mútuo e compartilhamento de destino é um fato da natureza, encontra-se mesmo em outras espécies. A família, por outro lado, é uma construção cultural. Como esclarece Maria Berenice Dias (Manual de direito das

89 famílias, 2010, p. 28), no passado, as famílias formavam-se para fins exclusivos de procriação, considerada a necessidade do maior número possível de pessoas para trabalhar em campos rurais. Quanto mais membros, maior a força de trabalho, mais riqueza seria possível extrair da terra. Os componentes da família organizavam-se hierarquicamente em torno da figura do pai, que ostentava a chefia da entidade familiar, cabendo aos filhos e à mulher posição de subserviência e obediência. Esse modelo patriarcal, fundado na hierarquia e no patrimônio oriundo de tempos imemoriais, sofreu profundas mudanças ao tempo da revolução industrial, quando as indústrias recém-nascidas passaram a absorver a mão de obra nos centros urbanos. O capitalismo exigiu a entrada da mulher no mercado de trabalho, modificando para sempre o papel do sexo feminino nos setores públicos e privados. A aglomeração de pessoas em espaços cada vez mais escassos nas cidades agravou os custos de manutenção da prole, tanto assim que hoje se pode falar em família nuclear, em contraposição à família extensa que existia no passado. [grifos no original] (BRASIL, 2011c)

No Brasil, ainda de acordo com o Ministro, a família reconhecida pelo Código Civil de 1916 era apenas uma: a tradicional, consumada pelo vínculo indissolúvel do matrimônio entre homem e mulher. Nos anos posteriores, notadamente com o Estatuto da Mulher Casada (Lei no 4.121/62), a Emenda Constitucional no 9/77 e a Lei no 6.515/77, a mulher restaurou sua capacidade civil, foi implementado o divórcio e reconhecidas tanto a dissolução de um vínculo primeiro como a possibilidade de formação de novas famílias. A CRFB/88, como ápice desse movimento histórico, introduziu novos valores ao ordenamento e alterou os paradigmas hermenêuticos do ordenamento pátrio. A partir de então, e com a equiparação de direitos e deveres entre homens e mulheres, não se exige mais para a formação de entidade familiar (seja pelo casamento, união estável ou nas famílias monoparentais) a identidade família-sexo-procriação (BRASIL, 2011c). Na mesma toada, e em vista do novo paradigma, o Ministro assevera que, ao invés de Direito da Família, deveríamos nos referir a Direito das Famílias, no plural, justamente devido à pluralidade dessas relações, à sua destinação (dignidade de cada partícipe) e ao fim da perspectiva patrimonial que a compunha. E constata o Ministro: Se o reconhecimento da entidade familiar depende apenas da opção livre e responsável de constituição de vida comum para promover a dignidade dos partícipes, regida pelo afeto existente entre eles, então não parece haver dúvida de que a Constituição Federal de 1988 permite seja a união homoafetiva admitida como tal. Essa é a leitura normativa que faço da Carta e dos valores por ela consagrados, em especial das cláusulas contidas nos artigos 1º, inciso III, 3º, incisos II e IV, e 5º, cabeça e inciso I. (BRASIL, 2011c)

Outro argumento lançado mão no voto do Ministro Marco Aurélio é que, embora inexista consenso acerca da causa da atração de indivíduos pelo mesmo sexo/gênero, certo é que não se trata de mera escolha. A afetividade direcionada a outrem do mesmo gênero (assim como do gênero diverso) faz parte da individualidade do ser humano, de forma que esse

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enlace, mesmo que contramajoritariamente, deve ser protegido integralmente a partir do reconhecimento como regime familiar. Desse modo, ao “assentar a prevalência de direitos, mesmo contra a visão da maioria, o Supremo afirma o papel crucial de guardião da Carta da República”, revela. Por fim, o Ministro reconhece as uniões homoafetivas como juridicamente equiparadas às heteroafetivas, sem ressalvas de aplicação (BRASIL, 2011c). O voto subsequente foi exarado pelo Ministro Celso de Mello. Antes de mais nada, o Ministro ressaltou a importância dos amici curae no desvelar dos debates e do julgamento, viabilizando a pluralidade nos trabalhos, e revisitou legislações pretéritas que condenavam o ato de sodomia (BRASIL, 2011c). Celso de Mello posiciona-se no sentido de que seria arbitrário e inaceitável reconhecer qualquer Estatuto que exclua, discrimine, desrespeite ou puna os indivíduos em razão de sua orientação sexual – ao contrário, deve-se romper com alguns paradigmas históricos e culturais para viabilizar o afeto, a busca pela felicidade de todos e a dignidade da pessoa humana, em especial dos grupos minoritários, como o homossexual (BRASIL, 2011c). No que concerne ao texto constitucional, mais evidentemente no artigo 226 e parágrafos, o Ministro assevera que a literalidade o homem e a mulher não traduz uma vedação à extensão do mesmo regime às uniões homoafetivas, sob pena de desvirtuar a natureza constitucional. Na sua visão, tal expressão foi introduzida na CRFB/88 para superar a discriminação que, historicamente, e à época, incidia sobre as relações entre homem e mulher (BRASIL, 2011c). Assim sendo, deve-se legitimar as conjugalidade entre pessoas do mesmo sexo, em equiparação de direitos e deveres dos companheiros, como espécie de entidade familiar – até mesmo como forma de proteger tais minorias de omissões ou de eventuais excessos da maioria – desde que sejam cumpridos os mesmos requisitos constitucionalmente exigidos para as uniões estáveis de pessoas de sexos diversos (BRASIL, 2011c). O último a votar foi o Ministro Cezar Peluso. Exara em suas linhas que o rol de entidades familiares constante no artigo 226, § 3o, do texto constitucional é numerus apertus, ou seja, rol extensivo, não excludente. Nesse sentido, é lícito conceber que, além daquelas explicitamente catalogadas, é possível o reconhecimento normativo de outras famílias – na hipótese concreta, as compostas por indivíduos do mesmo sexo (BRASIL, 2011c). Assim, as relações em destaque são marcadas, sobretudo, pela afetividade, e devem ser reguladas não por normas de ordem econômica ou empresarial, mas pelas que regem o Direito de Família, ainda mais em virtude da similitude que guardam as uniões homoafetivas com as estáveis heteroafetivas. Entretanto, Peluso ressalta que nem todas as normas relativas

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às uniões estáveis heteroafetivas devem ser aplicadas às homoafetivas, em especial porque se trata de equiparação dos institutos – e não igualdade – que reclamam particularidades próprias em razão de suas naturezas distintas (BRASIL, 2011c). Ao final, por votação unânime, acordaram os Ministros em julgar procedentes as ações, “com eficácia erga omnes e efeito vinculante66, com as mesmas regras e consequências da união estável heteroafetiva, autorizados os Ministros a decidirem monocraticamente sobre a mesma questão, independentemente da publicação do acórdão” [grifos no original] (BRASIL, 2011c). De mais a mais, a partir desta decisão é que se passou a admitir a conversão da união homoafetiva em casamento – o próprio parágrafo terceiro do artigo 226 da CRFB/88 prevê que a lei deve facilitar a conversão da união estável em casamento. Em vista desse dispositivo constitucional, o Superior Tribunal de Justiça passou a admitir a habilitação para o casamento diretamente junto ao Registro Civil, sem que seja necessária prévia formalização da união para depois transformá-la em matrimônio67. Em que pese seja considerada um marco no que diz respeito à construção da semântica da família brasileira, a decisão do Supremo não agradou a todos. Um exemplo que repercutiu no país envolve o magistrado goiano Jeronymo Pedro Villas Boas, que atualmente ainda responde pela 1ª Vara da Fazenda Pública Municipal e de Registros Públicos da comarca de Goiânia/GO. Contrariando decisão do Supremo, o juiz anulou, de ofício, a união de dois estudantes na capital goiana em junho de 2011. Não bastasse, Villas Boas determinou que todos os cartórios de Goiânia fossem proibidos de registrar casamentos entre pessoas do mesmo sexo68. Diante de condutas como a de Villas Boas, o Conselho Nacional de Justiça editou a Resolução no 17569, em maio de 2013, proibindo as autoridades competentes de recusarem a habilitação, celebração de casamento civil ou a conversão de união estável em casamento entre pessoas do mesmo sexo, sob pena da imediata comunicação ao respectivo juiz corregedor para as providências cabíveis (BRASIL, 2013b). 66

Por erga omnes significa dizer que o acórdão produzirá efeitos não apenas entre as partes litigantes, mas perante todos aqueles que se encontrem enquadrados naquela conjectura de incidência. Já o efeito vinculante dota o dispositivo de observância obrigatória, cogente. Tal previsão encontra guarida constitucional no artigo 102, § 2º, da CRFB/88: “As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal”. (BRASIL, 1988) 67 Trata-se do Recurso Especial no 1.183.378 - RS (2010/0036663-8), de Relatoria do Ministro Luís Felipe Salomão, 4 T., julgado em 25/10/2011. Disponível em: . Acesso em: 27 fevereiro 2016. 68 O conteúdo do documento pode ser visualizado em: . Acesso em: 27 fevereiro 2016. 69 O conteúdo do documento pode ser visualizado em: . Acesso em: 27 fevereiro 2016.

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Esses três momentos da história brasileira marcam não apenas a construção da semântica de família no ordenamento pátrio, mas assinalam como o entendimento de família tem sofrido variações: em um primeiro momento, família se constrói na ANC sob os caprichos da moralidade cristã, que engaja verdadeira batalha jurídica para que os homoafetivos fossem excluídos da base da sociedade e desmerecedores da especial proteção do Estado. Em um segundo momento, porém, a própria leitura do ordenamento muda de foco – no neoconstitucionalismo, a Constituição, juntamente com seus valores e princípios, é a chave da hermenêutica jurídica. Toda norma, portanto, deve ser interpretada à luz da CRFB/88 e da sua principiologia, em especial os princípios constitucionais e internacionais de Direitos Humanos, sejam supralegais ou equiparados a emendas constitucionais. Em um terceiro momento, percebemos a materialização das diretrizes do neoconstitucionalismo em relação à semântica de família: se antes, à época da ANC, constituintes lograram êxito em deixar de lado as uniões homoafetivas sob o argumento de serem legitimados pela maioria cristã, na contemporaneidade, o Tribunal Supremo reconhece que, em se considerando os valores e princípios constitucionais, em especial o da dignidade da pessoa humana, uniões homoafetivas são tão lídimas quanto as heteroafetivas. Em vista da apresentação dos marcos que elegemos como principais no que diz respeito à semântica da família brasileira, e a par de alguns dos movimentos que contribuíram para a mudança nas mentalidades e nas configurações individuais e familiares, parece-nos possível, enfim, um aprofundamento da compreensão de entidade familiar sob uma ótica transversal.

1.3. O que são famílias? Possibilidades construtivas e interpretativas a partir de um olhar interdisciplinar

Propusemo-nos, neste Capítulo inicial, não a delinear de imediato uma conceituação de entidade familiar, como se percebe, mas de colocar em evidência alguns dos marcos de suas transformações. É apenas neste momento que averiguaremos, com maior profundidade, como o entendimento de família é passível de tomar notas e colorações diversificadas a partir de diferentes lentes utilizadas pelo(a) observador(a). Para tanto, e em razão dos movimentos concernentes ao nosso objeto de estudo, servirnos-emos notadamente da interação entre as lentes das ciências sociais e jusfilosóficas na busca não de um conceito, mas de explorar possibilidades construtivas e interpretativas do

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entendimento de família sob uma ótica transversal e em caráter de uma articulação interdisciplinar70. Entendemos pela não-conceituação de família em razão também do alerta inicial de Luiz Mello (2005, p. 27), no sentido de que “não há uma família definida em termos absolutos, mas tipos históricos específicos de associações familiares, influenciadas por variáveis ambientais, sociais, econômicas, culturais, políticas e religiosas”. Dito de outra maneira, consoante a percepção do autor, as formas de convivência familiar não são estanques71 ou centradas em um único modelo; ao contrário, variam e se transformam ao longo do tempo, e de uma sociedade para outra. É com base no alerta de Mello acerca das variáveis as mais diversas que influenciam a caracterização de família, e também atentos aos movimentos histórico-culturais identificados no percurso não-linear da família ao longo dos séculos XX e XXI, que aprofundaremos nossos estudos para além do campo do jurídico, perquirindo uma compreensão ampliada, dialogada e integrada a partir da interlocução entre diferentes áreas do conhecimento. Na percepção jurídica de Maria Berenice Dias, família pode ser considerada como um fato que relaciona cultura e natureza72, e que, enquanto tal, deve ser compreendido de forma ampliativa, plural e desmistificadora de pré-condicionamentos educacionais e culturais. A contemporaneidade, argumenta a autora, reclama uma releitura da entidade familiar a partir da ótica do afeto, este “reconhecido como o ponto de identificação das estruturas de família” (DIAS, 2015, p. 12). A convivência com modelos diferenciados de famílias (por exemplo recompostas, monoparentais e homoafetivas) diferentes da tradicional – aquela apontada pelo Código Civil brasileiro de 1916 como a fôrma familiar, ou seja, o único modelo possível –, permite reconhecer que seu conceito pluralizou-se (talvez, até mesmo, democratizou-se, em vista da queda da hierarquia73 entre o homem e os demais membros familiares, dando lugar a relações 70

A esse respeito, a jurista Maria Berenice Dias (2015, p. 65) ressalta que, “no âmbito das demandas familiares, é indispensável mesclar o direito com outras áreas do conhecimento que têm, na família, seu objeto de estudo e identificação. Nessa perspectiva, a psicanálise, a psicologia, a sociologia, a assistência social ensejam um trabalho muito mais integrado. O aporte interdisciplinar, ao ampliar a compreensão elo sujeito, traz ferramentas valorosas para a compreensão das relações elos indivíduos, sujeitos e operadores elo direito, com a lei”. 71 No entender de Maria do Carmo Carvalho (2003, p. 15) as “expectativas em relação à família estão, no imaginário coletivo, ainda impregnadas de idealizações, das quais a chamada família nuclear é um dos símbolos”. 72 Segundo Dias (2014, p. 103-104), “A família pode ser considerada uma instituição humana duplamente universal, uma vez que associa um fato da cultura, construído pela sociedade, e um fato da natureza, inscrito nas leis da reprodução biológica”. 73 A hierarquia a qual nos referimos pode ser encontrada, por exemplo, nos artigos 185 e 186 do Código Civil de 1916: de acordo com a legislação revogada, “Para o casamento dos menores de vinte e um anos, sendo filhos legítimos, é mister o consentimento de ambos os pais”. No entanto, “Discordando eles entre si, prevalecerá a

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de solidariedade, igualdade e respeito mútuo). Isso justifica, no sentir de Dias, o uso da expressão famílias para exprimir as modalidades familiares múltiplas, ampliativas de direitos, em oposição a família, que se restringe ao reconhecimento do modelo único, qual seja a entidade tradicional. Por conseguinte, sugere a releitura do Direito de Família para o Direito das Famílias, a partir da ênfase ao envolvimento emocional das partes; afasta a relação jurídica do âmbito do Direito Obrigacional, baseado na vontade dos contraentes; e a aproxima de um ramo do Direito “cujo elemento estruturante é o sentimento de amor, o elo afetivo que funde almas e confunde patrimônios, fazendo gerar responsabilidades e comprometimentos mútuos” (DIAS, 2015, p. 12-13). Os vínculos defendidos pela jurista, nesse modelo de mescla entre cultura e natureza, não se restringem a laços biológicos ou a fins patrimonialísticos; antes, assentam-se na concepção de que cada membro possui um lugar e uma função na entidade familiar: função de pai, função de mãe, função de filha ou filho, que permitem o seu desenvolvimento74. Dias argumenta ainda que o mundo contemporâneo reivindica uma percepção de família que seja eficaz, e não mais engessada. De mais a mais, para a autora, as mudanças na sociedade brasileira e a “evolução” de seus costumes levaram a uma reconfiguração do que se entende por conjugalidade e por parentalidade. Assim, acerca da hierarquização que se fazia preteritamente em relação à entidade familiar, “expressões como família marginal, ilegítima, espúria, impura, adulterina, informal, não mais servem, pois trazem um ranço discriminatório e estão banidas do vocabulário jurídico. Não podem ser utilizadas, nem com referência às relações afetivas, nem aos vínculos parentais” (DIAS, 2015, p. 132). De acordo com a percepção sociológica de Luiz Mello, que não se afasta da de Dias, família e casamento devem ser percebidos como categorias socioculturais dinâmicas, mutáveis, capazes de incorporar cada vez mais situações e formas afetivo-sexuais, mas cuja universalidade deve ser relativizada, para que não se incorra em etnocentrismo. Ao se pensar família, para Mello, deve-se pensar também, considerando limites e possibilidades, na vontade paterna, ou, sendo o casal separado, divorciado ou tiver sido o seu casamento anulado, a vontade do cônjuge, com quem estiverem os filhos”. No mesmo sentido, o artigo 233 mostra-se mais explícito no que tange à hierarquia em que se ocupam os cônjuges: “O marido é o chefe da sociedade conjugal”. (BRASIL, 1916) 74 Cabe registrar, desde já, que a função de pai, por exemplo, não se restringe a ser performada apenas pelo homem, assim como a função de mãe não é exclusiva da mulher (DIAS, 2015)”. Nessa perspectiva, mesmo os papéis e funções de homem e de mulher não são mais fixos como outrora, mas performativos, segundo os estudos contemporâneos sobre gênero. A esse respeito, Ingrid Cyfer (2015, p. 46), retomando o pensamento de Simone de Beauvoir, assevera que “ser reconhecido socialmente como homem ou mulher será uma condição alcançada pela manifestação pública de comportamentos associados à masculinidade e à feminilidade. [...] Assim, a alegada existência de uma essência feminina ou masculina seria um produto dessa performance, e não o contrário”.

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construção de uma entidade que admita diferentes alternativas de existências e estruturações, livre de qualquer determinação natural. A propósito, tangenciando os questionamentos acerca do papel que o afeto pode/deve ocupar no seio familiar, bem lembra a socióloga Berenice Bento em artigo que escreveu para a Revista Cult75, em 2015, que família pode significar, para muitos, um lugar de abusos e violência, ou caixas pretas ainda a serem abertas, ao invés de locus de cuidados e proteção. De acordo com a autora, existem “silêncios e apodrecimentos que sopram desta instituição milenar, a sacro-santa família, que precisam ser revelados76. A grande promessa da família é ser o lugar fundante de nossa condição humana, o lugar dos primeiros vínculos, de aprendizagem, da proteção e cuidado”. E arremata: “Promessas77, geralmente, não cumpridas e frustradas” (sic). Nesse esteio, percebemos que, se de um prisma, família pode ser entendida como o locus ideal para manifestações e laços afetivos ou afetivo-sexuais saudáveis, de outro, pode ser encarada como “o núcleo gerador de inseguranças, desequilíbrios e toda sorte de desvios de comportamento” (SZYMANSKI, 2003, p. 23). Essa reflexão mostra-se importante para evitarmos outra espécie de naturalização: a de que família é sempre algo naturalmente bom 78, ou naturalmente desejável.

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A autora acredita que, “ao mesmo tempo, devemos nos perguntar como fazer este duplo movimento: ampliar os sentidos de família e, ao mesmo tempo, não abandonar a crítica a uma instituição que, hegemonicamente, funda-se na violência para se reproduzir”. Disponível em: . Acesso em: 10 abril 2016. 76 Nesse sentido, a contista e poetisa goiana Cora Coralina descreve em versos, no poema Pai e filho, uma realidade similar àquela trazida à tona por Berenice Bento, marcada pela dor e pelo sofrimento: “ Não são os filhos que nos devem. São os pais que devem a eles. / Estatuto do passado. Resquício do Pater Familias do Direito Romano - O pai tem todos os direitos e o filhos, todos os deveres. / Assim era, assim foi. / Hoje, sem precisar leis, nem decretos, nem códigos, pela força da evolução humana, através de séculos, vencendo resistências, ab-rogando artigos e parágrafos, se fez o inverso. / O pai tem todos os deveres e o filho todos os direitos. / Princípio de justiça incontestado pelos próprios pais e juízes destes tempos novos. / Nego o amor dos pais do passado, salvante exceções./ O que eles sentiam era o orgulho da posse, o domínio sobre sua descendência. / Tudo, todos, judiciários e adultos. Sua hermenêutica sutil de leis, interpretação, a favor dos adultos. / Os adultos, pai ou mãe, levavam sempre o melhor. Aí estão os inventários antigos. Os velhos autos comprovando interesses mesquinhos, fraudes, despojando filhos menores, indefesos, de bens a eles devidos. / Na casa antiga, castigos corporais e humilhantes, coerção, atitudes impostas, ascendências férrea, obediência cega. / Filhos foram impiedosamente sacrificados e despojados. / E para alguma rebeldia indomável, lá vinha a ameaça terrível, impressionante da maldição mãe, a que poucas resistiam. / Do resto prefiro não esmiuçar”. (CORALINA, 1987, p. 126) 77 Carvalho (2003, p. 15) posiciona-se em sentido semelhante: as expectativas de que a família “produza cuidados, proteção, aprendizado dos afetos, construção de identidades e vínculos relacionais de pertencimento, capazes de promover melhor qualidade de vida a seus membros e efetiva inclusão social na comunidade e sociedade em que vivem” são apenas possibilidades, e não garantias. 78 A reflexão que Bento nos proporciona parece colidir frontalmente com a afirmação absoluta que o Deputado Ronaldo Fonseca emitiu no seu Parecer do Estatuto da Família: “Deve-se reconhecer o papel fundamental que a existência do convívio com a figura do pai e da mãe têm para o bom desenvolvimento da criança e da própria sociedade; algo observável pelos séculos, testado pela sociedade e amplamente reconhecido como algo bom”. (BRASIL, 2014b)

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A par dessa realidade, podemos destacar que, na visão de Mello (2005, p. 40), os vínculos familiares devem se preocupar, acima da reprodução biológica da espécie, com a “criação de condições que assegurem o bem-estar físico e emocional dos seres humanos em interação”. É possível que a ênfase no afeto e no sentimento de pertencimento dos membros da entidade familiar coopere para o seu distanciamento do lugar de abusos e violência de que trata Bento e a aproxime de um ambiente de solidariedade e respeito mútuo. Conforme examinamos, as famílias passam por movimentos e (trans)formações em razão de fatores como espaço e tempo: “as formas históricas de entidade familiar variam muito quanto a estrutura, exercício de autoridade, funções, extensão do parentesco integrado e autonomia em relação ao meio social”, afirma Mello (2005, p. 25). Para além do que nos narra Regina Navarro Lins, esses cinco fatores incidiram (e ainda incidem) sobre os movimentos da família, alterando, em maior ou menor escala, suas possibilidades construtivas e interpretativas. Nesse esteio, de acordo com Heloisa Szymanski, enquanto o foco da família prémoderna está na sua estrutura, ao invés da qualidade das inter-relações, o modelo de família moderna baseia-se em um construto econômico, social e político, ainda dotado de plasticidade e demarcado temporal e espacialmente. Ademais, a entidade familiar moderna “destina-se à socialização amorosa das crianças79, priorizando a intimidade e a privacidade do casal e seus filhos”, em oposição a destinar-se, como outrora, ao controle dos prazeres sexuais, à manutenção de linhagens ou à manutenção do patrimônio (MELLO, 2005, p. 26). Com efeito, duas são as características fundamentais que marcam a família conjugal moderna, no sentir de Luiz Mello: “a afirmação da individualidade dos sujeitos na escolha de seus cônjuges, a partir dos ideais do amor romântico; e a maior independência dos novos casais em relação a suas famílias de origem”. É dizer que, nesse momento, em se tratando da constituição do vínculo matrimonial, a dimensão econômica passa a ceder espaço para que predomine a afetiva, com a valorização da “livre”80 escolha amorosa em detrimento da

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Mello (2005, p. 43) ressalta que a forte associação entre família e infância contribuiu para que os homoafetivos fossem excluídos do âmbito das representações e práticas sociais familistas, “uma vez que a única forma socialmente legítima para a realização do amor romântico era o casamento, em que o homem-pai e a mulher-mãe estariam encarregados de gerar e socializar crianças”. 80 Nesse aspecto, e considerando as transformações na mentalidade da sociedade, Mello tece a seguinte digressão: “É pouco plausível que casais ou famílias formados a partir da união de dois homens ou de duas mulheres existissem ou fossem socialmente aceitos num contexto histórico em que a escolha dos cônjuges estava pautada pela construção de alianças entre grupos familiares e pela garantia da reprodução da espécie, num cenário de forte influência religiosa em que qualquer prazer carnal/sexual era definido como vil e pecaminoso”. No entanto, afigura-se-nos inexistir a figura de uma escolha realmente livre, já que, conforme o próprio autor, “Será apenas com a consolidação do ideário de que o casal e a família devem estruturar-se a partir de uma relação de amor entre um homem e uma mulher, que se reconhecem como especiais e capazes de se

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formação e manutenção de linhagens. Ademais, os indivíduos não se viam mais na necessidade de conviverem de forma integrada a grandes grupos sociofamiliares para garantirem sua subsistência (MELLO, 2005, p. 26). Se a família moderna, juntamente com suas práticas e valores, já no século XIX, era considerada como universal na percepção popular, “numa perspectiva nitidamente etnocêntrica, que define o diferente como inferior”, a segunda metade do século XX, onde se contextualiza a família contemporânea, foi marcada por discursos referentes à desestruturação da entidade familiar, queda do prestígio social do instituto do casamento, críticas à monogamia e à reprodução biológica compulsória (MELLO, 2005, p. 27). Em contrapartida, a partir da força que tais discussões ganharam na arena política, despertou-se “o medo e a ira dos defensores de uma concepção de família naturalista e sagrada, fundada em valores religiosos e encarregada da missão – primeira e insubstituível – de assegurar a coesão social e a reprodução da espécie” (MELLO, 2005, p. 27). O que se gerou em meio a esses conflitos, e cujas consequências serão melhor desenvolvidas no Capítulo terceiro, foi: a generalização do divórcio, da monoparentalidade, da autonomização da sexualidade em relação à conjugalidade e à reprodução, da possibilidade de nãocoabitação, das experiências de multiplicidade e simultaneidade de parceiros afetivo-sexuais, da redefinição dos papéis de gênero e da secularização dos vínculos conjugais [...]. (MELLO, 2005, p. 28)

Apesar de todas as mudanças e do trânsito por que passa(ra)m as concepções de família, casamento e amor, parece restar ainda, mesmo na contemporaneidade, um laço comum: o heterocentrismo compulsório, como se essas três ideias fossem intrínsecas às relações afetivas e sexuais entre homem e mulher. A este respeito, foi “simultaneamente à organização da família moderna em torno das figuras do pai, da mãe e dos filhos [que] iniciou-se um processo de construção social que culmina com a naturalização da divisão dos indivíduos em heterossexuais e homossexuais” – esses últimos definidos como portadores de uma patologia, o homossexualismo, e, portanto, incapacitados de constituírem núcleos familiares. (MELLO, 2005, p. 43). Em sentido semelhante, Berenice Bento (2001, p. 188) destaca que, tanto para mulheres como para homens, “eleger como seu objeto de desejo um membro do mesmo gênero, numa sociedade que tem como ideologia oficial da sexualidade a heterossexualidade, é correr o risco de ser reconhecido como ‘pervertido’, ou como alguém que vive em pecado”. ‘complementar’ reciprocamente na construção de um projeto de vida dual, que serão lançadas as bases da possibilidade de aceitação social do casal e da família homossexuais”. (MELLO, 2005, p. 42)

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Entretanto, foi apenas após o ingresso dos homossexuais na arena política, na década de 1990, especialmente após a apresentação do PL no 1.151/9581, destaca Mello, que a certeza estrutural heterocêntrica e a patologização do homossexualismo passaram a ser postas em questão, com vistas à abertura à diversidade82. A propósito, e a respeito do “medo” que se tem de que crianças sejam socializadas por casais homoafetivos, o autor pontua que:

Enquanto não se reconhecer que a homossexualidade é uma das alternativas possíveis no campo polimorfo e múltiplo das vivências amorosas humanas, e não uma modalidade nefasta de conjunto das perversidades psicossociais, a luta de gays e lésbicas pelo direito à socialização de crianças continuará a encontrar fortes resistências. (MELLO, 2005, p. 48) 83

Para o autor, no contexto contemporâneo brasileiro ainda existe um modelo idealizado hegemônico e ideal de família, alicerçado no que denomina como elementos cristão/burgueses, que atua como referência de família feliz e parâmetro para que todas as demais sejam definidas como desviantes84. “O sentimento de culpa por romper casamentos e criar filhos sem a presença contínua de ambos os pais biológicos, ou por assumir uma parentalidade solteira”, afirma, “é uma das conseqüências da existência de um modelo familiar universal” (sic) (MELLO, 2005, p. 35). Em que pese a existência do modelo idealizado e dos efeitos que acarreta, já é possível perceber desdobramentos na arena política que abarquem a pluralidade de construtos familiares. Um deles é fruto da crítica feminista, que tem exercido um papel considerado pela literatura como importante na desmistificação da família; afinal, também na família é passível de se encontrar, ao invés de amor e harmonia, um “espaço dramático de violências, de lutas e

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Trata-se de Projeto de Lei de autoria da Deputada Marta Suplicy (PT-SP à época), que tem por objetivo disciplinar a união civil entre pessoas do mesmo sexo, mas estagnado na Câmara dos Deputados desde 2007. Disponível em: . Acesso em: 10 abril 2016. 82 No sentir de Maria do Carmo Carvalho (2003, p. 15), “É preciso enxergar na diversidade não apenas os pontos de fragilidade, mas também a riqueza das respostas possíveis encontradas pelos grupos familiares, dentro de sua cultura, para as suas necessidades e projetos”. 83 Ainda a esse respeito, e valendo-se dos estudos de Gabriel Rotello, afirma o autor que “os estudos sobre parentalidade de homossexuais mostram que as crianças criadas por lésbicas ou gays são tão saudáveis e ajustadas quanto as outras”. (MELLO, 2005, p. 46) 84 “Para muitos, a possibilidade de aceitação social do casal e da família homossexuais ainda é vista com um pavor fóbico, fundado em preconceitos e resistências fantasmáticas a uma suposta homossexualização da sociedade”, afirma Luiz Mello. Na contramão, em vista da “diminuição do preconceito e da intolerância em relação à homossexualidade, vem sendo cada vez maior o número de pessoas que desafia a normatividade vigente e busca a constituição de parcerias afetivo-sexuais com outras de seu próprio sexo, muitas vezes associando à experiência da conjugalidade e da parentalidade, seja com filhos biológicos ou adotivos”. (MELLO, 2005, p. 44)

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conflitos múltiplos, em face da predominância de estruturas e de lógicas hierárquicas e nãoigualitárias, em termos de sexo e geração” (MELLO, 2005, p. 30). Ainda, com a nova divisão do trabalho entre homens, mulheres, jovens e adultos, Mello afirma ser possível verificar alterações nas relações de poder intrafamiliares, contribuindo para a criação de uma tendência mais igualitária entre os membros, ao invés de hierárquica. Cada vez mais espera-se, na visão do autor, que a família seja local de solidariedade, fraternidade, afetividade, ajuda mútua, proteção dos membros contra as adversidades do mundo exterior. Em relação ao exercício da sexualidade, no mundo contemporâneo ele encontra-se cada vez mais dissociado da conjugalidade e da reprodução, em razão, conforme aponta Mello, do desenvolvimento científico-tecnológico e da menor influência religiosa na sociedade e seu imaginário. Passa-se a uma redefinição, nesse momento histórico, também dos limites e possibilidades do prazer sexual e da reprodução biológica, já que a sexualidade foi liberta da reprodução compulsória. Difundiram-se largamente métodos contraceptivos – em especial a pílula anticoncepcional – e ampliaram-se as possibilidades de realizações de esterilizações masculina e feminina, abortos e reprodução assistida. Em vista (da visibilidade) dessas novas realidades, foram construídas representações e práticas sociais outras segundo as quais a função primeira da conjugalidade não é mais a garantia da perpetuação da espécie humana. Redefinições de limites e dissociação entre reprodução, sexualidade e conjugalidade têm sido influenciadas também por outras transformações sociais, segundo o que aponta o autor: a garantia de igualdade formal e de direitos e deveres entre homens e mulheres, inclusive no âmbito familiar, a inserção cada vez mais expressiva das mulheres no processo de escolarização e no mercado de trabalho, uma maior e mais explícita valorização do corpo e da sexualidade, a luta contra a opressão por gênero e por orientação sexual desencadeada pelos movimentos feminista e homossexual, a crescente influência dos meios de comunicação de massa como difusores padrões de comportamento e as mudanças ocorridas nos países de capitalismo avançado. (MELLO, 2005, p. 33)

Tais fatores apontados pelo sociólogo, aliados à autonomização da parentalidade em relação à conjugalidade, contribuíram, em maior ou menor escala, para o reconhecimento de que para a formação do núcleo de entidade familiar não se faz mais necessário atrelar papéis conjugais com parentais – na verdade, uma entidade familiar pode comportar uma dissociação explícita entre eles. Assim, o papel parental prescinde de conjugalidade; ou seja, quando se

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trata de uma família monoparental, ou quando rompem-se os laços afetivo-sexuais entre um casal, o papel parental persiste, ainda que um dos pais não conviva diretamente com os filhos. Por outro lado, existem casos em que os papéis parentais associam-se aos conjugais. Mello usa como exemplo as famílias mosaico, em que os filhos dos casamentos ou relações anteriores passam a viver juntamente com o novo cônjuge de seu pai ou sua mãe, e também com novos irmãos. Nessa configuração, a criança pode ter, por exemplo, um pai biológico e um social, bem como tios, tias e avós de diversas origens. Em relação aos adultos, pode haver situações em que se torne frequente a convivência entre ex-cônjuges, ou que um casal conviva com ex-companheiros(as) de seu(sua) atual parceiro(a). Outro modelo que vem ganhando visibilidade social é o monoparental, onde a relação pais-filhos, tios-sobrinhos, ou mesmo avós-netos constitui o todo do núcleo familiar. Tal visibilidade e expressividade contribui, segundo Mello, “para que as crianças filhas de pais solteiros ou divorciados deixem de ser vítimas da discriminação, estigmatização e marginalização social que até recentemente atingiam de forma cruel os integrantes de núcleos familiares que não correspondiam ao modelo idealizado” (MELLO, 2005, p. 35), Consoante o entendimento do autor, no tocante aos casais de mesmo sexo, homossexuais que omitem sua orientação sexual nos contextos sociais formam famílias clandestinas (por não terem visibilidade social ostensiva) fundadas nos mesmos parâmetros do amor romântico ou confluente, assim como os heterossexuais. “Dada essa nova realidade”, destaca, “estudiosos na área de terapia familiar já trabalham com o entendimento de que os casais de homens e os de mulheres, com ou sem filhos, constituem modalidades de núcleo familiar” (MELLO, 2005, p. 45). O fato de as relações amorosas estáveis entre pessoas do mesmo sexo ainda não serem juridicamente reconhecidas, afirmam Luiz Mello e Quéfren Crillanovick (1999, p. 176)85, “não significa que essas relações não existam no mundo real, da mesma forma que as mães ou pais solteiros e seus filhos não passaram a constituir uma modalidade de família apenas a partir da promulgação da Lex Maxima do Brasil” [grifos no original]. Aliás, as lutas pelo reconhecimento jurídico das uniões homoafetivas tratam, antes de tudo, de reivindicação por cidadania e Direitos Humanos (MELLO, 2001).

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As referências de A cidadania e os direitos humanos de gays, lésbicas e travestis no Brasil (1999) e Da Diferença à Igualdade: Os Direitos Humanos de Gays, Lésbicas e travestis (2001) trazem o autor Luiz Mello como ALMEIDA, Luiz Mello de.

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De mais a mais, a respeito das possibilidades efetivas e não clandestinas de os casais de mesmo sexo serem reconhecidos como uma entidade familiar, e do desrespeito aos princípios de Direitos Humanos, salientam que o direito à família é concebido, no mundo ocidental, como um direito inalienável de todos os homens e mulheres, independentemente de sua religião, sexo, cor, raça, etnia, idade, classe social, nacionalidade – dentre muitos outros atributos diferenciais –, mas não de sua orientação sexual. Em outras palavras, espíritas, mulheres, amarelos, brancos, ciganos, adolescentes, proletários, italianos, presidiários, traficantes, prostitutas, enfim, todos – à exceção dos homossexuais e dos definidos juridicamente incapazes – não só podem como são estimulados a constituir família, independentemente de suas especificidades sócio-biológicas. O que salta aos olhos, portanto, é a intolerância explícita no tocante ao reconhecimento social e jurídico das relações amorosas homossexuais. (MELLO; CRILLANOVICK, 1999, p. 178)

Outro viés de entidade familiar trazida por Mello, sob a luz das concepções do sociólogo britânico Anthony Giddens, denominado relacionamento puro, consiste na “situação em que as relações sociais, incluindo as afetivo-sexuais, são valorizadas pela satisfação intrínseca que proporcionam aos indivíduos em interação”. Trata-se de uma forma de estruturação da intimidade sem a necessidade do casamento – ou, na hipótese da celebração do casamento, que ele adquira um sentimento diferente, não-associado ao amor romântico – ou de reprodução (MELLO, 2005, p. 38). A monogamia, aqui, se apresenta como prescindível, de sorte que a exclusividade afetiva e sexual apenas estará presente se os parceiros, hetero ou homoafetivos, entenderemna como relevante. O que importa nesse modelo é a autonomia dos indivíduos da qual se estrutura “um novo projeto reflexivo do eu, centrado em práticas democráticas, independentemente de sexo, gênero, orientação sexual ou estado civil dos parceiros envolvidos” (MELLO, 2005, p. 38). Luiz Mello ressalta ainda a importância da institucionalização do divórcio para as famílias brasileiras. No entender do sociólogo, a possibilidade de se dissolver juridicamente o casamento é uma das consequências “da desabsolutização do amor romântico, o qual está simbolicamente expresso no mito da complementaridade irrestrita e indissolúvel entre um único homem e uma única mulher que se casam”. Afinal, sob a égide do ideal de almas gêmeas, o casal que se separasse estaria íntima e publicamente reconhecendo que aquele amor motivador do casamento romântico (verdadeira construção sociocultural) não era, de fato, verdadeiro (MELLO, 2005, p. 37). Ademais, se no casamento não se acha mais o fim de procriar, e, ainda, se é possível a dissolução desse laço, homo e heteroafetivos passariam a estar “em condições de igualdade

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diante do casamento, quando este é compreendido como um contrato público que atribui conseqüências legais a um vínculo emocional, financeiro e psicológico entre adultos, não necessariamente comprometidos com a reprodução biológica” (sic) (MELLO, 2005, p. 46). A respeito das apropriações do sistema de gênero, o autor ressalta que, nas relações homoafetivas, algumas questões específicas86 são geridas de modo diferenciado em relação aos heteroafetivos, a partir da forma como os papéis de gênero são concebidos e vivenciados. Assim, e baseando-se nos estudos da historiadora e antropóloga social Maria Luiza Heilborn, os casais homoafetivos masculinos “tendem a uma composição entre o modelo heterossexual, em face da polaridade ativo-passivo”, enquanto que os femininos “privilegiam uma perspectiva mais igualitária de conjugalidade, o que implicaria maior simetria das partes nas diversas dimensões da relação afetivo-sexual”, ressalta Mello (2005, p. 47). Tal fenômeno da gestão diferenciada de questões específicas encontrada nos casais homoafetivos pode ser explicado87 pelo argumento de que as condições masculina e feminina, além de não terem sido construídas de forma excludente e hierarquizadas, conforme aponta Bento, também não devem ser naturalizadas, ainda mais diante da possibilidade que têm de realizar deslocamentos, movimentos. Ou seja, é impossível que se eleja uma “variável independente constitutiva dos gêneros como universal” (BENTO, 2001, p. 191). Além do mais, um novo olhar relativo aos estudos de identidade de gênero, “de certa forma, radicaliza a idéia de que ninguém nasce homem ou mulher”, ocupantes de espaços fixos, biologicamente determinados; antes reconhece cada identidade como construída por meio de um processo constrastivo: “ser homem é não ser mulher e vice-versa”, de forma que para se entender o masculino é necessário que se entenda o feminino (sic) (BENTO, 2001, p. 192). Os novos arranjos atinentes ao gênero e à sexualidade de que tratam Mello e Bento não estão limitados a marcos de uma polaridade apenas masculina ou feminina. Antes, as “identidades de gênero se constituem num movimento relacional multidirecional e multirelacional. É um relacional que se efetiva a partir de articulações múltiplas: entre mulheres e homens, homens e homens, mulheres e mulheres. Ou seja, entre e inter gêneros” (BENTO, 2001, p. 192).

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O sociólogo cita como algumas das questões específicas “a divisão das tarefas domésticas, a gestão dos recursos financeiros, o exercício da parentalidade, a estruturação das práticas sexuais, os acordos em torno da monogamia e da fidelidade bem como a própria duração do vínculo conjugal”. (MELLO, 2005, p. 47) 87 Deve-se, para tanto, ancorar na tese segundo a qual “a forma como os homens e as mulheres efetivam suas ações nas relações de gênero e suas identidades é fruto de processos históricos, culturais e sociais, deve-se buscar no meio social, e só nele, a explicação do sentido de suas ações”. (BENTO, 2001, p. 192)

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Assim sendo, o que define homens e mulheres, masculinidade e feminilidade? Seria a partir da genitália, de fatores biológicos ou, pelo contrário, uma construção social? A respeito do que é ser homem, Berenice Bento (2001, p. 194) se posiciona da seguinte forma: A masculinidade, ou a prática do homem na ordem dos gêneros, é estruturada por várias condicionantes sociais. O biológico, ter um pênis, funciona como um eixo que faz com que o homem se reconheça como homem, um reconhecimento que está para além do biológico, mas encontra no biológico, que funciona como um significante de diferentes significados, a justificativa simbólica de uma imanente superioridade e na existência de características – psíquicas, afetivas e emocionais – compartilhadas por todos os homens.

Embora o fator biológico seja fornecedor de significados múltiplos, ainda assim, para Bento, poder-se-ia correr o risco de a análise continuar pautada na fixação de homens e mulheres em posições determinadas pelo biológico. A construção das identidades de gênero, por outro lado, é composta por fatores outros, como a classe social, a etnia e a religião, podendo, ou não, manter correspondências com o genital, a orientação heterossexual 88 e certos hormônios que o corpo produz. E continua a autora: Nesse sentido, “homem” ou “mulher” é uma abstração [...]. O que há são masculinidades e feminilidades múltiplas. Conforme salientou Butler (1998), desconstruir o sujeito do feminismo e, eu completaria, de outros sujeitos constitutivos de uma dita identidade coletiva, não é censurar sua utilização, mas, “liberar o termo num futuro de múltiplas significações, emancipá-lo das ontologias materiais ou racistas às quais esteve restrito e fazer dele um lugar onde significados não antecipados podem emergir”. [grifos no original] (BENTO, 2001, p. 194-195)

Ao analisarmos os papéis ou funções de homem e mulher sob a perspectiva da família, é possível resgatar a observação de Mello em relação à dificuldade crescente que se tem tido para definir o retrato do pai-típico. Para o autor, tal embaraço perpassa o fato de que os homens, na construção de arranjos familiares variados, muitas vezes passam a “desempenhar papéis que até recentemente considerados como exclusivos do universo feminino, seja no cuidado direto e solitário de seus filhos, seja no compartilhamento dessas atribuições, em níveis variados, com as mães das crianças e/ou outros parentes/profissionais” (MELLO, 2005, p. 36). Seguindo o entendimento de que mesmo a construção das identidades de gênero é composta por fatores sociais, e que não estão limitados a marcos de uma polaridade somente 88

Quando, por exemplo, transexuais afirmam “vivo em um corpo equivocado”, diz Bento (2006, p. 119), “nada estão revelando-nos em termos de suas práticas e escolhas sexuais”. [grifos no original]

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masculino e feminino, mas que se movimentam, também os papéis de pai e mãe dentro de uma organização familiar não são introjetados, exclusivos ao masculino e feminino, respectivamente, mas assumidos pelo indivíduo que assim se reconhecer no seio familiar. Ou seja, em se tratando do modelo contemporâneo de família, conforme apontam Negreiros e Féres-Carneiro (2004, p. 39), “as fronteiras de identidades entre os dois sexos são fluidas e permeáveis, com possibilidades plurais de representação”. Assim, no tocante ao movimento por que passam as identidades de gênero dentro das relações familiares, é possível observar que, por um lado, tradicionalmente, impôs-se às mulheres a maternagem, ou cuidados maternos, que, “como mães, são agentes decisivos na esfera da reprodução social, pois são as que mais participam da educação, transmitindo aos filhos as ideologias vigentes na sociedade”. A paternagem, ou cuidados paternos, foi consagrada ao homem, detentor do “poder de estabelecer na trama doméstica o diálogo com a família quando lhe convém, cabendo às mulheres a responsabilidade de manter a harmonia das relações parentais no âmbito privado” (FREITAS; SILVA; COELHO; GUEDES; LUCENA; COSTA, 2009, p. 86). Por outro lado, nos dias atuais, em vista das mudanças perceptíveis na família contemporânea, e apesar de a diferença de papéis entre homens e mulheres ainda ser uma realidade, estudos da psicologia apontam que o amor materno, por exemplo, é um mito recente, “resultado de uma construção social e cultural, nada tendo a ver com instinto, fator sanguíneo ou um determinismo da natureza”. De forma semelhante, também a paternidade é uma “construção cultural que não se pode compreender sem articulação com a maternidade, no sistema parental e no universo simbólico da cultura em que se está inserido” (BORSA; NUNES, 2011, p. 34; 36). Dessa forma, tendo em vista a inexistência de papéis fixos e naturalizados dentro do contexto familiar, a literatura reconhece a possibilidade de que o homem exerça atribuições típicas apontadas pela tradição como maternas, e que a mulher assuma responsabilidades e ofícios outrora designados à paternidade. Em outras palavras, nada parece impedir que o homem exerça a função de mãe e que a mulher exerça a função de pai, ou que, nas uniões homoafetivas, um(a) dos(as) parceiros(as) assuma a função de pai da criança e o(a) outro(a), a de mãe. Podemos perceber, aproximando-nos das lentes a que nos propomos, que as possibilidades de construção de família revelam-se tão plurais quanto os movimentos referentes à construção de gênero e os papéis que os indivíduos podem desempenhar dentro do seio familiar. Afinal, o discurso da polaridade estanque masculino-feminino não se

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sustenta, de acordo com as pesquisas realizadas pelas ciências sociais e pela psicologia, assim como vem se fragilizando, cada vez mais, os gessos que pretendem fixar e naturalizar papéis pré-determinados a homens e mulheres no contexto familiar. Nesse viés, do fato de inexistir uma família, composta de uma maneira, cujos membros desempenham apenas uma função que se acorda com seu sexo biológico de cada qual e com as normas heterocêntricas resulta a dificuldade que se tem em conceituar entidade familiar. Diferentes modelos saem das sombras, enfrentam as idealizações, mitos sacralizações e hierarquizações que ainda envolvem a ideia de família e reclamam sejam juridicamente reconhecidos. A contemporaneidade não comporta que se compreenda, dessa forma, família como uma instituição universal – até mesmo porque, a despeito de consistir preferencialmente em locus de afeto, pertencimento e crescimento, pode traduzir-se em espaço de infelicidade, exclusão, conflitos e ódio –, nem que o exercício da sexualidade continue atrelado à reprodução ou à conjugalidade. Nessa toada, para além da fixação de um conceito da entidade, como se pretende ainda no cenário brasileiro, a exemplo do artigo segundo do Estatuto da Família, parece-nos que os estudos acerca de família reclamam um maior entendimento sobre a mutabilidade e variabilidade de seus limites e a pluralidade de suas interpretações ao oposto de se sancionar seu engessamento. O objetivo principal deste trabalho é verificar se o Estatuto da Família, em vista do conceito de família que pretende trazer ao ordenamento jurídico infraconstitucional, apresenta-se como um Projeto de Lei democrático e atento aos princípios constitucionais e internacionais de Direitos Humanos. Portanto, no Capítulo seguinte deter-nos-emos acerca das características da democracia brasileira, com base nas seis regras do jogo segundo o instrumentalismo de Norberto Bobbio, na sétima regra, a Constituição, de acordo com Gustavo Ferreira Santos, e seu conteúdo mínimo, sob o olhar substancialista de Luís Roberto Barroso. Em momento contíguo, far-se-á necessária uma verificação do seguimento dessas regras por meio do marco normativo e da inclusão dos Direitos Humanos e dos princípios constitucionais.

CAPÍTULO II – TRILHANDO O JOGO DEMOCRÁTICO BRASILEIRO: MARCOS LEGAIS E CONCENTUAIS No Capítulo anterior, após detalharmos o texto do Estatuto da Família (PL no 6.583/2013) e de seus dois Pareceres, e em atenção às discussões perpetradas na sessão de votação da Comissão Especial da Câmara dos Deputados, verificamos que algumas categorias conceituais foram utilizadas pelos Parlamentares, tanto pelos defensores quanto pelos críticos do Projeto de Lei, de forma polissêmica. Dentre esses conceitos apontamos, notadamente, o de família, democracia, vontade da maioria e dos Direitos Humanos. Assim, com vistas à continuidade das persecuções relativas ao nosso objetivo central – qual seja verificar se o conceito de entidade familiar proposto pelo Estatuto da Família é compatível com a democracia brasileira e com os princípios constitucionais de Direitos Humanos – abordamos no Capítulo inicial as discussões relativas ao PL e à construção semântica da família no Brasil a partir de quatro marcos eleitos como principais. Após, passamos à caracterização de entidade familiar sob a ótica contemporânea e interdisciplinar. No presente Capítulo, dedicaremos os estudos à caracterização da democracia brasileira e dos Direitos Humanos, apontando suas possíveis relações. Nos dias atuais, quando falamos em democracia brasileira, em que pese mesclarmos procedimentos representativos e diretos, a primeira imagem que nos atravessa a mente é a relativa ao dia das eleições, caracterizado pelas filas de cidadãos aguardando o momento de depositar a cédula na urna, ou, em se tratando do processo eleitoral brasileiro, de digitar nas urnas eletrônicas o número do candidato ou da legenda escolhido. Na democracia representativa, vota-se não para decidir, mas para eleger quem decidirá; ou, nas palavras de Norberto Bobbio (2000b, p. 374), “a democracia de hoje é uma democracia representativa às vezes complementada por formas de participação direta”. O próprio modelo brasileiro prevê, de acordo com o artigo 14 e incisos da CRFB/88, que a soberania popular será exercida não apenas pela democracia participativa, consubstanciada no sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, mas também, nos termos da lei, mediante institutos de participação direta do cidadão, como o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular. A CRFB/88 afirma também, no parágrafo único do artigo primeiro, que “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição” (BRASIL, 1988). No entanto, para Simone Goyard-Fabre (2003, p. 9),

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embora a democracia seja o “poder do povo (demos, kratos)”, as próprias palavras povo e poder “estão envoltas de penumbras” 89 [grifos no original]. Mesmo o nascimento da democracia grega veio acompanhado de “ambiguidades e dificuldades”, o que resultou tanto em elogios como em críticas a esse regime político (GOYARD-FABRE, 2003, p. 9). Platão e Aristóteles, por exemplo, denunciaram “a cegueira do povo no tocante aos assuntos públicos e a tendência anárquica de um regime em que, como todos têm a pretensão de comandar, ninguém obedece” (GOYARD-FABRE, 2003, p. 11). É por essa razão que, no sentir de Goyard-Fabre, é impossível responder de forma uniforme à pergunta “o que é democracia?”. Em sentido semelhante, Bobbio, tanto em A democracia: uma defesa das regras do jogo como em Teoria geral da política: a filosofia política e as lições dos clássicos, partilha da tese de que a democracia, em seu estado natural, e por ser dinâmica,

passa

por

transformações,

reforçando

a

complexidade

de

responder,

inequivocamente, ao questionamento da filósofa do direito. Em que pese ser impraticável responder de forma oracular “o que é democracia?”, entendemos tratar-se de “princípio constitucional de um regime político” que não possui essência imutável nem eterna – ao contrário, “sobre princípios relativamente claros”, afirma Goyard-Fabre (2003, p. 18), “enxertaram-se modalidades jurídico-políticas concretas e diversas”. A par, portanto, da inexistência de um conceito rígido de democracia, mas sobretudo principiológico, propomos, neste Capítulo, buscar na Constituição Brasileira de 1988 princípios considerados como caracterizadores de um Estado Democrático de Direito – afinal democracia é não apenas seguir as regras do jogo, mas também a proteção a alguns conteúdos mínimos, tanto pelo Legislativo como pelo Executivo ou Judiciário, e vedado o retrocesso. A partir dos conceitos norteadores de democracia e de Estado de Direito formulados pelo italiano Norberto Bobbio, como uma primeira cartada procedimental, e pelo brasileiro Luís Roberto Barroso, como uma segunda cartada neoconstitucionalista de conteúdo mínimo, o Capítulo segundo pretende primeiramente estabelecer as regras que segue a democracia 89

A filósofa francesa, em sua obra, examina alguns princípios arquitetônicos da fundação do ideal democrático grego. Diz a autora, aqui exposto em sucintas linhas, que a Constituição, para os gregos, não se restringia uma legislação a ser interpretada, como as modernas; ou seja, a Constituição da Cidade-Estado não era uma lei superior circunscrita ao âmbito do dever-ser, mas a própria alma, ordem e unidade da Cidade-Estado. A CidadeEstado deveria ser organizada por todos, desde que pertencentes ao corpo político denominado povo. O conceito de povo, na Cidade-Estado, aos tempos de Péricles, foi concebido como massa de pessoas portadoras de prerrogativas e de obrigações (o cidadão), sem que o dinheiro ou status que cada um eventualmente desfrutasse tivesse peso na tomada das decisões. No entanto, como dito, nem todo membro do povo era cidadão, e apenas ao cidadão cabia a participação nos poderes públicos. A lei, de conotação político-jurídica, era o “pilar da democracia”, e a “vocação desse regime é defender a legalidade em todos os terrenos” (GOYARD-FABRE, 2003, p. 51).

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brasileira para, num segundo momento, fazer uma verificação do seguimento dessas regras por meio do marco normativo e da inclusão dos Direitos Humanos e dos princípios constitucionais como abertos.

2.1. As regras do jogo sobre a mesa: a democracia procedimental bobbiana como primeiro lance

Desde os anos de 1940 Norberto Bobbio dedica suas reflexões ao tema das possibilidades e limites da democracia, mas apenas entre as décadas de 1970 e 1980 foi que desenvolveu a sua concepção procedimental. O autor propõe, dessa forma, a definição mínima de democracia, ou seja, a visão de democracia como um conjunto de regras de procedimento, as chamadas regras do jogo, de sorte a permitir e facilitar a participação de todos os cidadãos na tomada das decisões coletivas da maneira mais ampla, segura e pacífica (BOBBIO, 1986; BRANDÃO, 2013). Ao mesmo tempo, a democracia, para Bobbio, é uma forma de governo específica que se preocupa com a titularidade e o exercício do poder político – é uma das possíveis respostas à pergunta: “quem tomará as decisões e como?” (YTURBE, 2013). Segundo Bobbio, a democracia procedimental caracteriza-se por regras simples, formais, mas nem por isso fáceis de serem cumpridas de modo correto. O autor reconhece que essa concepção mínima pode dar à democracia um sentido restrito, mas entende ser melhor trabalhar com um significado considerado restrito, claro e realista do que refletir sobre a democracia em um sentido amplo e vago, onde tudo é possível. Aliás, as regras do jogo lhe são tão valorosas que Bobbio (2000b, p. 427) defende que “basta a inobservância de uma dessas regras para que um governo não seja democrático, nem verdadeiramente, nem aparentemente”. Nas obras O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo e Teoria geral da política: a filosofia política e as lições dos clássicos, Bobbio traça características da definição mínima de democracia, algumas das quais desde já reafirmamos: as regras do jogo estabelecem a quem compete tomar as decisões coletivas e lançando mão de quais procedimentos (ou seja, como se tomam as decisões), atentando-se sempre para a exigência da visibilidade do poder – vale dizer, a publicidade na tomada das decisões (BOBBIO, 1986; BOBBIO, 2000b). A importância de se saber, sempre às claras, quem toma as decisões coletivas e quais os procedimentos utilizados para tal mister, se revela no fato de que mesmo as decisões

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coletivas são tomadas, em verdade, por indivíduos, uma vez que o grupo, a massa ou o povo, enquanto tal, nada decide. “Por isto, para que a decisão tomada por indivíduos (um, poucos, muitos, todos) possa ser aceita como decisão coletiva”, afirma Bobbio (1986, p. 18-19), “é preciso que seja tomada com base em regras (não importa se escritas ou consuetudinárias) que estabeleçam quais são os indivíduos autorizados a tomar as decisões vinculatórias para todos os membros do grupo, e à base de quais procedimentos”. Tais regras, seis ao todo, constituem “um meio e não um fim em si mesmo” (BRANDÃO, 2013, p. 169), e podem ser assim resumidas: 1) todos os cidadãos que tenham alcançado a maioridade etária sem distinção de raça, religião, condição econômica, sexo, devem gozar de direitos políticos, isto é, cada um deles deve gozar do direito de expressar sua própria opinião ou de escolher quem a expresse por ele; 2) o voto de todos os cidadãos deve ter igual peso; 3) todos aqueles que gozam dos direitos políticos devem ser livres para poder votar segundo sua própria opinião formada, ao máximo possível, livremente, isto é, em uma livre disputa entre grupos políticos organizados em concorrência entre si; 4) devem ser livres também no sentido de que devem ser colocados em condições de escolher entre diferentes soluções, isto é, entre partidos que tenham programas distintos e alternativos; 5) seja para as eleições, seja para as decisões coletivas, deve valer a regra da maioria numérica, no sentido de que será considerado eleito o candidato ou será considerada válida a decisão que obtiver o maior número de votos; 6) nenhuma decisão tomada por maioria deve limitar os direitos da minoria, particularmente o direito de se tornar por sua vez maioria em igualdade de condições. [grifos acrescidos] (BOBBIO, 2000b, p. 427)

As regras do jogo remetem-se, em geral, às eleições, mas apontam algumas particularidades entendidas como necessárias para o seu desenvolvimento: quem está apto a votar e ser votado; qual o valor do voto de cada indivíduo; a importância da igualdade e da liberdade de expressão; a importância da livre disputa entre partidos políticos e da existência de programas distintos e alternativos entre eles; o valor da regra da maioria; a importância dos direitos da minoria. No sentir de Corina Yturbe, as seis regras giram em torno dos valores da igualdade, liberdade e da não-violência. A autora agrupa as primeiras duas regras em torno do valor da igualdade, mais precisamente da igualdade política (que prescreve que todos os indivíduos sejam incluídos de maneira igual no processo de tomada das decisões políticas) e da igualdade de voto (o voto de todo cidadão deve ter peso igual). As regras três e quatro são agrupadas, em Yturbe, segundo o valor da liberdade: todos os titulares dos direitos políticos devem ser livres para votar seguindo suas próprias opiniões, as quais devem ser formadas o mais livremente possível (liberdade subjetiva), ao mesmo tempo em que o sistema democrático deve garantir a existência de uma pluralidade de grupos políticos organizados que compitam entre si para a obtenção da representação popular,

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permitindo aos cidadãos que elejam sem pressão e entre alternativas reais (liberdade objetiva). A quinta regra apresenta uma condição de eficiência para todo processo de decisão coletiva, desde o momento eleitoral até a representação dos órgãos representativos, qual seja a regra de maioria. Em relação à sexta regra, a autora, ancorada nas lições de Michelangelo Bovero, afirma ser uma condição de salvaguarda ou de superveniência da democracia, uma vez que a) proíbe que qualquer decisão contravenha as regras do jogo; b) proíbe qualquer decisão que contribua para tornar sem efeito uma regra do jogo; e c) trata-se de uma limitação do próprio poder da maioria. A não-violência destacada por Yturbe é alusiva ao que Bobbio (2000b, p. 384-385) nomeia de “pacto de não-agressão de cada um com todos os outros” (pacto negativo de não agressão) e o “dever de obediência às decisões coletivas tomadas com base nas regras do jogo de comum acordo preestabelecidas, sendo a principal aquela que permite solucionar os conflitos que surgem em cada situação sem recorrer à violência recíproca” (pacto positivo de obediência). Ambos os pactos, ressaltam os autores, para serem válidos e eficazes, devem ser garantidos por um poder comum. As regras do jogo, como vemos, dizem respeito a como os indivíduos devem chegar a uma decisão, e não o que decidir. “Do ponto de vista do que decidir” [grifos no original], afirma Bobbio (BOBBIO, MATTEUCCI, PASQUINO, 1998, p. 327), “o conjunto de regras do jogo democrático não estabelece nada, salvo a exclusão das decisões que de qualquer modo contribuiriam para tornar vãs uma ou mais regras do jogo”. De acordo com a visão procedimental bobbiana, o método democrático é bom porque permite que as decisões coletivas sejam tomadas autonomamente pelos interessados – dessa forma, como assegura Assis Brandão (2013, p. 170), “os próprios resultados já se tornam também bons, independente do seu conteúdo”. O ideal, para Bobbio, é que “os bons resultados surgissem sempre como fruto de bons processos, não sendo isso possível, os bons processos por si sós já asseguram a qualidade dos resultados” (BRANDÃO, 2013, p. 170). Ainda atentando-nos às características da definição mínima de democracia e seus fundamentos, Bobbio declara que não basta que um elevado número de cidadãos participe (direta ou indiretamente) das decisões coletivas; nem basta a aplicação da regra da maioria como regra de procedimento, mas sim que aqueles que são chamados a decidir ou a eleger os que deverão decidir sejam colocados diante de alternativas reais e postos em condição de poder escolher entre uma e outra. Para que se realize essa condição é necessário que aos chamados a decidir sejam garantidos os assim denominados direitos de liberdade, de opinião, de

111 expressão das próprias opiniões, de reunião, de associação, etc. – os direitos à base dos quais nasceu o estado liberal e foi construída a doutrina do estado de direito em sentido forte, isto é, do estado que não apenas exerce o poder sub lege, mas o exerce dentro de limites derivados do reconhecimento constitucional dos direitos “invioláveis” do indivíduo. (sic) [grifos no original] (BOBBIO, 1986, p. 20)

Assim, o autor põe em evidência a importância dos direitos invioláveis do indivíduo, seja qual for o seu fundamento filosófico, para a democracia. Na verdade, afirma serem esses direitos, hoje conhecidos como Direitos Humanos, “o pressuposto necessário para o correto funcionamento

dos

próprios

mecanismos

predominantemente

procedimentais

que

caracterizam um regime democrático” (BOBBIO, 1986, p. 20). Desta forma, ao passo que a democracia corresponde às regras do jogo, as normas constitucionais que atribuem os Direitos Humanos, invioláveis, permitem o desenrolar do próprio jogo. Em outras palavras, não pode haver democracia sem que os indivíduos, prévia e precipuamente, e por meio de regras constitucionais de Direitos Humanos, gozem dos direitos acima elencados como base do Estado Liberal90 e da construção do Estado de Direito em sentido forte91. Importa ressaltar, a respeito dos direitos dos indivíduos, três ideias que se entrelaçam: a primeira é a da igualdade de natureza dos indivíduos como um dos fundamentos da democracia moderna na concepção de Bobbio; a segunda é a importância do indivíduo, de sua autonomia e liberdade para a constituição da democracia; e a terceira tem a ver com serem a liberdade e a igualdade intrínsecas ou não ao ser humano. Para Bobbio (2000b, p. 379), a soberania não é do povo, “mas de cada um dos indivíduos, enquanto cidadãos”. Povo, de acordo com o autor, é conceito ambíguo e enganoso, uma abstração cômoda e falaciosa; os indivíduos, por outro lado, com sua razão, defeitos e interesses, constituem uma realidade. Por essa razão é que Bobbio afirma que as Declarações dos Direitos do Homem e do Cidadão (podendo ser entendidas aqui como as Declarações de Direitos Humanos) estão como fundamento das democracias modernas, justamente por anunciarem e protegerem os direitos, em primeiro lugar, dos indivíduos. 90

Bobbio (1986) chega a afirmar ser o Estado Liberal o pressuposto histórico e jurídico do Estado Democrático. Em Liberalismo e democracia, Bobbio (2000a, p. 19) diferencia o Estado de Direito em sentido forte, do fraco e do fraquíssimo: Estado de Direito em sentido forte é aquele próprio da doutrina liberal, em que são parte integrante “todos os mecanismos constitucionais que impedem ou obstaculizam o exercício arbitrário e ilegítimo do poder e impedem ou desencorajam o abuso ou o exercício ilegal do poder”. Dentre os mecanismos mais importantes, cita quatro: “1) o controle do Poder Executivo por parte do Poder Legislativo; ou, mais exatamente, do governo, a quem cabe o Poder Executivo, por parte do parlamento, a quem cabe em última instância o Poder Legislativo e a orientação política; 2) o eventual controle do parlamento no exercício do Poder Legislativo ordinário por parte de uma corte jurisdicional a quem se pede a averiguação da constitucionalidade das leis; 3) uma relativa autonomia do governo local em todas as suas formas e em seus graus com respeito ao governo central; 4) uma magistratura independente do poder político” (BOBBIO, 2000a, p. 19). O Estado de Direito em sentido fraco é aquele não-despótico, dirigido pelas leis, enquanto o fraquíssimo é aquele “segundo o qual, uma vez resolvido o Estado no seu ordenamento jurídico, todo Estado é Estado de direito (e a própria noção de Estado de direito perde toda a força qualificadora)” (BOBBIO, 2000a, p. 19). 91

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Afinal, na sua visão, “A democracia moderna repousa em uma concepção individualista92 da sociedade” (BOBBIO, 2000b, p. 380). Entretanto, Bobbio acredita que, ao contrário do que anuncia a Declaração Universal dos Direitos Humanos, os indivíduos, ao menos em sua grande maioria, não nascem livres nem iguais – ao contrário, eles aspiram tornarem-se livres e iguais. Liberdade e igualdade, dessa forma, “são não um ponto de partida, mas sim um ponto de chegada”, uma meta93 a ser atingida pela democracia (BOBBIO, 2000b, p. 422). Também, o indivíduo a que se refere a Declaração Universal dos Direitos Humanos, não é qualquer um, senão o indivíduo dotado de razão e consciência, aquele que é: capaz de avaliar as conseqüências não apenas imediatas, mas também futuras das suas próprias ações, e portanto de avaliar seus próprios interesses em relação aos interesses dos outros, e com estes compatíveis, em um equilíbrio instável mas sempre passível de ser restabelecido através da lógica, característica de um regime democrático, do compromisso. (sic) (BOBBIO, 2000b, p. 424)

A democracia, portanto, é tida como o único caminho que permite aos indivíduos racionais buscarem a liberdade e a igualdade perante os seus pares. É em vista desse argumento que Bobbio (2000b, p. 424) afirma que “o indivíduo singular, o indivíduo como pessoa moral e racional, é o melhor juiz do seu próprio interesse”. Nesse sentido, caso uma sociedade admita a existência de sujeitos superiores (seja por nascimento, educação, méritos etc.), os quais seriam “capazes de julgar qual seja o bem geral da sociedade entendida como um todo, melhor do que poderiam fazer os indivíduos singularmente”, então essa sociedade não pode ser democrática, por não permitir que os indivíduos singulares atinjam as metas de liberdade e igualdade. No que tange às modalidades de decisão, preza-se, na democracia procedimental, pela regra de maioria. Na obra O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo, Bobbio (1986, p. 19) concebe a regra de maioria como aquela “à base da qual são consideradas decisões coletivas – e, portanto, vinculatórias para todo o grupo – as decisões aprovadas ao menos pela maioria daqueles a quem compete tomar a decisão”. Nos termos dessa regra procedimental, conforme Yturbe, não se pretende que uma proposta de decisão seja

92

Nas linhas de Teoria geral da política: a filosofia política e as lições dos clássicos, o autor alerta para o fato de que a concepção individualista a que se refere “não prescinde da consideração de que o homem é também um ser social, nem considera o indivíduo isolado, a um só tempo micro e macrocosmo” (BOBBIO, 2000b, p. 381). 93 O autor não esconde que tal meta é, na sua plenitude, inatingível, já que os princípios de liberdade e igualdade são incompatíveis entre si, se levados às suas últimas consequências. A solução para tal incompatibilidade, a que se chega por meio da adoção de medidas de compromisso, é sempre provisória e constantemente submetida a ajustamentos e revisões. (BOBBIO, 2000b, p. 422)

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valorativamente melhor que as demais, nem garante que a melhor proposta prevaleça, mas será considerada aceitável por todos em razão de ter sido a mais votada. No entanto, e conforme já anunciamos, tal regra conhece limitações. Dentre eles, destacamos primeiramente um limite anterior à regra da maioria, inserto na sexta regra do jogo (aquela conhecida como condição de salvaguarda ou de superveniência da democracia, justamente por tratar-se de limitação do poder de maioria), e neste instante retomada: “nenhuma decisão tomada por maioria deve limitar os direitos da minoria, particularmente o direito de se tornar por sua vez maioria em igualdade de condições” (BOBBIO, 2000b, p. 427). Em outras palavras, a regra da maioria, antes mesmo de ser posta em prática, deve observar o limite anterior que veda o tolhimento de direitos das minorias, proíbe que qualquer decisão contravenha as regras do jogo e obsta qualquer decisão que contribua para tornar sem efeito uma ou várias regras do jogo. Em Teoria geral da política: a filosofia política e as lições dos clássicos, o autor afirma que, embora nas democracias ocidentais valha a regra de maioria (tanto para a eleição daqueles que deterão o poder de decidir validamente para toda a coletividade, como para a formação de decisões dos órgãos colegiados), isso não implica que a regra seja exclusiva dos regimes democráticos, nem mesmo que as decisões sejam exclusivamente tomadas mediante tal regra. Significa dizer, portanto, que existem “decisões coletivas de sistemas democráticos tomadas não com base na regra de maioria, sem que por isso tais sistemas deixem de ser incluídos entre os sistemas democráticos” (BOBBIO, 2000b, p. 429). A regra de maioria, nesse sentido, é um procedimento que nem sempre funciona, e, quando funciona, nem sempre é fácil fazê-lo funcionar. O autor apresenta, assim, os demais limites e que denomina de aporias à regra de maioria. O primeiro dos limites é o de validade. Bobbio perquire se a validade da regra da maioria é absoluta de tal forma que uma decisão coletiva poderia se valer dessa própria regra para revogar o princípio da maioria; ou se existe alguma outra regra superior à da maioria que impeça que a decisão coletiva revogue o princípio da maioria, de forma a relativizar a validade do princípio. Dito de outro modo, trata-se de pesar, de um lado, “os inconvenientes que podem derivar do ato de excluir dos benefícios do princípio de maioria cidadãos dos quais se suspeita que não o respeitariam caso se tornassem maioria”, e, de outro lado, “os inconvenientes que uma liberdade ilimitada pode causar à sobrevivência da liberdade” (BOBBIO, 2000b, p. 442). Com efeito, a regra de maioria é uma regra do jogo, e, por conseguinte, tal procedimento deve ser aceito por todos para que o próprio jogo se desenvolva. Desta forma,

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ao concluir que “aceitar participar de uma decisão ou de uma eleição que se desenvolve com base na regra de maioria implica aceitar a mesma regra como modo para chegar à decisão ou à eleição”, Bobbio (2000b, p. 443) reafirma a não-supremacia da regra de maioria na medida em que, segundo o que infere, uma decisão coletiva não pode se valer da regra da maioria para revogar o princípio da maioria. É aqui que repousa a não-supremacia da regra de maioria: determinado grupo, ao ascender ao poder, não pode se valer da regra da maioria para, em desrespeito, revogar o princípio da maioria, nem mesmo para relativizar a validade desse princípio segundo seus interesses. É possível mesmo dizer que o gozo de liberdade ilimitada coloca em risco a sobrevivência da própria liberdade. O segundo limite à regra de maioria é o de aplicação. Conforme esse limite, existem matérias às quais a regra de maioria não se aplica, seja por razões de oportunidade ou de princípio, isto é, “matérias cuja decisão confiada à regra do maior número pareceria inoportuna (não-adequada ao objetivo) ou até mesmo injusta” (BOBBIO, 2000b, p. 443). O autor cita alguns dos mais relevantes campos de emprego do referido limite. O primeiro deles é o da inviolabilidade dos direitos do homem e do cidadão, ou seja, dos Direitos Humanos, afirmados pelas constituições liberais. Afirma Bobbio (2000b, p. 443444) que “a inviolabilidade consiste exatamente no seguinte: eles não podem ser limitados e muito menos suprimidos por uma decisão coletiva mesmo que tomada por maioria”. Também por esse motivo tais direitos podem ser chamados de “direitos contra a maioria”, podendo ser garantidos inclusive juridicamente, “mediante o controle constitucional das leis (ou seja, das decisões tomadas pela maioria) e a declaração da ilegitimidade das leis que não os respeitam” [grifos no original] (BOBBIO, 2000b, p. 444). À guisa de critério de distinção entre o que é passível de ser submetido à regra da maioria e o que não o é, o autor sustenta que o raciocínio deve ser construído com base no discernimento entre o opinável e o não-opinável – diferenciação que arrasta consigo um adicional, o que é negociável e o não-negociável: Os valores, os princípios, os postulados éticos, e, naturalmente, os direitos fundamentais, não são opináveis e, portanto, tampouco negociáveis. Porque assim são, a regra do maior número, que tem a ver apenas com o opinável, não é competente para julgá-los. (BOBBIO, 2000b, p. 444)

Assim como os postulados éticos (que são não-opináveis) e como os direitos fundamentais (aos quais se atribui o status de postulados éticos), Bobbio aponta como campo de emprego do limite de aplicação algumas matérias impossíveis de serem decididas pela regra de maioria – até mesmo porque, caso assim o fossem, estariam limitando os direitos da

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minoria, em confronto, novamente, com a sexta regra do jogo. Dentre essas matérias encontram-se as questões sobre as quais discutem os cientistas ou os técnicos, bem como a maioria das decisões atinentes à política econômica e financeira de um Estado contemporâneo – a decisão em favor de uma ou outra tese, ou de uma ou outra política é formada não pela contagem da maioria das pessoas que pensam segundo essa ou aquela forma, mas por meio de procedimentos diferentes. Poucos dos conflitos de ordem técnica sujeitam-se à opinião do maior número de indivíduos, afirma Bobbio. Também é impossível de serem decididas pela regra da maioria as questões de consciência, de foro íntimo do próprio indivíduo, onde ele é o seu único juiz, a exemplo da impossibilidade de se submeter à regra de maioria a escolha entre adorar a determinado deus, ou a nenhum – a não ser que se trate de imposição, e não, de fato, escolha. No mesmo sentido, e invocando o reconhecimento dos direitos fundamentais, Bobbio entende ser defeso submeter à regra de maioria o ethos de um povo ou minoria étnica, incluindo as matérias a ela reservadas (costumes, tradição, usos, língua), sob pena de sucumbirem. O terceiro limite à regra de maioria é o de eficácia. Aqui estão inclusos “todos os limites destacados por aqueles que sustentam que a aplicação da regra não manteve e não pode manter todas as promessas”, diz Bobbio (2000b, p. 446-447), “primeira entre todas as promessas, da qual nasceram os regimes democráticos mais evoluídos, de transformar radicalmente as relações entre as classes sociais, e assim o acusam de ser um procedimento útil, mas insuficiente”. O autor comenta apenas uma das promessas não cumpridas: a possibilidade de reversão das decisões tomadas. Admitindo a possibilidade de mudança de direção política de uma democracia, ou seja, na hipótese de uma minoria virar maioria, o autor indaga “em que medida a nova maioria é capaz de mudar a situação criada pelo domínio da maioria precedente” (BOBBIO, 2000b, p. 447). Bobbio segue questionando, se as decisões tomadas pela ordem precedente forem irreversíveis, a nova ordem estaria impossibilitada de mudá-las ou não. Ao final de suas digressões, conclui que seria uma incongruência que um governo fundado nas premissas de tornar mudanças possíveis de fato venha, contrariamente, a impedir-lhes. A regra de maioria carrega consigo problemas outros que não os limites – são o que Bobbio (2000b, p. 448) denominou aporias, quer dizer, “dificuldades internas à aplicação da regra considerada unicamente como expediente técnico”. Em Teoria geral da política: a filosofia política e as lições dos clássicos, o autor ocupa-se de quatro delas: os votantes, os não-votantes, os abstinentes e a possibilidade ou não de sempre se atingir a maioria.

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Em relação à primeira aporia, Bobbio preocupa-se com quantos e quem são os votantes. Muito embora o sufrágio universal seja uma das regras do jogo democrático, e por meio deles possa participar na tomada de decisões o maior número de cidadãos, ainda resta a questão: maior em relação a quem? Se nos remetermos à polis grega, como fizemos nas linhas primeiras, veremos que os cidadãos livres (e, portanto, politicamente ativos) eram a minoria numérica. No Estado moderno, em que todos são, ao menos teoricamente, livres, o sufrágio universal parece resolver o problema, já que a maioria numérica de cidadãos em muito se aproximará com a maioria numérica de indivíduos politicamente ativos. No entanto, Bobbio (2000b, p. 449) atenta-se para a seguinte questão: “Mas quando as decisões coletivas dos cidadãos desse Estado interferem nos interesses ou nos direitos de outros Estados, por que razão o colégio convocado a decidir não deveria ser constituído também pelos cidadãos do outro Estado?”. Não parece possível, aos olhos do autor, defender que os cidadãos do outro Estado, aquele a ser invadido, não estariam interessados na decisão a ser tomada pelo Estado invasor, mesmo que a decisão seja tomada pela sua maioria. A partir dessa reflexão, Bobbio (2000b, p. 449) pretende mostrar que a relação entre maioria e minoria é passível de mudanças – “basta que mude a composição do corpo coletivo, ou, de modo mais simples, que o problema do ‘quem vota? ’ não seja menos importante do que o problema do ‘como se vota?’”. A segunda aporia estabelece relações com os não-votantes. De acordo com Bobbio, o resultado de uma votação é passível de mudança caso mude o corpo eleitoral e, da mesma forma, o resultado pode mudar de acordo com a maior ou menor participação do cidadão na votação. Há uma diferença considerável entre os resultados obtidos caso se considere todos os que têm direito a voto – juntamente com os que têm o direito ao voto mas não o exercem – ou os efetivamente votantes. Por outro lado, o cálculo da maioria seria simples caso as seguintes condições sempre se realizassem: “a) que votem todos aqueles que têm direitos; b) que a questão submetida a voto seja proposta de tal modo que só se possa responder sim ou não, ou então que os votantes sejam obrigados a responder sim ou não” [grifos no original] (BOBBIO, 2000b, p. 450). Oportuno esclarecer que, para Bobbio, o não-votante é aquele que, no caso específico, está indiferente às alternativas submetidas a votação, e não o indivíduo que rejeita o método democrático; em outras palavras, o não-votante considera-se satisfeito com qualquer que seja a alternativa escolhida, por lhe serem igualmente boas ou más. Bobbio ocupa-se dos abstinentes na terceira aporia. Abstinentes, no seu entender, não são aqueles que se abstêm dos votos (esses são, na verdade, os não-votantes), mas sim os que votam em branco ou anulam o voto, ou seja, “se abstêm de expressar sua vontade em favor de

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uma ou de outra alternativa” (BOBBIO, 2000b, p. 451). A abstinência deve ser interpretada como um estado de hostilidade, um juízo negativo em relação a uma e a outra alternativa. O autor assevera que “a clara distinção entre não-votantes e abstinentes tem conseqüências práticas relevantes caso a maioria seja calculada com base no número dos votantes, entre os quais estão incluídos os abstinentes, ou com base no número daqueles que têm direito ao voto” (sic) (BOBBIO, 2000b, p. 451-452). Aliás, questiona, o voto do abstinente deve ser considerado como não-consenso ou não-dissenso? Quando computamos os votos negativos, geralmente sublinhamos a natureza do não-consenso. “Mas”, indaga Bobbio (2000b, p. 452) acerca da aporia, “não pode acontecer casos em que, enfatizando-se a sua natureza de nãodissenso, os votos dos que se abstêm deveriam ser computados entre os voto positivos?”. Ainda, para a expressão da vontade coletiva, é necessária a maioria dos consensos ou é satisfatória a maioria dos não-dissensos? A resposta às indagações difere de acordo com os diversos modos de se avaliar os votos dos abstinentes, uma vez que esses são, ao mesmo tempo, não-consencientes e não-dissidentes, revela. Na quarta aporia, Norberto Bobbio indaga se a maioria é sempre possível. De acordo com seu raciocínio, se por maioria devemos entender maioria absoluta, então há possibilidade “apenas quando as soluções propostas ou os candidatos a um cargo são dois” – sendo mais de dois, “pode haver ou não haver maioria absoluta” (BOBBIO, 2000b, p. 453). Nesses últimos casos, a maioria absoluta é formada a partir de um acordo comum entre as partes em conflito, alternativo à regra de maioria. Apesar das dificuldades – que variam desde a sua tentativa conceitual até as promessas não cumpridas94 –, Bobbio acredita que a democracia continua a existir com conotação positiva, lenta e irrefreável, no sentido de aproximar-se das metas de liberdade e igualdade. Em sentido idêntico afirma Brandão (2013, p. 185): As oligarquias persistem, os espaços sociais democratizados são bastante limitados, boa parte das decisões de interesse da coletividade é tomada fora da visibilidade da cidadania, uma proporção considerável da população é apática, há um veio tecnocrático bastante desenvolvido no seio da sociedade, a burocracia não pára de crescer, há certa incapacidade do governo de atender às reivindicações da cidadania, etc. Mas, ainda assim, a democracia existe. (sic)

Talvez outro motivo para se afirmar ser impraticável uma definição invariável e certa de democracia, como havia enunciado Goyard-Fabre, seja o fato de tratar-se o regime democrático do que Bobbio chama de ideal-limite. Um ideal-limite é, por si só, inatingível, 94

Bobbio afirma que, ao longo do processo de desenvolvimento da democratização, os regimes democráticos não chegaram a satisfazer todas as expectativas que tinham da democracia (YTURBE, 2013). Tais promessas podem ser encontradas na obra O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo.

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mas podem existir, através da História, maiores ou menores aproximações desse ideal, ou seja, é possível apontarmos nas sociedades, incluindo a brasileira, maiores ou menores afinidades e semelhanças com o ideal-limite de democracia. Nesse esteio, a democracia é uma via, um caminho, e não uma meta – por essa razão, Bobbio entende que não sabemos sequer se estamos apenas no começo do caminho, tantas vezes interrompido, nem mesmo aonde esse caminho nos levará. No entanto, ainda que Bobbio coloque direitos fundamentais e os Direitos Humanos como um limite ao Estado de Direito para o correto funcionamento do regime democrático, sua teoria procedimentalista não esclarece como os Direitos Humanos exercem essa função de limite – exatamente por tratar-se de uma teoria procedimental de democracia. É importante que se evite uma interpretação de Direitos Humanos que, em nome dos próprios Direitos Humanos, retroceda direitos em razão de não haver um conteúdo estável, mas que representem meras “coisas desejáveis” ou “fins que merecem ser perseguidos” (BOBBIO, 2004, p. 15-16). Por esse motivo, entendemos que a teoria procedimentalista de Norberto Bobbio deve ser suplementada nesta pesquisa por uma outra que também observe as regras do jogo, mas que considere que essas regras tenham alguns conteúdos mínimos semânticos estáveis. Para darmos seguimento ao trabalho, e com apoio também na teoria substancialista neoconstitucional perfilhada por Luís Roberto Barroso, perquiriremos na Constituição Federal de 1988 os mínimos tanto semânticos como procedimentais de que necessitamos para o prosseguimento da caracterização da democracia brasileira.

2.2. Constituição e democracia: a proposta neoconstitucionalista como segundo lance

Conforme apontamos brevemente no Capítulo anterior, o jurista Luís Roberto Barroso defende a ideia de que o Estado Democrático de Direito é síntese histórica do constitucionalismo e da democracia. Esses dois conceitos, para o autor, embora se complementem e se apoiem mutuamente, não se confundem. “Constitucionalismo significa, em essência, limitação do poder e supremacia da lei”, afirma, enquanto “Democracia, por sua vez, em aproximação sumária, traduz-se em soberania popular e governo da maioria” [grifos no original] (BARROSO, 2013, p. 110-111). A proximidade entre constitucionalismo e democracia pode ser exemplificada pelo seguinte ponto de tensão: a vontade da maioria, própria (mas não exclusiva) da democracia, “pode ter de estancar diante de determinados conteúdos materiais, orgânicos ou processuais

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da Constituição” (BARROSO, 2013, p. 111). Em outras palavras, a Constituição, mesmo que paradoxalmente, estabelece valores e consensos mínimos para além de procedimentos, que devem ser observados quando da deliberação majoritária em um Estado democrático. Esse controle, cuja competência da jurisdição é a constitucional, tem por finalidade “harmonizar a existência de uma Constituição – e dos limites que ela impõe aos poderes ordinários – com a liberdade necessária às deliberações majoritárias, próprias do regime democrático” (BARROSO, 2013, p. 111). A Constituição, a partir do segundo pós-guerra, passa a ser vista e compreendida não somente como “um sistema aberto de princípios e regras, permeável a valores jurídicos suprapositivos, no qual as ideias de justiça e de realização dos direitos fundamentais desempenham um papel central”; dentre eles, o de limitar as maiorias (BARROSO, 2013, p. 343). Com efeito, segundo Gustavo Ferreira Santos (2006, p. 46), também “As Constituições devem ser tomadas como regras do jogo democrático”: os regramentos ali contidos, por sua previsibilidade e objetividade das condutas, desempenham o papel atinente à segurança jurídica, enquanto os princípios, em razão de sua flexibilidade e eficácia direta, permitem a realização da justiça no caso concreto. Sob essa ótica, a normativa constitucional, para Santos (2006, p. 48), deve ser tomada como “um plexo imenso de valores, sendo referências para a solução de problemas em várias áreas”. Sendo assim, são os consensos mínimos veiculados no texto constitucional que permitem o funcionamento do regime democrático, complementa Santos (2006, p. 46), na medida em que, segundo o neoconstitucionalismo, a própria democracia reclama a existência e a preservação do parâmetro constitucional e de seu conteúdo material para que as jogadas se desdobrem. Nesse esteio, Barroso assevera que a Constituição de um Estado democrático possui duas funções principais, importantes por suplantarem a teoria procedimentalista de Bobbio. A primeira delas é atinente à sua competência de “veicular consenso mínimos, essenciais para a dignidade das pessoas e para o funcionamento do regime democrático, e que não devem poder ser afetados por maiorias políticas ocasionais. Esses consensos elementares”, prossegue o autor, “embora possam variar em função das circunstâncias políticas, sociais e históricas de cada país, envolvem a garantia de direitos fundamentais, a separação e a organização dos Poderes constituídos e a fixação de determinados fins de natureza política ou valorativa” (BARROSO, 2013, p. 112). Dito de outra forma, para Barroso, as regras do jogo democrático

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apenas podem ser anunciadas e enunciadas conforme os consensos mínimos constitucionais, que compreendem, e.g., a garantia de Direitos Humanos e direitos fundamentais. A segunda função principal da Constituição, no sentir do jurista, é “garantir o espaço próprio do pluralismo político, assegurando o funcionamento adequado dos mecanismos democráticos” (BARROSO, 2013, p. 112). Muito embora essa função se assemelhe com as regras terceira e quarta de Bobbio95, é importante lembrar que essa função da Constituição não pode ser entendida de forma desatrelada à primeira; ou seja, o pluralismo político legítimo deve ser garantido, assegurado o funcionamento adequado dos mecanismos democráticos, de acordo com os consensos mínimos que da Carta emanam, essenciais para a dignidade das pessoas e para o funcionamento do regime democrático, e sem que sejam afetados por maiorias políticas ocasionais. Constitucionalismo e democracia são conceitos que se destinam a promover, de acordo com Barroso, justiça, segurança jurídica e bem-estar social. O equilíbrio entre a limitação do poder e supremacia da Lei Constitucional de um lado e o governo da maioria por meio da deliberação majoritária de outro lado possibilita que a sociedade obtenha, “ao mesmo tempo, estabilidade quanto às garantias e valores essenciais, que ficam preservados no texto constitucional, e a agilidade para a solução das demandas do dia a dia, a cargo dos poderes políticos eleitos pelo povo” (BARROSO, 2013, p. 113). A Constituição deve trazer em seu bojo, portanto, os valores essenciais que regem o Estado Democrático de Direito e limitam o poder. Também é papel constitucional assegurar o respeito aos direitos fundamentais – dentre eles os referentes às minorias políticas. Ainda, inspirada pelos princípios de justiça, da dignidade da pessoa humana e do respeito à diversidade e ao pluralismo, a Constituição tem por objetivo concorrer para a garantia de uma boa administração, racional, transparente nos seus processos de tomada de decisão, eficiente e proba; contribuir para a justiça social da nação e para o seu desenvolvimento econômico. Nos dizeres de Barroso (2013, p. 114), “a Constituição deve conter – e os juízes e tribunais devem implementar – direitos fundamentais, princípios e fins públicos que realizem os grandes valores de uma sociedade democrática: justiça, liberdade e igualdade”. De mais a mais, o neoconstitucionalismo, fundado na aproximação entre o constitucionalismo e a democracia, produziu um “conjunto amplo de transformações 95

3) todos aqueles que gozam dos direitos políticos devem ser livres para poder votar segundo sua própria opinião formada, ao máximo possível, livremente, isto é, em uma livre disputa entre grupos políticos organizados em concorrência entre si; 4) devem ser livres também no sentido de que devem ser colocados em condições de escolher entre diferentes soluções, isto é, entre partidos que tenham programas distintos e alternativos.

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ocorridas no Estado e no Direito Constitucional” – em especial a mudança de paradigma na interpretação constitucional e a vedação ao retrocesso – a partir da “irradiação dos valores abrigados nos princípios e regras da Constituição por todo o ordenamento jurídico, notadamente por via da jurisdição constitucional, em seus diferentes níveis” (BARROSO, 2005, p. 11; 42). Tendo surgido a partir de transformações profundas no Direito Constitucional, o neoconstitucionalismo aponta a passagem da Constituição para o centro do sistema jurídico e o gozo da Carta Maior não só de supremacia formal, mas também material ou axiológica. Nesse universo, toda interpretação jurídica passa a ser, necessariamente, interpretação constitucional. O sentido, bem como o alcance, de toda norma jurídica, mesmo que ordinária, deve ser fixado à luz da principiologia e axiologia constitucional. Esse novo modo de ver, pensar e interpretar o Direito Constitucional contemporâneo decorre de três marcos denominados por Barroso de histórico, filosófico e teórico. Nas suas palavras: A grande virada na interpretação constitucional se deu a partir da difusão de uma constatação que, além de singela, nem sequer era original: não é verdadeira a crença de que as normas jurídicas em geral – e as constitucionais em particular – tragam sempre em si um sentido único, objetivo, válido para todas as situações sobre as quais incidem. E que, assim, caberia ao intérprete uma atividade de mera revelação do conteúdo preexistente na norma, sem desempenhar qualquer papel criativo na sua concretização. No Direito contemporâneo, mudaram o papel do sistema normativo, do problema a ser resolvido e do intérprete. (BARROSO, 2013, p. 331)

Assim, a respeito do marco histórico do novo Direito Constitucional, ou do seu renascimento, o autor aponta a “discussão prévia, convocação, elaboração e promulgação da Constituição de 1988” como a responsável pela promoção bem-sucedida da “travessia de um regime autoritário, intolerante e, por vezes, violento para um Estado democrático de direito” (BARROSO, 2013, p. 268). O autor sustenta que “a Carta de 1988 tem propiciado o mais longo período de estabilidade institucional da história republicana do país”96, tendo, inclusive, despertado no país um sentimento constitucional, ainda que tímido. Sob sua égide, afirma, “o

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O autor ilustra que, ao “longo de sua vigência, destituiu-se por impeachment um Presidente da República, houve um grande escândalo envolvendo a Comissão de Orçamento da Câmara dos Deputados, foram afastados Senadores importantes no esquema de Poder da República, foi eleito um Presidente de oposição e do Partido dos Trabalhadores, surgiram denúncias estridentes sobre esquemas de financiamento eleitoral irregular e vantagens indevidas para parlamentares, em meio a outros episódios conturbados. Em nenhum desses eventos cogitou-se de qualquer solução que não fosse o respeito à legalidade constitucional. Nessa matéria, percorremos em pouco tempo todos os ciclos de atraso” [grifos no original] (BARROSO, 2013, p. 268). Fatos similares podem ser explicados pela “capacidade de simbolizar conquistas e de mobilizar o imaginário das pessoas para novos avanços” que reside por trás da Constituição de 1988; ou, ainda sentimento constitucional, mesmo que tímido, de que a Lei Maior deve ser respeitada”, aponta o jurista (BARROSO, 2013, p. 268-269).

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direito constitucional no Brasil passou da desimportância ao apogeu em menos de uma geração” (BARROSO, 2013, p. 268). Em relação ao marco filosófico, preceitua Barroso (2013, p. 269) tratar-se do póspositivismo, ou seja, a “confluência das duas grandes correntes de pensamento que oferecem paradigmas opostos para o Direito: o jusnaturalismo e o positivismo”. A esse respeito, o autor destaca como indispensável a superação “dos modelos puros por um conjunto difuso e abrangente de ideias, agrupadas sob o rótulo genérico de pós-positivismo” (BARROSO, 2013, p. 269). Acerca das relações entre jusnaturalismo, positivismo e pós-positivismo, Barroso (2013, p. 270) aponta que,

a partir da segunda metade do século XX, o Direito deixou de caber integralmente no positivismo jurídico. A aproximação quase absoluta entre Direito e norma e sua rígida separação da ética não correspondiam ao estágio do processo civilizatório e às ambições dos que patrocinavam a causa da humanidade. Por outro lado, o discurso científico impregnara o Direito. Seus operadores não desejavam o retorno puro e simples ao jusnaturalismo, os fundamentos vagos, abstratos ou metafísicos de uma razão subjetiva. Nesse contexto, o pós-positivismo não surge com o ímpeto da desconstrução, mas como uma superação do conhecimento convencional. Ele inicia sua trajetória guardando deferência relativa ao ordenamento positivo, mas nele reintroduzindo as ideias de justiça e de legitimidade.

Desta feita, ancorados no entendimento de Luís Roberto Barroso, e considerando que o pós-positivismo não surge para desconstruir paradigmas, mas para superá-los, é possível afirmar que ele seja como uma terceira via entre o positivismo e o jusnaturalismo. Essa terceira via, para o jurista, contesta: o postulado positivista de separação entre Direito, moral e política, não para negar a especificidade do objeto de cada um desses domínios, mas para reconhecer a impossibilidade de tratá-los como espaços totalmente segmentados, que não se influenciam mutuamente. Se é inegável a articulação complementar entre eles, a tese de separação, que é central no positivismo e que dominou o pensamento jurídico por muitas décadas, rende tributo à hipocrisia. (BARROSO, 2013, p. 270)

De acordo com a percepção do autor, no que tange à necessidade de uma leitura axiológica da Constituição e das leis segundo o pós-positivismo, tal compreensão deve ser baseada em “valores morais compartilhados por toda a comunidade, em dado momento e lugar”, e materializados em princípios (BARROSO, 2013, p. 272). Alguns dos princípios que materializam os valores mínimos necessários à democracia já se inscreviam na Constituição há tempos, como os da igualdade e da liberdade, “sem embargo da evolução constante de seus significados. Outros, conquanto clássicos, sofreram releituras e revelaram novas sutilezas, como a democracia, a República e a separação dos

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Poderes. Houve, ainda, princípios”, revela Barroso (2013, p. 272), “cujas potencialidades só foram desenvolvidas recentemente, como o da dignidade da pessoa humana e o da razoabilidade”. Assim sendo, deter-nos-emos, nas linhas seguintes, e antes de adentrarmos no terceiro marco de que trata Barroso, a ponderações mais aprofundadas acerca da dignidade da pessoa humana (e de seu valor constitucional), em razão do lugar que ocupa no constitucionalismo brasileiro, e por ser utilizada, em nome da democracia e dos princípios constitucionais e internacionais de Direitos Humanos, tanto na defesa das minorias como na limitação do poder e das decisões de maioria. O princípio da dignidade da pessoa humana97, na visão de Barroso (2013), é o valor fundamental e o objetivo do constitucionalismo democrático. Quando de seus estudos acerca do conceito de dignidade da pessoa humana, Faustino Matos Leite (2015, p. 10) aponta o entendimento da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal inserto no julgamento do Habeas Corpus – HC no 95.464/SP, de Relatoria do Ministro Celso de Melo, para o qual “a dignidade é o valor central da Constituição brasileira, tratando-se, ainda, de vetor interpretativo que inspira todo o ordenamento jurídico [...]”. Para mais, Leite reforça não apenas o valor interpretativo de tal princípio, mas também seus valores inspiradores e harmonizadores do ordenamento jurídico pátrio. A CRFB/88, logo no artigo primeiro, prevê a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República – e, por fundamento, compreende-se “o pensamento político que norteia e estrutura o ordenamento jurídico de um Estado” (LEITE, 2015, p. 36). No entanto, é de se notar que o princípio da dignidade da pessoa humana, tangível que é, perpassa todo o texto constitucional, tanto implicitamente – justamente por ser vetor interpretativo constitucional e infraconstitucional – como explicitamente98. 97

Barroso (2013, p. 273) critica a “banalização” por que vem passando o princípio da dignidade humana: “Apesar do grande apelo moral e espiritual da expressão, sua grande vagueza tem feito com que ela funcione, em extensa medida, como um espelho: cada um projeta nela a sua própria imagem, os seus valores e convicções. Isso tem feito com que a ideia de dignidade seja frequentemente invocada pelos dois lados do litígio, quando estejam em disputa questões moralmente controvertidas. É o que tem se passado, por exemplo, em discussões sobre aborto, suicídio assistido ou pesquisas com células-tronco embrionárias. Sem mencionar o uso indevido do conceito para a decisão de questões triviais, com inconveniente banalização do seu sentido. De conflitos de vizinhança à proibição de brigas de galo, a dignidade é usada como uma varinha de condão que resolve problemas, sem maior esforço argumentativo. Naturalmente, não é bom que seja assim”. 98 Leite (2015, p. 36-37) cita exemplos de passagens como “no artigo 170, que instituiu que a “ordem econômica fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social”, no artigo 226, § 7º, que entabulou que fundado “nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal”, no caput do artigo 227, que aduziu que “é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade” e, por fim, no artigo 230, que asseverou que “a família, a sociedade e

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Esse princípio constitucional, alerta Leite (2015, p. 8), além de funcionar “de paradigma para definição dos demais direitos humanos e dos direitos fundamentais”, também desempenha dois papéis no sistema jurídico: a) o de fonte direta de direitos e deveres; e b) o interpretativo. Isso quer dizer que “do seu núcleo essencial de sentido se extraem regras que incidirão sobre situações concretas” – ademais, informa “o sentido e o alcance dos direitos constitucionais” (BARROSO, 2013, p. 273). O princípio da dignidade da pessoa humana é de tal importância que, “nos casos envolvendo lacunas no ordenamento jurídico, ambiguidades no direito, colisões entre direitos fundamentais e tensões entre direitos e metas coletivas, a dignidade humana pode ser boa bússola na busca da melhor solução”. Também conforme Barroso (2013, p. 273-274), “qualquer lei que viole a dignidade, seja em abstrato ou em concreto, será nula”. Em que pese a gama valorativa do princípio dignidade da pessoa humana, para que ele não acabe no esvaziamento, e consequente ineficiência, Luís Roberto Barroso (2013, p. 274) propõe que, assim como o conceito de democracia, também a ideia de dignidade seja dotada de um conteúdo mínimo, ou seja, de limites que deem unidade, objetividade e operacionalidade à aplicação do princípio: A primeira tarefa que se impõe é afastá-la [a ideia de dignidade] das doutrinas abrangentes, sejam elas religiosas ou ideológicas. As características de um conteúdo mínimo devem ser a laicidade – não pode ser uma visão judaica, católica ou mulçumana de dignidade –, a neutralidade política – isto é, que possa ser compartilhada por liberais, conservadores e socialistas – e a universalidade – isto é, que possa ser compartilhada por toda a família humana. [grifos no original]

Desse modo, é essencial para Barroso que a dignidade da pessoa humana seja dotada de um conteúdo mínimo laico, neutro politicamente e universal. Por outro lado, Barroso (2013, p. 274) propõe que esse conceito aberto, plástico, plural, intrínseco a todos os seres humanos99 e garantidor de autonomia individual100 seja o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida”. [grifos no original] 99 O autor entende por valor intrínseco “o elemento ontológico da dignidade, ligado à natureza do ser. Trata-se da afirmação da posição especial da pessoa humana no mundo, que a distingue dos outros seres vivos e das coisas. [...] A inteligência, a sensibilidade e a capacidade de comunicação (pela palavra, pela arte, por gestos, pelo olhar ou por expressões fisionômicas) são atributos únicos que servem para dar-lhes essa condição singular”. Disso decorre, assevera, um postulado antiutilitarista (manifesto no imperativo categórico de Kant “do homem é um fim em si mesmo, e não como um meio para a realização de metas coletivas ou de projetos sociais de outros”) e um antiautoritário (“o Estado é que existe para o indivíduo, e não o contrário”). Ainda, o valor intrínseco está na origem de acordo com o autor, de uma série de direitos fundamentais, a exemplo dos direitos à vida, à igualdade, á integridade física e à integridade moral ou psíquica. (BARROSO, 2013, P. 274-275) 100 Acerca da autonomia indvidual, o autor assevera ser “o elemento ético da dignidade, ligado à razão e ao exercício da vontade em conformidade com determinadas normas”. Refere-se, portanto, à capacidade de autodeterminação do indivíduo, de decidir sobre sua própria vida e de desenvolver-se livremente. “Significa o

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limitado por “algumas restrições legítimas a ele impostas em nome de valores sociais ou interesses estatais”, as quais chama de “valor comunitário”. Nesse esteio, importa, na visão do autor, ainda em relação ao conteúdo mínimo da dignidade da pessoa humana, o valor comunitário, elemento social da dignidade da pessoa humana: Aqui, a dignidade é moldada pelos valores compartilhados pela comunidade, seus padrões civilizatórios, seu ideal de vida boa. O que está em questão não são as escolhas individuais, mas responsabilidades e deveres a elas associados. A autonomia individual desfruta de grande importância, mas não é ilimitada, devendo ceder em certas circunstâncias. [grifos no original] (BARROSO, 2013, p. 276)

Consoante os ensinamentos de Barroso (2013, p. 276-277), a dignidade da pessoa humana, moldada pelos valores da sociedade e em atenção às responsabilidades e deveres relacionados, deve promover, em primeiro lugar, a proteção dos direitos de terceiros. Nesse sentido, a autonomia individual encontra como limite o respeito à autonomia dos demais indivíduos, juntamente com seus direitos e liberdades. A dignidade deve promover também a proteção do indivíduo contra si próprio, na medida em que garante ao Estado meios, inclusive coercitivos, para proteger os indivíduos contra atos autorreferentes, ou seja, capazes de lesionar a si mesmos. Por último, a dignidade da pessoa humana como valor comunitário deve promover a proteção de valores sociais. Essa restrição em nome dos valores sociais leva em conta o “conjunto de valores que correspondem à moral partilhada” – tanto as proibições de consenso básico (relativas ao incesto, à pedofilia, à incitação à violência) como de temas controversos (relativas à descriminalização de drogas leves, regulamentação da prostituição) 101. Na visão do autor, a imposição coercitiva de valores sociais “exige fundamentação racional consistente e deve levar seriamente em conta: a) a existência ou não de um direito fundamental em questão; b) de consenso social forte em relação ao tema; e c) a existência de risco efetivo para o direito de outras pessoas”. E arremata: “É necessário evitar o paternalismo, o moralismo e a tirania das maiorias” [grifos acrescidos] (BARROSO, 2013, p. 276-277). Não se encontra entre as pretensões deste trabalho explorar a dignidade da pessoa humana às minúcias, mas tão somente apresentar tal princípio tanto como um dos valores morais compartilhados pela comunidade brasileira na contemporaneidade quanto como valor poder de fazer valorações morais e escolhas existenciais sem imposições externas indevidas. Decisões sobre religião, vida afetiva, trabalho e outras opções personalíssimas não podem ser subtraídas do indivíduo sem violar a sua dignidade”. (BARROSO, 2013, p. 275-276) 101 Barroso (2013, p. 295) aponta, mais adiante em sua obra, que um dos objetos da Constituição é justamente “indicar valores e fins públicos (normas constitucionais programáticas)”.

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fundamental da Constituição de 1988. Esse instrumento valorativo, lembra Barroso (2013, p. 271-272), foi reentronizado na interpretação jurídica graças ao reencontro entre Direito e Filosofia do Direito que o neoconstitucionalismo proporcionou. De volta à análise das transformações do constitucionalismo contemporâneo, Barroso apresenta o terceiro marco, denominado teórico. Acredita o autor ser o marco teórico composto por três mudanças de paradigma em relação à aplicação do Direito Constitucional, quais sejam: “a) o reconhecimento de força normativa à Constituição; b) a expansão da jurisdição constitucional; e c) o desenvolvimento de uma nova dogmática da interpretação constitucional” [grifos acrescidos] (BARROSO, 2013, p. 284). As mudanças de paradigma a que refere o jurista ocorreram ao longo do século XX, após a superação do entendimento da Constituição como apenas um documento político para o reconhecimento de que é detentora de conteúdo jurídico normativo, e cujas disposições são dotadas de caráter imperativo, vinculativo e obrigatório. A onda constitucional formada no final dos anos 1940 trouxe à Europa um novo modelo constitucional, qual seja o da supremacia da Constituição, a partir da inspiração trazida pela experiência norte-americana. Um dos grandes destaques do novo modelo, segundo o autor, é a “constitucionalização dos direitos fundamentais, que ficavam imunizados contra a ação eventualmente danosa do processo político majoritário: sua proteção passava a caber ao Judiciário”. Também merece destaque, no seu entender, a adoção de modelos diferenciados de controle de constitucionalidade, que se encontram atualmente disponíveis no Brasil tanto às minorias políticas como aos segmentos representativos (BARROSO, 2013, p. 285). Em relação ao desenvolvimento de uma nova dogmática da interpretação constitucional, Barroso considera que a reelaboração da literatura, prática e ensino jurídicos, juntamente com suas perspectivas, acerca da interpretação constitucional, trouxeram a lume o novo Direito Constitucional enraizado em uma diferente forma de hermenêutica jurídicoconstitucional. Para Barroso, os fatores que contribuíram para a nova visão constitucional (ou mesmo para a primeira revolução profunda e silenciosa ocorrida no direito contemporâneo, como dito) são diversos e heterogêneos, e.g.: a) a consolidação do constitucionalismo democrático e normativo; b) a expansão da jurisdição constitucional; c) o influxo do pós-positivismo; d) a complexidade da vida contemporânea, tanto no espaço público como no privado; e) o pluralismo de visões, valores e interesses que marcam a sociedade hodierna; f) as demandas por justiça e pela promoção e preservação dos direitos fundamentais; e g) as insuficiências e deficiências do processo político majoritário.

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A mudança na hermenêutica jurídica revela-se particularmente importante para a compreensão e deslinde deste trabalho, na medida em que compreende a criação e a reelaboração de categorias jurídicas, a exemplo do sentido que se atribui às cláusulas gerais; o reconhecimento de que princípios são dotados de normatividade auto-executáveis; a partir desse novo olhar é possível perceber que normas constitucionais e direitos fundamentais são passíveis de colisão, o que gera a necessidade de que as decisões se valham das técnicas da ponderação e da razão prática para se assegurarem como legítimas (BARROSO, 2013, p. 288). Além de criar e reelaborar categorias jurídicas, diz Barroso (2013, p. 293), a nova compreensão segundo o neoconstitucionalismo interfere na atribuição de sentidos – tanto dos enunciados normativos como de outras fontes reconhecidas pelo sistema jurídico – que passam a ser conexos com os fatos relevantes e a realidade circundante. Dito de outra forma, a interpretação consiste doravante em atribuir sentido aos textos (levando-se em consideração a realidade que cerca o intérprete, mas limitada à exploração dos textos, sem que sejam extrapolados), que resultarão, em última instância, nas normas jurídicas – mas não desapegadas de ideias como interpretação evolutiva, leitura moral 102 da Constituição e interpretação pragmática. A interpretação constitucional, de pronto, requer uma interação entre o sistema, o intérprete e o problema, permitindo inclusive a atribuição de significados aos textos constitucionais que ultrapassam sua dicção expressa” (BARROSO, 2013, p. 311). Ademais, com a transição da interpretação tradicional para a contemporânea, mudaram também o papel do sistema normativo, do problema a ser resolvido e do intérprete. Em se tratando do sistema tradicional, assevera Barroso, a ênfase era colocada quase que totalmente na norma jurídica, a ser interpretada e aplicada de acordo com o caso concreto. Era a norma, em seu caráter geral e abstrato, e sua prescrição que, em última análise, regeriam a hipótese. A partir do problema, o intérprete teria os elementos casuísticos a serem inseridos sobre as normas (subsunção). Caberia ao intérprete, por sua vez, a função, não mais que técnica, “de identificar a norma aplicável, de revelar o seu sentido e fazê-la incidir sobre os fatos do caso levado a sua apreciação” (BARROSO, 2013, p. 331).

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Destacamos o posicionamento de Ronald Dworkin (2006, p. 2) em O direito da liberdade: a leitura moral da Constituição norte-americana acerca das relações entre moral e Constituição: “A leitura moral [da Constituição] propõe que todos nós – juízes, advogados e cidadãos – interpretemos e apliquemos esses dispositivos abstratos considerando que eles fazem referência a princípios morais de decência e justiça”.

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Por outro lado, de acordo com a interpretação contemporânea, a percepção da norma jurídica foi alterada103, já que, em múltiplas situações, a norma fornece não mais que um indício de solução, ou seja, seu relato abstrato não contém todos os elementos necessários para que se determine o seu sentido, o que dificulta que a simples subsunção traga uma resposta jurídica ao menos suficiente. Ainda, o problema deixou de ser considerado o simples conjunto de fatos sobre o qual a norma incidirá. No neoconstitucionalismo, o problema é o fornecedor de ao menos parte dos elementos que produzirão a solução jurídica104 requerida. No que atine ao novo papel do intérprete, esse, ao invés de apenas revelar a situação contida no enunciado da norma, torna-se aqui coparticipante do processo de criação da solução jurídica. Mais que um mero trabalho técnico, cabe agora ao intérprete completar o trabalho do Constituinte ou do legislador, afirma Barroso (2013, p. 332-333). Essa complementação se dá por meio de valorações105 de sentido para as cláusulas abertas constitucionais e de escolhas entre soluções possíveis. Apresentamos, ao curso desses dois itens, características do jogo democrático tanto a partir das seis regras do jogo decorrentes da teoria procedimental de Norberto Bobbio – que propicia regras procedimentais claras –, como também da sétima regra, a Constituição, assente na teoria neoconstitucionalista defendida por Luís Roberto Barroso e Gustavo Ferreira Santos – que proporciona conteúdos abertos, porém estáveis. Com alicerce nas teorias desenvolvidas, investigaremos, passo seguinte, se a Constituição de 1988, de fato, tem se mostrado um veículo hábil a conduzir a sociedade brasileira, apesar das intempéries e dos rasgos na estrada, no caminho do jogo democrático.

2.3. Sob os trilhos da democracia? A CRFB/88 como marco legal democrático

Logo no seu preâmbulo, a Constituição de 1988 proclama que os representantes do povo brasileiro se reuniram em Assembleia Nacional Constituinte para instituírem um Estado

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Além do mais, ressalta Barroso (2013, p. 332), vem crescendo no Brasil a adesão à tese de que “norma não se confunde com o enunciado normativo – que corresponde ao texto de um ou mais dispositivos –, sendo, na verdade, o produto da interação texto/realidade”. 104 A esse respeito, o autor aponta que, “Em múltiplas situações, não será possível construir qualquer solução jurídica sem nela integrar o problema a ser resolvido e testar os sentidos e resultados possíveis”. (BARROSO, 2013, p. 332) 105 Barroso (2013, p. 333) explica que as valorações do intérprete advêm / são influenciadas tanto pelas suas précompreensões de mundo (seus pontos de vista, ideologia e inconsciente) no modo como percebe a realidade, como pelos valores sociais que carrega, cruciais no embasamento de suas decisões.

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Democrático destinado a assegurar uma série de direitos, elencados logo em seguida. Também em seu artigo primeiro, pouco antes de arrolar os fundamentos da República Federativa do Brasil, o texto constitucional proclama que a união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal se constitui em Estado Democrático de Direito. Em que pese o regime acolhido e consagrado pelo seu texto, com base em quais características ou princípios podemos reputar a CRFB/88, de fato, como marco legal condutor da democracia brasileira? Em tentativa de oferecer um esclarecimento aprofundado às questões, José Afonso da Silva apresenta seu aporte jurídico ao tema. Para o autor, o Estado de Direito brasileiro, fundado no princípio democrático (conforme o preâmbulo e o artigo primeiro da Carta da República), configura-se: destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, livre, justa e solidária e sem preconceitos (art. 3o, II e IV), com fundamento na soberania, na cidadania, na dignidade da pessoa humana, nos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e no pluralismo político. (SILVA, 2015, p. 127)

O entendimento de Silva acerca do Estado Democrático de Direito brasileiro não se afasta do aqui já afirmou Barroso: a Constituição estabelece valores e consensos mínimos que devem ser observados a todo momento, inclusive no deliberativo. Na mesma senda, assemelha-se à ideia de plexo de valores destacada por Santos. No mais, continua Silva (2015, p. 130), os constituintes optaram por um modelo democrático a partir da consolidação da participação popular no processo decisório governamental, de “objetivos de igualização por via dos direitos sociais e da universalização de prestações sociais (seguridade, saúde, previdência e assistência sociais, educação e cultura)”. Trata-se, portanto, na visão do autor, de uma democracia representativa, participativa e pluralista, fundada no princípio da soberania popular, garantidos os direitos fundamentais dos seres humanos, a saber: “individuais e coletivos (arts. 5o, 8o, 9o, 10 e 11), sociais (arts. 6o, 7o, 193-214, 226-230), culturais (arts. 215 a 217), ambiental (art. 225) e indigenista (arts. 231 e 232)” [grifos no original] (SILVA, 2015, p. 127). Por outro ângulo, Fábio Konder Comparato (2006, p. 87) ressalta que, para que uma constituição seja de fato democrática, isto é, para que seja considerada como marco legal da democracia de um Estado, “é necessário que ela preveja, como correlato natural do poder eletivo, o direito de o povo destituir os eleitos, tanto no Executivo, quanto no Legislativo”. Segundo a perspectiva do controle popular apresentada pelo jurista, a constituição

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democrática deve “atribuir ao povo soberano a legitimidade processual ativa para responsabilizar judicialmente todos os agentes públicos, inclusive os membros do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Tribunais de Contas, que não são eleitos pelo povo”106. Não obstante os estudos empreendidos por Silva e Comparato, que nos permitem considerar a Constituição como marco legal da democracia brasileira em razão das funções próprias da Carta Magna, das opções de regime de governo realizadas pelos Constituintes e reverberadas no texto constitucional, ou mesmo da previsão de responsabilização judicial dos agentes públicos, afigura-se-nos importante que o texto e a principiologia constitucional de 1988 sejam submetidos a uma dupla análise107, que serão desenvolvidas ao longo dos dois subitens seguintes. A primeira se dará sob a lupa da definição mínima de democracia defendida por Bobbio, e a segunda, da teoria neoconstitucional à qual se filia Barroso, com o objetivo de que não nos percamos na vastidão de entendimentos e conceitos.

2.3.1. A CRFB/88 sobre os trilhos procedimentalistas das regras do jogo

Em Bobbio, como vimos, democracia é entendida de forma procedimental, como método ou caminho a ser percorrido. Importa que as regras do jogo sejam seguidas, de sorte que os cidadãos tomem suas decisões coletivas de forma ampla e pacífica; importa também que se defina quem tomará as decisões e como elas serão tomadas. A esse respeito, a Constituição se apresenta como norma suprema e fundamental, por constar em seu bojo as delimitações concernentes à titularidade do poder e ao exercício do poder político. A Carta Magna especifica quem tomará as decisões e como elas serão tomadas, ao passo em que estabelece quais as formas possíveis de controle de constitucionalidade para 106

A respeito do prisma apresentado por Comparato, qual seja o de responsabilização judicial dos agentes públicos e da destituição de cargos públicos, podemos citar, ao longo da vigência da Carta de 1988, os seguintes acontecimentos históricos: “destituiu-se por impeachment um Presidente da República, houve um grave escândalo envolvendo a Comissão de Orçamento da Câmara dos Deputados, foram afastados Senadores importantes no esquema de poder da República, foi eleito um Presidente de oposição e do Partido dos Trabalhadores, surgiram denúncias estridentes envolvendo esquemas de financiamento eleitoral e de vantagens para parlamentares, em meio a outros episódios”. [grifos no original] (BARROSO, 2005, p. 3) 107 Barroso considera que as intersecções entre as concepções procedimentalista e substancialista são mais expressivas que as suas diferenças. No mesmo sentido, Ana Paula de Barcellos (2005, p. 88) assevera que “É bem de ver que o conflito substancialismo versus procedimentalismo não opõe realmente duas idéias antagônicas ou totalmente inconciliáveis. O procedimentalismo, em suas diferentes vertentes, reconhece que o funcionamento do sistema de deliberação democrática exige a observância de determinadas condições, que podem ser descritas como opções materiais e se reconduzem a opções valorativas ou políticas. Com efeito, não haverá deliberação majoritária minimamente consciente e consistente sem respeito aos direitos fundamentais dos participantes do processo deliberativo, o que inclui a garantia das liberdades individuais e de determinadas condições materiais indispensáveis ao exercício da cidadania”. (sic) [grifos no original]

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a proteção e defesa de seu texto. Como demonstrativo, mencionamos o parágrafo único do artigo primeiro da CRFB, que afirma que “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição” (BRASIL, 1988). Outros exemplos são os mecanismos de controle de constitucionalidade previstos no texto constitucional, como a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) e a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC). Ainda a respeito da titularidade e ao exercício do poder político, da qual se ocupa a primeira regra do jogo em Bobbio, a Carta da República estipula a forma mista da democracia108. É dizer que, de acordo com o artigo 14 da CRFB109, os cidadãos devem escolher seus representantes por meio do sufrágio universal110 nas esferas Legislativa e Executiva, que tomarão as decisões em observância à regra da maioria. Na segunda parte do referido artigo, juntamente com seus incisos, é prevista a possibilidade de exercício participativo ou direto da democracia, i.e., sem a intervenção dos representantes, mediante plebiscito, referendo e iniciativa popular. Tal dispositivo evidencia que o poder é exercido não apenas pelos representantes, mas também pelo próprio povo111. Por meio do sufrágio universal, e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, embora as limitações técnicas, permite-se que todos os cidadãos que tenham alcançado a maioridade etária, sem que prevaleçam quaisquer limitações discriminatórias, possam votar, ou seja, escolher, de forma participativa e ampla, quem deterá em suas mãos o poder de decidir e de como decidir. Na mesma toada, o voto igual e de mesmo peso é uma das maneiras por meio das quais a Constituição de 1988 possibilita que os cidadãos expressem sua opinião política, na medida em que consiste (o voto) em instrumento que demonstra, ao mesmo tempo, determinada vontade no processo decisório e quem são os titulares do poder (SILVA, 2015). 108

A República Federativa do Brasil adota o modelo misto de democracia em razão de mesclar o formato representativo com mecanismos próprios da democracia direta. 109 Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante: I - plebiscito; II - referendo; III - iniciativa popular. (BRASIL, 1988) 110 O sufrágio universal traduz-se na extensão do direito igual de voto a todos os cidadãos, consideradas limitações apenas técnicas, mas jamais discriminatórias, a exemplo de raça, religião, sexo ou condições econômicas (SILVA, 2015). Fazemos menção ainda, por ser apropriado, à vedação à discriminação de qualquer natureza constante no caput do artigo 5o da Constituição de 1988: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes” (BRASIL, 1988). 111 Existem, contudo, algumas limitações técnicas ao sufrágio, que são previstas ainda no artigo 14 da Carta de 1988. Uma delas é a obrigatoriedade do alistamento eleitoral e do voto para os maiores de dezoito anos, mas a facultatividade para os analfabetos, os maiores de setenta anos e para os maiores de dezesseis até dezoito anos incompletos. Outra limitação técnica é a titulação do direito do sufrágio: são proibidos de alistarem-se como eleitores os estrangeiros e, durante o período do serviço militar obrigatório, os constritos (os brasileiros que foram chamados para seleção militar, tendo em vista a prestação do Serviço Militar inicial).

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Outra forma de expressão da opinião política, em atenção ao que sustenta Bobbio para a caracterização de democracia, pode ser encontrada no artigo 1o da Constituição, inciso V, o qual afirma ser o pluralismo político um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito brasileiro. Aliem-se às citadas as liberdades invioláveis de consciência, de crença (artigo 5o, VI), de credo religioso e de convicção filosófica ou política (artigo 5o, VIII) insculpidas na Carta da República, que, de acordo com Silva (2015, p. 243), reafirmam “a liberdade de o indivíduo adotar a atitude intelectual de sua escolha: quer um pensamento íntimo, quer seja a tomada de posição pública; liberdade de pensar o que se crê verdadeiro”. Tanto a Constituição como a primeira e terceira regras do jogo em Bobbio preceituam que os votos devem ser depositados consoante a vontade de cada cidadão, que é livre para exercer seus direitos políticos segundo sua própria opinião formada livremente – ao menos em tese. A História nos revela que, de forma recorrente, desde a instituição do sufrágio universal no Brasil, alguns grupos exerceram e ainda exercem seu domínio e força sobre outros, exigindo que os submissos votem segundo determinada corrente política (a exemplo dos votos de cabresto112), ou concedendo-lhes favores, inclusive monetários, em troca de apoio nas urnas (a exemplo da chamada compra de votos 113). Nesse sentido, outra prática contumaz que ainda se noticia é a chamada boca de urna114, isto é, a distribuição ou veiculação de propaganda política no dia da eleição, prática delituosa nos termos da legislação eleitoral brasileira. Com efeito, Bobbio bem reconhece que as regras do jogo, embora simples, não são fáceis de serem cumpridas à risca. Por mais que a legislação constitucional e infraconstitucional concedam a liberdade ao cidadão no momento do voto, ainda nos 112

O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) promove periodicamente o programa televisivo Brasil Eleitor, o qual é veiculado também pela Internet. No dia 07 de abril de 2015, o programa exibiu reportagem acerca dos votos de cabresto, que era comum não só na República Velha, mas também é percebível em pleno século XXI. Segundo a matéria, as selfies (uma espécie de autorretrato geralmente tomado pela câmera de um celular) são hoje proibidas nas votações porque poderiam ser consideradas como mecanismo de viabilização do voto de cabresto: esse tipo de registro do voto pode consistir em prova para o candidato corrupto de que o votante cumpriu a sua promessa na cabina, e, ao mesmo tempo, como ferramenta para o votante receber o benefício que lhe foi prometido. O programa televisivo pode ser acessado no seguinte endereço eletrônico: . Acesso em: 8 novembro 2015. 113 Segundo notícia veiculada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em fevereiro de 2015, “a compra e venda de votos ainda é uma realidade no Brasil, uma vez que pelo menos 28% dos entrevistados revelou ter conhecimento ou testemunhado essa prática ilegal”. Foram ouvidos dois mil eleitores entre 18 e 60 anos em sete capitais brasileiras, incluindo o Distrito Federal, de todas as regiões do país e das classes sociais A, B, C e D. A matéria pode ser acessada no seguinte endereço eletrônico: . Acesso em: 8 novembro 2015.2015. 114 Logo após o encerramento das Eleições de 2014, a Justiça Eleitoral divulgou que foram registradas o total de 1.052 ocorrências no segundo turno de votações. De acordo com matéria veiculada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), “As principais ocorrências foram de boca de urna, com 406 registros (268 com prisão e 138 sem prisão), e divulgação de propaganda, com 303 registros (48 com prisão e 255 sem prisão)”. A reportagem pode ser acessada no seguinte endereço eletrônico: . Acesso em: 8 novembro 2015.

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deparamos com uma face da realidade que evidencia os grilhões115 presos aos pés de muitos brasileiros. No que tange aos partidos políticos, a preocupação concernente à liberdade de escolha entre diferentes soluções, expressas na terceira e quarta regras do jogo bobbiana, encontra-se no artigo 17 da CRFB/88, o qual dispõe que é livre a criação, fusão, incorporação e extinção dos partidos políticos, “resguardados a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana”. Entretanto, a Constituição ordena como condição dessa liberdade a observância de quatro preceitos: a) caráter nacional; b) proibição de recebimento de recursos financeiros de entidade ou governo estrangeiros ou de subordinação a estes; c) prestação de contas à Justiça Eleitoral; e d) funcionamento parlamentar de acordo com a lei (BRASIL, 1988). O parágrafo primeiro do artigo 17 assegura aos partidos políticos “autonomia para definir sua estrutura interna, organização e funcionamento e para adotar os critérios de escolha e o regime de suas coligações eleitorais” (BRASIL, 1988); e, quanto às normas de disciplina e fidelidade partidária, assevera que cabe a seus estatutos que as estabeleçam. A princípio, e por princípio, os partidos políticos devem ser estruturados de forma tal que seja possível o pluripartidarismo, “onde há uma tendência à polarização competitiva” (BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO, 1998, p. 849). Essa estruturação não apenas facilitaria e promoveria a livre disputa entre os partidos políticos e a possibilidade de escolha entre diferentes soluções, como iria ao encontro das regras três e quatro segundo Bobbio. Também por princípio, os cidadãos devem ser postos em condições de escolher entre partidos políticos que tenham programas e agremiações ideológicas distintas e alternativas – porém, com igualdade de “chances”116 (SCHMITT, 1971; MENDES; COELHO; BRANCO, 2009, p. 829).

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Noticiou-se em agosto de 2014 que, em mais de quarenta e um bairros e comunidades do Rio de Janeiro-RJ, a propaganda eleitoral é controlada pelo tráfico ou pelas milícias. Segundo levantamento do serviço de inteligência da Secretaria Estadual de Segurança Pública (Seseg) do Rio de Janeiro, dezesseis comunidades estão sob domínio da milícia e as demais são controladas por traficantes e associações de moradores, usadas pelo crime, que obrigam que moradores de áreas de milícia façam parte de um cadastro de títulos eleitorais. Além disso, no Morro do Caramujo (Niterói-RJ), placas de candidatos da base do governo foram destruídas, conforme se depreende da material disponível em: . Acesso em: 9 novembro 2015. Destacamos, a partir da reportagem citada, o caráter violento que permeia tais ilícitos eleitorais. 116 O termo “chance” será utilizado entre aspas e em língua francesa assim como o foi no original e na tradução para o espanhol. Por oportuno, destacamos algumas palavras do tradutor em nota da versão espanhola, transcritas livremente para o português: “Chance” é um termo peculiar do modo de pensar e de se expressar de uma época liberal, defensora da livre concorrência e da expectation, e reflete uma mescla de sorte e de ajuste à lei, de liberdade e de calculabilidade, de arbitrariedade e de responsabilidade, que são características dessa época.

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O Brasil contava, em janeiro de 2016, com trinta e cinco partidos registrados no Tribunal Superior Eleitoral (TSE)117, e, dentre as legendas deferidas, encontram-se partidos que se intitulam ideologicamente das mais variadas formas de identificação: democrático, trabalhista, comunista, socialista, cristão, republicano progressista, popular socialista, verde, renovador, humanista, liberal, pátria livre, ecológico, solidariedade, novo, sustentabilidade, da mulher brasileira. Em face dessa realidade, e de acordo com a igualdade de “chances”, seria necessário que todos esses partidos fossem principiologicamente iguais entre si para que atuem adequadamente no processo democrático – ou, nas palavras de Gilmar Ferreira Mendes (MENDES; COELHO; BRANCO, 2009, p. 829), deve ser imposta uma “neutralidade do Estado em face das instituições partidárias, exigência essa que se revela tão importante quanto difícil de ser implementada” [grifos no original]. A importância da legalidade e da igualdade de “chances” para o acesso ao poder político, e consequentemente à democracia, foi estudada por Carl Schmitt na obra Legalidad y legitimidad. Sem esse princípio, as maiorias (aquelas formadas pela simples verificação numérica), dada sua indiferença frente ao conteúdo do resultado posto em votação, não somente seriam oriundas de um jogo matemático grotesco e um insolente escárnio de toda justiça, diz Schmitt, mas também acabariam com o próprio sistema: desde o instante em que tome o poder a primeira maioria, quedaria ali permanentemente. O partido que detiver a maioria no poder teria a oportunidade, inclusive, de fechar a porta da legalidade pela qual entrara e de tratar como um delinquente comum o partido político que lhe é contrário. Para o autor, a igualdade de “chances” aberta a todos não pode separar-se mentalmente do Estado legislativo parlamentar, eis que permanece como princípio de justiça. Acrescente-se ao exposto, diz Gilmar Mendes (MENDES; COELHO; BRANCO, 2009, p. 830), em referência às letras de Schmitt, que “a adoção do princípio de igualdade de chances constitui condição indispensável ao exercício legal do poder, uma vez que a minoria somente há de renunciar ao direito de resistência se ficar assegurada a possibilidade de vir a tornar-se maioria” [grifos no original]. O princípio da igualdade de “chances”, para Mendes (MENDES; COELHO; BRANCO, 2009, p. 835), “constitui expressão jurídica da neutralidade do Estado em relação aos diversos concorrentes”, e, indubitavelmente, ainda segundo o autor, integra a ordem constitucional brasileira. A propósito, o jurista sustenta que o postulado geral de igualdade constante na Constituição de 1988 não pode ter seu alcance limitado às pessoas naturais, ou

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Conforme o sítio eletrônico do TSE, disponível em: . Acesso em: 1 janeiro 2016.

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restringido a determinadas situações ou atividades – em outras palavras, o princípio constitucional protege a livre concorrência entre todos os indivíduos, em todos os âmbitos de atividades, incluídas as pessoas jurídicas, e, dentre elas, os partidos políticos. Sendo a livre concorrência própria do Estado Liberal e Democrático, aponta o autor, então a neutralidade do Estado é pressuposto essencial e inafastável (MENDES; COELHO; BRANCO, 2009). Em vista do exposto, a importância do princípio da igualdade entre os partidos políticos reside na possibilidade de, a partir de então, estabelecer-se uma “concorrência livre e equilibrada entre os partícipes da vida política” para que não se comprometa nenhuma regra do jogo, nem mesmo “a essência do próprio processo democrático” (MENDES; COELHO; BRANCO, 2009, p. 829). Nesse sentido, o Estado deve observar tanto um comando negativo (não beneficiar quaisquer concorrentes) como um positivo (assegurar a todos os concorrentes um tratamento absolutamente igual). De modo assemelhado, Mendes ressalta a importância de outro princípio constitucional nas relações estatais, qual seja o da isonomia. Nesse sentido, é primordial o reconhecimento do direito de participação igualitária na comunidade estatal e na formação da vontade do Estado. Esse reconhecimento “não se restringe à igualdade eleitoral, ao acesso aos cargos públicos, ao direito de informação e de manifestação de opinião”, aponta o autor, mas abrange “a própria participação nos partidos políticos e associações como forma de exercer influência na formação da vontade política” (MENDES; COELHO; BRANCO, 2009, p. 837). O modelo de Estado democrático pluripartidário, como é o brasileiro, exige a observância do princípio da igualdade entre os partidos políticos para a garantia da efetiva concorrência entre si, o que garante maior liberdade, consequentemente, ao eleitor, sem mencionar a maior facilitação e a ampliação do processo democrático. Ademais, para além da principiologia constitucional, o parágrafo terceiro do artigo 17 da Carta da República assevera que os partidos políticos têm direito a acesso gratuito ao rádio e à televisão, na forma da lei. A lei a que se refere a Constituição é a Lei dos Partidos Políticos (Lei n. 9.096/1995), a qual, a contrário da sua precedente (Lei n. 7.508/1986), assegura fração de tempo proporcional para propaganda eleitoral no rádio e na televisão para todos os partidos políticos – trata-se, aqui, de um exemplo de aplicação do princípio da isonomia em âmbito infraconstitucional. Percebemos, até então, que a Constituição de 1988 não apenas permite, mas incentiva a livre disputa entre si de partidos políticos organizados, elaborando programas distintos e alternativos, com diferentes soluções para o crescimento e desenvolvimento da nação, em conformidade com o que preceituam as regras três e quatro defendidas por Bobbio.

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Ademais, no que se refere à regra de maioria, explicitadas nas regras cinco e seis, a Constituição dispõe, artigo 47, que “Salvo disposição constitucional em contrário, as deliberações de cada Casa e de suas Comissões serão tomadas por maioria dos votos, presente a maioria absoluta de seus membros” (BRASIL, 1988). Isso significa dizer que, desde que esteja presente a maioria absoluta dos membros (alusiva ao número inteiro após a metade do número de integrantes da Casa, do número de cadeiras), as decisões serão tomadas por maioria simples ou relativa dos votos (alusiva ao número inteiro após a metade do número dos presentes, e não dos integrantes), a não ser que haja disposição em contrário. Exige-se, portanto, e em regra, maioria tanto em relação ao quorum de instalação da sessão, ou seja, ao número de parlamentares presentes na sessão, como ao número de votos dos ali presentes. A regra é imposta tanto para as votações na Câmara dos Deputados e Senado Federal como nas suas Comissões, salvo disposição em contrário. Ainda, conforme afirmado em linhas anteriores, a regra de maioria é diferenciada a depender de tratar-se de lei ordinária, lei complementar ou emenda à Constituição. No âmbito das eleições, é considerado eleito Presidente da República “o candidato que, registrado por partido político, obtiver a maioria absoluta de votos, não computados os em branco e os nulos”, de acordo com o parágrafo segundo do artigo 77 da Constituição (BRASIL, 1988). Do mesmo modo, tanto nas eleições para Prefeito e Vice-Prefeito (artigo 29, II, da Constituição) como naquelas para Governador e Vice-Governador (artigo 32, § 2º, da Constituição), devem ser aplicadas as mesmas regras do artigo 77 da Carta da República. Em que pese a regra de maioria ser uma previsão constitucional (ressaltando a possibilidade igualmente constitucional de disposições em contrário a ela), também o são os Direitos Humanos, representados pelos direitos e as garantias fundamentais do indivíduo e da coletividade. Aliás, dois dos fundamentos sob os quais se constitui o Estado Democrático de Direito brasileiro, logo nos termos do artigo primeiro da Constituição da República, são a cidadania (inciso II) e a dignidade da pessoa humana (inciso III). Na mesma toada, os objetivos fundamentais da República brasileira, especificados tal-qualmente na CRFB/88, artigo 3o, são a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; a garantia do desenvolvimento nacional; a erradicação da pobreza e da marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais; a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Ainda, não menos importantes são o caput e incisos II, III, V, VI, VII, VIII e IX do artigo 4o do texto constitucional (BRASIL, 1988), segundo os quais a República brasileira é regida, nas suas relações internacionais, pelos princípios, respectivamente, da prevalência dos

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Direitos Humanos, da autodeterminação dos povos, da igualdade entre os Estados, da defesa da paz, da solução pacífica dos conflitos, do repúdio ao terrorismo e ao racismo e da cooperação entre os povos para o progresso da humanidade. Acrescente-se a esses direitos e garantias aqueles insculpidos no Título II da Constituição (intitulado, não por acaso, Dos Direitos e Garantias Fundamentais), que abrangem direitos e deveres individuais e coletivos (artigo 5o), direitos sociais (artigos 6o ao 11) e direitos políticos (artigos 14 ao 16). Todavia, muito embora a regra de maioria seja uma norma constitucional, não é princípio constitucional. Assim sendo, tal regra deve estar calcada nos princípios constitucionais – dito de outra forma, deve ser guiada por esses princípios, conforme aprofundaremos logo adiante. Isso significa, portanto, que regra de maioria, como norma do ordenamento pátrio, não pode ser tal que fira os princípios constitucionais, eis que devem partilhar dos valores constitucionais. Significa também que os direitos assegurados pelos princípios devem ser entendidos como base e limite à norma118, na medida em que a norma está adstrita e subordinada à força axiológica dos princípios. Assim sendo, é defeso que uma decisão da maioria, tomada como norma, restrinja ou limite os direitos da minoria, incluindo o direito de se tornar, por sua vez, maioria. Do contrário estaríamos diante de uma decisão que contribui para tornar vãs outras regras do jogo, e, consequentemente, de uma decisão não-democrática. Outro meio de limitar a decisão de maioria está a cargo do Poder Judiciário119, que, além de “compor conflitos de interesses” (SILVA, 2015, p. 559), também tem o múnus de proteger a ordem constitucional objetiva e o sistema de direitos subjetivos, ainda que contramajoritariamente, por meio de garantias-instrumentos tais como a ação direta de inconstitucionalidade, a ação declaratória de constitucionalidade, a ação direta por omissão, o

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Retomemos aqui a afirmação de Bobbio no sentido de que as normas constitucionais que atribuem os direitos invioláveis dos homens constituem, em verdade, regras preliminares às do jogo, por permitirem o desenrolar do próprio jogo. Ademais, cabe relembrar o que asseverou o autor também a respeito desses mesmos direitos invioláveis: são como limites para o exercício do poder do Estado (BOBBIO, 1986). Outrossim, não podemos olvidar do segundo limite à regra da maioria, qual seja o da aplicação. Nesse sentido, algumas matérias não devem ser submetidas à regra de maioria (por parecerem importunas ou injustas), e, dentre elas, encontra-se a inviolabilidade dos direitos do homem e do cidadão (BOBBIO, 2000b). 119 Em sentido semelhante se posicionou o Ministro do STJ Luis Felipe Salomão acerca da legalidade do casamento homoafetivo, ao relatar o Recurso Especial no 1.183.378 – RS. Segundo o que consta na ementa da decisão, “Não obstante a omissão legislativa sobre o tema, a maioria, mediante seus representantes eleitos, não poderia mesmo ‘democraticamente’ decretar a perda de direitos civis da minoria pela qual eventualmente nutre alguma aversão. Nesse cenário, em regra é o Poder Judiciário - e não o Legislativo que exerce um papel contramajoritário e protetivo de especialíssima importância, exatamente por não ser compromissado com as maiorias votantes, mas apenas com a lei e com a Constituição, sempre em vista a proteção dos direitos humanos fundamentais, sejam eles das minorias, sejam das maiorias. Dessa forma, ao contrário do que pensam os críticos, a democracia se fortalece, porquanto esta se reafirma como forma de governo, não das maiorias ocasionais, mas de todos”. [grifos nossos] (BRASIL, 2011b)

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mandado de injunção, o habeas data e o mandado de segurança coletivo (MENDES; COELHO; BRANCO, 2009, p. 974). Acerca da exigência em Bobbio da visibilidade e transparência do poder120, a Constituição de 1988 estabelece, no inciso XXXIII do seu artigo 5o, o direito, garantido a todos, de “receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado” (BRASIL, 1988). Entendemos que o desvelo dos aspectos que tangenciam as seis regras do jogo é importante para averiguarmos se a Constituição de 1988 deve ser considerada marco legal da democracia brasileira segundo a teoria procedimentalista – mas não suficiente. O subitem seguinte tem como propósito uma segunda análise da CRFB/88 à luz de uma teoria substancialista; qual seja, a neoconstitucionalista.

2.3.2. O papel da CRFB/88 no jogo democrático substancialista: delimitando a sétima regra do jogo

Em se considerando a configuração moderna do Estado e da sociedade, assevera Luís Roberto Barroso (2013, p. 113) que “a ideia de democracia já não se reduz à prerrogativa popular de eleger representantes, nem tampouco às manifestações das instâncias formais do processo majoritário”. Para além dessa interpretação, a teoria substancialista acredita que o jogo democrático necessita sejam traçados também certos parâmetros ou conteúdo, ou mesmo uma condição de possibilidade. Ainda conforme o autor, no neoconstitucionalismo a própria democracia (que se apresenta, de forma sumária, como soberania popular e governo da maioria), para que permaneça coerente, necessita dos limites impostos e valores trazidos pelo que Gustavo Ferreira Santos denomina a sétima regra do jogo democrático: a Constituição. Os valores e consensos mínimos necessários ao funcionamento do regime democrático apresentam-se insertos no texto constitucional a partir de um sistema aberto de princípios e regras. “Os valores e fins previstos na Constituição”, aponta Barroso (2013, p. 220), “devem orientar o intérprete e o aplicador do Direito no momento de determinar o sentido e o alcance

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De acordo com Silva (2015, p. 680-681), é imperativo que o Poder Público, eis que público, aja com a maior transparência possível. Tal necessidade se faz para que os administrados tenham conhecimento a qualquer tempo do que fazem os administradores.

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de todas as normas jurídicas infraconstitucionais, pautando a argumentação jurídica a ser desenvolvida”. Assim, no que respeita à realidade brasileira e considerando o valor simbólico e os limites instituídos pela Constituição de 1988, Barroso (2013, p. 113) assegura que a CRFB/88 trouxe o “equilíbrio” entre democracia e constitucionalismo. O artigo 60 do texto constitucional, por exemplo, estabelece um procedimento legislativo especial para que sejam aprovadas as emendas à Constituição, ao passo que o § 4º do mesmo artigo afirma como cláusulas pétreas a forma federativa de Estado; o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação dos Poderes e os direitos e garantias individuais – ou seja, traz limitações materiais constitucionais a respeito das quais é incabível mesmo Proposta de Emenda do Legislativo tendente a aboli-las. Outra demonstração do equilíbrio entre democracia e constitucionalismo na terra pátria encontra-se no artigo 3o do texto constitucional. Dentre os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil constantes na CRFB estão os seguintes: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Nessa toada, o texto constitucional, além de constituir um plexo de valores, como diz Santos, e de vedar o retrocesso social, também se destina a transformar a realidade e a sociedade. A respeito dos valores constitucionais – e da incorporação de novos valores com o passar do tempo –, Barroso acredita dever-se ao caráter aberto constitucional. A Constituição utiliza cláusulas gerais, “que são categorias normativas pelas quais se transfere para o intérprete, com especial intensidade, parte do papel de criação do Direito, à luz do problema a ser resolvido” (BARROSO, 2013, p. 221). Dessa forma, a partir de elementos do caso concreto, cabe ao intérprete fazer valorações – não genéricas, mas específicas – por meio das quais conceitos antes indeterminados serão repletos de conteúdo. Esse sistema, na visão de Barroso, permite que a interpretação jurídica (e, portanto, constitucional, a partir da constitucionalização do Direito), ao invés de estanque, seja compreendida de forma viva e evolutiva. A difusão de consensos mínimos, essenciais para a dignidade da pessoa humana e para o funcionamento da democracia; a garantia do espaço do pluralismo político e a asseguração de que os mecanismos democráticos funcionarão adequadamente são previstos na Constituição por meio de suas normas. Nesse sentido, as normas constitucionais gozam de

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supremacia em relação às demais, e, por esse motivo, representam condição de validade das infraconstitucionais – é dizer, em outras palavras, que caso a norma infraconstitucional venha de encontro com a constitucional, a primeira padecerá de nulidade. Além disso, e por serem uma determinação objetiva de conduta, carregam o valor da segurança jurídica. Dentre as normas constitucionais, chamamos a atenção aquelas que Barroso denomina como definidoras de direitos, por entendermos relevante ao deslinde da pesquisa. Segundo o autor, trata-se daquelas que “tipicamente geram direitos subjetivos, investindo o jurisdicionado no poder de exigir do Estado – ou de outro eventual destinatário da norma – prestações positivas ou negativas, que proporcionem o desfrute dos bens jurídicos nelas consagrados” (BARROSO, 2013, p. 224). O jurista agrupa as normas definidoras de direitos em quatro grandes categorias: direitos individuais, políticos, sociais e difusos121. Luís Roberto Barroso, ao caracterizar a democracia sob a ótica neoconstitucionalista, e delimitando a sétima regra do jogo, atenta-se para a particularidade de que as normas constitucionais representam um gênero que comporta duas grandes espécies de distinção qualitativa: as regras e os princípios. Para o autor, os princípios constitucionais são o centro do sistema jurídico. Dotados de normatividade, eles representam “a porta pela qual os valores passam do plano ético para o mundo jurídico” (BARROSO, 2013, p. 226). Do centro do sistema jurídico, os princípios irradiaram-se por todo o ordenamento, de forma que influenciam não só a interpretação, mas também a aplicação da norma. É a partir dos princípios, assevera, é que se possibilita a leitura axiológica do direito.

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Na CRFB/88, os direitos individuais encontram-se predominantemente incursos ao longo dos setenta e oito incisos do seu artigo 5o – artigo esse que inaugura o Título II - Dos Direitos e Garantias Fundamentais e o Capítulo I - Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos. Logo no caput se anuncia: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...]”. Os direitos políticos concentram-se entre os artigos 12 e 17 da Constituição, e compreendem os Capítulos III - Da Nacionalidade, IV - Dos Direitos Políticos e V - Dos Partidos Políticos. Ao longo desse intervalo a CRFB/88 elenca quem são os brasileiros natos e naturalizados; veda distinção entre brasileiros natos e naturalizados, salvo nos casos ali previstos; estatui os cargos privativos aos brasileiros natos; determina o idioma oficial da República; estipula o sufrágio universal pelo voto direto e secreto e com valor igual para todos como meio para se exercer a soberania popular, juntamente com institutos da democracia direta (plebiscito, referendo e iniciativa popular); estabelece os elegíveis e inelegíveis para o sufrágio; enumera hipóteses de perda ou suspensão de direitos políticos; e autoriza a fusão, incorporação e extinção de partidos políticos, sob o resguardo da soberania nacional, do regime democrático, do pluripartidarismo e dos direitos fundamentais da pessoa humana. Em relação aos direitos sociais, esses se encontram, em boa parte, ao longo do artigo sexto da Constituição de 1988: “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”. Já os direitos difusos, na conceituação de Barroso (2013, p. 225), são aqueles “titularizados pela coletividade em geral ou por uma pluralidade indeterminada”. A CRFB/88 consagra direitos difusos, a título de exemplo, a proteção ao patrimônio cultural brasileiro (artigo 216) e ao meio ambiente (artigo 225). (BRASIL, 1988)

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Sob essa ótica, e adentrando no que diz respeito às suas características, Barroso (2013, p. 228-229) afirma que o vocábulo “princípio” relaciona-se a normas que expressam122 decisões políticas fundamentais (como República, Estado Democrático de Direito e Federação); valores, que por possuírem uma dimensão ética, devem ser observados (dignidade humana, segurança jurídica, razoabilidade); ou fins públicos a serem realizados (desenvolvimento nacional, erradicação da pobreza, busca do pleno emprego). Nessa senda, princípios são ainda normas que apontam para determinados fins, estados ideais a serem buscados, podendo se referir a direitos individuais bem como a coletivos. Princípios são abertos, ou seja, possuem indeterminação de sentido e podem ser realizados por meios diferentes. “Tal abertura faz com que os princípios funcionem como uma instância reflexiva”, aponta Barroso (2013, p. 229), “permitindo que os diferentes argumentos e pontos de vista existentes na sociedade, acerca dos valores básicos subjacentes à Constituição, ingressem na ordem jurídica e sejam processados segundo a lógica do Direito”. Os princípios, por constituírem uma direção, um valor, são aplicados de acordo com a dimensão de peso que assumem de acordo com cada situação concreta, ou seja, casuisticamente. Isso porque, conforme assegura Barroso (2013, p. 231), em se considerando “uma ordem jurídica pluralista, a Constituição abriga princípios que apontam em direções diversas, gerando tensões e eventuais colisões entre eles”. Assim, como todos os princípios possuem o mesmo valor jurídico, e ainda o mesmo status hierárquico na Constituição e no ordenamento pátrio, apenas se pode apontar a prevalência de um sobre o outro diante do caso concreto e de seus elementos. Quando da verificação de acordo com o caso concreto, o intérprete, ao invés de simplesmente aplicar a subsunção do fato à norma, deverá ponderar os princípios e fatos relevantes. Por oportuno, Barroso traz em sua obra o posicionamento de Ronald Dworkin (2002, p. 42-43) acerca da dimensão de peso dos princípios em Levando os direitos a sério: Os princípios possuem uma dimensão que as regras não têm – a dimensão do peso ou importância. Quando os princípios se intercruzam [...], aquele que vai resolver o conflito tem de levar em conta a força relativa de cada um. Esta não pode ser, por certo, uma mensuração exata e o julgamento que determina que um princípio ou política particular é mais importante que outra freqüentemente será objeto de controvérsia. Não obstante, essa dimensão é uma parte integrante do conceito de um princípio, de modo que faz sentido perguntar que peso ele tem ou quão importante ele é. (sic)

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Barroso (2013, p. 229) menciona também alguns usos para o vocábulo “princípios” que, ao seu juízo, são atécnicos: “princípio do concurso público e da licitação (ambos decorrências específicas de princípios como os da moralidade, da impessoalidade, da isonomia) ou da irredutibilidade de vencimentos”.

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Nessa perspectiva, os princípios são vistos também como “mandados de otimização”, na medida em que devem ser realizados da forma mais intensa possível, de acordo com a sua força relativa, e à vista dos demais elementos jurídicos e fáticos presentes no caso concreto. Assim, como ressaltam Barroso e Dworkin, a realização do princípio escolhido tanto resulta de uma mensuração prévia como pode resultar em uma controvérsia – afinal, essas tensões e colisões são previsíveis em se considerando um Estado pluralista. Todavia, o cumprimento desses princípios deve resultar do questionamento prévio acerca de seu peso e sua importância para aquele caso, aquela hipótese (BARROSO, 2013, p. 231). As regras, por outro lado, estão ligadas a prescrições ou comandos objetivos que expressem um preceito, permissão ou vedação de forma direta. Regras não expressam valores, nem remetem a fins públicos, afirma Barroso, justamente pela característica de serem descritivas de comportamento. Assim sendo, e por serem fechadas, há um menor grau de ingerência do intérprete tanto para atribuir sentido aos seus termos como na observância de suas hipóteses de aplicação. Diferentemente dos princípios, as regras se aplicam “na modalidade tudo ou nada: ocorrendo o fato descrito em seu relato ela deverá incidir, produzindo o efeito previsto” [grifos no original] (BARROSO, 2013, p. 230). Caso não se aplique a regra à sua hipótese de incidência, estaremos diante do descumprimento da norma. Regras apenas deixam de ser aplicadas no caso de outra regra vier a invalidá-las ou a excepcioná-las. Caso duas regras entrem em conflito, a probabilidade é que uma delas não seja válida, destaca Dworkin. Além disso, uma regra somente pode ser considerada importante ou desimportante considerando a sua função, a regulação do comportamento em questão, e não o seu peso. Nas palavras de Dworkin (2002, p. 43), “não podemos dizer que uma regra é mais importante que outra enquanto parte do mesmo sistema de regras, de tal modo que se duas regras estão em conflito, uma suplanta a outra em virtude de sua importância maior”. O Constituinte, ao utilizar regras, cria condutas específicas e obrigatórias, positivas ou negativas, que servem como limites à atuação dos poderes políticos, diz Barroso. Dentre as regras inseridas na CRFB/88 podemos citar o artigo 14, § 3o, VI, que estabelece a idade mínima para que alguém se candidate a Presidente da República; e o artigo 40, § 1o, II dispõe que, ao completar 75 anos de idade, o servidor público deverá ser aposentado compulsoriamente. Não é necessário, pois, avaliar as condutas, nem ponderar quaisquer valores – as regras já expressam diretamente o comando, seja proibição ou permissão. Os princípios, por outro lado, “demarcam um espaço dentro do qual as maiorias políticas poderão legitimamente fazer suas escolhas” (BARROSO, 2013, p. 234). Assim

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sendo, essa diferenciação entre regras e princípios tem consequências práticas. No tocante a tais consequências, Barroso destaca que a distinção entre normas e princípios influencia na demarcação dos espaços de competência entre o intérprete constitucional e o legislador. Nas palavras do autor: A abertura dos princípios constitucionais permite ao intérprete estendê-los a situações que não foram originalmente previstas, mas que se inserem logicamente no raio de alcance dos mandamentos constitucionais. Porém, onde o constituinte tenha reservado a atuação para o legislador ordinário não será legítimo pretender, por via de interpretação constitucional, subtrair do órgão de representação popular as decisões que irão realizar os fins constitucionais, aniquilando o espaço de deliberação democrática. É preciso distinguir, portanto, o que seja abertura constitucional do que seja silêncio eloquente. (BARROSO, 2013, p. 234)

Em que pese o entendimento firme de Barroso acerca da demarcação dos espaços do intérprete constitucional e do legislador, ressaltamos, desde já, que mesmo o espaço do legislador deve conhecer limitação constitucional. Aliás, uma das funções da Constituição, segundo o próprio Barroso, é a de garantir o funcionamento adequado dos mecanismos democráticos – que, por sua vez, apenas se constituem democráticos se limitado o poder da maioria e protegendo os dispositivos contramajoritários. Relativamente aos princípios positivados na Constituição de 1988, José Afonso da Silva (2015, p. 96-97), após estudo minucioso da Carta, chega ao seguinte apanhado: (a) princípios relativos à existência, forma, estrutura e tipo de Estado: República Federativa do Brasil, soberania, Estado Democrático de Direito (art. 1o); (b) princípios relativos à forma de governo e à organização dos poderes: República e separação dos poderes (arts. 1o e 2o) (c) princípios relativos à organização da sociedade: princípio da livre organização social, princípio da convivência justa e princípio da solidariedade (art. 3o, I); (d) princípios relativos ao regime político: princípio da cidadania, princípio da dignidade da pessoa, principio do pluralismo, princípio da soberania popular, princípio da representação política e princípio da participação popular direta (art. 1o, parágrafo único); (e) princípios relativos à prestação positiva do Estado: princípio da independência e do desenvolvimento nacional art. 3o, II), princípio da justiça social (art. 3o, III) e princípio da não discriminação (art. 3o, IV); (f) princípios relativos à comunidade internacional: da independência nacional, do respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana, da autodeterminação dos povos, da não intervenção, da igualdade dos Estados, da solução pacífica dos conflitos e da defesa da paz, do repúdio ao terrorismo e ao racismo, da cooperação entre os povos e o da integração da América Latina (art. 4o). [grifos no original]

Nesse esteio, os princípios garantidores de direitos fundamentais, encontrados nos títulos II (Dos Direitos e Garantias Fundamentais), VII (Da Ordem Econômica e Financeira) e VIII (Da Ordem Social), representam um plexo de valores especialmente caros à democracia

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brasileira, por significarem também um catálogo de garantias de Direitos Humanos – catálogo esse que não pode ser afetado por maiorias políticas eventuais. Dentre esse rol de direitos fundamentais e Direitos Humanos merece destaque mais uma vez o princípio da dignidade da pessoa humana, não apenas pelo seu papel interpretativo na Constituição, mas por ser uma das bases inspiradoras e garantidoras da vedação ao retrocesso no ordenamento. Se um dos objetivos da CRFB/88 é indicar valores e fins públicos, o princípio da dignidade da pessoa humana consiste em verdadeira bússola na busca pela proteção dos valores sociais brasileiros – livres do paternalismo, do moralismo e da tirania das maiorias – na complexa vida contemporânea (BARROSO, 2013, p. 277). Não é pretensão desta pesquisa esgotar o assunto relativo à distinção entre regras e princípios; muito menos estudar todas as regras e todos os princípios constantes na Carta da República. A síntese trazida por Silva e acima reproduzida, embora não extenue o tema, cumpre o objetivo de elucidar que, de fato, a CRFB/88 traz em seu bojo, em atenção à prescrição democrática, valores e consensos mínimos próprios do neoconstitucionalismo, consubstanciados em limites aos poderes ordinários. Posto que melhor inteirados das regras do jogo, tanto procedimentais como de conteúdos mínimos, partiremos para a análise de princípios constitucionais e internacionais de Direitos Humanos.

2.4. Para além de aproximações entre a DUDH/48 e a CRFB/88: os Direitos Humanos na principiologia constitucional e internacional

Da mesma forma como afirmamos inexistir um conceito rígido de democracia, também chamamos a atenção para a complexidade inerente à tentativa de se conceituar os Direitos Humanos. Coexistem concepções diversas de Direitos Humanos dadas sob perspectivas de diferentes áreas do conhecimento e que não se excluem mutuamente; antes, complementam-se. Frente, mais uma vez, à complexidade que circunda o tema, deter-nosemos, primeiramente, à percepção do porquê do enredamento de se conceituar ou caracterizar Direitos Humanos tanto a partir das percepções procedimentalista de Norberto Bobbio como dos conceitos substancialistas defendidos por Luís Roberto Barroso. Imediatamente após passaremos à caracterização desses Direitos com foco, sobretudo, na sua historicidade: afinal, afigura-se-nos incauto que os Direitos Humanos sejam entendidos ou mesmo estudados a partir de uma única perspectiva. Aliás, a esse respeito, Bobbio (2004, p. 24) pronuncia-se: “O problema filosófico dos direitos do homem não pode ser dissociado

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do estudo dos problemas históricos, sociais, econômicos, psicológicos, inerentes à sua realização”. Em seguida, também partindo das fundamentações balizadoras dos autores mencionados, perscrutarmos a respeito de relações entre os Direitos Humanos; a principiologia da Constituição de 1988; a Declaração Universal de 1948 da ONU, conjugada com demais diplomas internacionais que protegem a figura da família; e a possibilidade de aplicação do controle de convencionalidade em casos de colisão entre um tratado internacional de Direitos Humanos e a Constituição Federal brasileira. Antes de mais nada, nas primeiras linhas de A era dos direitos, Bobbio nos apresenta como o problema dos Direitos Humanos mantém ligação estreita e interdependente aos da democracia e da paz. O autor explica que o “reconhecimento e a proteção dos direitos do homem123 estão na base das Constituições democráticas modernas”, enquanto a “paz, por sua vez, é o pressuposto necessário para o reconhecimento e a efetiva proteção dos direitos do homem em cada Estado e no sistema internacional”. Aliado a isso, assevera o filósofo político ser impossível que o processo de democratização do sistema internacional avance sem que, acima de cada soberania, haja uma gradativa ampliação dos Direitos Humanos (BOBBIO, 2004, p. 1). Em outras palavras, “sem direitos do homem reconhecidos e protegidos, não há democracia; sem democracia, não existem as condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos” (BOBBIO, 2004, p. 1). Sem demora, o autor passa a evidenciar a importância da pesquisa em Direitos Humanos e a posição de destaque que ocupa a DUDH/48. Bobbio compreende Direitos Humanos como, ao mesmo tempo, “uma justificação e uma limitação do poder do Estado” produto da civilização humana, não da natureza (CHAMPEIL-DESPLASTS, 2013, p. 147). No entanto, esse entendimento deve ser realizado a partir do enfrentamento de uma questão de direito racional ou crítico, ao invés de uma perspectiva unicamente positiva. O pressuposto do qual se parte é que os Direitos Humanos são “coisas desejáveis, isto é, fins que merecem ser perseguidos, e de que, apesar de sua desejabilidade, não foram ainda todos eles (por toda a parte e em igual medida) reconhecidos” (BOBBIO, 2004, p. 15-16). Na sua visão, os Direitos Humanos não representam direitos estanques historicamente; ao contrário: “O elenco dos direitos do homem se modificou, e continua a se modificar, com a mudança das condições históricas, ou seja, dos carecimentos e dos interesses, das classes no poder, dos meios disponíveis para a realização dos mesmos, das transformações técnicas, etc” 123

As expressões direitos do homem e direitos do indivíduo são frequentemente usadas como sinônimo de Direitos Humanos por Bobbio.

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(sic) (BOBBIO, 2004, p. 18). O autor afirma, em outras palavras, o caráter aberto ou mesmo inacabado124 dos Direitos Humanos, na medida em que alguns direitos considerados invioláveis em tempos pretéritos conhecem hoje limitações – da mesma forma, direitos outrora inimagináveis são hoje proclamados de forma ostensiva. Afinal, “o catálogo de direitos não é predeterminável” justamente porque os direitos não nasceram todos de uma vez, nem de uma vez por todas (BACCELLI, 2013, p. 111); ou seja, aquilo “que parece fundamental numa época histórica e numa determinada civilização não é fundamental em outras épocas e em outras culturas” (BOBBIO, 2004, p. 18). Trocando em miúdos, Bobbio e Baccelli afirmam que, a depender de variáveis como tempo e espaço, e do desenvolvimento tanto da sociedade em questão como da sociedade como um todo, alguns direitos que já foram considerados absolutos, agora são limitados ou inexistentes, como, por exemplo, os direitos de propriedade que tinha o dono ou comerciante, no Brasil Colônia, sobre seus escravos. Nos dias atuais, em decorrência da concepção que as pessoas são livres e iguais entre si, é inadmissível, no Brasil, que um ser humano seja tratado como mercadoria ou que seja privado de sua humanidade e de seus direitos constitucionalmente garantidos, por qualquer motivo que seja, consoante (mas não limitado a) os artigos, incisos, parágrafos e alíneas do Título II da Constituição: Dos Direitos e Garantias Fundamentais125. Outro exemplo, no mesmo sentido, não tão distante dos dias atuais, de que o catálogo de direitos não é predeterminável, reside na revogação do Código Civil de 1916 em 2002. Segundo o documento, artigo 6o, ao se casar, e enquanto subsistir a sociedade conjugal, a mulher, ainda que maior de 21 anos, tornava-se relativamente incapaz126, dependendo de autorização do marido para, até mesmo, trabalhar. Se, na sociedade brasileira de do início do 124

Marques (2013, p. 249-250), ao tecer seus comentários acerca do pensamento bobbiano, assevera que os Direitos Humanos forjam-se no “mundo das necessidades humanas”. Esses direitos, “não radicando na natureza, nem em verdades evidentes, são o produto da ‘civilidade humana’[…]. As alterações das condições sociais, o progresso no âmbito técnico-científico geram novas necessidades e reivindicações susceptíveis de gerarem novos direitos”. (sic) 125 O Título II da CRFB/88 traz um catálogo, um rol extensivo de direitos e garantias fundamentais especificados nos seguintes grupos: direitos e deveres individuais e coletivos; direitos sociais; direitos de nacionalidade; direitos políticos; e partidos políticos. É sob o manto desse Título que se encontram, por exemplo, os direitos à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança (todos insertos no caput do artigo 5o); à vedação à tortura (artigo 5o, III); à liberdade de consciência e crença (artigo 5 o, VI); à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem das pessoas (artigo 5o, X); e à propriedade (artigo 5 o, XXII), desde que essa atenda à sua função social (artigo 5o, XXIII). Entretanto, e consoante o que observa Pedro Lenza (2011, p. 2197), “os direitos e deveres individuais e coletivos não se restringem ao art. 5.º da CF/88, podendo ser encontrados ao longo do texto constitucional, expressos ou decorrentes do regime e dos princípios adotados pela Constituição, ou, ainda, decorrentes dos tratados e convenções internacionais de que o Brasil seja parte”. 126 Relativamente incapazes são aqueles que deverão exercer os atos da vida civil com a devida assistência, sob pena de que sejam anulados. Quando da assistência, por certo, há a vontade do assistido não de maneira integral, mas conjugada com aquele que exerce a assistência.

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século XX era impensável que a mulher comandasse a família ou exercesse poderes antes conferidos apenas ao homem, nos dias atuais não se concebe mais, inclusive por determinação constitucional, artigo 226, § 5o, que homens e mulheres exerçam direitos e deveres referentes à sociedade conjugal de forma desigual. Embora a noção de Direitos Humanos em Bobbio (2004, p. 203) convide a voltarmos os olhos ao homem, não apenas do ponto de vista da sua miséria, mas também sob a ótica da sua grandeza em potencial, certo é que uma de suas atribuições é a de limitar o Estado de Direito com vistas ao funcionamento da democracia de forma escorreita. De acordo com o autor, “a democracia é a sociedade dos cidadãos, e os súditos se tornam cidadãos quando lhes são reconhecidos alguns direitos fundamentais” (BOBBIO, 2004, p. 1). Na ótica procedimentalista, os cidadãos apenas estarão em condições de observar as regras do jogo caso sejam reconhecidos enquanto indivíduos e respeitadas as suas liberdades – momento em que nos parece possível falar em vedação à distinção de raça, religião, condição econômica e sexo; liberdade de expressão da própria opinião do cidadão ou possibilidade de escolha de quem a expresse por ele; gozo de direitos políticos e direito de voto com igual peso; liberdade para poder votar segundo a própria opinião formada do cidadão, ao máximo possível, livremente; liberdade de disputa entre grupos políticos organizados em concorrência entre si; liberdade no sentido de ser colocado o cidadão em condições de escolher entre diferentes soluções; liberdade para que os partidos tenham programas distintos e alternativos; vedação que qualquer decisão tomada por maioria limite os direitos da minoria, particularmente o direito de se tornar por sua vez maioria em igualdade de condições. Devemos nos recordar ainda que, mesmo em Bobbio, as normas constitucionais que atribuem os Direitos Humanos permitem o desenvolver do jogo democrático. Como dito, é impossível que haja democracia sem que os indivíduos, os cidadãos, gozem, previamente, e por meio de regras constitucionais abertas, de Direitos Humanos. Bobbio entende que a questão acerca dos fundamentos dos Direitos Humanos já foi de certa forma solucionada pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em 10 de dezembro de 1948 127. 127

No entender de Bobbio, os Direitos Humanos “Nascem como direitos naturais universais, desenvolvem-se como direitos positivos particulares para depois se transformarem em direitos positivos universais […], sendo a Declaração de 1948 da ONU o “ponto de partida da protecção dos direitos da pessoa a nível supranacional, isto é, da protecção de todos os homens e não apenas dos cidadãos deste ou daquele estado em particular”. Nas palavras de Champeil-Dasplats (2013, p. 151-152), “A universalidade proclamada pela Declaração de 1948 não é um dado objetivo, metafísico, mas um dado histórico e intersubjetivo. Ela é a expressão de uma crença comum, em um momento histórico preciso, de que um conjunto de valores é preferível para o conjunto da humanidade

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Segundo o autor, a DUDH/48 “representa a manifestação da única prova através da qual um sistema de valores pode ser considerado humanamente fundado, e, portanto, reconhecido: e essa prova é o consenso geral acerca da sua validade” (BOBBIO, 2004, p. 26). Em outras palavras, a Declaração de Direitos Humanos da ONU retrata não só um consenso, nem apenas uma universalidade de determinado sistema de valores e princípios fundamentais de conduta humana positivado e adotado pelas nações – valores esses justificados por um fundamento histórico –, mas também serve de “inspiração e orientação no processo de crescimento de toda a comunidade internacional no sentido de uma comunidade não só de Estados, mas de indivíduos livres e iguais”128 (BOBBIO, 2004, p. 27). A preocupação que segue, portanto, não é mais encontrar a “razão das razões”, mas sim “pôr as condições para uma mais ampla e escrupulosa realização dos direitos proclamados” (BOBBIO, 2004, p. 23). Entretanto, embora a DHDU/48 afirme que todos e qualquer ser humano nasce livre e igual em dignidade e direitos, Bobbio salienta que se trata apenas de um eco da Declaração em relação ao jusnaturalismo moderno. Isso porque, de fato, para o autor, os homens não nascem livres nem iguais; na verdade, são apenas “livres e iguais com relação a um nascimento ou natureza ideais” (BOBBIO, 2004, p. 29). Liberdade e igualdade, para Bobbio, não são dados, mas sim ideais a serem atingidos. Ainda, por mais que se creia serem inquestionáveis os Direitos Humanos contidos na Declaração de 1948, e embora seja a Declaração apenas o início de um longo processo129, sem nenhuma pretensão de numerar direitos de forma imutável, é no campo da ação, da política, que encontramos as reservas e as oposições a esses direitos, como podemos observar das discussões acerca do Estatuto da Família na Câmara dos Deputados.

(nesse sentido, universalizável) que outros [...]. A afirmação da universalidade dos direitos se analisa conseqüentemente mais como uma aspiração e uma prescrição endereçada aos governantes do que como uma constatação”. (sic) 128 Em sentido semelhante, e no que diz respeito à DUDH/48 da ONU, Helena Esser dos Reis (2014, p. 268) afirma que o “ato declaratório, ainda que em grande medida seja performativo, posto que aparece no cenário internacional como a representação pública da condenação das atrocidades e violações que a humanidade pratica sobre si mesma, é também um ato prescritivo que indica o correto a ser feito. Ainda que o próprio texto reconheça a Declaração como um ‘ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações’, portanto, um princípio regulador cujas ações devem mirar como o alvo a ser atingido, a Declaração é firme no que diz respeito ao esforço necessário para transformar esse ideal em práticas compartilhadas pelas pessoas, povos e estados. O esforço de transformação solicitado pela Declaração não é ingênuo nem retórico. Parte do suposto que o ideal é normativo, mas que é também um indicativo para a ação, o qual jamais será atingido se os princípios não se transformarem em regras para a ação”. [grifos no original] 129 Nas palavras de Bobbio (2004, p. 33), a DHDU/48 “representa uma consciência histórica que a humanidade tem dos próprios valores fundamentais na segunda metade do século XX. É uma síntese do passado e uma inspiração para o futuro: mas suas tábuas não foram gravadas de uma vez para sempre”. Assim, do ponto de vista da filosofia da história, Bobbio (2004, p. 49) afirma que o atual debate sobre os Direitos Humano foi “posto na ordem do dia pelas mais autorizadas assembléias internacionais”, podendo “ser interpretado como ‘um sinal premonitório’ (signum prognosticum) do progresso moral da humanidade”. (sic) [grifos no original]

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Para a realização dos Direitos Humanos, diz Bobbio (2004, p. 43), “são freqüentemente necessárias condições objetivas que não dependem da boa vontade dos que os proclamam, nem das boas disposições dos que possuem os meios para protegê-los” (sic). Não se trata de problema filosófico, moral ou jurídico: sua solução “depende de um certo desenvolvimento da sociedade e, como tal, desafia até mesmo a Constituição mais evoluída e põe em crise até mesmo o mais perfeito mecanismo de garantia jurídica”. Afinal, arremata: “A efetivação de uma maior proteção dos direitos do homem está ligada ao desenvolvimento global da civilização humana” (BOBBIO, 2004, p. 44). Bobbio, nesse sentido, demonstra maior preocupação com o modo mais seguro para garantir Direitos Humanos, “para impedir que, apesar das solenes declarações, eles sejam continuamente violados”, e menor em “saber quais e quantos são esses direitos, qual é a sua natureza e seu fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos”. Ainda, apesar de Bobbio sustentar que o valor inerente aos Direitos Humanos como coisas desejáveis ou fins que merecem ser perseguidos são justificados pela adesão dos Estados à Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948, o filósofo italiano não aponta limites ou qualquer conteúdo ao mencionado valor, mas tão-somente que foi justificado por um fundamento histórico. Vejamos, a exemplo das discussões carreadas na sessão de votação do segundo Parecer do Estatuto da Família na Câmara dos Deputados, minunciados no Capítulo anterior, que os direitos contidos na DUDH/48 encontram amiúde oposições e reservas – justamente por, segundo Bobbio, tratarem-se de princípios abertos com carga axiológica. Bobbio em momento algum nega a opulência valorativa que carregam consigo os Direitos Humanos. Entretanto, não são bem estabelecidos seus limites nem seu conteúdo semântico, de forma que, de acordo com o viés procedimentalista, seria possível a oposição de Direitos Humanos com fulcro nos próprios Direitos Humanos, o que poderia acarretar retrocessos no ordenamento. Nessa perspectiva, não obstante o entendimento procedimentalista da Declaração de 1948 como uma plataforma substancial de afirmação da civilidade humana e propiciadora da efetividade de Direitos Humanos, o documento por si só “não resolve as antinomias valorativas inerentes ao desenvolvimento dos direitos”, conforme aponta Mário Reis Marques (2013, p. 254). Assim sendo, entendemos necessário cuidar para que Direitos Humanos não se tornem uma repetição vaga, ou simples retórica (BARROSO, 2002, p. 151). Considerando o exposto – mas, todavia, antes de seguirmos com a visão substancialista de Direitos Humanos –, dedicar-nos-emos a três observações que buscam

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estabelecer relações entre os Direitos Humanos e a principiologia da CRFB/88 de acordo com o procedimentalismo em Bobbio. A primeira, sucinta, é atinente à relatividade histórica dos direitos reconhecida por Bobbio, a partir da qual podemos considerar os direitos tidos como fundamentais na CRFB/88 como, em verdade, direitos fundamentais de hoje, pertinentes à época presente vivenciada pela sociedade brasileira. A segunda se refere ao caráter principiológico da Constituição de 1988, enquanto a terceira observação relaciona, de um lado, a técnica mais moderna adotada pelo texto constitucional em relação à disposição de suas normas com, de outro, a afirmação de Bobbio acerca das relações Estado-indivíduo, soberano-súdito e Direitos Humanos – razão pela qual serão tratadas em conjunto. Para o autor, essas relações são encaradas: cada vez mais, do ponto de vista dos direitos dos cidadãos não mais súditos, e não do ponto de vista dos direitos do soberano, em correspondência com a visão individualista da sociedade segundo a qual, para compreender a sociedade, é preciso partir de baixo, ou seja, dos indivíduos que a compõem, em oposição à concepção orgânica tradicional, segundo a qual a sociedade como um todo vem antes do indivíduo. (BOBBIO, 2004, p. 4)

Com efeito, durante muito tempo, antes da passagem da pré-modernidade à modernidade, os deveres, as obrigações, ocupavam o primeiro plano dos códigos normativos. Como bem ressalta Luca Baccelli (2013, p. 107), “A afirmação dos direitos humanos, nas teorias jusnaturalistas modernas, e, mais tarde, nas declarações do final do século XVIII, vira a moeda”, isto é, “diferentemente do que havia ocorrido na longa tradição do pensamento político, iniciou-se a olhar para a relação entre governantes e governados não mais ex parte principis, mas ex parte populi”130 [grifos no original]. Durante paulatina afirmação da concepção individualista da sociedade e do Estado (segundo a qual o estudo da sociedade deve partir do estudo das ações do indivíduo), que substituiu a concepção organicista, é possível perceber a inversão da relação tradicional entre direitos e deveres. No Brasil, ao contrário das Constituições anteriores, a CRFB/88 trouxe o rol descritivo de direitos antes de dispor sobre os deveres dos cidadãos – e essa técnica, a nosso ver, e com lastro nos preceitos indicados por Bobbio, não se deu por acaso, mas sim em observância à inversão nas relações Estado-indivíduo e soberano-súdito com a afirmação dos Direitos Humanos. A inversão da perspectiva dessas relações, na Modernidade, é um passo 130

Significa dizer que, se antes o poder social era encarnado no Soberano, agora, a partir do ponto de vista dos súditos, a preocupação do governante deixa de ser a mera manutenção da ordem como instrumento para a perpetuação do poder. A sociedade, por meio do uso público de sua razão e das instituições, deveria garantir a liberdade, seu valor mais importante.

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para a “o reconhecimento dos direitos do cidadão de cada Estado até o reconhecimento dos direitos do cidadão do mundo”, afirma Bobbio (2004, p. 4). Sob outra perspectiva, José Afonso da Silva (2015, p. 181) destaca que o fato de a Constituição ter adotado os termos direitos fundamentais e garantias fundamentais denota a presença de “princípios que resumem uma concepção do mundo que orienta e informa a luta popular para a conquista definitiva da efetividade desses direitos” 131 [grifos acrescidos]. Ou seja, para o autor, os direitos fundamentais contidos na CRFB/88, verdadeiros princípios, tiveram como inspiração e ainda inspiram reivindicações e lutas para a conquista dos direitos consubstanciados na Declaração Universal de Direitos Humanos, do qual o Brasil é signatário. Nos termos do aporte teórico apresentado por Barroso, a realidade acima descrita por Silva somente se revela praticável graças à compreensão não procedimental, mas substancialista da Constituição. Dito de outra forma, apenas por meio de um sistema aberto de princípios e regras, permeado por valores jurídicos suprapositivos comprometidos com a boafé, que desempenham um papel central em nome de ideais como justiça e realização dos Direitos Humanos com um conteúdo mínimo, é que se pode orientar uma luta popular que efetivamente conquiste direitos (BARROSO, 2013, p. 344). Barroso anuncia, de pronto, que dentre os princípios constitucionais de maior destaque na CRFB/88 encontram-se os Direitos Humanos. Seu centro é a pessoa humana, que tem valor em si mesma e é digna de respeito; também é potencial autora de reivindicações tais como de defesa contra a violência, a miséria, a exploração e o aviltamento (BOBBIO, 2000b; DAGGER, 1995; COMPARATO, 2013). Com a vigência da CRFB/88, os Direitos Humanos passaram a ocupar uma posição de supremacia no ordenamento jurídico – ela primeira vez, afirma Fábio Konder Comparato (2009, p. 450), sua regulação é prevista no início do documento constitucional. Ademais, para o autor, a CRFB/88 se valeu de três princípios para a organização dos Direitos Humanos em seu texto, a respeito dos quais discorreremos brevemente nas linhas seguintes. O primeiro desses princípios, constante no parágrafo primeiro do artigo 5o, anuncia que “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”. Entretanto, caso surja a alegação de que inexiste norma definidora no ordenamento jurídico, e com isso se torne inviável o exercício de direitos e prerrogativas, a própria CRFB/88 (art. 5 o,

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Aliás, também para Bobbio, os direitos, incluídos os do homem, “constituem o resultado do conflito social: ‘surgem gradativamente das lutas que o homem trava para a sua própria emancipação e das transformações das condições de vida que essas lutas produzem’”. (BACCELLI, 2013, p. 111)

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LXXI) traz a previsão do mandado de injunção, que constitui o remédio judicial adequado para sanar tal dificuldade. A esse respeito, Comparato (2009, p. 451) alerta para o fato de que é defeso aos Poderes Executivo e Judiciário, diante do caso concreto em apreço, negar cumprimento imediato às normas constitucionais alusivas aos direitos e garantias fundamentais. O segundo princípio a respeito da organização dos Direitos Humanos na CRFB/88 estatui que os direitos e garantias ali expressos “não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”, conforme redação dada pelo artigo 5o, § 2º do texto constitucional. Esse princípio, para Flávia Piovesan, permite seja mantida uma maior interação entre a CRFB/88 e a DHDU/48 (BRASIL, 1988). Tal possibilidade dialógica se justifica em razão de que, por força da previsão constitucional ali inserta, os direitos arrolados na DUDH/48 passam a ser recepcionados e incorporados constitucionalmente, já que o Brasil ratificou a DUDH/48. “Ao efetuar tal incorporação”, assegura Piovesan (2009, p. 465), “a Carta está a atribuir aos direitos internacionais uma hierarquia especial e diferenciada, qual seja, a de norma constitucional”. O terceiro e último princípio estrutural dos Direitos Humanos tem supedâneo no artigo 5o, § 2º e também no parágrafo seguinte do mesmo artigo, incluído pela Emenda Constitucional no 45, de dezembro de 2004: “§ 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”132. Nesse sentido, a inserção de Direitos Humanos na Carta da República, tanto dos constitucionalmente protegidos (explícitos e implícitos) como dos enunciados nos tratados internacionais de que o Brasil é signatário, configura inovação por parte da CRFB/88, de acordo com Flávia Piovesan (2009, p. 465). Aliás, a autora afirma que existe “um Direito pré e pós-88 no campo dos direitos humanos”, e até mesmo que por meio da CRFB/88 houve “a reinvenção do marco jurídico dos direitos humanos” no Brasil (PIOVESAN, 2013, p. 96). As relações entre a Constituição de 1988 e a Declaração de 1948 também se revelam a partir de dois aspectos fundamentais da DUDH/48 reafirmadas por Piovesan. A primeira é

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Comparato entende que esse dispositivo acrescido constitui violação ao princípio da irreversibilidade dos Direitos Humanos. Para o autor, “Dado que o principio da dignidade transcendental da pessoa humana se impõe não só aos Poderes Públicos em cada Estado, mas também a todos os Estados no plano internacional, é juridicamente inválido suprimir ou enfraquecer direitos fundamentais por via de novas regras”.

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atinente às próprias características conceituais de Direitos Humanos, dentre elas a universalidade e a sua indivisibilidade: A Declaração de 1948 introduz a concepção contemporânea de direitos humanos, marcada pela universalidade e indivisibilidade desses direitos. Universalidade porque clama pela extensão universal dos direitos humanos, sob a crença de que a condição de pessoa é o requisito único para a titularidade de direitos, considerando o ser humano como um ser essencialmente moral, dotado de unicidade existencial e dignidade, esta como valor intrínseco à condição humana. Indivisibilidade porque a garantia dos direitos civis e políticos é condição para a observância dos direitos sociais, econômicos e culturais e vice-versa. Quando um deles é violado, os demais também o são. Os direitos humanos compõem, assim, uma unidade indivisível, interdependente e inter-relacionada, capaz de conjugar o catálogo de direitos civis e políticos com o catálogo de direitos sociais, econômicos e culturais. (PIOVESAN, 2009, p. 462)

A segunda, por sua vez, atine ao desenvolvimento de instrumentos internacionais de proteção aos Direitos Humanos: A partir da aprovação da Declaração Universal de 1948 e da concepção contemporânea de direitos humanos por ela introduzida, começa a se desenvolver o Direito Internacional dos Direitos Humanos, mediante a adoção de inúmeros tratados internacionais voltados à proteção de direitos fundamentais. Os instrumentos internacionais de proteção refletem, sobretudo, a consciência ética contemporânea compartilhada pelos Estados, na medida em que invocam o consenso internacional acerca de temas centrais aos direitos humanos. (PIOVESAN, 2009, p. 462)

É possível afirmar, em vista dos excertos trazidos, que a Declaração Universal de Direitos Humanos não apenas se comunica presentemente com a Constituição de 1988; antes, é fonte de impacto no ordenamento jurídico brasileiro pós-88. Não apenas porque o conceito contemporâneo de Direitos Humanos, utilizado também pelo Brasil, foi cunhado pela DUDH/48; do mesmo modo, não em razão unicamente de tantos tratados internacionais de Direitos Humanos – muitos deles ratificados pelo Brasil – terem origem graças à aprovação da DUDH/48. Com efeito, o impacto maior apontado por Piovesan se revela no fato de que muitos dispositivos da CRFB/88 são reproduções fiéis133 de enunciados de documentos de Direitos Humanos, dentre eles a DUDH/48. Os princípios constitucionais de Direitos Humanos, portanto, são centrados na pessoa humana, ocupam posição de supremacia no ordenamento jurídico, e têm aplicação imediata. Ademais, não se limitam àqueles expressos no texto constitucional, mas compreendem também os ali implícitos, além dos direitos e garantias decorrentes do regime e dos princípios 133

Como exemplo, a autora cita que o artigo 5o, III, da Constituição de 1988, ao prever que “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”, o dispositivo reproduz quase que literalmente o artigo V da DUDH/48. Da mesma forma, citamos o princípio consagrado no início do caput do artigo 5o, “Todos são iguais perante a lei”, é idêntico ao início do artigo VII da DUDH/48.

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adotados pela CRFB/88 e dos tratados internacionais em que o Brasil seja parte – que, por fim, já afirmamos, terão, segundo tese majoritária do Supremo, status de norma supralegal134 (ou, se alcançado o quorum de que trata o 5o, § 3º, do texto constitucional, seu status será de emenda constitucional)135. No entanto, ainda resta conhecermos o conteúdo mínimo desses princípios constitucionais que, além de estabelecerem seus limites e possibilidades, permitem que os princípios constitucionais de Direitos Humanos possam ser utilizados legitimamente, livres de relativismos. Para esse mister, analisaremos os Direitos Humanos e seu conteúdo à luz da CRFB/88, por representar a explicação do contrato social brasileiro e o estatuto jurídico e político pátrio, e utilizando como parâmetro o princípio da dignidade da pessoa humana. O valor da dignidade da pessoa humana, que de forma inédita foi elevado pela CRFB/88 como fundamento da República, conforme artigo 1o, III, “impõe-se como núcleo básico e informador do ordenamento jurídico brasileiro, como critério e parâmetro de valoração a orientar a interpretação e compreensão do sistema constitucional instaurado em 1988”, segundo Piovesan (2009, p. 465). De forma similar, Barroso (2012, p. 154) concebe a dignidade da pessoa humana não apenas como um valor fundamental, um princípio constitucional de caráter interpretativo, mas, sobretudo, como justificação moral e fundamento jurídico-normativo dos direitos fundamentais. Com efeito, conforme Barroso (2012, p. 161-162), a “dignidade humana e os direitos humanos (ou fundamentais) são intimamente relacionados, como as duas faces de uma mesma moeda”. Na ótica do jurista, enquanto a dignidade da pessoa humana volta-se para a Filosofia, expressando “os valores morais que singularizam todas as pessoas, tornando-as merecedoras de igual respeito e consideração”, os direitos humanos, por sua vez, são voltados para o Direito136, “contemplando os direitos fundamentais” (BARROSO, 2012, p. 162). Aliás, mais do que isso: os direitos fundamentais representam a moral sob a forma de Direito, explica.

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Cabe relembrar que, conforme assevera Valério Mazzuoli (2011, p. 87), a norma supralegal ou hierárquica intermediária é aquela que está “abaixo da Constituição, mas acima de toda a legislação infraconstitucional”. 135 A esse respeito, e perfilhando a tese minoritária do STF, Flavia Piovesan entende que os direitos enunciados em tratados internacionais de proteção dos direitos humanos ratificados anteriormente à inserção do § 3o ao artigo 5o da CRFB/88 apresentam valor de norma materialmente constitucional; enquanto que os aprovados sob o quorum previsto nesse parágrafo do artigo 5o são material e formalmente constitucionais. Também, mais à frente, ao discutirmos sobre o controle de convencionalidade, Mazzuoli (2011, p. 87) resgatará a discussão aqui iniciada por Maués, ao afirmar que, na sua leitura, tratados de Direitos Humanos “ostentam o status de norma constitucional, independentemente do seu eventual quorum qualificado de aprovação”. 136 A respeito do entendimento de Barroso de que os Direitos Humanos voltam-se para o Direito, manifestamos nossa discordância. Conforme apresentamos no início deste trabalho, julgamos necessária a abordagem interdisciplinar em Direitos Humanos, a fim de que a investigação seja construída a partir do diálogo e articulação de ramos complementares da ciência, e não produto de uma única especialidade fragmentada.

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Se Barroso necessita identificar o conteúdo moral dos elementos que considera parte da dignidade humana para então revelar o conteúdo mínimo da ideia de dignidade humana; e se considerarmos que dignidade humana e Direitos Humanos são intimamente relacionados, então parece-nos possível afirmar que esse conteúdo moral analisado é, no mínimo: a) núcleo básico e informador do ordenamento jurídico brasileiro; b) critério e parâmetro de valoração a orientar a interpretação e compreensão do sistema constitucional brasileiro; c) valor de interpretação constitucional; e d) justificação moral e fundamento jurídico-normativo dos direitos fundamentais. Diante dessa construção tomaremos os elementos parte do núcleo essencial da dignidade humana (conforme aponta Barroso) como sendo os mesmos para a análise do conteúdo mínimo dos Direitos Humanos como um todo. Entretanto, em razão de já termos exposto acerca de suas características quando propusemos o neoconstitucionalismo como segundo lance para a democracia, reservaremos apenas alguns comentários a respeito da questão, com enfoque especial sobre o valor comunitário. No seguimento proposto por Barroso, a pessoa humana possui um valor intrínseco, ou seja, possui uma natureza singular composta pela combinação de seus traços – tanto físicos como imateriais – que vale por si mesma. Esse valor é o que o diferencia dos outros seres vivos; não depende de qualquer evento ou experiência, não pode ser perdido ou cedido, e independe até mesmo da razão. No plano jurídico, o valor intrínseco está na origem do conjunto de direitos fundamentais, como o direito à vida, à igualdade perante a lei, à integridade, à igualdade (BARROSO, 2012, p. 162-167). Também faz parte da dignidade da pessoa humana, como seu elemento ético, a autonomia. Trata-se do fundamento do livre-arbítrio, da autodeterminação, de lhe permitir buscar seu ideal de via boa. Na prática política e na vida social, a vontade pessoal é restringida pelo direito e pelos costumes e normas sociais. Assim, a autonomia está subjacente a um conjunto de direitos fundamentais associados com o neoconstitucionalismo e o direito de participação política. A autonomia privada, além de oferecer parâmetros para a definição do conteúdo e do alcance dos direitos e liberdades, também requer o sopesamento de fatos complexos e que se leve em consideração fatos contraditórios, com o fim de se alcançar o equilíbrio adequado (BARROSO, 2012, 167-171). O conceito de mínimo existencial, ainda segundo o autor, é ínsito à de dignidade humana. Caracterizado como o direito básico às provisões necessárias para que se garanta vida digna, o mínimo existencial está entrelaçado às ideias de igualdade e autonomia. Nesse sentido, para que sejam livres, iguais e capazes de exercer cidadania de forma responsável, é

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necessário que lhes sejam garantidas possibilidades para além do limiar mínimo, sob pena de a autonomia que pensam garantir-lhe se tornar ficção (BARROSO, 2012, p. 171-173). Por fim, o valor comunitário, terceiro e último elemento que emprestamos aos Direitos Humanos, refere-se ao elemento social da dignidade. Aqui são identificadas duas forças que agem sobre o indivíduo: a) compromissos, valores e “crenças compartilhadas” de um grupo social; e b) normas impostas pelo Estado. A autonomia do indivíduo, nesse esteio, é frequentemente restringida por valores, costumes e direitos de outras pessoas (BARROSO, 2012, p. 173-174). Nas palavras de Barroso (2012, p. 174), “A dignidade como valor comunitário enfatiza, portanto, o papel do Estado e da comunidade no estabelecimento de metas coletivas e de restrições sobre direitos e liberdades individuais em nome de certa concepção de vida boa. A questão relevante aqui”, continua o autor, “é saber em quais circunstâncias e em que grau essas ações devem ser consideradas legítimas em uma democracia constitucional”. Ademais, para o jurista, as interferências estatais na vida privada devem ser justificadas sobre as bases de um consenso sobreposto137, que possa ser compartilhado pela maioria dos indivíduos. O valor comunitário busca ainda a sua legitimidade a partir de três objetivos: a) a proteção dos direitos e da dignidade de terceiros; b) a proteção dos direitos e da dignidade do próprio indivíduo; e c) a proteção dos valores sociais compartilhados. O que se pretende através dos objetivos é enfrentar responsabilidades e deveres associados às escolhas individuais. Em que pese o caráter de limitação do valor comunitário, o autor afirma que as decisões que impõem coercitivamente valores sociais têm que ser fundamentadas racionalmente138, evitando-se, assim, o que o autor aponta como paternalismo, moralismo e tirania das maiorias (BARROSO, 2013, p. 277) Os princípios constitucionais de Direitos Humanos, desse modo, devem ser invocados e utilizados legitimamente, observados procedimentos e conceitos mínimos. Para que sejam manuseados, esses princípios devem ser pautados como conceitos operacionais e conhecer limites de aplicação. Amparados no paralelo com o princípio da dignidade humana, devemos

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De acordo com Barroso (2012, p. 175), “‘Consenso sobreposto’ é uma expressão cunhada por John Rawls que identifica as ideias básicas de justiça capazes de ser compartilhadas por defensores de diferentes doutrinas abrangentes, sejam religiosas, políticas ou morais”. 138 Deve-se levar em conta: “a) a existência ou não de um direito fundamental em questão; b) a existência de consenso social forte em relação ao tema; e c) a existência de risco efetivo para o direito de outras pessoas” (BARROSO, 2013, p. 277).

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procurar apartá-los de doutrinas abrangentes139, para que se conservem abertos e plurais, além de armamento útil no combate ao que Barroso entende como arbitrariedades, dominações majoritárias e retrocessos. Isso significa que, em outras palavras, ao se invocar os princípios constitucionais de Direitos Humanos, é necessário que se observem limites, a exemplo dos atinentes à dignidade da pessoa humana, para que se mantenha a sua força e pluralidade: garantia de vida digna e de mínimo existencial, igualdade perante a lei, integridade, igualdade, autonomia, (pública e privada) e cidadania, para citar alguns. Por outro lado, assim como a DUDH/88, outros diplomas internacionais de Direitos Humanos mantêm ligações com princípios de Direitos Humanos insertos na CRFB/88, em especial, consoante o foco deste trabalho, seja protegendo a figura da família, em maior ou menor grau, seja dispondo sobre ou garantindo direitos a todos de formarem, de forma equânime, entidades familiares. No que concerne às garantias e proteções que a DUDH/48 confere à família, seu texto aponta, desde logo, que o fundamento da liberdade, justiça e paz no mundo são o reconhecimento da dignidade humana como inerente a todos os membros da família humana e seus direitos, iguais e inalienáveis. Nesse sentido, e como prevê Bobbio, a Declaração é um ideal comum a ser atingido por todos, para que sejam promovidos, reconhecidos e observados o respeito a direitos e liberdades universais. Ao longo das proteções previstas em seus trinta artigos, salientamos que, de acordo com o Artigo I, todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Na mesma toada, segue o texto, todos são dotados de razão e consciência e é seu dever que ajam com espírito de fraternidade em relação uns aos outros. De modo semelhante, de acordo com o Artigo II, todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos na DUDH/48 sem distinção de nenhuma espécie (raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento etc.). A Declaração também não admite qualquer distinção fundada na condição política, jurídica ou internacional do país ou território a que pertença um indivíduo (seja território independente, sob tutela, sem governo próprio ou sujeito a qualquer outra limitação de soberania).

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Conforme citamos previamente: “A primeira tarefa que se impõe é afastá-la [a ideia de dignidade] das doutrinas abrangentes, sejam elas religiosas ou ideológicas. As características de um conteúdo mínimo devem ser a laicidade – não pode ser uma visão judaica, católica ou mulçumana de dignidade -, a neutralidade política – isto é, que possa ser compartilhada por liberais, conservadores e socialistas – e a universalidade – isto é, que possa ser compartilhada por toda a família humana. [grifos no original] (BARROSO, 2013, p. 274)

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Além do mais, seu texto garante que todos têm o direito de serem reconhecidos como indivíduos iguais perante a lei, protegidos de qualquer discriminação, indistintamente, e seja no lugar que for (Artigos VI e VII). Ainda, a eles devem ser garantidos os direitos tanto à liberdade de pensamento, consciência e religião (Artigo XVIII) como à de opinião e expressão (Artigo XIX). A DUDH/88, além de proteger direitos individuais para que se sintam livres à constituição de entidades familiares, também prevê, no Artigo XVI, que homens e mulheres maiores de idade, desde que a partir de livre e pleno consentimento, sem qualquer restrição de raça, nacionalidade ou religião, têm o direito de contrair matrimônio e fundar uma família, com iguais direitos em relação ao casamento, sua duração e sua dissolução. Família, nesse sentido, é caracterizada como o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção da sociedade e do Estado. Para além da DUDH/48, Maria Berenice Dias, na obra intitulada Homoafetividade e os direitos LGBTI, aponta que o Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas, em 2003, assinalou que as legislações que proíbam pensão militar a casais de mesmo sexo violam o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (um dos instrumentos constituintes da Carta Internacional dos Direitos Humanos, aprovado em 1966 pela Assembleia Geral das Nações Unidas), ratificado pelo Brasil em 1992. Também a ONU, por meio de seu Conselho de Direitos Humanos, em 2011, declarou na sua décima sétima sessão que os direitos LGBTTTI são direitos humanos e, por maioria de votos, o Conselho das Nações Unidas “aprovou resolução para promover a igualdade entre as pessoas, sem distinção por orientação sexual”, o mesmo passo que, consoante a autora, “requereu um estudo sobre as leis discriminatórias e as violências contra os indivíduos por sua orientação sexual” (DIAS, 2014, p. 81-82). Na mesma toada, a Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), quando da Resolução no 2.435/2008, aprovou a Declaração sobre Direitos Humanos, Orientação Sexual e Identidade de Gênero, que, além de afirmar que todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos, reforça “o principio de não discriminação, que exige que os direitos humanos se apliquem por igual a todos os seres humanos, independentemente de sua orientação sexual ou identidade de gênero”. Ainda segundo o texto, são condenadas, dentre outras, as violações de direitos humanos fundadas na orientação sexual ou na identidade de gênero, independentemente de onde aconteçam, “em particular o uso da pena de morte sobre esta base, as execuções extrajudiciais, sumárias ou arbitrárias, a prática da tortura e outros tratos ou penas cruéis” (OEA, 2008).

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Não podemos deixar de mencionar, também, a Declaração dos Direitos Sexuais, elaborada em 1997 no XIII Congresso Mundial de Sexologia em Valência, Espanha, e aprovada em 1999 pela Assembleia Geral da WAS - World Association for Sexology em Hong Kong, China. A Declaração é composta de onze itens, a saber: 1. O DIREITO À LIBERDADE SEXUAL – A liberdade sexual diz respeito à possibilidade dos indivíduos em expressar seu potencial sexual. No entanto, aqui se excluem todas as formas de coerção, exploração e abuso em qualquer época ou situações de vida. 2. O DIREITO À AUTONOMIA SEXUAL, INTEGRIDADE SEXUAL E À SEGURANÇA DO CORPO SEXUAL – Este direito envolve a habilidade de uma pessoa em tomar decisões autônomas sobre a própria vida sexual num contexto de ética pessoa e social. Também inclui o controle e p prazer de nossos corpos livres de tortura, mutilação e violência de qualquer tipo. 3. O DIREITO À PRIVACIDADE SEXUAL – O direito às decisões individuais e aos comportamentos sobre intimidade desde que não interfiram nos direitos sexuais dos outros. 4. O DIREITO A LIBERDADE SEXUAL – Liberdade de todas as formas de discriminação, independentemente do sexo, gênero, orientação sexual, idade, raça, classe social, religião, deficiências mentais ou físicas. 5. O DIREITO AO PRAZER SEXUAL – prazer sexual, incluindo autoerotismo, é uma fonte de bem estar físico, psicológico, intelectual e espiritual. 6. O DIREITO À EXPRESSÃO SEXUAL – A expressão é mais que um prazer erótico ou atos sexuais. Cada indivíduo tem o direito de expressar a sexualidade através da comunicação, toques, expressão emocional e amor. 7. O DIREITO À LIVRE ASSOCIAÇÀO SEXUAL – significa a possibilidade de casamento ou não, ao divórcio, e ao estabelecimento de outros tipos de associações sexuais responsáveis. 8. O DIREITO ÀS ESCOLHAS REPRODUTIVAS LIVRE E RESPONSÁVEIS – É o direito em decidir ter ou não ter filhos, o número e tempo entre cada um, e o direito total aso métodos de regulação da fertilidade. 9. O DIREITO À INFORMAÇÃO BASEADA NO CONHECIMENTO CIENTÍFICO – A informação sexual deve ser gerada através de um processo científico e ético e disseminado em formas apropriadas e a todos os níveis sociais. 10. O DIREITO À EDUCAÇÃO SEXUAL COMPREENSIVA – Este é um processo que dura a vida toda, desde o nascimento, pela vida afora e deveria envolver todas as instituições sociais. 11. O DIREITO A SAÚDE SEXUAL – O cuidado com a saúde sexual deveria estar disponível para a prevenção e tratamento de todos os problemas sexuais, precauções e desordens. [grifos no original]

Ademais, a respeito dos princípios de Direitos Humanos em sede internacional e da vedação a qualquer espécie de discriminação, incluída a relacionada à diversidade sexual, apontamos os Princípios de Yogyakarta, segundo os quais a “orientação sexual e a identidade gênero são essenciais para a dignidade e humanidade de cada pessoa e não devem ser motivo de discriminação ou abuso”. Segundo Dias (2014, p. 83), a Comissão Internacional de Juristas (ICJ - International Commission of Jurists, sediada na Suíça) e o Serviço Internacional de Direitos Humanos (ISHR - International Service for Human Rights, com sede na Suíça e em Nova York, Estados Unidos) “desenvolveram projeto com o objetivo de criar um conjunto de princípios jurídicos

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internacionais sobre a aplicação da legislação internacional às violações de direitos humanos, com base na orientação sexual e identidade de gênero”. O resultado do projeto foi o texto conhecido como Princípios de Yogyakarta sobre a Aplicação da Legislação Internacional de Direitos Humanos em Relação à Orientação Sexual e Identidade de Gênero, ou simplesmente Princípios de Yogyakarta. Embora tal diploma não tenha resultado de esforços comuns entre Estados, mas sim da conjunção de empenhos entre vinte e nove humanistas de vinte e cinco países, reunidos na Universidade de Gadjah, na cidade de Yogyakarta, Indonésia, as normas (segundo Maria Berenice Dias) ou as recomendações (de acordo com o Ministro Celso de Mello) de Direitos Humanos ali contidas, que totalizam vinte e nove140, são vinculantes, devendo ser cumpridas por todos os Estados, conforme consignado em seu texto. Além disso, trata-se de “uma espécie de nova interpretação das normas já existentes sobre direitos humanos, a fim de aplicá-las em situações de discriminação em virtude das orientações sexuais. Devem ser efetivamente aplicadas pelos Estados”, assevera Dias (2014, p. 83), “uma vez que as regulamentações existentes sobre direitos humanos já foram ratificadas em diversos tratados internacionais. Nada mais que uma reinterpretação dessas legislações” [grifos no original]. Dentre os princípios que compõem o diploma internacional, ressaltamos em especial o de Constituir Família, o qual dispõe, na sua íntegra, que: Toda pessoa tem o direito de constituir uma família, independente de sua orientação sexual ou identidade de gênero. As famílias existem em diversas formas. Nenhuma família pode ser sujeita à discriminação com base na orientação sexual ou identidade de gênero de qualquer de seus membros. Os Estados deverão: a) Tomar todas as medidas legislativas, administrativas e outras medidas necessárias para assegurar o direito de constituir família, inclusive pelo acesso à adoção ou procriação assistida (incluindo inseminação de doador), sem discriminação por motivo de orientação sexual ou identidade de gênero; b) Assegurar que leis e políticas reconheçam a diversidade de formas de família, incluindo aquelas não definidas por descendência ou casamento e tomar todas as medidas legislativas, administrativas e outras medidas necessárias para garantir que 140

Direito ao Gozo Universal dos Direitos Humanos; Direito à Igualdade e a Não-Discriminação; Direito ao Reconhecimento Perante a Lei; Direito à Vida; Direito à Segurança Pessoal; Direito à Privacidade; Direito de Não Sofrer Privação Arbitrária da Liberdade; Direito a um Julgamento Justo; Direito a Tratamento Humano durante a Detenção; Direito de Não Sofrer Tortura e Tratamento ou Castigo Cruel, Desumano e Degradante; Direito à Proteção Contra todas as Formas de Exploração, Venda ou Tráfico de Seres Humanos; Direito ao Trabalho; Direito à Seguridade Social e outras Medidas de Proteção Social; Direito a um Padrão de Vida Adequado; Direito à Habitação Adequada; Direito à Educação; Direito ao Padrão mais Alto Alcançável de Proteção contra Abusos Médicos; Direito à Liberdade de Opinião e Expressão; Direito à Liberdade de Reunião e Associação Pacíficas; Direito à Liberdade de Pensamento, Consciência e Religião; Direito à Liberdade de Ir e Vir; Direito de Buscar Asilo; Direito de Constituir uma Família; Direito de Participar da Vida Pública; Direito de Participar da Vida Cultural; Direito de Promover os Direitos Humanos; Direito a Recursos Jurídicos e Medidas Corretivas Eficazes; Responsabilização (Accountability).

161 nenhuma família possa ser sujeita à discriminação com base na orientação sexual ou identidade de gênero de qualquer de seus membros, inclusive no que diz respeito à assistência social relacionada à família e outros benefícios públicos, emprego e imigração; c) Tomar todas as medidas legislativas, administrativas e outras medidas necessárias para assegurar que em todas as ações e decisões relacionadas a crianças, sejam tomadas por instituições sociais públicas ou privadas, tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, o melhor interesse da criança tem primazia e que a orientação sexual ou identidade de gênero da criança ou de qualquer membro da família ou de outra pessoa não devem ser consideradas incompatíveis com esse melhor interesse; d) Em todas as ações ou decisões relacionadas as crianças, assegurar que uma criança capaz de ter opiniões pessoais possa exercitar o direito de expressar essas opiniões livremente, e que as crianças recebam a devida atenção, de acordo com sua idade e a maturidade; e) Tomar todas as medidas legislativas, administrativas e outras medidas necessárias para garantir que nos Estados que reconheçam o casamento ou parceria registrada entre pessoas do mesmo sexo, qualquer prerrogativa, privilégio, obrigação ou benefício disponível para pessoas casadas ou parceiros/as registrados/as de sexo diferente esteja igualmente disponível para pessoas casadas ou parceiros/as registrados/as do mesmo sexo; f) Tomar todas as medidas legislativas, administrativas e outras medidas necessárias para assegurar que qualquer obrigação, prerrogativa, privilégio ou benefício disponível para parceiros não-casados de sexo diferente esteja igualmente disponível para parceiros não-casados do mesmo sexo; g) Garantir que casamentos e outras parcerias legalmente reconhecidas só possam ser contraídas com o consentimento pleno e livre das pessoas com intenção de ser cônjuges ou parceiras. [grifos nossos]

O Brasil ratificou também, no ano de 1990, a Convenção Sobre os Direitos da Criança, aprovada pela Resolução 44/25 da Assembleia Geral da ONU. Nos termos da Convenção, a família é concebida como unidade fundamental da sociedade e meio natural para o crescimento e bem-estar de todos os seus membros (em particular das crianças), devendo receber toda a proteção e assistência para que possa assumir plenamente suas responsabilidades na comunidade em que está inserida. A criança, nesse viés, deve crescer em um ambiente familiar cujo clima seja de felicidade, amor e compreensão para que sua personalidade desenvolva plena e harmoniosamente. Além disso, segundo seu Artigo 2o, os Estados-partes devem respeitar os direitos previstos na Convenção e assegurá-los a toda criança sujeita à sua jurisdição, sem discriminação de qualquer tipo, independentemente de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou outra, origem nacional, étnica ou social, posição econômica, impedimentos físicos, nascimento ou qualquer outra condição, seja da criança, de seus pais ou mesmo de seus representantes legais. Por fim, e devido à sua importância para os Direitos Humanos em âmbito internacional e pela sua gama de proteções, inclusive às famílias, citamos (mas não nos

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restringimos a) o Pacto Internacional dos Direitos Civil e Políticos141 de 1966, o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais142 também de 1966, a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial 143 de 1968, e a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher144 de 1979. Destacamos, ao longo deste subitem, que os princípios internacionais de Direitos Humanos, aqueles insculpidos nos tratados internacionais de Direitos Humanos ratificados pelo Brasil, possuem status de normas supralegais no ordenamento pátrio, segundo entendimento majoritário do STF. Por outro lado, ressaltamos também que tais princípios internacionais mantêm uma interação dialógica com aqueles insculpidos na CRFB/88, na medida em que a Carta Magna os recepciona e os incorpora constitucionalmente, na visão de Flávia Piovesan. Todavia, uma outra dimensão concernente a esses princípios internacionais

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ARTIGO 23: 1. A família é o elemento natural e fundamental da sociedade e terá o direito de ser protegida pela sociedade e pelo Estado; 2. Será reconhecido o direito do homem e da mulher de, em idade núbil, contrair casamento e constituir família; 3. Casamento algum será celebrado sem o consentimento livre e pleno dos futuros esposos; 4. Os Estados Partes do presente Pacto deverão adotar as medidas apropriadas para assegurar a igualdade de direitos e responsabilidades dos esposos quanto ao casamento, durante o mesmo e por ocasião de sua dissolução. Em caso de dissolução, deverão adotar-se disposições que assegurem a proteção necessária para os filhos. [grifos nossos] 142 ARTIGO 10: Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem que: 1. Deve-se conceder à família, que é o elemento natural e fundamental da sociedade, as mais amplas proteção e assistência possíveis, especialmente para a sua constituição e enquanto ele for responsável pela criação e educação dos filhos. O matrimonio deve ser contraído com o livre consentimento dos futuros cônjuges; 2. Deve-se conceder proteção especial às mães por um período de tempo razoável antes e depois do parto. Durante esse período, deve-se conceder às mães que trabalham licença remunerada ou licença acompanhada de benefícios previdenciários adequados; 3. Devem-se adotar medidas especiais de proteção e de assistência em prol de todas as crianças e adolescentes, sem distinção alguma por motivo de filiação ou qualquer outra condição. Devem-se proteger as crianças e adolescentes contra a exploração econômica e social. O emprego de crianças e adolescentes em trabalhos que lhes sejam nocivos à moral e à saúde ou que lhes façam correr perigo de vida, ou ainda que lhes venham a prejudicar o desenvolvimento norma, será punido por lei. [grifos nossos] 143 Artigo 5º - Em conformidade com as obrigações fundamentais enunciadas no artigo 2, os Estados-partes comprometem-se a proibir e a eliminar a discriminação racial em todas as suas formas e a garantir o direito de cada um à igualdade perante a lei, sem distinção de raça, de cor ou de origem nacional ou étnica, principalmente no gozo dos seguintes direitos: [...] d) outros direitos civis, particularmente: [...] iv) direito de casar-se e escolher o cônjuge. [grifos nossos] 144 Artigo 16 - 1. Os Estados-partes adotarão todas as medidas adequadas para eliminar a discriminação contra a mulher em todos os assuntos relativos ao casamento e às relações familiares e, em particular, com base na igualdade entre homens e mulheres, assegurarão: a) o mesmo direito de contrair matrimônio; b) o mesmo direito de escolher livremente o cônjuge e de contrair matrimônio somente com o livre e pleno consentimento; c) os mesmos direitos e responsabilidades durante o casamento e por ocasião de sua dissolução; d) os mesmos direitos e responsabilidades como pais, qualquer que seja seu estado civil, em matérias pertinentes aos filhos. Em todos os casos, os interesses dos filhos serão a consideração primordial; e) os mesmos direitos de decidir livre e responsavelmente sobre o número de filhos e sobre o intervalo entre os nascimentos e a ter acesso à informação, à educação e aos meios que lhes permitam exercer esses direitos; f) os mesmos direitos e responsabilidades com respeito à tutela, curatela, guarda e adoção dos filhos, ou institutos análogos, quando esses conceitos existirem na legislação nacional. Em todos os casos, os interesses dos filhos serão a consideração primordial; g) os mesmos direitos pessoais como marido e mulher, inclusive o direito de escolher sobrenome, profissão e ocupação; h) os mesmos direitos a ambos os cônjuges em matéria de propriedade, aquisição, gestão, administração, gozo e disposição dos bens, tanto a título gratuito quanto a título oneroso.

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merece destaque: seu valor enquanto parâmetro fulcral de um processo de compatibilização vertical das normas domésticas com os dispositivos encontrados nos tratados internacionais de Direitos Humanos: o controle de convencionalidade, o qual passaremos a examinar.

2.4.1. Para além da supralegalidade das normas internacionais de Direitos Humanos no Brasil: pela observação do controle de convencionalidade no jogo democrático brasileiro

Ao final do Capítulo primeiro, discutimos, com base em Antonio Maués, a possibilidade de que os tratados internacionais de Direitos Humanos sejam utilizados como parâmetro para a interpretação e compatibilização não apenas de normas infraconstitucionais, mas também de constitucionais, apesar de o Supremo Tribunal Federal ter-se posicionado majoritariamente em favor da tese da supralegalidade dos tratados internacionais de Direitos Humanos no ordenamento jurídico brasileiro. Entretanto, Valério de Oliveira Mazzuoli dedica seus estudos a outra face de uma mesma discussão aqui iniciada por Maués, a qual denomina de controle de convencionalidade. Segundo esse sistema, que dialoga com as ideias exprimidas por Maués, a verificação de compatibilidade de determinada lei apenas com a CRFB/88 não mais garante a sua validade no plano do direito pátrio. Para que tal lei alcance validade, ela deve ser obrigatoriamente compatível não apenas com a CRFB/88, mas também com os tratados internacionais (tanto de Direitos Humanos145 como os comuns) ratificados pelo Estado. Caso a lei seja compatível com a CRFB/88, mas não com determinado tratado ou diploma ratificado e em vigor no Brasil, ela poderá até mesmo ser considerada vigente 146 – justamente por estar de acordo com o texto constitucional –, mas não poderá ser considerada válida, já que não compatível com os limites verticais materiais existentes, quais sejam os tratados internacionais em vigor no plano interno. Em suma, nas palavras do autor, “a incompatibilidade da produção normativa doméstica com os tratados internacionais em vigor no plano interno (ainda que tudo seja compatível com a Constituição) torna inválidas as normas jurídicas de direito interno” (MAZZUOLI, 2011, p. 80).

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Mazzuoli filia-se à tese de que diplomas de Direitos Humanos possuem, por um lado, status de norma constitucional, e que, por outro, equivalem-se a emendas constitucionais. Nas suas palavras, eles “ostentam o status de norma constitucional, independentemente do seu eventual quorum qualificado de aprovação” em razão do princípio “da supremacia do direito internacional e da prevalência de suas normas em relação a toda normatividade interna, seja ela anterior ou posterior”. [grifos no original] (MAZZUOLI, 2011, p. 87) 146 Segundo Mazzuoli (2011, p. 80), na perspectiva do Estado Constitucional e Humanista de Direito, “nem toda norma vigente deverá ser tida como válida. Não são poucos os autores atuais que rechaçam a concepção positivista legalista de vigência e validade das normas jurídicas”.

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Se, de acordo com Maués, os tratados internacionais de Direitos Humanos devem tornar-se ferramentas utilizadas como parâmetro para se interpretar e compatibilizar as normas infraconstitucionais e constitucionais, para Mazzuoli, conforme sua proposta do controle de convencionalidade, que nos parece mais abrangente, as normas não compatíveis com esses tratados devem ser consideradas, mesmo que vigentes, inválidas. De forma semelhante a Maués, mas guardadas suas peculiaridades, Mazzuoli (2011, p.79) entende que “todas as normas infraconstitucionais que vierem a ser produzidas no país devem, para a análise de sua compatibilidade com o sistema do atual Estado Constitucional e Humanista de Direito, passar por dois níveis de aprovação”, cada qual referente a um tipo de controle. O primeiro tipo de controle exercido, o controle de convencionalidade das leis, compreende sua aprovação pela CRFB/88 e pelos tratados de Direitos Humanos ratificados pelo Estado, sejam eles material ou formalmente constitucionais. O segundo tipo de controle, o de supralegalidade, abrange a aprovação da lei pelos tratados internacionais comuns também ratificados e em vigor no país. Ou seja, nas palavras do autor, nos termos do sistema por ele proposto, as normas domésticas se sujeitam, para além do controle de constitucionalidade, também a um “controle de convencionalidade (compatibilidade vertical do direito doméstico com os tratados de direitos humanos em vigor no país) e de supralegalidade (compatibilidade vertical do direito doméstico com os tratados comuns em vigor no país)”. (MAZZUOLI, 2011, p. 79) Em relação à identificação de validade e de vigência de uma norma, o autor aponta que sua vigência ou existência147 guarda relações com a forma desse ato normativo. Toda lei vigora formalmente até que seja revogada por outra que lhe é posterior ou até alcançar o seu termo final de vigência, conforme artigos primeiro e segundo da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB)148. Outros aspectos formais concernentes à vigência/existência

Para Mazzuoli, vigência e existência guardam o mesmo significado. Assim, segundo o autor, “para que uma lei seja eficaz, dependerá ela de também ser válida, sendo certo que para ser válida deverá ser ainda vigente”. Em outros termos, a vigência não depende da validade, mas esta depende daquela, assim como a eficácia depende da validade (trata-se de uma escala de valores onde, em primeiro lugar, encontra-se a vigência, depois a validade e, por último, a eficácia)”. (MAZZUOLI, 2011, p. 83-84) 148 Art. 1o Salvo disposição contrária, a lei começa a vigorar em todo o país quarenta e cinco dias depois de oficialmente publicada. § 1o Nos Estados, estrangeiros, a obrigatoriedade da lei brasileira, quando admitida, se inicia três meses depois de oficialmente publicada. [...] § 3o Se, antes de entrar a lei em vigor, ocorrer nova publicação de seu texto, destinada a correção, o prazo deste artigo e dos parágrafos anteriores começará a correr da nova publicação. § 4o As correções a texto de lei já em vigor consideram-se lei nova. Art. 2o Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue. 147

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de uma lei são a sua publicação na imprensa oficial e seu eventual período de vacatio legis. Não havendo esse período de vacância, o artigo 1o da LINDB dispõe que ela deve começar a vigorar em todo o país quarenta e cinco dias após oficialmente publicada. Depois de verificada a existência ou vigência da lei, diz Mazzuoli, é que proceder-se-á à apuração de sua validade. Afinal, como observa, as normas que condicionam a produção da legislação ordinária não são só formais (maneira de aprovação de uma lei, competência para editá-la, quorum de aprovação etc.), senão também, e sobretudo, substanciais (princípio da igualdade, da intervenção mínima, preponderância dos direitos fundamentais, respeito ao núcleo essencial de cada direito etc.). (sic) (MAZZUOLI, 2011, p. 83)

Dessa forma, a identificação da validade de uma lei está intimamente ligada com a questão de coerência ou de compatibilidade das normas produzidas pelo direito pátrio com aquelas de caráter substancial (a CRFB/88 e/ou os tratados internacionais em vigor no Brasil) sobre sua produção, conforme destaca Mazzuoli. Assim, a lei formalmente vigente é aquela elaborada pelo Congresso Nacional, observando-se as regras do processo legislativo estabelecidas pela CRFB/88, que está em condições de entrar em vigor. No entanto, toda a produção legislativa deve contar com limites formais, ou procedimentais, mas também com dois limites verticais materiais. Nessa senda, a lei válida será aquela compatível com a) a Constituição Federal de 1988 e os tratados de Direitos Humanos alçados ao nível constitucional; e b) os tratados internacionais comuns de estatura supralegal. Com efeito, a lei apenas terá sua autoridade respeitada e protegida contra qualquer ataque se compatível com a CRFB/88 e com os tratados de Direitos Humanos (por seu status constitucional) e com os demais tratados dos quais o Brasil é parte (por seu status supralegal), afirma Valério Mazzuoli [grifos nossos]. No entanto, caso a lei não passe pelo exame da compatibilidade vertical material com os tratados internacionais, o autor entende que ela não terá qualquer validade nem eficácia no plano do direito interno pátrio, “devendo ser rechaçada pelo juiz no caso concreto” (MAZZUOLI, 2011, p. 85).

§ 1o A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior. § 2o A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior. § 3o Salvo disposição em contrário, a lei revogada não se restaura por ter a lei revogadora perdido a vigência. (BRASIL, 1942)

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Ainda, o autor aponta quatro situações que podem vir a existir no direito interno brasileiro concernentes à dupla compatibilidade vertical, segundo a tese do controle de convencionalidade que apresenta: (a) se a lei conflitante é anterior à Constituição, o fenômeno jurídico que surge é o da não-recepção, com a conseqüente invalidade material da norma a partir daí; (b) se a lei antinômica é posterior à Constituição, nasce uma inconstitucionalidade, que pode ser combatida pela via do controle difuso de constitucionalidade (caso em que o controle é realizado num processo subjetivo entre partes sub judice) ou pela via do controle concentrado (com a propositura de uma ação direta de inconstitucionalidade no STF pelos legitimados do art. 103 da CF/1988); (c) quando a lei anterior conflita com um tratado (comum – com status supralegal – ou de direitos humanos – com status de norma constitucional) ratificado pelo Brasil e já em vigor no país, ela é revogada (derrogada ou ab-rogada) de forma imediata (uma vez que o tratado que lhe é posterior, e a ela também é superior); e (d) quando a lei é posterior ao tratado e incompatível com ele (não obstante ser eventualmente compatível com a Constituição) tem-se que tal norma é inválida (apesar de vigente) e, conseqüentemente, totalmente ineficaz. (sic) [grifos no original] (MAZZUOLI, 2011, p. 89)

Dentre os casos apresentados por Mazzuoli, o que mais nos chama a atenção é o quarto, por tratar de uma lei posterior (seria o caso do Estatuto da Família) que carrega consigo possíveis incompatibilidades materiais com tratados internacionais. Isto porque entendemos que o Estatuto da Família, como viria a possuir o status de lei infraconstitucional, caso aprovado, teria também que passar pelo prévio controle para verificar a compatibilização com os tratados internacionais de Direitos Humanos. Neste sentido, como afirma Maués, o que se está em jogo, na visão de Mazzuoli, é a própria validade da legislação, ainda que porventura adquira o status de vigente no ordenamento pátrio. O controle de convencionalidade defendido por Valério Mazzuoli, em vista da sua finalidade última, que é “compatibilizar verticalmente as normas domésticas (as espécies de leis, lato sensu, vigentes no país) com os tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Estado e em vigor no território nacional”, deve ser exercido pelos órgãos jurisdicionais nacionais “relativamente aos tratados aos quais o país se encontra vinculado”. Trata-se, assim, de “adaptar ou conformar os atos ou leis internas aos compromissos internacionais assumidos pelo Estado, que criam para este deveres no plano internacional com reflexos práticos no plano do seu direito interno” (MAZZUOLI, 2011, p. 97). É dizer ainda que não somente o Legislativo deve realizar o controle de convencionalidade, mas ainda os tribunais pátrios (além do controle de constitucionalidade) e os tribunais internacionais (ou supranacionais) criados por convenções entre Estados, nas quais esses mesmos Estados se comprometeram e se comprometem, “no pleno e livre exercício de sua soberania, a cumprir tudo o que ali fora decidido e a dar seqüência, no plano

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do seu direito interno, ao cumprimento de suas obrigações estabelecidas na sentença, sob pena de responsabilidade internacional” (sic) (MAZZUOLI, 2011, p. 97-98). Salientamos que, no plano interno, os tribunais locais não precisam de qualquer autorização internacional para realizarem o controle de convencionalidade ou de supralegalidade das normas infraconstitucionais, em razão do seu caráter difuso – dessa forma, qualquer juiz ou tribunal pode se manifestar a respeito. Nestes termos, de acordo com Mazzuoli, à medida que os tratados forem sendo incorporados ao direito interno, e estando tais tratados em vigor no plano internacional, os tribunais locais podem, independente de qualquer condição ulterior, compatibilizar as leis domésticas com o conteúdo dos tratados vigentes no país, sejam tratados de Direitos Humanos ou comuns. Em outras palavras, “os tratados internacionais incorporados ao direito brasileiro passam a ter eficácia paralisante (para além de derrogatória) das demais espécies normativas domésticas, cabendo ao juiz coordenar essas fontes (internacionais e internas) e escutar o que elas dizem” (MAZZUOLI, 2011, p. 98). O Supremo Tribunal Federal pode realizar também o controle de convencionalidade concentrado, além do difuso, “na hipótese dos tratados de direitos humanos (e somente destes) aprovados pelo rito do art. 5.º, § 3.º, da CF/1988 (uma vez ratificados pelo Presidente, após esta aprovação qualificada)”, por se tratarem de normas equivalentes a emendas constitucionais. No entender do autor, justamente em razão de a Constituição possibilitar sejam os tratados de Direitos Humanos alçados ao patamar constitucional, com equivalência de emenda, também garante-se-lhes os meios hábeis à proteção “contra investidas não autorizadas do direito infraconstitucional” (MAZZUOLI, 2011, p. 98; 105). Assim, cabe ao magistrado, ao aplicar a lei infraconstitucional, basear-se no diálogo das fontes – no sentido de que as fontes internas e internacionais devem dialogar entre si a fim de resolver questões antinômicas, notadamente aquelas entre o tratado internacional e a lei interna brasileira –, mas sem se esquecer que as normas advindas de tratados de Direitos Humanos possuem primazia no ordenamento pátrio. O diálogo das fontes pressupõe também que a CRFB/88 não exclui a aplicação dos tratados internacionais, e nem estes afastam a aplicação constitucional, mas ambas as espécies de normas (CRFB/88 e tratados) unem-se para obstaculizarem a produção de leis domésticas infraconstitucionais que violem os preceitos constitucionais ou internacionais de Direitos Humanos exaltados pela República brasileira. O que se visa por meio do controle de convencionalidade, conclui o autor, por fim, é que todo o direito interno guarde total compatibilidade tanto com a CRFB/88 quanto com os

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tratados internacionais de Direitos Humanos ratificados pelo Estado, “chegando-se, assim, a uma ordem jurídica interna perfeita149, que tem no valor dos direitos humanos sua maior racionalidade, principiologia e sentido” [grifos no original] (MAZZUOLI, 2011, p. 103). Dedicamo-nos, até o presente momento, a apresentar o Estatuto da Família, Projeto de Lei no 6.583/2013, a partir da redação original do Projeto, de sua justificativa e dos argumentos utilizados tanto nos dois Pareceres do PL como nos debates orais que ocorreram na votação da Comissão Especial da Câmara dos Deputados em 2015. Discorremos acerca dos posicionamentos dos Deputados Federais no que concerne ao entendimento de família e de democracia: para uns, a democracia, legitimada pela vontade da maioria, deve fazer prevalecer a entidade familiar composta pela união exclusiva entre homem e mulher; para outros, não se pode sustentar um governo democrático sem que se assegure também dos direitos das minorias, conferindo, portanto, o direito a todas e todos de formarem famílias, sem qualquer discriminação, atentando-se sempre à vedação ao retrocesso. Em busca de delinear o conteúdo mínimo de conceitos utilizados pelos Parlamentares para sustentar seus posicionamentos, tais como família, vontade da maioria e democracia, e.g., apresentamos, mesmo que brevemente, mas sob uma abordagem interdisciplinar, alguns movimentos pelos quais passaram as famílias brasileiras, especialmente após a segunda metade do século XX. Com efeito, os estudos realizados apontam que a compreensão desses movimentos, da “organização-desorganização-organização” das entidades familiares, não pode ser desvinculada da percepção de transformações também no ser humano e nos valores que carrega consigo ao longo de sua trajetória (CARVALHO, 2003, p. 15). Ainda investigando acerca do conteúdo mínimo desses conceitos, discorremos a respeito de quatro principais marcos150, eleitos como os principais para fins da pesquisa, e que revelam a construção da semântica da família no Brasil, bem como denotam algumas

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Muito embora as benesses apontadas pelo autor acerca do controle de convencionalidade, ao contrário do que entende, não nos afigura possível concluir que tal instituto possibilitará a chegada do Brasil a uma ordem jurídica considerada perfeita. 150 Abordamos as discussões realizadas na ANC em 1987-1988 e a forte presença do religioso nas argumentações do Constituinte para a redação final do conceito de família na CRFB/88; a visão neoconstitucionalista do Direito Contemporâneo, atrelada ao locus de destaque em que se encontram os princípios constitucionais de Direitos Humanos no ordenamento jurídico pátrio; a supralegalidade dos tratados internacionais de Direitos Humanos, de acordo com o entendimento do STF, ou mesmo a equiparação desses tratados às normas constitucionais, conforme corrente jurídica minoritária; o reconhecimento pelo Supremo, em 2011, das uniões estáveis homoafetivas equiparadas às heteroafetivas; e a Resolução n o 175/2013, editada pelo CNJ, proibindo as autoridades de recusarem a conversão da união estável entre pessoas de mesmo sexo em casamento.

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possibilidades construtivas e interpretativas do que vem a ser família, a partir não somente do Direito, mas em diálogo e articulação com a Psicologia, a Filosofia e a Sociologia. As diversas lentes em cooperação nos proporcionaram uma visão mais complexa do objeto de estudo, apontando, inclusive, para a possibilidade “não-romantizada” de que família não é sempre local de felicidade – ao contrário, pode ser território de violências e agressões. A abordagem interdisciplinar proporcionou também questionar o heterocentrismo e o engessamento dos papéis de gênero, aqueles ditos, ou convencionados, de homens e os de mulheres. No decorrer da pesquisa detivemo-nos ainda na investigação e compreensão dos marcos legais e conceituais da democracia brasileira. Estudamos, num primeiro momento, a democracia procedimental, calcada na definição mínima que sustenta Norberto Bobbio a partir das seis regras do jogo. É por meio dessas regras que se estabelece a quem compete tomar as decisões coletivas, e como essas decisões podem ser tomadas, com quais procedimentos. Ademais, embora as decisões sejam tomadas em respeito à regra da maioria, Bobbio traz limites a essa regra, sendo um deles a inviolabilidade dos Direitos Humanos. Num segundo momento, analisamos a democracia sob o prisma da proposta neoconstitucionalista, consoante o entendimento de Luís Roberto Barroso. A Constituição Federal, diz o autor, estabelece valores e consensos mínimos para além de procedimentos – valores e consensos esses que devem ser observados por todos, inclusive quando da deliberação das decisões pela maioria. A CRFB/88, portanto, nos moldes da democracia substancialista, entendida como a sétima regra do jogo, impõe limites aos Poderes da República, veiculando consensos mínimos (que compreendem, por exemplo, a garantia de Direitos Humanos e fundamentais) e assegurando espaço ao pluralismo. Ocupamo-nos, em seguida, de perscrutar quais características contidas no texto constitucional, explícita ou implicitamente, autorizam reputar a CRFB/88 como, de fato, marco legal condutor da democracia brasileira, tanto no que atine às óticas procedimentalista como substancialista. Para tanto, percorremos o texto da Lei Maior, apontando os artigos e princípios que demonstram observância aos preceitos levantados, em tópicos anteriores, por Bobbio assim como por Barroso. Para mais, apontamos os Direitos Humanos como um dos princípios constitucionais e internacionais de maior destaque no ordenamento pátrio contemporâneo. Na esfera doméstica, para além de inspirarem lutas e reivindicações pela conquista de novos direitos – dentre eles, os relacionados às possibilidades de se constituir família –, os Direitos Humanos conjugam um rol de direitos civis, políticos, sociais, econômicos e

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culturais a serem aplicados de forma imediata. Importa frisar que Direitos Humanos não se resumem aos contidos no texto constitucional, sejam implícitos ou explícitos, devendo ser compreendidos ainda para além dos decorrentes do regime e dos princípios adotados pelos tratados internacionais em que o Brasil seja signatário. Tal a sua importância que, de acordo com Valério Mazzuoli, toda a produção das normas infraconstitucionais brasileiras deveria passar por dois níveis de aprovação: um deles, denominado de controle de convencionalidade, prevê que as leis apenas podem ter validade no ordenamento jurídico caso compatíveis com a CRFB/88 e com os tratados internacionais de Direitos Humanos ratificados pelo Brasil. Finalmente, apenas considerando as ideias, conceitos, categorias e argumentos discutidos e aprofundados – embora, por vezes, antagônicos entre si –, percebemos a possibilidade de retomarmos a averiguação principal a que se propõe este trabalho: é possível entender o conceito de entidade familiar proposto pelo Estatuto da Família como compatível com a democracia e com os princípios constitucionais e internacionais de Direitos Humanos? Além disso, em se tratando de uma sociedade democrática, quais os limites que devem encontrar o Poder Legislativo e a vontade da maioria para que sigam respeitadas as conquistas das minorias e protegidos os direitos de todos e todas, sem qualquer espécie de discriminação? Com a finalidade de trabalhar o objetivo geral da investigação, o Capítulo terceiro será composto por ponderações acerca de três argumentos que permeiam o discurso dos Parlamentares e do Supremo, advindos do confronto entre o Estatuto da Família, a CRFB/88, os Direitos Humanos e a legitimidade da representação democrática pautada na vontade da maioria.

CAPÍTULO III – QUAIS FICHAS CONTINUAM SOBRE A MESA? ANÁLISE E PONDERAÇÕES SOBRE A SEMÂNTICA DA FAMÍLIA BRASILEIRA À LUZ DA DEMOCRACIA E DOS DIREITOS HUMANOS 3.1. “Bela, recatada e do ‘lar’”: as cartadas do heterocentrismo, da naturalização da família e do engessamento dos papéis sociais de homem e mulher, sobretudo nas relações familiares Em abril de 2016 a revista Veja151 veiculou matéria intitulada Marcela Temer: bela, recatada e “do lar”, sobre a, à ocasião, “quase primeira-dama”. Segundo o que informa a reportagem, Marcela Temer é “43 anos mais jovem que o marido, aparece pouco, gosta de vestidos na altura dos joelhos e sonha em ter mais um filho com o vice”. Marcela, continua a revista, “é uma vice-primeira-dama do lar. Seus dias consistem em levar e trazer Michelzinho da escola, cuidar da casa, em São Paulo, e um pouco dela mesma também (nas últimas três semanas, foi duas vezes à dermatologista tratar da pele)”. Aparece pouco em público, discreta, é o braço direito do marido. A conclusão da reportagem: “Michel Temer é um homem de sorte” (VEJA, 2016). Em pouco tempo a expressão “bela, recatada e do lar”, inicialmente utilizada como predicado relativo à Marcela Temer, foi reproduzida nas redes sociais em tom de deboche e desaprovação152. A razão para tanto reside no elogio que se faz a Marcela como mulher de Atenas153: aquela que está atrás do marido, ou abaixo; que pode até mesmo ser seu braço direito ou “braço digital”, mas não ocupa posição de poder, ou de protagonista (VEJA, 2016). A revista Veja enaltece uma concepção de família que partilha de muitas similitudes com aquela delineada no artigo 2o do Estatuto da Família e defendida por setores da Câmara dos Deputados. O que se sustenta ali é a manutenção da família tradicional, que, conforme já 151

Disponível em: . Acesso em: 13 junho 2016. O veículo Folha de S. Paulo divulgou, dias depois, uma compilação de algumas reações de internautas acerca da matéria da Revista Veja, sob o título Marcela Temer 'bela, recatada e do lar' cai nas graças da internet em vários memes; confira. Disponível em: . Acesso em: 23 junho 2016. 153 Mulheres de Atenas é uma canção composta por Chico Buarque e Augusto Boal em 1976, e em cuja letra se transparece uma crítica à concepção da existência (vida, liberdade, sexualidade, procriação, desejos) feminina subalternizada na hierarquia masculina: “Mirem-se no exemplo / Daquelas mulheres de Atenas / Vivem pros seus maridos / Orgulho e raça de Atenas / Quando amadas, se perfumam / Se banham com leite, se arrumam / Suas melenas / Quando fustigadas não choram / Se ajoelham, pedem, imploram / Mais duras penas; cadenas / […] Quando eles embarcam soldados / Elas tecem longos bordados / Mil quarentenas / E quando eles voltam, sedentos / Querem arrancar, violentos / Carícias plenas, obscenas / […] Mirem-se no exemplo / Daquelas mulheres de Atenas: / Geram pros seus maridos / Os novos filhos de Atenas / Elas não têm gosto ou vontade / Nem defeito, nem qualidade / Têm medo apenas / Não têm sonhos, só têm presságios / O seu homem, mares, naufrágios / Lindas sirenas, morenas / […] Mirem-se no exemplo / Daquelas mulheres de Atenas / Secam por seus maridos / Orgulho e raça de Atenas”. 152

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nos havia apontado Roudinesco (2003, p. 19) ao longo do Capítulo primeiro, e aqui resgatada a sua reflexão, consiste em uma célula familiar que “repousa em uma ordem de mundo imutável e inteiramente submetida a uma autoridade patriarcal, verdadeira transposição da monarquia de direito divino”. Em outras palavras, tanto o Projeto de Lei no 6.583/2013 como a reportagem da Veja retratam uma família alicerçada em “divisões binárias das tarefas a partir das diferenças sexuais”, responsável pela continuidade da espécie humana e inserida em um “espaço de conforto espiritual, lócus interdito aos conflitos e às disputas” (BENTO, 2012, p. 275). A valer, esse construto familiar perceptível nas linhas da reportagem da Veja e mais ostensivo nas dos Pareceres do Estatuto da Família é caracterizado por Bronislaw Malinowski (1973, p. 20; 25-26) como a forma final da sociedade moderna154 nas comunidades europeias e americanas: “nossa família patrilinear ariana, com a patria potestas155 desenvolvida, apoiada no direito romano e na moral cristã acentuada pelas condições econômicas modernas da burguesia abastada” [grifos no original]. Essa expressão familiar “tão intimamente conhecida por qualquer de nós”, e é-nos tão evidente, arremata o autor, que poderíamos “simplesmente admiti-la”, ao contrário do que fizeram (e fazem) os adeptos a Movimentos da Contracultura, como o Hippie, Feminista e LGBTTTI. Notadamente, o modelo de entidade familiar reconhecido pelo Estatuto da Família – formada por homem e mulher com fins de reprodução –, defendida pelos Pareceres dos Deputados Fonseca e Garcia, e pelos apoiadores do PL durante a votação na Câmara dos Deputados, conforme demonstram seus discursos, revela-se estruturado em uma instituição, antes de mais nada, naturalizada – por vezes com argumentos religiosos, sacralizados –, fazendo crer, falaciosamente, que a família comporta apenas uma forma de vivência ou experiência. Por naturalizada, ressaltamos três aspectos, que se entrecruzam: a família como uma entidade exclusivamente heteroafetiva, evidente por si mesma e biologicamente natural, aspectos esses problematizados por Bento, Mello e Dias, conforme referido no Capítulo segundo.

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O antropólogo polaco, em Sexo e repressão na sociedade selvagem, bem reconhece que a construção e entendimento de família não são universais, mas variam, inclusive entre os “selvagens”, conforme “as raças e povos humanos”. Não obstante, existe, para o autor, um modelo característico “à constituição da nossa própria forma de família”, qual seja a patrilinear da civilização moderna. (MALINOWSKI, 1973, p. 19; 21) 155 A respeito da patria potestas, Maria Berenice Dias (2015, p. 460) aponta tratar-se de expressão que remonta ao Direito Romano e que, no Código Civil de 1916, correspondia ao pátrio poder: “direito absoluto e ilimitado conferido ao chefe da organização familiar sobre a pessoa dos filhos”.

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Na visão do Deputado Ronaldo Fonseca, a união entre homem e mulher, preferencialmente atestada pelo casamento ou pela união estável, é algo autoevidente, que não abre margem para muitos questionamentos da sociedade acerca de sua “validade”, ou do que se entenda como o “ideal” para a constituição de família. Ademais, encontram-se presentes as figuras, igualmente autoevidentes, da reprodução compulsória e do cuidado para com as crianças fruto da relação. É com base nessa “evidência” – que entendemos tratar-se mais de uma imposição social arcaica – que Fonseca defende a família como locus onde há a “presunção do exercício desse importante papel social” para a sua estabilidade (BRASIL, 2014b). Do lado avesso a esse modelo “padrão” abraçado pelo Deputado – e para além das famílias constituídas por casais heterossexuais que decidem por não ter filhos, ou das famílias anaparentais, quais sejam as que possuem como elemento basilar a afetividade – encontramse, ainda de acordo com Fonseca, e conforme visto no Capítulo primeiro, as uniões “de mero afeto”, formadas por dois indivíduos do mesmo sexo. Estas são tidas pelo Parlamentar como não-evidentes por si mesmas, e a respeito das quais as Ciências Biológicas, ainda hoje, não entraram em consenso sobre sua patologização ou não. Evidentemente – e os argumentos são apresentados como algo natural, óbvio –, os pares homoafetivos não se enquadrariam no conceito de família protegido pelo PL já que não se reproduzem naturalmente, nem mesmo, justifica o Parlamentar, é possível identificar a capacidade de desempenharem papéis sociais específicos que os autorizem a serem reconhecidos, por equiparação, como uma autêntica família (BRASIL, 2014b). O Deputado Diego Garcia, de forma semelhante a Fonseca, sustenta a naturalização da família ao afirmar que, e.g., para o reconhecimento jurídico de uma entidade familiar, é imprescindível que sejam observados critérios objetivos, os quais, segundo o Parlamentar, estão expressos no artigo 226 da CRFB/88: a criação e recriação, de modo natural, do ser humano. Ou seja: a família à qual o Estado deve especial proteção é aquela formada por duas pessoas naturalmente (evidente e anatomicamente) de sexos distintos, que possuam natural (evidente e biologicamente considerada) potencialidade de reprodução, e que naturalmente (evidentemente e obedecendo a instintos próprios e fixos) criem seus filhos conforme o esperado, para tornarem-se novos cidadãos (BRASIL, 2015a). Afinal de contas, conforme vimos no Capítulo inaugural, argumenta o Parlamentar que a) “até o presente momento, a maior parte dos nascimentos se dá em lares onde pai e mãe vivem sob união estável ou casamento”; e que b) “não há condições para recriação natural da vida social somente a partir de pares do mesmo sexo” (BRASIL, 2015a).

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Para Diego Garcia, assim como exteriorizou Evandro Gussi durante a votação em 2015, a construção de entidade familiar passa pela indispensabilidade natural, tanto evidente como biológica, da diferenciação de sexos, da junção de gametas e do desenvolvimento de papéis masculino e feminino fixos dentro e fora do seio familiar. O Estatuto da Família, no sentir dos Parlamentares, e como externado por Gussi, não faz outra coisa senão reconhecer o que a natureza prescreve (BRASIL, 2015a; BRASIL, 2015b). Entretanto, a ideia de modelo familiar único, heterocêntrico e autoevidente, erigido sobre termos universais, rígidos, biológicos e pré-condicionados, naturalmente desejável, e não raro androcêntricos156, como se representasse a forma final da sociedade contemporânea, vem sendo questionado, como já evidenciamos no Capítulo primeiro, acerca das repercussões de dentro para fora. Entendemos, na linha dos questionamentos, que admitir que o Estado deva conferir especial proteção a uma forma determinada de agrupamento familiar é negar as diversificadas possibilidades construtivas e interpretativas do que constitui essas entidades; é afastar-se da compreensão da família como entidade mais flexível, pautada na não-estagnação das formas de convivência familiar, como defende Luiz Mello. A essa questão voltaremos mais adiante. Ademais, uma visão naturalista nos parece uma forma de desconsiderar os contextos e lutas sociais que influenciam as transformações por que passa(ra)m o indivíduo e seus valores, além de ignorar os processos de “organização-desorganização-organização” por que passa(ra)m também as famílias no decorrer da trajetória humana, que incluem o rechaço a atos de violência institucionalizados157 (CARVALHO, 2003, p. 15). Não se trata aqui, todavia, de negar o modelo tradicional de família, nem de rejeitar os elementos que o compõem. A esse respeito, e com base no aporte teórico estudado e discutido, partilhamos de uma visão de mundo includente, que reconhece, para além das “tradicionais”, todas as formas de diversidade no âmbito das configurações familiares. Afiliando-nos à percepção de Geraldo Romanelli, mencionada no Capítulo primeiro,

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De acordo com Mello, o androcentrismo ainda hoje tem sido uma forte característica nos debates concernentes à família. Para o autor, “A um Estado controlado basicamente por homens associam-se, como fatores como fatores sociais importantes, Igrejas, cujos postos de comando também são ocupados por homens, que pautam sua atuação política em crenças e em valores socialmente definidos como masculinos, muitas vezes numa feição claramente machista. (MELLO, 2005, p. 19) 157 Conforme citamos, no entender de Berenice Bento, a família, enquanto instituição, funda-se, hegemonicamente, na violência para se reproduzir. É possível encontrarmos evidências na música popular brasileira que demonstram que, nem sempre, a família é sentida ou vivenciada como locus de proteção e cuidados, a exemplo da canção Minha nega na janela, originalmente lançada por Germano Mathias, um sucesso em 1957, e posteriormente regravada em 1978 em conjunto com Gilberto Gil: “Minha nega na janela / Diz que está tirando linha / Êta nega tu é feia / Que parece macaquinha / Olhei pra ela e disse / Vai já pra cozinha / Dei um murro nela / E joguei ela dentro da pia / Quem foi que disse / Que essa nega não cabia?”.

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referimo-nos à entidade familiar como uma organização não-linear, marcada pela dinâmica intensa de reorganização de estratégias, em oposição a uma instituição cuja função primordial seja dar continuidade ao natural processo de reprodução social e humana. Não falamos, portanto, em substituição de um modelo de entidade familiar moderno por outro pós-moderno – até mesmo porque, como ressalta Jeni Vaitsman (1994), a família e o casamento, em tempos pós-modernos, não se encontram aprisionados a um modelo dominante, seja no campo dos discursos normatizadores das práticas, seja no campo das práticas propriamente ditas. Assim, a nosso ver, e apropriando-nos de algumas das ideias de Berenice Bento e de Luiz Mello, “a cidadania e os direitos humanos devem ser assegurados ao mais amplo e variado conjunto de indivíduos” (MELLO, 2005, p. 19), para que expressem seu amor, gratificação psico-afetivo-sexual, solidariedade, respeito mútuo e felicidade dentro dos vínculos que construírem, da forma que bem entenderem, despida de violência, exercendo os papéis / as funções que desejarem, sob a especial proteção do Estado, o que encontra corolário nos Direitos Humanos e na principiologia constitucional, como vimos outrora. Com efeito, e para além da teoria, no que atine às formações familiares brasileiras, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2012b, p. 64), após a realização do censo demográfico em 2010, chegou à conclusão de que: As mudanças que têm ocorrido no seu interior [da família], quanto a sua forma de organização e níveis de reprodução, têm sido observadas e apontam para uma diversidade maior em relação aos tipos de famílias. A esperança de vida aumenta cada vez mais, mas, por outro lado, as taxas de fecundidade diminuem. As famílias atuais passam a ter mais avós e netos. Os arranjos familiares são menos tradicionais, cresce o número de uniões consensuais e, com o aumento dos divórcios, há também um crescimento significativo das famílias reconstituídas, nas quais os filhos podem ser apenas de um dos cônjuges. Outro efeito conhecido das separações e dos divórcios é o aumento do número de crianças que crescem em famílias monoparentais.

Contudo, apesar da constatação das mudanças de organização e reprodução acima relatadas pelo IBGE, o mesmo estudo de 2010 verificou que, aproximadamente, apenas 58.000 (cinquenta e oito mil) unidades domésticas158 identificaram-se abertamente como formadas por relações homoafetivas. Esse número corresponde apenas a 0,1% (zero vírgula um por cento) do total de unidades domésticas brasileiras. Mais recentemente, no ano de 2013, ainda conforme os dados do IBGE, as Estatísticas do Registro Civil totalizaram 3.701 (três mil, setecentos e um) registros de casamento entre

O estudo considerou como unidade doméstica no domicílio particular “a pessoa que morava sozinha; ou o conjunto de pessoas ligadas por laços de parentesco, dependência doméstica ou normas de convivência”. Não foram consideradas, entretanto, as unidades domésticas residentes em terras indígenas. (IBGE, 2012b, p. 36) 158

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cônjuges de mesmo sexo – ainda parcos, se comparado a pouco mais de um milhão de registros de núpcias entre pessoas de sexos diferentes. Já em 2014, foram realizados mais de um milhão de casamentos entre cônjuges masculino e feminino, ao passo que, entre indivíduos do mesmo sexo, foram registradas 4.854 (quatro mil, oitocentos e cinquenta e quatro) uniões – ou seja, 0,4% (zero vírgula quatro por cento) do total de núpcias, o que corrobora, parcialmente, com o argumento do Deputado Garcia de que os filhos advêm, em geral, de lares onde pai e mãe vivem sob união estável ou casamento. Entretanto, esse fato, por si só, não exclui que outros construtos familiares estejam sendo formados à margem da lei e dos censos, como faz crer o Parlamentar em seu Relatório. Aliás, a proibição e o medo que circundam as entidades familiares constituídas por pessoas do mesmo sexo e a permissão para que adotem crianças (NUNAN, 2003; MELLO, 2005) são tamanhos que Fonseca chega a comparar as famílias homoafetivas a uma espécie de Cavalo de Troia, que tem por objetivo confundir, invadir e destruir a sociedade (BRASIL, 2014b). A respeito dessa (sub)compreensão de família, cuja consequência é a propagação da proibição e do medo, Luiz Mello (2005, p. 17) entende que: O não-reconhecimento social e jurídico das relações amorosas estáveis entre gays e entre lésbicas como família é a principal interdição que atinge os homossexuais no contexto da realidade brasileira, especialmente no tocante à socialização de crianças. Essa interdição está alicerçada na defesa irrestrita da conjugalidade e da parentalidade como possibilidades limitadas ao universo da norma heterocêntrica.

Neste esteio, a autoevidência em que se alicerçou a denominada família tradicional, aliada à crença de ser essa a única possibilidade de constituição familiar, fortemente ligada à reprodução e ao monopólio do amor romântico, inflige às demais formas de relação, conforme já citamos, a marca, o estigma da transgressão, tanto de forma implícita como explícita, em razão de que essas realidades desafiam “fundamentos básicos da normatividade social por meio de suas vivências amorosas e sexuais” (MELLO, 2005, p. 18). Tal (hetero)normatividade social foi construída / naturalizada aos tempos da afirmação da família nuclear burguesa como dominante na Europa entre os séculos XV e XVIII159. Já 159

No que respeita à construção da heteronormatividade, Luiz Mello afirma que, naqueles idos, desenvolveu-se na Europa uma nova forma de sociabilidade familiar, originalmente restrito ao universo da aristicracia e da burguesia, que preconizava a transmissão, de pais para filhos, de valores, hábitos e tradições socialmente dominantes; dentre eles, o amor verdadeiro e a heterossexualidade. De modo semelhante, o historiador estadunidense Jonathan Ned Katz, após debruçar-se sobre a história mutante da heterossexualidade, desde a genealogia dos conceitos sexuais até a análise de discursos que polarizam os comportamento homo e heterossexual, assevera, em A invenção da heterossexualidade, que os modos de organizar os sexos e a sexualidade passaram por diversas variações. “Essa variação contesta a nossa suposição comum de que a heterossexualidade essencial e imutável assume formas históricas qualitativamente diferentes. Eu sugiro”, diz o autor, “que a própria palavra heterossexual significa uma forma histórica ligada ao tempo – um modo historicamente específico de organizar os sexos e os seus prazeres”. [grifos no original] (KATZ, 1996, p. 45-46)

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naqueles idos, às famílias não-tradicionais, mas especificamente as formadas por indivíduos de mesmo sexo, foram lançados o fardo da vergonha e da culpa, segundo Mello, por se desviarem160 do padrão heteroafetivo estabelecido a partir do entendimento naturalizado de que homo e heterossexuais deveriam ser divididos em categorias distintas (MELLO, 2005). Desde então, homens e mulheres que “escolhem” companheiros ou companheiras do mesmo sexo passaram a ser definidos como doentes – e, por sua própria “natureza doentia”, diz o sociólogo, são tidos como incapacitados para a constituição de núcleos familiares, da mesma forma que são considerados desabilitados a gerarem e socializarem crianças. Com efeito, para o autor, “as representações sociais construídas a partir dos discursos médicos, moralistas e religiosos não permitiram que se cogitasse a possibilidade de que dois homens ou duas mulheres se escolhessem como parceiros amorosos e sexuais” (MELLO, 2005, p. 43), cabendo a manifestação de amor apenas aos heteroafetivos, inocentados dessa forma de pecado e perversão161. A partir das narrativas de Luiz Mello e Berenice Bento, apresentadas também no bojo do primeiro Capítulo e aplicadas à análise dos Relatórios do PL ao longo deste Capítulo, é possível sustentarmos que a família binarista162, composta pela união entre pessoas de sexos diferentes, monopolizadora do amor romântico e apresentada como um construto natural e imutável, representa, na verdade, mais uma variação histórica e temporal por que passam as compreensões de entidades familiares. Da mesma forma, a estigmatização das famílias formadas por indivíduos de mesmo sexo como estruturas desviantes e vergonhosas – não raro, também patológicas e criminosas – decorre de uma “ideia moderna e historicamente específica” construída, afirma Jonathan Ned Katz (1996, p. 62). Isto posto, podemos problematizar o argumento linear do Deputado Garcia identificando que é provável que os números tímidos apresentados pelo recenseamento demográfico de 2010 referentes às unidades domésticas que se identificaram como formadas por relações homoafetivas constituam um cômputo inferior à realidade, reflexo da segregação e exclusão dessa espécie de entidade familiar, instaladas concomitante com o estabelecimento 160

Nas palavras de João Silvério Trevisan (2007, p. 37), “Em oposição às pessoas ‘normais’, aquelas que transam com o mesmo sexo tornaram-se os/as homossexuais”. 161 De acordo com Berenice Bento, conforme citamos no Capítulo primeiro, a eleição de um indivíduo do mesmo gênero como objeto do desejo, quando se está inserido em uma sociedade heterocêntrica, gera o risco de que seja apontado como pervertido ou pecaminoso. 162 O binarismo gênero é uma forma de compreensão do mundo que classifica o sexo e o gênero em duas formas distintas, masculino e feminino, como sendo opostas e desconectadas. No entanto, segundo Maria Berenice Dias, a realidade de múltiplas dimensões da sexualidade que se vive hoje não comportam mais os parâmetros binários padronizados – masculino e feminino / heterossexualidade e homossexualidade –, por insuficientes que se mostram. Ademais, continua a autora, esses parâmetros “fomentam a exclusão das pessoas que não estão assim enquadradas, aniquilando a liberdade de escolha”. (DIAS, 2014, p. 302)

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da família tradicional como a única legítima – o que, cremos, poderia ter provocado um desencorajamento de “confessar” a verdade, mascarando a realidade que nos cerca. Conforme afirmamos no Capítulo primeiro, muitos indivíduos e famílias homoafetivos viveram e ainda vivem clandestinamente163, “dentro do armário”, em razão de dificuldades164 como a rejeição e a discriminação institucionalizadas, ou mesmo em virtude do que Roudinesco levanta como o desejo de se normalizar. Por outro lado, a literatura sustenta um crescente entendimento social humanístico de que todos devem ser tratados em condições de igualdade de direitos, tendo respeitada a sua dignidade humana, qualquer que seja a sua orientação afetivo-sexual. Consoante também o que discorremos, vários foram (e ainda são) os fatores que contribuíram para as transformações na compreensão social em relação às possibilidades construtivas e representativas de família – um dos reflexos desses princípios humanísticos. Dentre eles, porquanto mais atinentes às ponderações a que nos propusemos, destacamos: a) a crescente legitimidade da autonomia da sexualidade em relação à reprodução e à conjugalidade e b) o questionamento e redefinição do enfoque “natural” tanto no que diz respeito à constituição do sistema de sexo e gênero como da entidade familiar (MELLO, 2005, p. 20). A redefinição dos papéis de sexo e gênero, portanto, aliada ao reconhecimento165 individual e familiar advindo dos processos de lutas sociais, e ainda associada à ruptura da 163

De acordo com Adriana Nunan (2003, p. 157-158), “acredita-se que entre 4% a 8% da população ocidental adulta (vivendo em grandes centros urbanos) seja homossexual […]. Esses dados, no entanto, precisam ser analisados com cautela, pois das inúmeras pesquisas que estudam o número de indivíduos homossexuais na população geral, poucas são confiáveis. Primeiramente, devido ao preconceito e à estigmatização, muitos sujeitos não revelam sua verdadeira orientação sexual ou mentem sobre aspectos relacionados a ela, mesmo quando as respostas são anônimas. Neste caso, o número de homossexuais seria maior. Em segundo lugar, os critérios para definir o que é ser homossexual varia conforme o estudo. Por exemplo: aceita-se para efeitos sociais que homossexual é o indivíduo que se relaciona com membros de seu mesmo sexo biológico. Em alguns estudos, no entanto, também são considerados gays indivíduos que tiveram uma única experiência homossexual durante toda a vida ou que têm fantasias homossexuais. Por outro lado, muitos homens que se consideram heterossexuais já tiveram uma ou mais experiências homossexuais. Desta forma, a homossexualidade pode ser definida tanto pelo comportamento sexual do sujeito, pelos seus sentimentos de atração com relação a pessoas do mesmo sexo biológico ou por auto-indentificação (o sujeito se auto-identifica como homossexual). Pode-se dizer, assim, que as pesquisas acabam sendo prejudicadas, dentre outros motivos, pela falta de rigor dos termos científicos […]”. 164 Tendo como objeto de estudo “a caracterização do ethos íntimo das parcerias homoeróticas masculinas”, o sociólogo Antônio Crístian Saraiva Paiva (2007, p. 24; 26) assevera que “Poder encontrar um outro homem para amar e para desfrutar de uma vida a dois configurou-se, de início, um horizonte impossível, inimaginável, para os sujeitos. Do encontro com a homossexualidade à singularização de uma identidade deteriorada, longo foi o caminho, em meio a toda a sorte de batalhas, de lutas, de torvelinhos familiares, toda uma história de opressão alimentada pelo heterossexismo (Tin, 2003), que os sujeitos depararam precocemente em suas vidas”. (sic) 165 Retomamos, aqui, algumas das considerações de Sylvia Leser de Mello expostas no Capítulo inicial. Para a autora, as transformações por que passou (e passa) a família brasileira guardam relações de causa-consequência com, p.e., o êxodo rural do século XX e as concepções que os indivíduos fazem de si mesmos, de sua subjetividade, repensando, reavaliando e redefinindo o lugar que ocupam e o papel / função que exercem no

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tríade vida em comum-sexo-reprodução, parece ir de encontro, em especial, com duas ilusões de outrora: a primeira, “de que ser homem bastaria / Que o mundo masculino tudo me daria / Do que eu quisesse ter”166; e a segunda, de que “Emília é mulher”167. Dito de outro modo, os movimentos culturais e sociais a que nos referimos favoreceram o questionamento da antes naturalizada hierarquização patriarcal do masculino sobre o feminino e da diferenciação compulsória do comportamento afetivo-sexual entre os sexos, onde o homem, a autoridade, gozava de privilégios, e a mulher, o sexo frágil, devia-lhe subserviência (VAITSMAN, 1994). Os argumentos de que lançaram mão os apoiadores do Estatuto da Família são calcados na admissão da certeza que ora se questiona: a legitimidade exclusiva da estrutura base da sociedade, formada hierarquicamente por homem e mulher, diferentes biologicamente, aptos à reprodução e que exercem papéis próprios dos seus respectivos sexos. Em outras palavras, nos termos do PL, o Estado deve proteção ao homem, o indivíduo que possui por genitália o pênis, no exercício do papel de pai, e à mulher, aquela que possui por genitália a vagina, no desempenho do papel de mãe, observadas para tanto as convicções moral e religiosa que são próprias desse construto denominado família brasileira. Essas seriam características naturais de uma família normal e saudável – aquele modelo testosterona-progesterona, que, segundo Fonseca, é “amplamente reconhecido como algo bom”, ou mesmo ideal para que uma criança conviva e se desenvolva por completo, justamente por ser “alinhado aos preceitos constitucionais e valores morais e éticos de nossa sociedade”, conforme Garcia (MELLO, 2005; BRASIL, 2014b; BRASIL, 2015a).

mundo social bem como dentro do seio familiar. Também não podemos deixar de resgatar, ainda que brevemente, alguns dos movimentos que repercutiram nas transformações da subjetividade masculina e feminina, segundo Regina Navarro Lins, Luiz Mello e Regina Facchini. Dentre eles, destacamos o American Way of Life do pós-Segunda Guerra; a representação televisionada de famílias (artificiais) na década de 1950 como modelo natural, ideal e hierarquizado de homem e mulher; as contribuições de Alfred Kinsey para a desmistificação da sexualidade hierarquizada dos indivíduos; o surgimento da Contracultura, juntamente com o reconhecimento do orgasmo feminino, a dissociação entre sexo e reprodução, o advento da pílula anticonceopcional, o questionamento dos valores representados pelo American Way of Life associado à idealização de um novo modo de viver; os Movimentos Hippie, Feminista e Gay/LGBTTTI, juntamente com as marchas e protestos organizados; a Revolução Sexual, e com ela a aproximação entre as práticas homo e heterossexual, a busca pela igualdade de sexos e da diluição de papéis sociais e sexuais naturalizados, os esforços pelo reconhecimento da legitimidade social e jurídica das uniões entre não-heterossexuais, a politização das discussões acerca da homossexualidade; e a ampliação do campo semântico de Direitos Humanos e de cidadania, de forma a abarcar também os direitos sexuais e reprodutivos. 166 O cantor e compositor Gilberto Gil lançou, em 1979, a faixa Superhomem - a canção, cuja letra revela uma provocação à moral e aos padrões androcêntricos reafirmados à época: “Um dia / Vivi a ilusão de que ser homem bastaria / Que o mundo masculino tudo me daria / Do que eu quisesse ter / Que nada / Minha porção mulher, que até então se resguardara / É a porção melhor que trago em mim agora / É que me faz viver [...]”. 167 Emília é a mulher que atende perfeitamente às necessidades do eu-lírico da canção homônima, gravada em 1941 e lançada no Carnaval do ano seguinte pelo compositor Wilson Batista: “Quero uma mulher que saiba lavar e cozinhar / Que de manhã cedo me acorde na hora de trabalhar / Só existe uma / E sem ela eu não vivo em paz / […] Ninguém sabe igual a ela preparar o meu café / Não desfazendo das outras, Emília é mulher […]”.

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A construção da família naturalizada, cujas certezas e evidências vêm sendo questionadas por Mello, Bento e Malinowski, e que até então vinha dirigindo o processo de socialização no Brasil, é criticada também por Heloisa Szymanski. No entendimento da autora, esse retrato de entidade familiar, calcado no determinismo biológico, serve à ideologia patriarcal dominante e justifica a hierarquia proposta entre homem e mulher, “com o racional no topo e o instintivo sob suas ordens” (SZYMANSKI, 2000, p. 17). A esse respeito, os estudos da contemporaneidade, notadamente os realizados sob o foco da teoria queer, nos apontam que, ao contrário de dados biologicamente determinados, dimorfos, as figuras do homem e da mulher são, com efeito, categorias empíricas. Não somente as pesquisas acerca da sexualidade humana, que se proliferaram a partir dos anos 1980, mas também os sucessivos movimentos de afirmação identitária (notadamente os feminista e LGBTTTI), desencadearam o processo de desconstituição, ou desnaturalização, como afirmam Heilborn e Sorj (1999, p. 201-202), das relações entre plano corpóreo e identidade de gênero168. Nesse entendimento, e resgatando parte da discussão apresentada no Capítulo primeiro, os estudos concernentes à família não giram mais em torno de posturas prévia e hierarquicamente designadas, essencialistas ou instintivas, nem são necessariamente atreladas à reprodução ou às formas de conjugalidade; ao revés, consideram primordialmente os contextos históricos e culturais a que estão atrelados os indivíduos. A divisão nítida que se fazia entre as esferas do masculino e do feminino169, incluídos seus papéis, funções e performances, é concebida, na contemporaneidade, de forma mais flexível, ou, como assinala Dias, eficaz. Sexualidade, gênero, performatividade e conjugalidade mostram-se, enfim, conceitos distintos – e, em consequência, possibilitam construções e interpretações múltiplas de família. Assim, entende Berenice Bento que existe à nossa volta uma multiplicidade de “acordos, arranjos de conjugalidades e de famílias que disputam um espaço legítimo de existência”, seja “entre dois homens, duas mulheres, uma mulher uterina e um homem transexual, entre duas travestis, duas mulheres lésbicas transexuais, dois homens transexuais”. 168

Aliás, mesmo o pilar natureza é problemático, na visão das autoras, uma vez que também a natureza é uma ideia “historicamente produzida”. (HEILBORN; SORJ, 1999, p. 201-202) 169 Conforme aponta Bento (2001, p. 189), acerca divisão natural entre masculino e feminino, essa “oposição binária que constitui o dimorfismo dos gêneros achata todos os níveis de vida do sujeito. A sexualidade, os papéis sociais, a subjetividade, a identidade de gênero constituem campos marcados e fechados. A mulher, para ser considerada normal, deve ter uma correspondência entre subjetividade e ação em todos os níveis que compõem a sua vida. A condição masculina segue o mesmo caminho. Um homem que experimenta um campo emotivo dito feminino corre o risco de ser humilhado. Ou seja, não é possível fazer deslocamentos. As condições masculina e feminina são construídas de forma excludente”.

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A plasticidade ou flexibilidade de que trata a autora envolve também uma “reflexividade contínua do lugar do eu na relação” [grifos no original] (BENTO, 2012, p. 282). Dessa forma, o eu não ocupa uma função ou papel rígido; ao contrário, os estudos acerca das construções familiares contemporâneas apontam para a possibilidade de que as subjetividades transitem entre o que se entendia como categorias dimorfas: masculino e feminino, menino e menina, homem e mulher, pai e mãe – e até mesmo testosterona e progesterona, pênis e vagina. Ademais, nos termos dos estudos queer, o corpo deve ser lido, também resgatando parte do que foi apresentado na parte inicial deste trabalho, como um significante em constante processo de construção e portador de significados múltiplos. É dizer, também, que o corpo, “basicamente instável, flexível e plástico”, segundo Bento, é visibilizado pela reprodução de sinais exteriores, como os gestos, roupas e olhares. Embora a sociedade tente “materializar nos corpos as verdades para os gêneros através das reiterações nas instituições sociais (a família, a igreja, a escola, as ciências)” (BENTO, 2006, p. 132-133), o gênero não deve ser compreendido como uma identidade estável. Nas palavras da autora: Agir de acordo com uma/um mulher/homem é pôr em funcionamento um conjunto de verdades que se acredita estariam fundamentadas na natureza. No entanto, quando se age e se deseja reproduzir a/o mulher/homem “de verdade”, desejando que cada ato seja reconhecido como aquele que nos posiciona legitimamente na ordem de gênero, nem sempre o resultado corresponde àquilo definido e aceito socialmente como atos próprios a um/a homem/mulher. Se as ações não conseguem corresponder às expectativas estruturadas a partir de suposições, abre-se uma possibilidade para se desestabilizarem as normas de gênero, que geralmente utilizam da violência física ou/e simbólica para manter essas práticas às margens do considerado humanamente normal. (BENTO, 2006, p. 133-134)

Em que pese persistirem expectativas de extratos da sociedade para que o masculino e feminino desempenhem papéis ou funções distintas, se comportem de forma pré-determinada, e que se encontrem apenas “por intermédio da complementariedade da heterossexualidade” tem-se posto em xeque a naturalização e a interdependência desses comportamentos (BENTO; PELÚCIO, 2012, p. 571). É possível, portanto – como é, aliás, fato verificado nas pesquisas queer – que o indivíduo viva o deslocamento entre seu corpo-sexuado e o gênero com o qual se identifica, de sorte que entenda pela reconstrução ou readequação de seu corpo para que se livre de um aprisionamento. Tal realidade, autônoma que é, não se comunica com a orientação afetivosexual do sujeito, que pode tanto transitar entre a homo e heterossexualidade, como entre a pan e a assexualidade. Ainda mais: seja o indivíduo homem ou mulher, cis ou transgênero, homo, hetero, pan ou assexual – nenhum aspecto relacionado ao plano corpóreo, à identidade

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de gênero ou à orientação afetivo-sexual é determinante do papel ou função desse indivíduo dentro do seio familiar170. O que define masculino e feminino, nesse viés, e conforme já discorremos, está mais ligado à construção social que ao biológico. Com efeito, também as funções de pai e mãe mais têm a ver com reconhecer-se em dada função, ou entre funções, que com obrigações advindas de modelos prontos e impostos a cada indivíduo a partir de uma suposta coerência entre parâmetros endócrino-genitais. Na contramão, contudo, parcela do Poder Legislativo, como se percebe das análises que envolvem o Estatuto da Família preza, defende e reconhece uma estrutura familiar composta apenas171 por indivíduos em binaridade de gênero (homem e mulher) que exerçam uma forma determinada de conjugalidade (preferencialmente casados entre si, ou em união estável), de sexualidade (heterossexuais), e de performances sociais (homem masculino e mulher feminina aptos à procriação de meninos e meninas) e familiares (homem pai e mulher mãe). Não apenas o Legislativo, mas também o Poder Judiciário, em que pese o papel constitucional que lhe cabe de pacificar conflitos observando e garantindo direitos aos jurisdicionados, mesmo que (e especialmente) contramajoritários, por vezes ainda discute as conjugalidade homoafetivas lançando mão de argumentos naturalizadores no que respeita às possibilidades construtivas de entidades familiares, como se pôde observar da leitura dos votos dos Ministros do STF, o que será trazido à tona nas páginas seguintes. Contudo, em Novas famílias: conjugalidade homossexual no Brasil contemporâneo, Mello (2005, p. 22), depositando as esperanças no Judiciário, consignou que talvez não fosse 170

Apenas para citar um exemplo, em julho de 2015 a mídia anunciou o nascimento de uma criança em Porto Alegre/RS sob circunstâncias “não-tradicionais”. Na Folha de S. Paulo, a matéria ganhou o seguinte título: “Helena Freitas, 26: Bebê é filho de pai que nasceu mulher e de mãe nascida homem”. Trata-se da história da chegada de Gregório, filho do casal Helena Freitas e Anderson Cunha. Segundo a Folha, “ Helena, 26, nasceu homem. Anderson, 21, nasceu mulher. Travestidos como o sexo oposto, ambos se apaixonaram e formaram um casal há dois anos, em Porto Alegre (RS). Anderson engravidou de Helena em novembro de 2014. Neste mês, nasceu Gregório, filho do casal”. Helena, de acordo com o que relata à Folha, é uma mulher transgênero e exerce o papel/função de mãe de Gregório, enquanto Anderson é um homem transgênero e exerce o papel/função de pai. O detalhe é que Anderson passou pelo período de gestação e amamentação. Entretanto, apesar de Helena reconhecer-se como mulher, como mãe, aos olhos das autoridades públicas, e de uma leitura naturalizada do ser humano, ela foi tida como o pai de Gregório e teve direito à licença-paternidade. Anderson, em razão de ter gerado e dado à luz Gregório, papel entendido como natural de uma mulher, gozou de licença-maternidade, apesar de reconhecer-se como pai do bebê. 171 Ressaltamos, mais uma vez, que a contramão não é a defesa da família tradicional, mas o seu reconhecimento como construto exclusivo de entidade familiar. Ao se entender família como uma estrutura flexível, aberta, plural, seria possível, sem qualquer distinção, afirmar que tanto o casal Temer e Michelzinho como Helena, Anderson e Gregório constituem família, cada qual à sua maneira, mas com iguais direitos e respeito. Entretanto, se a concebermos apenas conforme os moldes que os Parlamentares fazem do PL no 6.583/13, o bebê Gregório, filho de trangêneros, além de jamais merecedor da especial proteção do Estado, estará excluído do rol formador da base da sociedade.

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exagerado dizer que seria essa “a instância que, na ausência de lei, normatizará o amparo legal às relações entre pessoas do mesmo sexo, da mesma forma que procedeu em relação às uniões concubinatárias”. Os estudos conduzidos por Rosa Maria Rodrigues de Oliveira, entretanto, demonstram que, ainda distante das previsões formuladas por Mello, os principais agentes operadores dos Judiciários de Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul à época ainda se manifestavam, em maioria, desfavoráveis à existência de união estável ou sociedade de fato entre homossexuais. Oliveira analisou 32 acórdãos gaúchos proferidos entre junho de 1999 e outubro de 2006; 27 cariocas, de novembro de 1992 a maio de 2006; 21 paulistas, de março de 2000 a março de 2006; e 14 mineiros, de março de 2002 a fevereiro de 2006. Dentre eles, relata que em 44,79% (quarenta e quatro e setenta e nove décimos por cento) as respostas foram favoráveis, de algum modo, ou parcialmente favoráveis à existência de união estável ou sociedade de fato entre homossexuais. O índice de decisões desfavoráveis, ou seja, contrárias à existência dessa espécie de união alcançou seus 52,08% (cinquenta e dois e oito décimos por cento). No entanto, adverte a autora: É preciso reconhecer, porém, que isto não deve ser lido como um sinal de uma resposta em si “mais avançada” por parte do Judiciário, pois o índice sobe em função dos acórdãos favoráveis presentes no estado do Rio Grande do Sul, primeiro no ‘ranking’ entre os tribunais investigados, em termos de reconhecimento jurídico de uniões estáveis entre homossexuais, e em cujo conteúdo das decisões encontro variações importantes, comparando com os demais estados no campo. (OLIVEIRA, 2007, p. 136)

Para Oliveira, a dificuldade encontrada pelos magistrados e pelas partes processuais em reconhecerem a própria existência das uniões homoafetivas “parece um exemplo muito concreto de como atua o sistema sexo/gênero na formação da idéia de casamento, e de como os padrões heterossexistas compõem a teia complexa das razões culturais onde a aplicação da lei encontra-se mergulhada” (sic) (OLIVEIRA, 2007, p. 138). Além disso, a autora aponta que, a partir de entrevistas com membros dos Tribunais de Justiça e dos textos de seus acórdãos, é perceptível “um grande alcance da moral cristã sobre a formação de determinado imaginário em torno da noção de família a partir do modelo

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heterossexual, fator que, possivelmente, compõe a motivação para decisões em sentido contrário, fundamentadas no direito natural”172 (OLIVEIRA, 2007, p. 139). Outras conclusões a que chegou Oliveira são as seguintes: as decisões judiciais a) são “portadoras de representações sociais de hierarquia”; b) refletem “pressupostos que naturalizam a diferença sexual como delimitador de campos de acesso ao instituto do casamento”; e c) são repletas de “conceitos previamente estabelecidos sobre casamento, amor conjugal, diferença sexual e homossexualidade, e que essas representações são utilizadas politicamente para fundamentar uma ou outra posição, seja ela favorável ou não” (OLIVEIRA, 2007, p. 150-151). Muito embora a pesquisa de Oliveira seja circunscrita a determinados Tribunais de Justiça e a um dado lastro temporal, não tão distante do tempo atual, afigura-se-nos possível tecer comparações entre o que observou a autora naqueles idos e o que se pode observar da análise dos votos dos Ministros que compunham o Supremo Tribunal Federal em 2011, quando do reconhecimento do sentido ampliativo do conceito de entidade familiar para abarcar as homoafetivas. Por certo, a nosso ver, tal decisão constitui um dos marcos histórico-jurídicos no tocante à semântica de família no Brasil. Entretanto, em que pese o merecimento da celebração da conquista social por meio daquelas linhas, os votos que compõem o Acórdão demonstram, em algum grau e em determinadas passagens, terem sido concebidos com base no (pré-)entendimento de uma família natural, regrada por papéis previamente designados ao masculino e ao feminino. Uma decisão tão aclamada, considerada por tantos como progressista, emancipatória, mas que, como veremos, foi construída, ainda que em parte, sobre preceitos naturalizadores de família. 172

Apenas à guisa de ilustração, nesse momento, trazemos duas falas de dois desembargadores mineiros, quando perguntados pela autora, em julho de 2006, sobre sua posição acerca da possibilidade jurídica da conjugalidade homoafetiva. Um deles assim se manifestou: “Eu acho que afronta de uma maneira grave o direito natural, no sentido de que ninguém, pelo que eu tenho procurado entender, eu não consigo me convencer de que seja algo natural. Eu não consigo me convencer de que seja algo natural uma eventual relação sexual entre homens, ou mesmo entre mulheres. Isso não me convence. […] isso é absolutamente antinatural. […] Não é uma relação normal”. Já, na opinião do segundo: “eu não acho saudável, por exemplo, um casal de homossexuais, […], criar, adotar uma criança, eu sinto resistência em aceitar isso. Pode ser que em razão da minha idade, da minha criação, da minha religião […] de qualquer forma, eu sou católico apostólico romano, a minha mãe é uma mulher muito religiosa e tentou passar isso pra gente, eu estudei em seminário, colégio de padre, essa coisa toda, então veja bem, eu percebo que é uma questão de cultura, eu não aceitei ainda esta identidade familiar constituída de dois homens e duas mulheres”. (sic) (OLIVEIRA, 2007, p. 142-143) Ao que parece, e que será melhor desenvolvido adiante, a formação do imaginário de, citemos, Ronaldo Fonseca em torno da noção de família parte, assim como alguns dos magistrados entrevistados por Oliveira, do modelo alcançado pela moral cristã, notadamente nas seguintes linhas de seu Parecer: “Ademais, não se pode considerar que a família seja invenção da religião, mas ela é reconhecida na Religião como algo essencial à sociedade e merecedora de respeito por parte do Estado; que não deve querer modificá-la, apenas pode ver motivos para protegê-la”. (BRASIL, 2014b)

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Antes, no entanto, de nos debruçarmos sobre os votos, vale ressaltar que todos os nãoheteroafetivos são socializados com base no mesmo conjunto geral de valores transmitidos aos heteroafetivos, “aprendendo, da mesma forma que estes, a conferir grande importância à dimensão afetivo-sexual em suas vidas por meio de um ideal de conjugalidade que atribui ao parceiro parte expressiva da responsabilidade pela felicidade dos sujeitos”. Ou seja, os indivíduos, a despeito de sua orientação sexual, internalizam de forma igual as mensagens heteronormativas dos agentes socializadores, incluindo aquela que os impele “a buscar vivências conjugais como objetivo de vida fundamental, mesmo que para isso tenham que adaptar tais mensagens, ignorando o conteúdo heterocêntrico dos valores transmitidos” (MELLO, 2005, p. 21). Sob esse ponto de vista, parece-nos compreensível que a decisão do Supremo não padeça de demérito em vista dos valores heterocêntricos e naturalizantes que transparecem na decisão e que, em maior ou menor medida, continuam permeando o universo brasileiro. Não obstante, e em vista da intervenção significativa dos quinze amicus curiae que requereram seu ingresso na causa (sendo dez deles nomeadamente defensores dos Direitos Humanos e/ou da diversidade sexual), ainda assim é indicativo tanto de que o STF não pôs fim à discussão do que deve ser juridicamente reconhecido como família173, como de que (ainda) não pode ser considerado a instância que, na ausência de lei, normatizou o amparo legal às relações familiares de forma despida de preconceitos e a englobar, sem titubeios, os construtos familiares os mais diversos. Acerca das limitações da decisão, relembramos que, em determinado momento, o Ministro Relator Ayres Britto afirma que “nada incomoda mais as pessoas do que a

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Defendemos tal posicionamento em vista da fragilidade da decisão prolatada pelo Supremo, que ainda não reconheceu plenamente a desnaturalização da denominada “família tradicional”, a qual segue ecoando na mentalidade social e jurídica, lamentavelmente. Esse descompasso do STF com a realidade fática, ao nosso ver, além de demonstrar uma incoerência conceitual do ponto de vista teórico apresentado neste trabalho, gera também impactos profundos e latentes. Ao simplesmente ampliar o conceito de família natural, por mais que a intenção fosse a de ampliação de direitos, aquela Corte acaba por fortalecer o debate sobre a essência natural da família – podendo, até mesmo, reforçar novas investidas legislativas, como é o caso do Estatuto da Família, que concebam família como instituição puramente natural e calcada no biológico. Como aporte ao nosso argumento, retomemos ao exemplo de Gregório, filho do casal Helena Freitas e Anderson Cunha, citado em linhas passadas. Helena, a mãe, foi identificada biologicamente ao nascer como pertencente ao sexo masculino; Anderson, o pai que gerou e amamentou a criança, foi identificado biologicamente ao nascer como pertencente ao sexo feminino. Os Ministros Ayres Britto e Gilmar Mendes e a Ministra Cármen Lúcia, ao se referirem à homossexualidade como escolha ou preferência do indivíduo, de imediato já trazem a conotação preconceituosa de que, em algum momento, Helena e Anderson, e.g., tendo nascido normais, indivíduos cisgêneros naturalmente heterossexuais, resolveram escolher ou optar por tornarem-se não-heterossexuais. E mais: quando Britto, o Relator da decisão, assevera que “o sexo das pessoas é um todo pró-indiviso, por alcançar o ser e o respectivo aparelho genital. Sem a menor possibilidade de dissociação entre o órgão e a pessoa natural em que sediado” (BRASIL, 2011c), o Ministro nega por completo mesmo a existência de Helena e Anderson enquanto pessoas humanas, que dirá membros formadores de uma família.

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preferência sexual alheia, quando tal preferência já não corresponde ao padrão social da heterossexualidade”. De modo semelhante a Britto, a Ministra Cármen Lúcia, quando do voto, faz referência à opção e à escolha pela convivência homossexual como um modo de vida; e o Ministro Gilmar Mendes, à “idéia de opção sexual” (sic). Por meio desses dizeres – e, adiante, o emprego de “tendências” por Britto –, os Ministros acabam por reforçar o padrão social da heterossexualidade, na medida em que tratam a orientação sexual como preferência / opção / escolha (BRASIL, 2011c). Muito embora o termo preferência seja menos inapropriado que opção ou escolha sexual, o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa traz como primeira acepção de preferência a “ação de preferir, de escolher um entre outros”. A segunda acepção apresentada acerca do verbete indica “estima ou amor maior com relação a uma pessoa ou uma coisa do que a outra(s); predileção”, enquanto a quarta enuncia “sinal especial de afeto, de estima, de honra, que se concede a alguém”. Nesse sentido, a ideia de preferência carrega consigo uma conotação – heterocêntrica – de que, em algum momento, houve uma escolha acerca da sexualidade do indivíduo. Esse processo é comumente retratado como o indivíduo, tendo nascido normal, naturalmente heterossexual, resolveu escolher ou optar, por qualquer razão que seja, tornar-se nãoheterossexual. A propósito, Maria Berenice Dias (2014, p. 42) acentua que “Descrever a homossexualidade como um simples caso de escolha é ignorar a dor e a confusão por que passam tantos homossexuais quando descobrem sua orientação sexual. Seria absurdo pensar”, continua a autora, “que esses indivíduos escolheram deliberadamente algo que os deixaria expostos à rejeição por parte da família, dos amigos e da sociedade”. Ademais, o ato de preferir / escolher / optar também traz a noção de que, antes da concretização da preferência, o indivíduo passou por uma etapa de experimentação das possibilidades à sua frente, quando, com efeito, não é necessário que, para reconhecer-se homo, hetero, pan ou assexual, o indivíduo tenha que ter experienciado outras formas de sexualidade, para, então, eleger a de sua preferência. Mais adiante, Britto assevera que “o sexo das pessoas é um todo pró-indiviso, por alcançar o ser e o respectivo aparelho genital. Sem a menor possibilidade de dissociação entre o órgão e a pessoa natural em que sediado”. Aliás, continua, “nesse movediço terreno da sexualidade humana é impossível negar que a presença da natureza se faz particularmente forte. Ostensiva”. Outra vez Ayres Britto anuncia um caráter natural, biológico à família. No seu entender, não se pode conceber as figuras de homem e mulher senão pela “diferente conformação anatomo-fisiológica” que trazem consigo do nascimento: um homem pela

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identificação de seu pênis, e uma mulher por possuir uma vagina. Sexo, gênero e performances sociais apresentam-se como indissociáveis em razão de um suposto predeterminismo natural, que, aos olhos de Britto, regem a sexualidade humana (BRASIL, 2011c). Além disso, tanto Britto como os Ministros Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio referem-se, amiúde, a sexo e a gênero como sinônimos (BRASIL, 2011c). Entretanto, há que se diferenciar174 as duas nomenclaturas. Sexo, conforme Dias (2014, p. 42), diz respeito a “características morfológicas e biológicas, identificadas, externamente, pelos órgãos sexuais femininos e masculinos. O sexo não determina a orientação sexual nem a identidade de gênero. Apenas serve de referência para o seu reconhecimento”. Gênero, por outro lado, no entender de Bento (2006, p. 133), é uma construção social constituída no tempo e instituída por uma repetição estilizada de atos. A valer, Maria Berenice Dias (2014, p. 42), em tom crítico, acerca das diferenciações de gênero, aponta: Gênero é uma construção social que atribui uma série de características para diferenciar homens e mulheres em razão de seu sexo biológico. Homens usam azul, jogam futebol, não choram e precisam ser competitivos e fortes. A eles está mais que liberado – e até incentivado – o pleno exercício da sexualidade. Mulheres se vestem de cor de rosa, precisam ser frágeis e dóceis. Seus qualificativos estão ligados à abstinência sexual e a virgindade ainda é sinônimo de pureza e castidade. [grifos no original]

De mais a mais, parece-nos que uma democracia calcada nos Direitos Humanos, no pluralismo e no respeito à diversidade não deve (ou, ao menos, não deveria) permitir que indivíduos encontrem óbice à formação de família em razão de seu sexo, gênero, orientação afetivo-sexual ou papel que deseja desempenhar no seio familiar. Ao contrário: a dignidade e os direitos das minorias – aqui, em específico, dos não-heterossexuais – devem ser resguardados, em especial, pelos Direitos Humanos, cunhados por Bobbio como direitos contra a maioria. Uma ponderação derradeira: que expressivo seria se a compreensão dos brasileiros e brasileiras acerca do que é pertencer a uma família perpassasse as letras musicadas de Pepeu

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Nos dizeres de Berenice Bento (2012, p.278), “Quando eu digo ‘sou uma mulher’, não estou revelando absolutamente nada sobre minha sexualidade, práticas sexuais e desejos. A concepção hegemônica de gênero, ao contrário, defende que, ao falar ‘mulher’, esse signo já traz no seu interior a pressuposição da heterossexualidade. Portanto, ao trabalhar com a noção de sexo/gênero, devemos saber que a materialidade do sexo é anteriormente definida pelo gênero. Não existe nível pré-discurso ao sexo; os corpos já nascem ‘maculados’ pela cultura”.

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Gomes175: “Ser um homem feminino / Não fere o meu lado masculino / Se Deus é menina e menino / Sou Masculino e Feminino / Olhei tudo que aprendi / E um belo dia eu vi / Que ser um homem feminino / Não fere o meu lado masculino”. No subitem seguinte retornaremos às discussões que envolvem o Estatuto da Família, juntamente com seus Pareceres, e a votação na Comissão Especial da Câmara dos Deputados, dedicando-nos, contudo, ao exame da exegese do artigo 226 da CRFB/88 e à reflexão acerca das limitações impostas aos poderes constituinte e constituído. 3.2. “Pelo meu país, por Deus, por minha família, pelas pessoas de bem [...]”: a primazia da visão de mundo conferida por uma religião em detrimento das demais e a consequente violação da igual dignidade humana na democracia brasileira

Na obra Teoria geral da política: a filosofia política e as lições dos clássicos, Norberto Bobbio discorre acerca de como entende ser equivocado falar sobre democracia em geral, já que no mundo existem muitas democracias diferentes entre si. A disparidade entre elas, ressalta, reside no grau de aproximação, maior ou menor, do modelo que considera como a democracia ideal, embora essa seja, em verdade, inatingível. É por essa razão que afirmamos, ao longo das linhas do Capítulo segundo, que a democracia, ao invés de meta, constitui uma via, um caminho ou um processo para se atingir a liberdade e a igualdade, de sorte que é impossível precisar em que fração desse caminhar estamos, ou sequer aonde ele nos levará. Segundo esse raciocínio, e tomando também como referência as concepções de Bobbio, apontamos previamente que a democracia brasileira constitui apenas uma dentre as diversas formas reais existentes. Considerando os movimentos de aproximação, interrupção, ou retrocesso por que tem passado a democracia pátria em relação ao ideal-limite e às metas da liberdade e da igualdade, temos caminhado recentemente, no ano de 2016, em terrenos instáveis, que denunciam a fragilidade como característica ainda presente no nosso Estado democrático. Aos 17 dias de abril desse mesmo ano instalou-se uma sessão extraordinária deliberativa no Plenário da Câmara dos Deputados para a votação de relatório favorável à admissibilidade do processo de impeachment da Presidente Dilma Roussef (PT), dirigida pelo então Presidente da Casa Deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ). Tal sessão perdurou em torno de nove horas e cinquenta minutos, e resultou no afastamento da Presidente do Poder

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A canção Masculino e Feminino foi gravada por Pepeu Gomes em 1983.

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Executivo por 180 (cento e oitenta) dias e no prosseguimento dos trâmites no Senado Federal, por 367 (trezentos e sessenta e sete) votos favoráveis e 137 (cento e trinta e sete) contrários. Dentre as manifestações dos Parlamentares, incluindo pequenos discursos proferidos antes de enunciarem, enfim, sim ou não ao prosseguimento do processo, muitos deles invocaram as figuras de Deus e da família para justificarem seus posicionamentos no momento do voto. De acordo com a Ata da 91ª Sessão Deliberativa Extraordinária176 da Câmara dos Deputados, ao longo das quase dez horas, Deus foi mencionado 73 (setenta e três) vezes e família, 148 (cento e quarenta e oito) – ao mesmo tempo em que se referiram, p.e., 169 (cento e sessenta e nove) vezes a democracia; 133 (cento e trinta e três) a golpe; 108 (cento e oito) a Constituição e 86 (oitenta e seis) a corrupção. Logo no início, a sessão foi aberta por Eduardo Cunha, “sob a proteção de Deus”. Dentre os discursos, salientamos o do Deputado Delegado Waldir (PR-GO), que, julgando-se ousado por votar pelo afastamento do “governo mais corrupto da história do mundo”, exclamou ao fim de sua fala: “Pátria amada! Pátria amada! Seu filho Delegado Waldir não foge à luta! Por ti Goiânia, querida, por ti Goiás, pelo meu país, por Deus, por minha família, pelas famílias e pelas pessoas de bem. Meu voto é sim! Fora Dilma, fora Lula, fora PT!” (BRASIL, 2016a). O também goiano Deputado João Campos (PRB-GO) trilhou um caminho similar ao do colega Delegado Waldir:

Sr. Presidente, que Deus abençoe o nosso País! Que Deus tenha misericórdia de nossa Nação! Na defesa do Estado Democrático de Direito, contra a corrupção e a impunidade, contra a violência e a insegurança, na defesa da vida e da família, por Goiás, pelo Brasil, por minha família, pela dignidade do povo brasileiro, por esperança, por dias melhores, o meu voto é “sim”, Sr. Presidente. (BRASIL, 2016a)

O Plenário da Câmara dos Deputados foi, inclusive, palco de profetizações: O SR. CABO DACIOLO (Bloco/PTdoB-RJ.) - Glória a Deus! Sr. Presidente, todos aqui ouviram eu falar “Fora, Dilma!”, “Fora, Michel Temer!”, “Fora, Eduardo Cunha!”, “Fora, Rede Globo”, mentirosa, que fica difamando pessoas. (Palmas.) Vocês podem ser grandes aos olhos do homem, mas, para Deus, vocês são pequenininhos. Em nome do Senhor Jesus, eu profetizo a queda dos senhores a partir de hoje. [grifos no original] (BRASIL, 2016a)

Citamos ainda o Deputado Ronaldo Fonseca (PROS-DF), que, discursando pelo seu partido, clamou: “Pela paz em Jerusalém, eu voto sim”. Ao se manifestar, o Deputado 176

A Ata da sessão deliberativa está disponível no sítio eletrônico da Câmara dos Deputados, no endereço , ao passo em que a íntegra da votação pode ser visualizada em . Acesso em: 25 junho 2016.

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Aguinaldo Ribeiro (PP-PB) valeu-se de versículo bíblico para sustentar sua postura política: “Bem-aventurada é a Nação cujo Deus é o Senhor, e o povo ao qual escolheu para sua herança”. Nas palavras do Deputado Pastor Eurico (PHS-PE): “Feliz é a nação cujo Deus é o Senhor! Em defesa da vida, da família, da moral, dos bons costumes, contra a corrupção e não desistindo do Brasil, meu voto é ‘sim’”. Já o Deputado Eduardo Bolsonaro (PSC-SP), também em nome de Deus e da família brasileira, dedicou seu voto ao povo de São Paulo nas ruas com o espírito dos revolucionários de 1932, às polícias e aos militares de 1964, hoje e sempre (BRASIL, 2016a). Por outro lado, houve Parlamentares que chamaram à atenção o uso de referências a Deus de modo panfletário durante a sessão: O SR. LUIZ SÉRGIO (PT-RJ.) - Sr. Presidente, primeiro, quero deixar registrado que nunca em minha vida, em um espaço tão curto, eu ouvi tantas vezes o nome de Deus ser usado em vão, como se fosse um panfleto. Em segundo lugar, em respeito ao voto popular, em respeito à democracia, eu voto “não”, Sr. Presidente. Golpe não! A SRA. MARGARIDA SALOMÃO (PT-MG.) - Sras. Parlamentares, Srs. Parlamentares, ouvindo com atenção os oradores que me precederam, eu observei, com espanto, que a maioria dos Deputados que apoiam o impeachment o fazem invocando os seus familiares, os aniversários, a situação das estradas, as coisas mais diversas, inclusive o nome de Deus. [grifos no original] (BRASIL, 2016a)

Em meio a toda invocação que se fez do divino, não se pôde encontrar, entretanto, em nenhuma passagem da votação, qualquer referência expressa ao princípio da laicidade estatal. De modo bem semelhante ao que observamos na sessão de votação de abril de 2016, as discussões que envolvem o Estatuto da Família revelam-se apinhadas de referências não apenas à naturalização da família, sobre a qual nos pronunciamos no subitem anterior, mas ainda de deferências a dados valores morais – a começar pelos dois Pareceres afetos ao PL. Ronaldo Fonseca, o subscritor do primeiro Parecer, outrora esmiuçado, acreditando estar alinhado aos valores morais e éticos partilhados pela sociedade brasileira, defende que somente se pode reconhecer como família aquela entidade que satisfaça tanto o requisito primário da não-identidade de sexos como os consectários, quais sejam as obrigações da reprodução e da paternidade responsável. De acordo com as linhas do documento, o posicionamento do Deputado é legitimado, em primeiro lugar, pelo artigo 226 da Carta Magna, redigido pelo Constituinte de 1987-1988, que supostamente elenca um rol taxativo de entidades familiares permitidas pela CRFB/88 (BRASIL, 2014b). Aliás, é também com base no consenso a que se chegou na ANC, na vontade/razão do Constituinte e na literalidade do artigo 226 da CRFB/88 que o subscritor do segundo Parecer

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Diego Garcia crê, tanto quanto Fonseca, estar alinhado aos preceitos constitucionais e valores morais e éticos naturais à sociedade brasileira. Nesse aspecto, Garcia vai mais além que Fonseca: ele aponta para a necessidade de se atentar à consciência histórica e humana da CRFB/88. Quando dos debates da Constituinte, diz o Deputado, já se tinha a notícia de que países europeus haviam reconhecido as uniões entre pessoas do mesmo sexo e, por essa mesma razão, decidiu-se por explicitar “o homem e a mulher” no texto pátrio, a fim de que, limitando-se interpretações diversas, não restasse qualquer dúvida sobre a posição (totalmente despida de preconceitos, segundo seu entendimento) adotada pelo Brasil em relação à nãopossibilidade de casais não-heterossexuais constituírem família (BRASIL, 2015a). Ainda nos debruçando sobre os argumentos de Garcia, o Parlamentar afirma que nãoheterossexuais podem, à toda obviedade, formar agrupamentos outros que não família. A diferença, democrática que é, afirma, reside na sua própria importância: famílias são a base da sociedade, merecedoras de especial proteção do Estado, formadas por indivíduos de sexos diferentes, aptos à criação e recriação natural e biológica, juntamente com sua prole. Essa foi, disse, a prioridade do Constituinte no que respeita à garantia de direitos voltados à sociedade, e não ao indivíduo. Nessa perspectiva, os Deputados Constituintes arvoraram-se no que Garcia denomina de dimensão temporal da democracia: primaram pela preservação da concepção de família que julgaram amadurecida ao longo dos tempos, universal, e que perdurou em razão de ter-se mostrado essencial para a preservação da sociedade. Identificaram nesse modelo, diz o Deputado, “as notas necessárias para a sustentabilidade da espécie” (BRASIL, 2015a). Já as formas de agrupamento diferentes ou contrários à família, ainda que conduzidas pelo afeto individual e pela solidariedade, não passam de “modismos que turbam a percepção do que é perdurável”. Na realidade, essas configurações desconexas com a natureza humana, e por vezes pautadas em demonstrações de afeto contrárias aos bons costumes177, para Garcia,

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Diego Garcia, nas linhas do segundo Parecer, afirma que a lei não chancela comportamentos decorrentes de “afetos contrários aos bons costumes”. Logo em seguida, exemplifica três desses comportamentos: “Um par romântico constituído por uma mulher, mãe, e seu filho, como se dele fosse esposa, por exemplo, não receberá do Estado a conformação ao casamento ou união estável. […] Pedófilos nutrem afeto pela prática sexual com crianças; zoófilos pela atividade sexual com animais. Nem uma e nem outra situação são protegidas pela lei, apesar de decorrerem de movimentos da sensibilidade que satisfazem a alguém”. (BRASIL, 2015a) A nosso ver, engana-se o Deputado ao afirmar que pedófilos nutrem afeto pela prática sexual com crianças – isso porque, antes de mais nada, práticas sexuais e práticas afetivas não se confundem. O afeto, conforme Maria Berenice Dias (2015, p. 52), é um valor ligado à humanidade e à humanização do indivíduo; é um “laço que envolve os integrantes de uma família”, que extrapola a família nuclear e abraça “a família humana universal”. Nesse sentido, não nos parece que o afeto seja o sentimento ou sequer a sensibilidade que une o pedófilo a essa espécie de prática sexual, em geral marcada pela violência e proibida pelo Código Penal Brasileiro (artigo 217-A: estupro de menor de 14 anos; artigo 218: indução de menor de 14 anos para satisfazer a lascívia de outrem; artigo 218-A: satisfação da lascívia mediante a presença de menor de 14 anos) e pelo Estatuto da Criança e do

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ultrapassam as balizas delineadas e expressas pelo texto constitucional e não podem ser tidas como essenciais à sociedade civil. Entretanto, caso os homossexuais entendam serem merecedores da mesma proteção conferida aos agrupamentos familiares, como já vimos, disse o Deputado que eles devem advogar pela inclusão de novos benefícios ou pelo reconhecimento de outras categorias de relacionamento na CRFB/88, contanto que apresentem argumentos que se harmonizem à razão pública (BRASIL, 2015a). De mais a mais, a ordem familiar estipulada pelo Constituinte mostra-se carregada de valores relativos à moral sexual e religiosa. Muito embora Garcia defenda que os pais devem ser livres para que seus filhos recebam a educação moral e religiosa que lhe são próprias, o segundo Relator deixa claro que da família, construída tal como entende e favorece, parece naturalmente emanar os valores (im)postos pelo Constituinte. Todavia, para Fonseca, o primeiro Relator, esses valores estão ligados explicitamente à religião cristã e seus preceitos vinculantes (BRASIL, 2014b; BRASIL, 2015a). Nesse esteio, a segunda fonte de legitimidade que sustenta o Parecer de Fonseca é a proteção de Deus, que emana sobre todo o ordenamento jurídico. Na visão do Deputado, se o ordenamento jurídico é protegido por Deus – como assim o quis, mais uma vez, o Constituinte –, incluindo os direitos fundamentais, individuais e coletivos, nada mais natural que todos esses institutos devam-lhe respeito. Os valores a serem observados, nesse sentido,

Adolescente (artigo 241: vender ou expor à venda fotografia, vídeo ou outro registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente; artigo 241-A: oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, distribuir, publicar ou divulgar por qualquer meio, inclusive por meio de sistema de informática ou telemático, fotografia, vídeo ou outro registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente; artigo 241-B: adquirir, possuir ou armazenar, por qualquer meio, fotografia, vídeo ou outra forma de registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente; artigo 241-C: simular a participação de criança ou adolescente em cena de sexo explícito ou pornográfica por meio de adulteração, montagem ou modificação de fotografia, vídeo ou qualquer outra forma de representação visual; artigo 241-D: aliciar, assediar, instigar ou constranger, por qualquer meio de comunicação, criança, com o fim de com ela praticar ato libidinoso). De forma semelhante, da zoofilia, enquanto prática sexual com animais, também não se presume afeto decorrente da dignidade da pessoa humana, da solidariedade ou da intimidade. No que diz respeito às relações incestuosas, Dias posiciona-se no sentido de que, quando existentes, o Estado não tem meios de vetá-las. “Tais relações estão sujeitas à reprovação social e legal, mas nem por isso há algum meio capaz de coibir sua formação. Como existem, não há como simplesmente ignorá-las. Cabe questionar o que fazer diante de vínculo de convivência constituído independentemente da proibição legal, e que persistiu por muitos anos, de forma pública, contínua, duradoura e, muitas vezes, com filhos. Negar-lhe a existência, sob o fundamento de ausência do objetivo de constituir família em face do impedimento, é atitude meramente punitiva a quem mantém relacionamentos afastados do referendo estatal. Rejeitar qualquer efeito a esses vínculos e condená-los à invisibilidade gera irresponsabilidades e enseja o enriquecimento ilícito de um em desfavor do outro. O resultado é mais do que desastroso, é perverso: nega divisão de patrimônio, desonera de obrigação alimentar, exclui direito sucessório. Com isso se estará incentivando o surgimento desse tipo de união. Estar à margem elo direito não pode trazer benefícios e nem deixar de ser imposta qualquer obrigação. Quem vive com alguém por muitos anos necessita dividir bens e pagar alimentos. Todavia, àquele que vive do modo que a lei desaprova, simplesmente, não é possível não atribuir qualquer responsabilidade, encargo ou ônus. Quem assim age, em vez de ser punido, sai privilegiado. Não sofre qualquer sanção e acaba sendo premiado”. [grifos no original] (DIAS, 2015, p. 249)

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restringem-se aos cristãos, àqueles partilhados pela maioria de religiosos e de não-religiosos no Brasil e no Ocidente, segundo seu Parecer (BRASIL, 2014b). É, portanto, sob a proteção de Deus e respeitando-se os valores cristãos que a família deve ser interpretada pelo ordenamento jurídico, diz Fonseca. Com efeito, o Deputado insiste que a família seja concebida pela legislação constitucional e infraconstitucional tal como é reconhecida na religião, sem que seja modificada, por respeito à opinião da população. Não cabe ao Estado legislar na pretensão de remodelar ou reestruturar o que Deus já salvaguarda da forma como lhe apraz. Modificar essa concepção divina de família, ou, mais notadamente, consentir na sua ampliação para abrigar os pares de mesmo sexo, seria equiparado a permitir seja instalada a confusão entre as pessoas, e, com isso, a destruição da sociedade (BRASIL, 2014b). Muito embora Garcia não invoque a proteção de Deus na redação de seu parecer – ao menos não de forma explícita –, o Relator acredita ser desonesto que seus argumentos, que julga serem oportunos ao debate e nos moldes da razão pública, sejam equiparados a religiosos ou fundamentalistas. Nesse sentido, alega que ainda que o fundamento íntimo da ação de determinado(a) Parlamentar esteja inspirado em uma dada religião, ele ou ela é livre para assim fazê-lo – dada a liberdade de credo e de pensamento que lhe é garantida – “e isso não autoriza ninguém a desmerecer sua pessoa, e seus argumentos, em sede parlamentar, em razão dessa motivação” (BRASIL, 2015a). Na sua percepção, é lícito que o Parlamentar, ao deliberar, associe suas posições pessoais com a dimensão racional das religiões (que não se confunde com uma mera opinião religiosa), sem que isso configure atentado ao princípio da laicidade estatal. O que acontece é que os autodenominados defensores da laicidade estatal apresentam-se em prol do “‘Estado Laico’ – que não interfere nas religiões, mas respeita as manifestações do povo e de cada cidadão –, quando na verdade o que pretendem é um ‘Estado Laicista’ – perseguidor da religião e daqueles que as professam” (BRASIL, 2015a). Convém que resgatemos também os debates travados na votação da Câmara dos Deputados acerca do segundo Parecer do PL em 2015, por evidenciarem, mais uma vez, o quanto o Projeto de Lei no 6.583/2013 imiscui-se com uma matriz religiosa em particular. Basta rememorarmos o que afirmou Silas Câmara na oportunidade: Tenho a impressão, Pastor Marco Feliciano, que muito do que está acontecendo no Brasil nesse momento tem a ver com a nação, no que diz respeito ao seu governo maior, virar as costas para Deus e para as famílias [...]. Somos uma naçã[o] cristã; mais de noventa e oito por cento da população declara-se a favor da família brasileira (BRASIL, 2015b).

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Indagamos: qual seria essa família brasileira a que se refere o Deputado, senão a que ele considera como cristã? Recordemo-nos também do posicionamento de Flavinho, que, enquanto Parlamentar católico, não permitirá que atropelem a Constituição e os valores (cristãos) que são base da sociedade. Ademais, ao resgatarmos o discurso de Hidekazu Takayama, por exemplo, podemos perceber como o Deputado enaltece os bons costumes católicos e evangélicos, ao eximir os seguidores dessas vertentes religiosas de envolvimento com todo e qualquer homicídio motivado por homolesbotransfobia178. Outra amostra, por fim, reside no breve discurso do Deputado Pastor Eurico, cujo trecho inicial reproduzimos mais uma vez: “Estamos juntos em defesa da família, da moral e dos bons costumes” (BRASIL, 2015b). Maioria da população e maioria cristã, para esse grupo de Deputados, confundem-se, amalgamam-se, na tentativa de se legitimar a defesa da sobreposição de uma visão particular de família sobre as demais possíveis – e reais. Aqui também os valores cristãos são destacados como sinônimos dos bons costumes, aqueles sobre os quais funda-se a sociedade brasileira, e, portanto, merecedores de primazia em detrimento de outros que lhes são alheios. São esses os valores, segundo o mencionado conjunto de Parlamentares, que devem ser observados, exclusivamente, para a constituição e reconhecimento das entidades familiares (BRASIL, 2015b). Entretanto, naquela mesma oportunidade, a figura do Deus cristão foi também objeto de questionamento e críticas por outros. Conforme apontamos no Capítulo primeiro, Erika Kokay, quando da palavra, acusa alguns colegas defensores do Estatuto da Família de romperem com o Estado laico, em razão de estarem, na realidade, transformando seus mandatos na defesa de suas próprias concepções religiosas. De forma semelhante, Bacelar acredita que o Estatuto da Família, explícita ou implicitamente, é movido não por concepções científicas, mas religiosas. O Deputado argumenta que a defesa da família não pode ser tratada como uma questão pessoal e que políticas públicas jamais devem ser definidas por critérios religiosos. Pelo contrário: em que pese cada um ser livre para professar a sua fé, é

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“Eu desafio qualquer jornalista investigativo, verificados quase quatro mil casos de morte de homossexuais, quantos foram praticados por católicos e por evangélicos? Nenhum! Nenhum! Então quem tinha que ir preso são os homossexuais porque eles é que nas briguinhas íntimas – é! – eles é que nas briguinhas íntimas…” [voz não identificada: “noventa e cinco por cento feito por eles mesmos”] “… por eles mesmos! Não há católico nem evangélico nesse negócio, tá? Se continuar com esse tipo de argumento de que dois homens e duas mulheres formam família, então daqui a uns dias vai ter homem com uma vaca e vai virar avacalhação!”. (BRASIL, 2015b)

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defeso que um sentimento religioso determinado queira padronizar a posição de toda a sociedade (BRASIL, 2015b). Assim como Kokay e Bacelar, também Glauber Braga e Maria do Rosário posicionaram-se acerca da presença do religioso no Projeto de Lei. Braga, levantando-se como protetor do Estado laico, imputa aos defensores do Estatuto da Família desrespeito à CRFB/88 por utilizarem-se do Legislativo, casa do povo, espaço público, para defenderem sua concepção exclusiva de família a partir dos ensinamentos e valores de uma só religião, e que beneficia apenas aos seus adeptos, como se detivessem o monopólio da verdade. Maria do Rosário, por sua vez, questiona até mesmo se a religiosidade dos colegas Parlamentares está, de fato, calcada em princípios do Cristo179 : Quem são Vossas Excelências para julgar quem quer que seja? Que religiosidade é esta que fere o princípio do Estado laico; que fere a lei, mas que fere, sobretudo, a lei maior, que é a da amorosidade e do respeito mútuo? [...] Eu defenderei sempre a liberdade religiosa como direito fundamental, mas não queiram impor os seus preceitos religiosos à população brasileira como um todo, a todas as famílias. Não queiram, porque isso é ferir o conjunto de religiosidades; isso é ferir o direito à liberdade; isso é ferir o direito à família, que é um direito sagrado, um direito que tem que ser preservado [...]. Vossas Excelências, se têm fé verdadeira, devem pensar sobre seus atos. (BRASIL, 2015b)

Em vista dos discursos proferidos durante esses dois momentos do caminhar democrático (não tão) distintos entre si, dois fatores – que não atuam necessariamente em conjunto – nos parecem ser desencadeantes ou contribuintes para o elevado número de referências a Deus (incluindo pedidos por sua proteção, iluminação, derrame de bênçãos e misericórdia) e a valores pontuais por parte de Deputados Federais durante o exercício de suas atribuições: o primeiro é o elevado número de brasileiros que se autodeclaram cristãos, enquanto o segundo é a crescente força que essa perspectiva religiosa (que, como outras, visa a detenção do monopólio do mercado de salvação180) vem exercendo na política e democracia brasileiras.

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A esse respeito, a filósofa Marcia Tiburi se posiciona no sentido de que pastores de igrejas neopentecostais que ocupam o poder político no Brasil – “de um modo geral, contrários a todos os avanços democráticos e aos direitos fundamentais e individuais” – vêm fazendo mau uso de Deus. “A relação entre religião e política implica a instrumentalização de uma pela outra. Isso quer dizer”, aponta, “que os fins religiosos justificam os meios políticos, e os fins políticos justificam os meios religiosos. A ética, como reflexão sobre a ação, como preocupação com o outro, é jogada no lixo da história nesse arranjo”. (TIBURI, 2016) 180 Segundo o que afirma Pinheiro (2008, p. 28), “como o campo religioso traduz-se por um mercado de salvação em que diversas empresas competem simbolicamente entre si, cada qual com pretensão de verdade, quer explicitamente, quer implicitamente, o simbólico de um grupo religioso sempre costuma atentar contra o simbólico dos demais grupos”. Em outras palavras, para o autor, as frentes religiosas que competem entre si no campo simbólico-religioso não raro têm por característica entenderem-se cada qual como a detentora da verdade, além de buscarem para si o monopólio do espaço destinado à fé. Não restam dúvidas, para o autor, acerca da existência de certa competição simbólica entre cristãos católicos e evangélicos, notadamente pela disputa por

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Para discutirmos acerca do primeiro fator levantado, tomaremos como base, mais uma vez, os dados obtidos pelo censo demográfico de 2010. A partir desses elementos de informação, o IBGE aponta que, desde o primeiro recenseamento nacional de 1872 até a década de 1970, o perfil religioso da população manteve como aspecto principal “a hegemonia da filiação à religião católica apostólica romana, característica herdada do processo histórico de colonização do País e do atributo estabelecido de religião oficial do Estado até a Constituição da República de 1891”, enquanto que os demais grupos religiosos atingiam “contingentes significamente menores” (IBGE, 2012a, p.89). A partir dos anos 1980, muito embora o número de indivíduos autodenominados católicos no Brasil tenha diminuído, o índice total de adeptos a essa matriz religiosa ainda era elevado, constituindo 89,0% (oitenta e nove por cento) da população total. Os resultados de 1991, contudo, registraram o crescimento do segmento que se declarou evangélico, o qual passou de 6,6% (seis vírgula seis por cento) para 9,0% (nove por cento) do total da população durante um interstício de dez anos. Entretanto, o destaque deste recenseamento demográfico reside no crescimento do número de evangélicos pentecostais: de 3,2% (três vírgula dois por cento) para 6,0% (seis por cento). “Neste interregno”, continua o IBGE (2012a, p. 89), “o segmento católico, embora majoritário, deu continuidade à tendência de declínio, perfazendo 83,0% [oitenta e três por cento] dos residentes”. Em 2010, as pesquisas indicaram “o crescimento da diversidade dos grupos religiosos no Brasil, revelando uma maior pluralidade nas áreas mais urbanizadas e populosas do País”. A proporção da população católica seguiu em decréscimo do número de fiéis por que já vinha passando, embora ainda seja a matriz religiosa majoritária, consubstanciando 64,6% (sessenta e quatro vírgula seis por cento) dos religiosos brasileiros. Não obstante, consolidou-se o crescimento da parcela que se declara evangélica, que representa 22,2% (vinte e dois vírgula dois por cento) de religiosos. Percebeu-se ainda o aumento do total de pessoas que professam a religião espírita (2,0%), dos que se declararam sem religião (8%), do conjunto pertencente a outras religiosidades (2,7%), e a manutenção da proporção dos adeptos à umbanda e candomblé (0,3%) (IBGE, 2012a, p. 90-91).

seus fiéis “através da oferta de bens de salvação específicos, concorrentes e, no mais das vezes, mutuamente excludentes”. Um dos exemplos citados em sua obra é a exibição da Bíblia evangélica sobre a mesa da ANC em contraposição à exibição do crucifixo católico em espaços públicos, “o que deixa entrever uma tentativa de afirmação dos evangélicos perante os católicos, inclusive através da alegação de que os bens simbólicos destes já estavam superados”. (PINHEIRO, 2008, p. 25; 30)

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A conclusão a que chegamos a partir desses dados é que, nos dias de hoje, aproximadamente 89% (oitenta e nove por cento) da população brasileira declara-se cristã, incluindo católicos, evangélicos e espíritas181. Entretanto, segundo adverte Paul Freston (1993, p. 27), a “relação entre tamanho numérico e presença política não é automática”. É possível que uma igreja de pequeno porte tenha forte influência política em razão de que seus membros tenham sido elegidos por votos não-religiosos; por outro lado, também é plausível que uma igreja de grande porte se mantenha apolitizada. Dessa forma, o autor conclui que o crescimento de determinada igreja ou matriz religiosa “não é explicação suficiente para a entrada na política. Cada grupo reage às oportunidades de acordo com suas características internas” (FRESTON, 1993, p. 27). O que se diz, em outras palavras, é que o primeiro fator, o número elevado de brasileiros que se autodeclaram cristãos, não mantém obrigatoriamente relações causa-consequência com o segundo fator, qual seja o aumento e fortalecimento da politização de denominações cristãs e seu ingresso na arena política brasileira. A não-obrigatoriedade de relações causa-consequência entre os fatores acima apontados parece ainda mais clara diante de números apresentados por Douglas Pinheiro e Paul Freston referentes à presença da vertente cristã evangélica na Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988 e de suas características internas. Segundo os autores, muito embora o destaque à atuação dos evangélicos no cenário Legislativo Federal tenha se consolidado com a instalação da Nova República ao final dos anos 1980, desde os idos da República Velha, em 1891, já se faziam representar no Congresso182. No entanto, a eleição de 1986 para a Constituinte iniciou uma nova presença cristã não-católica “em termos quantitativos (número de deputados) e qualitativos (novas igrejas representadas, novos tipos de político e novas estratégias de ação)”. (FRESTON, 1993, p. 2). À época, apontam Pinheiro e Freston, os evangélicos representavam uma minoria no país de tradição católica – o que fez com que a quantidade de representantes evangélicos na ANC gerasse até mesmo uma surpresa entre os especialistas em religião e política. Dito de 181

Existe uma divergência teológica e religiosa acerca de o espiritismo pertencer ou não ao cristianismo. Achamos por bem incluí-los com base na reiterada afirmação da Federação Espírita Brasileira em Estudo Aprofundado da Doutrina Espírita de que o espiritismo é filosofia que repousa na moral do Cristo e em ensinamentos essencialmente cristãos. 182 Segundo Douglas Pinheiro, três foram os representantes evangélicos durante a República Velha: “Alfredo Ellis, constituinte em 1891, deputado federal até 1899 e senador de 1903 a 1925, que se dizia protestante, embora não-praticante; Érico Coelho, constituinte em 1891, deputado federal até 1899 e de 1903 a 1906 e senador nas legislaturas de 1906-1909 e 1914-1918, ex-católico que passou a congregar na Igreja Evangélica Brasileira, uma denominação nacional elitista fundada pelo ex-presbiteriano e ex-espírita Miguel Vieira Ferreira; e Joaquim Nogueira Paranaguá, constituinte em 1891, deputado federal até 1896 e senador de 1896 a 1906, católico que ingressou na Igreja Batista após concluir seu último mandato”. (PINHEIRO, 2008, p. 54)

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outro modo, em que pese os evangélicos ainda representarem no final da década de 1980 uma minoria numérica religiosa, ainda assim, ao trazerem para a ANC “um fenomenal aporte de recursos culturais e retóricos”, juntamente com “demandas tradicionais e moralistas”, conseguiram “falar com plausibilidade em nome da ‘maioria moral’” (FRESTON, 1993, p. 14-15). Esses dados, a nosso ver, para além de reforçarem a inexistência de relação obrigatória entre o número de fiéis de determinada matriz religiosa e a força de sua atuação e militância política na esfera pública183, apontam para a importância das pesquisas que se detêm sobre a retórica desse vertente cristã e dos fundamentos sobre os quais está calcada. Muito embora o número de Deputados religiosos atuantes na ANC não se restringisse aos declaradamente evangélicos, recapitulamos, para além de recorrentes citações de versículos bíblicos, a presença de um elemento pertencente ao campo do simbólico que reafirma “uma luta por legitimação e reconhecimento de visões de mundo concorrentes entre si”: a previsão regimental da exibição bíblica na mesa da Assembleia Constituinte, como que contraponto à prévia existência de crucifixos no Plenário (PINHEIRO, 2008, p. 28). Mas não qualquer Bíblia. De acordo com Pinheiro, o então Deputado Constituinte Antônio de Jesus (PMDB-GO) entregou em doação ao Presidente em exercício da ANC, em março de 1987, uma versão do livro cujo texto ostenta teor confessional evangélico184, a ser posicionada sobre 183

Muito embora não seja o foco principal deste trabalho, parece-nos, ancorados pelos estudos de Pinheiro e Pierucci, que a força da atuação e militância evangélica na política advém, principalmente, de dois elementos. O primeiro, já apresentado no Capítulo primeiro como ponto crucial para a quantidade elevada de representantes evangélicos na última ANC, repousa nos processos coletivos de tomada de decisão por parte de lideranças evangélicas com vistas à afirmação de sua matriz religiosa. Um desses processos deu-se em 1932, frente a uma suposta “ameaça católica” percebida ao longo do Governo Vargas (citamos a tentativa de se oficializar o catolicismo como religião oficial brasileira em 1925; autorização do ensino religioso nas escolas públicas em 1931; a inauguração do Cristo Redentor no morro do Corcovado em 12/10/1931, dia de Nossa Senhora Aparecida, símbolo católico brasileiro), cujo resultado foi a eleição de Guaracy Silveira, “o primeiro constituinte apoiado por um eleitorado genuinamente evangélico”, para a ANC de 1933-1934 (PINHEIRO, 2008, p. 55). Outro momento de tomada de decisões ocorreu durante a década de 1980, quando a igreja Assembleia de Deus reuniu-se e articulou-se com propósito semelhante: convencer suas bases da importância de se fazerem representar na ANC de 1987-1988, sobretudo ao abrigo do mantra politizador “irmão vota em irmão”. Já o segundo elemento reside, segundo Pierucci, na sua necessidade por publicidade. Para o autor, o evangelismo conservador hoje: “1) procura visibilidade para si diante da opinião pública, ou seja, notoriedade e popularidade, presença marcante na esfera pública midiática; e 2) parte para uma presença ativa na esfera pública propriamente dita, na esfera política”. [grifos no original] (PIERUCCI, 1996, p. 167) Por meio da atuação militante e publicizada na esfera política, o evangélico detentor de um mandato (reocupado semanticamente pelo tripé vocação-profetismo-martírio, cf. Pinheiro) pode fazer-se ouvir. Mais que isso, é aberto um fértil canal para que se autoafirme, que imponha sua voz em defesa de sua concepção de moralidade e bons costumes tanto por meio da sacralização do secular como da secularização do sagrado. (PINHEIRO, 2008, p. 69-71) 184 A esse respeito, frisamos que inexiste uma versão padrão ou neutra da Bíblia, mas versões confessionais, sectárias, que, a depender do responsável pela tradução dos escritos, apresentam variações na numeração dos versículos e até mesmo no número total de livros. A respeito da discrepância entre as versões, Pinheiro (2008, p. 50) assevera: “os protestantes históricos (e, hoje, os evangélicos), seguindo a opção feita por Lutero, utilizam o cânon restrito adotado pelos judeus no Sínodo de Jâmnia (ano 100 d.C., aproximadamente), segundo o qual seriam tidos por sagrados, dentre os livros do Antigo Testamento, apenas aqueles que satisfizessem os seguintes requisitos: espacial (escrito dentro do território de Israel), lingüístico (escritos em hebraico), temporal (escritos antes de Esdras, ou seja, 458-428 a.C.) e doutrinário (não contraditórios à Torá). Os católicos, em contrapartida,

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a mesa da Assembleia. O ato da doação, para o autor, não se limitou à preocupação de “garantir a exibição bíblica, dando cumprimento ao preceito regimental, mas, também, a de zelar pela versão a ser adquirida pela Constituinte para tal fim” (PINHEIRO, 2008, p. 51). Assim, em que pese a ANC ter sido formada por Deputados que professam as crenças as mais diversas, foi naquele momento que o Brasil se deparou, conforme afirma Pierucci, com um conjunto de 33 (trinta e três) Parlamentares que se autoproclamavam evangélicos185, em busca do reconhecimento da sua visão de mundo, e satisfeitos com a “vitória” representada pela exposição da Bíblia evangélica, seu símbolo religioso, sobre a mesa da ANC. “Além de visíveis e mensuráveis, apareciam como inesperadamente vocais na manifestação e na defesa de suas convicções religiosas e de seus pontos de vista sobre a sociedade”, afirma o autor. “Visíveis, mensuráveis e vocais” (PIERUCCI, 1996, p. 164). É por esse motivo que, muito embora os Parlamentares em comento, por vezes, invoquem o Deus cristão e a doutrina cristã, de forma genérica, como fundamento para a sua argumentação política, existe uma vocalidade, por vezes simbólica, por vezes ostensiva, que dá contornos evangélicos aos elementos cristãos de que se valem. É a respeito, portanto, da atuação do grupo de Parlamentares “protestantes [evangélicos] conservadores politicamente ativos e ativistas”, segundo Pierucci (1996, p. 165166) e Gouvêa (2012, p. 28-30), ou de uma maioria moralista em defesa dos bons costumes, conforme Pinheiro (2008, p. 81-88), que teceremos nossas ponderações. Em face do que nos mostram os estudos acerca da Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988, não nos parece incauto afirmar que os trabalhos ali desenvolvidos e, posteriormente, promulgados, se deram sob forte influência dos valores defendidos pelo utilizam o cânon amplo adotado pelos judeus de Alexandria que, entre 250 e 100 a.C., traduziram os textos tidos por sagrados para o grego, dando origem à versão dos Setenta Intérpretes ou Septuagentina, que inclui os seguintes livros, excluídos pelo Sínodo de Jâmnia: Tobias, Judite, Sabedoria, Baruc, Eclesiástico, I e II Macabeus, além dos trechos de Ester 10, 4 – 16,24 e Daniel 3, 24-90; 13 e seguintes”. (sic) [grifos no original] Para além das diferenciações expostas por Pinheiro, Severino Celestino da Silva (2009, p. 26) critica “a questão pessoal que cada corrente religiosa coloca em sua tradução” em atenção às suas conveniências pessoais. Cada uma das dez versões traduzidas para a língua portuguesa citadas na sua obra, aponta o autor, “diz ser a mais correta e a mais digna de fé de ofício”. (SILVA, 2009, p. 28) 185 Pierucci adverte que não se pode incorrer no equívoco da generalização abusiva a respeito dos trinta e três Parlamentares autodenominados evangélicos. Dentre os Constituintes formadores da apontada “bancada evangélica”, justamente por não ser homogênea ideologicamente, o autor distingue “meia dúzia de parlamentares claramente identificados com as teses populares e progressistas de transformação social e superação das desigualdades de classe”. É por essa razão que nossos estudos estão delimitados, assim como os de Pierucci, à atuação dos “protestantes [evangélicos] conservadores politicamente ativos e ativistas”. No entanto, em que pese a advertência inicial, prossegue o autor: “o fato mesmo de nesta bancada serem minoritários os nãoconservadores pode ser encarado como indicador bastante seguro da direção para onde corre o leito principal desse novo tipo de ativismo político-religioso”. (PIERUCCI, 1996, p. 165-166) Ademais, a respeito do número de componentes da bancada evangélica na ANC, Pinheiro aponta que existem divergências entre as fontes consultadas, de sorte que, em sua obra, aponta a existência de 34 (trinta e quatro) membros formadores daquela bancada suprapartidária.

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cristianismo evangélico; ou seja, nas palavras de Pierucci (1996, p. 164), os Deputados que se autodenominavam evangélicos pretendiam, naquela oportunidade, “que seus pontos de vista religiosos minoritários em um país de tradição católica e de reconhecido pluralismo confessional, tivessem sua normatividade imposta, pela Constituição, a todos os brasileiros”. Assim, a meta de tais Constituintes “era que a Carta Magna da nação brasileira se baseasse na ‘carta magna’ de Deus aos homens, a Bíblia” (FRESTON, 1996, p. 164). E ressaltamos: não qualquer Bíblia, senão aquela confessional evangélica, exposta sob mesa do Plenário. Como bem sugere Pinheiro, os Constituintes evangélicos não se demonstraram interessados na equiparação das diversas religiões, como se pressupõe a partir do princípio da laicidade do Estado186, mas procuraram, ao revés, impor sua visão religiosa como em concorrência à católica. Caso aspirassem efetivamente à igualdade, equidistância, ou neutralidade confessional que o princípio da laicidade estabelece, teriam insistido na retirada dos crucifixos dos locais públicos, e não na inserção, primeiramente, de mais um símbolo religioso confessional na esfera pública, seguida da imposição de valores que lhes são supostamente correspondentes, contrariando qualquer possibilidade de isonomia entre as matrizes religiosas existentes no país187. Dessa forma, a batalha travada pelo privilégio da exposição de seu símbolo religioso no Plenário da ANC, em confronto com o símbolo católico, é demonstrativo de que considerável parte dos valores defendidos pelo sujeito constitucional (segundo Pinheiro, passível de contínua construção/reconstrução), e inseridos nas linhas da CRFB/88, dentre eles a concepção de família delineada no seu artigo 226, são decorrentes dos esforços de afirmação de um ponto de vista religioso em específico, de uma visão de mundo dentre as várias possíveis, e não de salvaguardar da laicidade estatal ou de resguardar a garantias e direitos. Antes, o Constituinte evangélico objeto de nossos estudos – e, aqui, apropriando-nos 186

Nos dizeres do sociólogo Ricardo Mariano (2011, p. 244), “A noção de laicidade, de modo sucinto, recobre especificamente à regulação política, jurídica e institucional das relações entre religião e política, igreja e Estado em contextos pluralistas. Refere-se, histórica e normativamente, à emancipação do Estado e do ensino público dos poderes eclesiásticos e de toda referência e legitimação religiosa, à neutralidade confessional das instituições políticas e estatais, à autonomia dos poderes político e religioso, à neutralidade do Estado em matéria religiosa (ou a concessão de tratamento estatal isonômico às diferentes agremiações religiosas), à tolerância religiosa e às liberdades de consciência, de religião (incluindo a de escolher não ter religião) e de culto”. O princípio da laicidade no Brasil, segundo o qual é incabível que se priorize uma religião em detrimento de outras, advém, para Maria Berenice Dias, da proteção constitucional ao direito inviolável de crença (CRFB/88, artigo 5o, VI). 187 A propósito, aí reside o dilema enfrentado por Guaracy Silveira durante sua carreira política. Conforme nos narra Pinheiro, o pastor metodista adentrou o cenário político, durante a Constituinte de 1933-1934, ancorado no discurso laicizante, em defesa dos interesses evangélicos; entretanto, passada uma década, na ocasião da Constituinte de 1946, Silveira adotou outra estratégia: “em vez de defender a laicidade, lutou pela igualdade de direitos entre católicos e protestantes”. E aqui reside o dilema: “bater-se pela laicidade, questionando as vantagens oficiosas que a religião majoritária teria obtido no decorrer dos anos (sua atuação na Constituinte de 1933-1934), ou lutar pelo igual acesso a essas mesmas vantagens (atuação na Constituinte de 1946)?”. (PINHEIRO, 2008, p. 55-56; 89)

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de termos usados por Pinheiro –, ao invés de bater pela laicidade e questionar as vantagens que o catolicismo teria obtido ao longo dos anos, optou por lutar pelo igual (senão superior) acesso a esses mesmos benefícios e prerrogativas. Em que pese o ponto de vista cristão evangélico ter sido imposto pelo sujeito constitucional de 1987-1988 em frentes diversas, resgatamos nesse momento as discussões travadas em relação ao conceito de família e à vedação das uniões entre pessoas do mesmo sexo. Pinheiro e Pierucci evidenciam o mote religioso que moveu parcela dos Constituintes à redação final do artigo 226 da CRFB/88 (artigo esse de que tanto se valem os defensores do Estatuto da Família), o qual reiteramos neste momento: “procurar barrar na Constituinte as iniciativas por eles consideradas anticristãs” (PIERUCCI, 1996, p. 182). As próprias declarações e discussões dos Deputados Constituintes ao final dos anos 1980 acentuam e, não raro, escancaram o caráter – referindo-nos às caracterizações traçadas por Pinheiro e Pierucci – moralista, religioso e excludente que molda o artigo 226 da CRFB/88. Basta recordarmos das palavras do Deputado Salatiel Carvalho: “os evangélicos não querem que os homossexuais tenham igualdade de direitos porque a maioria da sociedade [cristã] não quer”, ou então do posicionamento adotado pelo Deputado Antônio de Jesus, que, além de considerar a união homoafetiva um exemplo de heresia, acreditava que os homossexuais deveriam ser, na verdade, submetidos a tratamento por desvio de conduta. Recapitulemos ainda os pronunciamentos do Deputado Costa Ferreira, para quem a previsão constitucional de vedação a prejuízo ou privilégio em razão da orientação sexual do indivíduo (ridicularizada pelo Deputado Daso Coimbra como “emenda dos viados”) seria trazer ao Brasil uma maldição igual à de Sodoma e Gomorra; do Deputado Nelson Aguiar, que acreditava ser a AIDS uma “recompensa pelo erro da prática homossexual”, em referência à passagem bíblica inscrita na epístola de Paulo aos Romanos, capítulo 1, versículo 27; e do Deputado Eliel Rodrigues, que asseverou ser a homossexualidade uma espécie de pecado, perversão, deformação de ordem moral e espiritual, reprovável sob todos os aspectos genuinamente cristãos (PINHEIRO, 2008; PIERUCCI, 1996). Este conjunto de valores que moveu o Constituinte a inserir a expressão o homem e a mulher no artigo 226 da CRFB/88 e a rechaçar outras formas de entidades familiares que não aquelas em conformidade aos moldes cristãos, em especial as formadas por casais do mesmo sexo, é o mesmo que perpassa tanto os discursos dos Deputados Delegado Waldir, João Campos, Cabo Daciolo, Ronaldo Fonseca e Eduardo Bolsonaro na ocasião da votação acerca do seguimento do processo de impeachment da atualmente Presidente afastada Dilma Roussef, como as tomada das posições relativas à propositura do Estatuto da Família e à

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redação de seus dois Pareceres. Não se trata meramente de vedação a qualquer forma de hierarquia entre homem e mulher, como entendem os Ministros Ayres Britto e Celso de Mello; ou mesmo para tirar as uniões estáveis ou não-formalizadas das sombras e incluí-las no rol de famílias, conforme afirmam os Ministros Luiz Fux e Joaquim Barbosa. As razões para tanto, bem aponta a Ministra Cármen Lúcia, remontam à Constituinte, e os histórico das discussões demonstram que o modelo de família explícito na CRFB/88, qual seja o natural e exclusivamente heterossexual e com fins à procriação, foi ali estampado em razão de estratégias cristãs evangélicas atuantes na Constituinte. Parece-nos prudente que, antes de seguirmos com o desenvolvimento a que nos propusemos, novamente teçamos duas considerações. A primeira delas cuida de reiterar o que afirmamos no subitem anterior: não se trata aqui de negar o modelo tradicional de família, nem de rejeitar os elementos que o compõem. A família tradicional (heterossexual, composta por pai, mãe e filhos) é apenas um dos construtos que merecem proteção – ou melhor, que merecem igual proteção do Estado, e respeito à dignidade de seus componentes. Para além da tradicional, existem outras formas de entidades familiares, a exemplo das compostas por casais sem filhos; ou ainda por indivíduos não-heterossexuais, dos quais não se espera a automática reprodução biológica. O que não se pode permitir, em se considerando uma sociedade democrática, como veremos, é que apenas um modelo de entidade familiar goze da proteção e amparo estatal, e que tão-somente esse construto seja juridicamente reconhecido como família. Defendemos uma concepção de família aberta, plural, includente, que reconheça em cada indivíduo igual dignidade humana perante seus pares e a potencialidade de cada qual para exercer o papel que lhe convier dentro do seio familiar por ser essa a leitura que nos sugerem os Direitos Humanos e os princípios constitucionais. A segunda consideração diz respeito à fé cristã, em especial a vertente evangélica, incluídos seus ritos, preceitos e dogmas. Não se tem a pretensão, neste trabalho, de satirizar, menosprezar ou desmerecê-la. Como já apontamos, a CRFB/88, artigo 5o, garante a inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença, ao passo que assegura o livre exercício dos cultos religiosos e garante a proteção aos locais de culto e a suas liturgias. Em sentido semelhante, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos da ONU (1992), ratificado e promulgado pelo Brasil, além de vedar a discriminação por motivo de religião (artigo 2º), garante ao indivíduo a “liberdade de ter ou adotar uma religião ou uma crença de sua escolha e a liberdade de professar sua religião ou crença, individual ou coletivamente, tanto pública como privadamente, por meio do culto, da celebração de ritos, de práticas e do

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ensino”, ainda que sujeita a limitações que se fizerem necessárias para a proteção dos direitos e das liberdades dos demais sujeitos (artigo 18). É lícito e livre, portanto, ao indivíduo, professar sua fé, qualquer que seja, ou mesmo sua ausência de fé, pública ou privadamente, contanto que não atente contra direitos e liberdades dos demais. A nosso ver, e com base no aporte de Pierucci e Pinheiro, o Constituinte de 1987-1988, notadamente o autodeclarado evangélico e defensor da família e dos bons costumes, impôs a todos, via CRFB/88, o reconhecimento de um modelo exclusivo de família, aquele que corresponde à visão de mundo característica de suas crenças pessoais. A sobreposição, portanto, de determinado viés religioso em relação aos demais, e a consequente violação da igualdade, da realização da dignidade humana, de direitos e de liberdades individuais é parte integrante acerca do que pretendemos refletir nesse trabalho. A utilização do espaço político, qual seja o Parlamento, para a defesa de interesses entrecruzados a concepções religiosas determinadas, confessionais, ofende o princípio da laicidade estatal, a dignidade humana dos demais concidadãos e extrapola os limites a que estão sujeitas as suas manifestações em se considerando um estado democrático. Com efeito, o próprio poder constituinte deve conhecer limites. Assim, em que pese tenha o poder constituinte originário a capacidade de instituir uma nova ordem, a qualquer tempo, fora, acima e incondicionada ao poder constituído preexistente, não se trata de um poder ilimitado ou incondicionado. Pelo contrário: de acordo com Luís Roberto Barroso, o exercício e a obra do poder constituinte devem ser “pautados tanto pela realidade fática como pelo Direito, âmbito no qual a dogmática pós-positivista situa os valores civilizatórios, os direitos humanos e a justiça”. Mesmo que o poder constituinte originário seja incondicionado ao poder preexistente, ele “estará sempre condicionado pelos valores sociais e políticos que levaram à sua deflagração e pela ideia de Direito que traz em si” (BARROSO, 2013, p. 133, 137). Dessa forma, longe de gozar de existência autônoma, o poder constituinte deve observância: a) ao processo histórico por que passou e passa a sociedade; b) à realidade que o circunda, sob pena de ineficácia do próprio regramento que pretende constituir; c) à cosmovisão da sociedade – “suas concepções sobre ética, dignidade humana, justiça, igualdade, liberdade”; d) às instituições jurídicas necessárias à sua positivação; e e) aos princípios do direito internacional, especialmente os direitos humanos, considerados pelo autor como “um patamar mínimo a ser observado por todos os Estados na organização do poder e nas suas relações com seus cidadãos” (BARROSO, 2013, p. 137, 138).

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O Constituinte de 1987-1988, em maior ou menor medida, a depender do objeto discutido, agiu sem o devido acautelamento no que respeita aos limites acima mencionados. A literatura nos aponta que aquele autodeclarado evangélico, em especial, e que se amolda ao perfil traçado por Pinheiro e Pierucci, desprezou, quando menos, os princípios de Direitos Humanos, a realidade fática tanto nacional como global e o processo histórico por que vêm passando determinados grupos sociais, juntamente com os valores civilizatórios que o acompanham. É nesse sentido que nos parece plausível sustentar que o lobby de interesses evangélicos, ou melhor, o bloco suprapartidário evangélico, ao atuar como corresponsável por influências ou deformações da vontade da ANC, com manifesto ânimo de procurar barrar as iniciativas que consideravam anticristãs – e, dentre elas, o reconhecimento jurídico da família composta por casais do mesmo sexo –, não apenas fez uso do espaço público para impor a todos suas crenças privadas, mas trespassou os limites que lhe eram impostos como Deputados Constituintes (BONAVIDES; ANDRADE, 2002). Conforme Diego Garcia admite em seu Parecer, o Constituinte de 1987-1988 já tinha conhecimento da existência de parcerias civis entre pessoas de mesmo sexo na Inglaterra, e foi pontualmente o domínio desses dados que o motivou a inserir no texto constitucional o termo entre o homem e a mulher para negar qualquer possibilidade de o Brasil vir a adotar o modelo inglês de parcerias homoafetivas em concorrência com o construto tradicional de família. No entanto, engana-se Garcia ao sustentar que o Parlamento deve se atentar à “consciência histórica e humana da Constituição vigente” (BRASIL, 2015a). Isso porque a CRFB/88, apesar de trazer um rol exemplificativo de direitos e garantias, sofreu desferimentos tais que impedem que seu texto, especificamente no que tange às possibilidades explícitas de construções familiares, carregue consigo a expressão da consciência histórica e humana da sociedade brasileira. Ao contrário, seu artigo 226 apresenta tão-somente uma consciência religiosa que se mostra excludente e, por vezes, mesquinha. Caso o Constituinte, no que atine às formações familiares, tivesse realmente se atentado à consciência histórica e humana, a CRFB/88 expressaria em seu texto o entendimento de que famílias passam por movimentos de organização-desorganizaçãoreorganização, e que é necessário que essa peculiaridade seja respeitada, ao invés de engessar as possibilidades construtivas e interpretativas em um arquétipo heterocêntrico e reprodutor, apenas. Respeitaria também as mudanças, as transformações nas subjetividades dos indivíduos e nos papéis que performam, tanto em relação ao lugar que ocupam no mundo social, como no seio familiar. Observaria ainda a ruptura com a divisão sexual de tarefas, com o controle da fecundidade e a liberação das mulheres em relação ao dever de maternidade –

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passagens transformadoras da consciência brasileira que tiveram início na segunda metade do século XX, como referimos em Capítulo anterior (CARVALHO, 2003; MELLO, 2003; LINS, 2013). Da mesma forma, se, ao momento das discussões sobre a concepção de família que vigoraria na Constituição, as razões do Constituinte tivessem sido pautadas em atenção à alegada consciência histórica e humana, revelar-se-ia no artigo 226 do texto constitucional respeito, para citar alguns, ao Movimento Feminista e suas reivindicações ao direito das mulheres em relação a seus corpos, à igualdade de gênero e ao combate à cultura do estupro188; e ao Movimento LGBTTTI e suas lutas pela conquista da legitimidade jurídica para suas relações afetivo-familiares, pela visibilidade de sua afirmação enquanto sujeitos de direitos e pela desconstrução dos mitos tanto da complementaridade dos sexos e gêneros como da heterossexualidade enquanto única forma de sexualidade normal ou natural (LINS, 2013; MELLO, 2005). O Constituinte autodeclarado evangélico objeto dos nossos estudos189, ao contrário, apresentando-se como porta-voz de uma suposta maioria, ancorado no que entendem por bons costumes e impondo seus valores cristãos (embora supostamente compartilhados pela maioria), em vislumbrando as reivindicações acima citadas como anticristãs, bradou não querer que homossexuais tivessem igualdade de direitos; que, em nome da conservação da família, os homossexuais (reprováveis sob todos os pontos de vista genuinamente cristãos, condenados pela Bíblia, hereges, pecadores, aberrações, pervertidos, deformados moral e espiritualmente, desviantes e anômalos sexuais) deveriam ser combatidos ou submetidos a tratamento; que os homossexuais ferem a moral da família e da sociedade; que a AIDS é a maldição ou pagamento pelo pecado homossexual igual à que recaiu sobre Sodoma e Gomorra; que não devem receber garantia constitucional explícita; que se a mulher não ceder, o estupro não acontece; que a mulher é conivente com o estupro quando, descuidada, anda por lugares ermos frequentado por maus elementos, ou quando se traja de modo a seduzir o homem; que a mulher, mesmo ameaçada por arma branca ou de fogo, ainda assim deve resistir ao estupro, e de fato o logrará, caso em que, se morta, morrerá com honra; que a

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Segundo matéria veiculada pelo sítio eletrônico da ONU (2016), a cultura do estupro “é um termo usado para abordar as maneiras em que a sociedade culpa as vítimas de assédio sexual e normaliza o comportamento sexual violento dos homens. Ou seja: quando, em uma sociedade, a violência sexual é normalizada por meio da culpabilização da vítima, isso significa que existe uma cultura do estupro”. 189 Esclarecemos, mais uma vez, que o Constituinte evangélico aqui retratado é aquele considerado por Pinheiro e Pierucci como moralista, conservador politicamente ativo e ativista em prol de suas convicções religiosas e de seus pontos de vista acerca da sociedade brasileira.

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mulher deve ser a única responsável pelo feto; que a Bíblia diz que a autoridade emana de Deus e deve ser respeitada (PINHEIRO, 2008; PIERUCCI, 1996; BAHIA, SANTOS, 2013). A atuação de tais Deputados no palco do Congresso Constituinte revela, como dito, uma violência à realidade vivenciada, nomeadamente, pelas mulheres e pela comunidade LGBTTTI. O desprezo pelos homossexuais e a aquiescência com a cultura do estupro demonstram desrespeito pelo ser humano, pela sua dignidade, pelos seus desejos190 e por todo o catálogo de direitos191 – os efetivos motores das reivindicações – que deve(ria)m ser-lhe assegurados, sejam eles civis, políticos, sociais, econômicos ou culturais. Evidenciam talvez mesmo um indecoro de sua parte ao se autoproclamarem profeticamente representantes do divino cristão na Terra e conhecedores de suas vontades – o bastante para urrarem quem é ou não merecedor de igualdade, quem deve ou não gozar de liberdade, que espécie de construto é ou não autorizada a ser reconhecida como família. Afinal, o uso da Bíblia como reforço argumentativo possível (e desejado, haja vista a presença da versão confessional evangélica à mesa da ANC) fez parecer desnecessário atentarem-se a valores democráticos, como a dignidade da pessoa humana e o direito à diferença, durante os trabalhos realizados. Reputando-se representantes de Deus, do Deus do povo brasileiro, outorgaram-se também representantes legítimos da “maioria do nosso povo”, da “maioria da sociedade” – e essa suposta maioria não quer, como sustentavam Salatiel Carvalho e Eliel Rodrigues, calcados no ethos cristão exemplar192 (com seus valores, proibições, inibições, exclusões, opressões e coações, cf. Pinheiro), que os homossexuais “tenham igualdade de direitos”, ou mesmo que se proceda com a “oficialização do homossexualismo” (PIERUCCI, 1996; PINHEIRO, 2008; ZYLBERSZTAJN, 2012; PIOVESAN, 2009; RIBEIRO, 2013). Não bastasse, o Constituinte ao qual nos referimos infringiu o limite consubstanciado nos princípios de Direitos Humanos, colocando, por conseguinte, em risco a legitimidade193 do governo democrático que se pretendia instalar com a ANC, na medida em que decide, e.g., se determinado grupo social merece ou não gozar do direito à igualdade em relação a seus pares. A atuação segundo os interesses do Constituinte evangélico “conservador”, ao desprezar os princípios de Direitos Humanos, quebra a susceptibilidade à geração de novos

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“O desejo é a matéria-prima dos direitos”, assevera Renato Janine Ribeiro (2013, p. 45) Como lembra Piovesan, os Direitos Humanos são indivisíveis; assim, quando um deles é violado, todos o são. 192 Pinheiro (2008, p. 90) alerta-nos para o fato de que, por vezes, os Constituintes evangélicos valeram-se do artifício de imiscuir “sua identidade específica numa pretensa identidade cristã abrangente”. 193 Afinal, como afirma Norberto Bobbio, e aqui retomando seu pensamento, é impossível um avanço no processo de democratização do sistema internacional sem que haja uma gradativa ampliação dos Direitos Humanos acima de cada soberania nacional. Dessa forma, a democracia, para o autor, só se revela possível com o reconhecimento e proteção dos direitos dos indivíduos. 191

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direitos e obstrui o funcionamento da democracia (MARQUES, 2013; BOBBIO, 2004; PIERUCCI, 1996). Nesse esteio, o Constituinte de 1987-1988, possuindo em suas mãos os meios para proteger e garantir direitos, mas guiado por suas convicções religiosas, optou por violá-los, extrapolar seus limites e implantar contradições no íntimo da CRFB/88. Muito embora a CRFB/88 traga em seu bojo o rol descritivo de direitos antes de discorrer sobre os deveres dos cidadãos – cuja técnica representa um indício de afirmação de Direitos Humanos –, aos casais homossexuais foi abertamente negada a equiparação de direitos com os heterossexuais, em razão de acreditar o Constituinte tratar-se de abominação. Ainda, em que pese os direitos fundamentais trazidos pela CRFB/88 constituírem, na verdade, princípios autoaplicáveis, o Constituinte rasga, para nomear algumas, as possibilidades a) de determinados grupos sociais, tidos como minorias sociais, gozarem da dignidade inerente à pessoa de cada um; b) de que se construa efetivamente uma sociedade livre, justa e solidária; c) de que se promova o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação; d) da prevalência de Direitos Humanos; e) da defesa da paz; f) da igualdade de todos perante a lei; g) da inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença; e h) de que ninguém seja privado de direitos em razão da crença religiosa de quem os priva. Ao lado das expressões de garantias de Direitos Humanos insculpidas (ainda que contraditoriamente) na CRFB/88, cujo centro é a dignidade da pessoa humana194, encontramse aquelas previstas na DUDH/48195, que inspirou a redação final do texto constitucional de 194

Rememoremos ainda que, segundo Barroso (2013, p. 161-174; 277), a pessoa humana possui valor intrínseco independente de qualquer evento ou experiência – até mesmo da razão. A dignidade da pessoa humana, assim, além de estar na origem do leque de direitos fundamentais, pressupõe seja o indivíduo dotado de autonomia, autodeterminação, livre arbítrio. Entretanto, para que o sujeito seja verdadeiramente livre, igual e capaz de exercer cidadania e autonomia, é necessário que sejam-lhe garantidas possibilidades que ultrapassem o mínimo existencial. Por outro lado, a autonomia é frequentemente restringida por valores, costumes e direitos dos demais indivíduos, denominados pelo autor de valor comunitário. Esse valor comunitário, embora incorpore um caráter de limitação, apenas deve ser imposto por meio de decisões caso fundamentadas racionalmente (e não religiosamente), para que se evite o que o autor entende por paternalismo, moralismo e tirania das maiorias. 195 Poderíamos citar, de forma exemplificativa, os artigos I (Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade); II (Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição); III (Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal); VI (Todo ser humano tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa perante a lei); XII (Ninguém será sujeito à interferência em sua vida privada, em sua família, em seu lar ou em sua correspondência, nem a ataque à sua honra e reputação. Todo ser humano tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques); XVI (Os homens e mulheres de maior idade, sem qualquer restrição de raça, nacionalidade ou religião, têm o direito de contrair matrimônio e fundar uma família. Gozam de iguais direitos em relação ao casamento, sua duração e sua dissolução; A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção da sociedade e do Estado); XVIII (Todo ser humano tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo

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1988 e impactou o ordenamento jurídico pós-1988. Conforme afirmamos nas linhas do Capítulo precedente, o modelo contemporâneo de Direitos Humanos utilizado pelo Brasil foi cunhado pela DUDH/48. Além disso, resgatemos o fato de que o texto constitucional traz reproduções fiéis de enunciados constantes em documentos de Direitos Humanos – dentre eles, a DUDH/88. É por essa razão que afirmamos que, se de um lado o Constituinte inovou o ordenamento trazendo direitos e garantias declaradas e reconhecidas no âmbito internacional196, de outro, as convicções religiosas pessoais e a necessidade de autoafirmação falaram mais alto e calaram os direitos de parcela da população. Com efeito, embasados pelo aporte teórico apresentado durante este trabalho, e ao manusearmos os Pareceres referentes ao Estatuto da Família, entendemos acertado asseverar que os Relatores do PL, a) ao invocarem a vontade do Constituinte de 1987-1988; b) ao defenderem a literalidade do artigo 226 da CRFB/88 como condição expressa e restritiva para o reconhecimento de um único construto familiar possível; c) ao recorrerem à “consciência histórica e humana da Constituição vigente”, e principalmente; d) ao se reportarem aos anais da última ANC instalada no país, para além de revelarem amplo conhecimento acerca das influências dos Deputados Constituintes cristãos (notadamente os evangélicos conservadores politicamente ativos e ativistas) na redação final do artigo 226, demonstram, ainda que nas entrelinhas, compartilhar não apenas do mesmo perfil ideológico, mas também de interesses e ânimo idênticos aos que motivaram o Constituinte a inserir o termo entre o homem e a mulher para a caracterização de família, base da sociedade, merecedora de especial proteção do Estado (BRASIL, 2014b; BRASIL, 2015a). Por fim, ressaltamos que, se os Constituintes de 1987-1988 se furtaram de observar os limites próprios do poder constituinte originário, os Deputados que propõem e sustentam o Estatuto da Família, juntamente com concepções religiosas exclusivas que lhes parecem inseparáveis, violam, além dos direitos e garantias já mencionados, também o direito à culto e pela observância, em público ou em particular); XIX (Todo ser humano tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras); e XXIX (Todo ser humano tem deveres para com a comunidade, na qual o livre e pleno desenvolvimento de sua personalidade é possível; No exercício de seus direitos e liberdades, todo ser humano estará sujeito apenas às limitações determinadas pela lei, exclusivamente com o fim de assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem e de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar de uma sociedade democrática; Esses direitos e liberdades não podem, em hipótese alguma, ser exercidos contrariamente aos objetivos e princípios das Nações Unidas). 196 Citamos ainda (mas, novamente, não nos limitamos a) o Pacto Internacional dos Direitos Civil e Políticos de 1966 (artigos 2o a 6o, 10 a 20, 23, 26 e 27); o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966 (artigos 1o a 5o, 10 e 11); a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial de 1968, artigo 5o; e a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher de 1979 (artigos 1o ao 6o, 15 e 16).

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liberdade de pensamento, consciência e religião previsto no documento formador dos Princípios de Yogyakarta (2006): Princípio 21. Toda pessoa tem o direito à liberdade de pensamento, consciência e religião, independente de orientação sexual ou identidade de gênero. Estes direitos não podem ser invocados pelo Estado para justificar leis, políticas ou práticas que neguem a proteção igual da lei, ou discriminem, por motivo de orientação sexual ou identidade de gênero. Os Estados deverão: a) Tomar todas as medidas legislativas, administrativas e outras medidas necessárias para assegurar o direito de as pessoas, independente de sua orientação sexual ou identidade de gênero, terem e praticarem crenças religiosas ou nãoreligiosas, sozinhas ou associadas a outras pessoas, livres de interferência nessas crenças e também livres de coerção ou imposição de crenças; b) Garantir que a expressão, prática e promoção de opiniões, convicções e crenças diferentes relacionadas a temas de orientação sexual ou identidade de gênero não sejam feitas de forma incompatível com os direitos humanos. [grifos nossos]

Os Constituintes evangélicos impuseram-se como representantes de uma maioria moral – embora pertencentes a uma matriz religiosa minoritária – e, portanto, segundo eles, legitimados democraticamente para procederem como oráculos do divino. Mas que democracia é essa cujos princípios permitem que sejam válidas as decisões coletivas tomadas em observância restrita à regra da obtenção do maior número de votos, que satisfaz a suposta vontade da maioria, mas que limita direitos da minoria? Que democracia laica é essa que pretende que políticas públicas destinadas à família se rendam à proteção do Deus cristão e ao credo dessa “maioria absoluta de religiosos e não religiosos e que construiu nossa sociedade brasileira, bem como todo o ocidente” (BRASIL, 2014b)? Oxalá a ironia de que lançou mão o Deputado Bacelar, quando da votação do segundo Parecer do Estatuto da Família, possa ser tida como um veículo que nos permita refletir mais alongadamente acerca do caminho democrático que temos trilhado: “Seria mais fácil, talvez, substituir a Constituição pela Bíblia” (BRASIL, 2015b). Na continuidade, analisaremos, de forma minuciosa, o conceito de família proposto pelo Estatuto da Família em contraste com as regras do jogo procedimentalista e a sétima regra qual seja a CRFB/88.

3.3. Democracia é respeitar a maioria, que se manifesta a partir da sua consciência? A relevância dos Direitos Humanos e de uma agenda contra-hegemônica para a democracia, a semântica da família e o Legislativo

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Em vista dos dados e da literatura examinados, pudemos, até este momento, refletir sobre duas ponderações principais lançadas ao longo deste Capítulo. A primeira trata acerca da interpretação de família exclusivamente (e não inclusivamente) como uma entidade tradicional, heterocêntrica, naturalizada, e cujos atores desempenham papéis binários, divididos e engessados de homem-pai-chefe e mulher-mãesubmissa. Essa possibilidade de compreensão de família, que julga tratar-se da única legítima, evidente por si mesma, e habilitada para a reprodução natural da espécie, é aquela insculpida no artigo segundo do Estatuto da Família. O PL, alegadamente ancorado em preceitos democráticos e nas diretivas morais majoritárias brasileiras, exclui do pretenso rol de direitos e diretrizes de políticas públicas voltadas à família, base da sociedade, e merecedora de especial proteção do Estado, qualquer outra forma de se conceber ou interpretar tal entidade, especialmente a formada por duas pessoas do mesmo sexo, considerada como desviante. A negação à família homoafetiva e ao reconhecimento de seus direitos é perceptível no Parecer de Diego Garcia e nas discussões travadas na votação em Comissão Especial, embora mais veemente no Parecer subscrito por Ronaldo Fonseca. No entanto, as reflexões acerca dos movimentos por que vêm passando os indivíduos (como autores de reivindicações, dotados de dignidade e libertos da tríade vida em comumsexo-reprodução) e das entidades familiares (enquanto categorias socioculturais plurais e dinâmicas, para além do modelo tradicional, mas incluindo-o) guiam-nos em sentido contrário àquele que caminham os defensores do Estatuto da Família. Com efeito, tais considerações permitem-nos verificar que, ao contrário do que se vislumbra nos discursos explícitos e implícitos que envolvem o Estatuto da Família, e considerando-se uma sociedade sob os trilhos da democracia, pautada nos princípios de Direitos Humanos, no respeito à diversidade e à cidadania, o direito dos não-heterossexuais de constituírem família devem ser resguardados, ainda que contramajoritariamente. A segunda ponderação versa sobre a violação da dignidade da pessoa humana em razão dos privilégios concedidos a uma matriz religiosa em detrimento das demais – privilégios esses que se fizeram presentes, até mesmo, no nascedouro da CRFB/88, e que causa(ra)m repercussões sobre a concepção de família estampada no artigo 226 do texto constitucional, tão caro a Fonseca, a Garcia e a uma suposta “maioria cristã”. Atualmente, cerca de 89% (oitenta e nove por cento) da população brasileira é autodeclarada cristã, segundo dados do IBGE; entretanto, não se pode relacionar automaticamente o tamanho numérico de determinada crença e a sua presença na arena política. Exemplo da nãoobrigatoriedade dessa relação é a presença dos Constituintes evangélicos na ANC de 1987-

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1988, que, embora representassem uma minoria religiosa à época, em um país de tradição católica, e buscando o reconhecimento de sua visão de mundo, impuseram-se como representantes de uma alegada maioria moral. Desta maneira, ao invés de lutarem pela salvaguarda da laicidade estatal e do resguardo a garantias e direitos, cuidaram ao máximo para que a CRFB/88 refletisse seus valores religiosos especialmente frente a iniciativas que consideravam anticristãs: dentre elas, a ameaça de se constitucionalizar a família como uma entidade plural, que abarcasse também as uniões de pessoas do mesmo sexo. O êxito logrado é refletido na redação do artigo 226 do texto constitucional, que contém a expressão restritiva o homem e a mulher justamente para rejeitar não apenas as uniões entre pessoas do mesmo sexo (embora se trate do foco principal), mas qualquer espécie de construto familiar que não o tradicional. É a par da atuação evangélica na ANC e da presença do manto religioso que envolve a concepção de família insculpida na CRFB/88 que Ronaldo Fonseca e Diego Garcia (esse mais explicitamente que aquele) insistem tanto no respeito às vontades e razões do Constituinte como na interpretação literal do artigo 226 enquanto delineador do que se admite como família no Brasil. Mais uma vez, de forma semelhante ao que percebemos ante as reflexões sobre a primeira ponderação, a vontade da maioria é invocada como legitimador democrático para a negativa de Direitos Humanos, partindo, aqui, de duas frentes: a maioria populacional, que elegeu, sob as regras do sistema majoritário, os representantes Constituintes para a defesa de bons costumes alegadamente partilhados por todos; e a maioria cristã, que poderia, à primeira vista, confundir-se mesmo com a maioria numérica de cidadãos, mas, com efeito, guarda uma peculiaridade. Embora, por vezes, os Constituintes evangélicos invoquem o Deus cristão e sua doutrina, de forma genérica, como fundamento para argumentação política, o próprio símbolo traduzido na ostentação da Bíblia confessional evangélica sobre a mesa da ANC revela que, de fato, os interesses que defendem não são tão majoritários como tentam aparentar, visto que a maioria populacional à época, segundo o IBGE, se autodenominava católica. Em vista dessas últimas ponderações, e aliadas ao entendimento alegadamente majoritário de que a família tradicional deve ser o único modelo reconhecido no país, encerramos o Capítulo anterior questionando a legitimidade de decisões coletivas pautadas no respeito estrito à regra da maioria numérica, e que importam em limitações a direitos de minorias e desrespeito a princípios de Direitos Humanos, dentre eles à dignidade desses indivíduos, em se considerando a democracia brasileira. Questionamos também se é possível que o Brasil, um governo democrático laico, defina políticas públicas voltadas à família sob as lentes e critérios de uma vertente religiosa específica. Afinal, seria o conceito de família

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trazido pelo artigo segundo do Estatuto da Família – considerando seus dois Pareceres, as discussões travadas na votação em Comissão Especial, e as motivações do Constituinte de 1987-1988 para a redação final do artigo 226 da CRFB/88 – compatível com a democracia pátria e com os princípios constitucionais e internacionais de Direitos Humanos, ou trata-se de uma restrição que pretendem seja instalada no ordenamento jurídico vigente? A análise das questões levantadas prescinde, todavia, do resgate de algumas características da democracia e dos conteúdos mínimos que visa proteger, delineados ao longo do Capítulo segundo, em confronto direto com os discursos que embasam e sustentam o conceito de família trazido pelo Projeto de Lei. É nesse momento que pretendemos verificar, valendo-nos inclusive das técnicas do controle de convencionalidade delineadas por Mazzuoli, se o conceito de entidade familiar197 insculpido no Estatuto da Família, tal como foi aprovado pela Comissão Especial da Câmara dos Deputados, observa as regras do jogo democrático procedimentais e neoconstitucionalistas e os princípios constitucionais e internacionais de Direitos Humanos, tomando a CRFB/88 como marco normativo condutor da democracia brasileira. Conforme apontamos, Norberto Bobbio propõe uma concepção procedimental de democracia pautada em um conjunto de regras e procedimentos, conhecidas como as regras do jogo. Essas regras devem ser observadas para que as decisões coletivas sejam tomadas pelos cidadãos de forma mais facilitada, ampla e segura. O que se preocupa estabelecer, segundo essa visão de democracia, é a titularidade do poder político (a quem compete tomar as decisões coletivas) e como se dará o seu exercício (lançando mão de quais procedimentos). Em se tratando de uma democracia dotada de forte caráter representativo198, como é a brasileira, as decisões são tomadas, com efeito, por indivíduos que representam o coletivo.

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Art. 2º do Substitutivo ao Projeto de Lei nº 6.583, de 2013: “Para os fins desta Lei, reconhece-se como família, base da sociedade, credora de especial proteção, em conformidade com o art. 226 da Constituição Federal, a entidade familiar formada a partir da união de um homem e de uma mulher, por meio de casamento ou de união estável, e a comunidade formada por qualquer dos pais e seus filhos”. [grifos nossos] (BRASIL, 2015a) 198 A Constituição Federal de 1988, como afirmamos, estipula a forma mista da democracia: ao mesmo tempo que prevê que os cidadãos devem escolher seus representantes por meio do sufrágio universal nas esferas Legislativa e Executiva, que tomarão as decisões em observância à regra da maioria, também traz a possibilidade de exercício participativo ou direto da democracia, sem a intervenção dos representantes, mediante plebiscito, referendo e iniciativa popular. Entretanto, o exercício participativo ou direto é cumprido em escala bem menor que o representativo. De 1988 a 2015, foram realizados no país três plebiscitos (em 21/04/1993 sobre o regime e o sistema de governo no Brasil - monarquia parlamentar ou república / parlamentarismo ou presidencialismo; em 11/12/2011, apenas no Estado do Pará, sobre a aprovação ou não da divisão do Estado em três - o próprio Pará, Carajás e Tapajós; e em 05/10/2014, apenas no município de em Campinas-SP, sobre a elevação ou não das regiões de Ouro Verde e Campo Grande daquela municipalidade à condição de distritos administrativos) e dois referendos (em 23/10/2005 sobre a proibição da comercialização de armas de fogo e munições; e em 31/10/10, apenas no Estado do Acre, para a escolha de seu horário em relação ao de Brasília-DF).

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Por isso, para Bobbio, a importância de regras que estabeleçam quais os indivíduos autorizados a decidirem em nome do grupo, e por meio de quais procedimentos. A CRFB/88, nesse sentido, traz delimitações acerca da titularidade (todo o poder emana do povo, artigo 1o, parágrafo único, CRFB/88) e do exercício do poder político (o poder é exercido diretamente pelo povo ou por meio de seus representantes, artigos 14 e 1o, parágrafo único, CRFB/88), bem como trata das formas possíveis de controle de constitucionalidade, verdadeiro sistema de verificação da conformidade de um ato normativo com a Constituição Federal (artigos 5º, LXVIII, LXIX, LXXI e LXXII; 34, VII; 102, I, III e 103). Ademais, como vimos, o artigo 14 do texto constitucional prevê que os direitos políticos serão exercidos por meio do sufrágio universal, pelo voto direto e secreto, com igual valor e peso para todos (embora existam duas limitações técnicas199), e sem quaisquer limitações discriminatórias, para que, por meio dele, seja expressa a livre opinião do cidadão. Tais delimitações, pelo que percebemos, vão ao encontro da primeira e segunda regras do jogo estipuladas por Bobbio (2000b, p. 427): 1) todos os cidadãos que tenham alcançado a maioridade etária sem distinção de raça, religião, condição econômica, sexo, devem gozar de direitos políticos, isto é, cada um deles deve gozar do direito de expressar sua própria opinião ou de escolher quem a expresse por ele; 2) o voto de todos os cidadãos deve ter igual peso. [grifos acrescidos]

Dessa forma, é possível verificarmos que o ato que propôs o Projeto de Lei n o 6.583/2013 observa e respeita as duas primeiras regras do jogo. O PL, publicizado no sítio eletrônico da Câmara dos Deputados, entre outros veículos, foi subscrito pelo Deputado Federal Anderson Ferreira, legitimamente eleito pelo sistema proporcional em 2010, segundo dados do sítio eletrônico do Tribunal Superior Eleitoral200, e em observância às delimitações trazidas pela CRFB/88 – notadamente a igualdade política e de votos201. Ainda, de acordo com os artigos 22; 44; 48, caput; 49, XI; e 61 do texto constitucional202, a proposição de 199

São elas a obrigatoriedade do alistamento eleitoral e do voto para os maiores de dezoito anos; a facultatividade para os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos, para os maiores de setenta anos e para os analfabetos; e a proibição do alistamento para estrangeiros e conscritos em período de serviço militar obrigatório. 200 Disponível em: . Acesso em 16 julho 2016. 201 Retomando o entendimento de Corina Yturbe, a igualdade política prescreve que todos os indivíduos devem ser incluídos de maneira igual no processo de tomada de decisões políticas; enquanto a igualdade de voto referese ao peso igual que ostenta o voto de cada cidadão. 202 Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: I - direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho Art. 44. O Poder Legislativo é exercido pelo Congresso Nacional, que se compõe da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. Art. 48. Cabe ao Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da República, não exigida esta para o especificado nos arts. 49, 51 e 52, dispor sobre todas as matérias de competência da União [...].

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projetos de leis encontra-se dentro de suas atribuições como representante do Congresso Nacional. As regras do jogo, segundo Bobbio (2000b, p. 427), preocupam-se ainda com a liberdade dos titulares dos direitos políticos para que votem seguindo suas próprias opiniões: 3) todos aqueles que gozam dos direitos políticos devem ser livres para poder votar segundo sua própria opinião formada, ao máximo possível, livremente, isto é, em uma livre disputa entre grupos políticos organizados em concorrência entre si; 4) devem ser livres também no sentido de que devem ser colocados em condições de escolher entre diferentes soluções, isto é, entre partidos que tenham programas distintos e alternativos. [grifos acrescidos]

Nesse esteio, as opiniões dos votantes devem ser tomadas o mais livremente possível, livres de quaisquer formas de coação (liberdade subjetiva), ao passo em que deve-lhes ser garantida a existência de grupos políticos plurais organizados, com propostas, soluções e programas diferentes entre si e alternativas reais de escolha entre eles (liberdade objetiva). A CRFB/88, por sua vez, em que pese serem ainda recorrentes as práticas do voto de cabresto, da compra de votos e da boca de urna, possibilita que o cidadão expresse sua opinião política livremente, não apenas por estabelecer a igualdade política e de voto, mas também por invocar o pluralismo político como um dos fundamentos de nosso Estado Democrático de Direito (artigo 1o, V203). Esses partidos, como vimos, em número de trinta e cinco, gozam de certas autonomias e liberdades, insculpidas no artigo 17 do texto constitucional204, o que, em tese, facilita e promove a livre disputa entre si, possibilitando ao

Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional: [...] XI - zelar pela preservação de sua competência legislativa em face da atribuição normativa dos outros Poderes. Art. 61. A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou do Congresso Nacional, ao Presidente da República, ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores, ao Procurador-Geral da República e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição. 203 Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] V - o pluralismo político. (BRASIL, 1988) 204 Art. 17. É livre a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos, resguardados a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana e observados os seguintes preceitos: I - caráter nacional; II - proibição de recebimento de recursos financeiros de entidade ou governo estrangeiros ou de subordinação a estes; III - prestação de contas à Justiça Eleitoral; IV - funcionamento parlamentar de acordo com a lei. § 1º É assegurada aos partidos políticos autonomia para definir sua estrutura interna, organização e funcionamento e para adotar os critérios de escolha e o regime de suas coligações eleitorais, sem obrigatoriedade de vinculação entre as candidaturas em âmbito nacional, estadual, distrital ou municipal, devendo seus estatutos estabelecer normas de disciplina e fidelidade partidária. § 2º Os partidos políticos, após adquirirem personalidade jurídica, na forma da lei civil, registrarão seus estatutos no Tribunal Superior Eleitoral. § 3º Os partidos políticos têm direito a recursos do fundo partidário e acesso gratuito ao rádio e à televisão, na forma da lei. § 4º É vedada a utilização pelos partidos políticos de organização paramilitar. (BRASIL, 1988)

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cidadão a escolha entre diferentes soluções e programas distintos. E mais: a pluralidade de partidos políticos, e a esperada variedade de identificações ideológicas, coopera para que o poder político atue em legalidade e em acesso à igualdade de “chances”. Ou seja, para a atuação adequada no processo democrático, é vedado que uma maioria numérica, ao tomar o poder, ali permaneça ininterruptamente, fechando as portas às reivindicações da minoria; assim como se proíbe que o Estado favoreça esse ou aquele partido em detrimento da isonomia e da livre concorrência. Tomando como exemplo as Eleições de 2010, em razão das quais se iniciou o mandato de Anderson Ferreira em 2011, eleito pelo povo pernambucano e afiliado ao Partido da República (PR), é possível percebermos que, também em Pernambuco, foram eleitos Deputados Federais mais vinte e quatro candidatos filiados a mais dez partidos distintos entre si205. Ademais, outros quinze partidos lançaram, no total, cento e vinte e duas candidaturas adicionais não exitosas206. Ao que indicam as informações disponibilizadas pelo TSE, o Estatuto da Família foi proposto por Parlamentar legitimamente eleito por cidadãos livres, que fizeram uso de seus direitos políticos segundo suas opiniões, formadas livremente, frente à livre disputa de partidos políticos concorrentes entre si, e que propuseram programas distintos e alternativos. Na mesma lógica, ao lado de Anderson Ferreira também foram legitimamente eleitos como representantes do povo brasileiro os dois Relatores do PL, Ronaldo Fonseca e Diego Garcia, além dos vinte e dois Parlamentares que participaram da sessão de votação da Comissão Especial instalada na Câmara dos Deputados em 2015, tudo de acordo com as regras do jogo, ao menos se considerarmos até a quarta regra bobbiana. Com base na ótica procedimentalista de Bobbio, as decisões coletivas não podem ser tomadas pelos interessados de forma autônoma, mas, conforme regramentos. A esse respeito, a quinta regra anuncia que, “seja para as eleições, seja para as decisões coletivas, deve valer a regra da maioria numérica, no sentido de que será considerado eleito o candidato ou será considerada válida a decisão que obtiver o maior número de votos” (BOBBIO, 2000b, p. 427).

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Além de um segundo eleito pelo Partido Progressista (PP), foram lograram êxito cinco candidatos a Deputado Federal afiliados ao Partido Socialista Brasileiro (PSB); quatro ao Partido dos Trabalhadores (PT) e ao Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) cada; dois ao Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), Democratas (DEM) e ao Partido da República (PR) cada; e um ao Partido Comunista do Brasil (PCdoB), ao Partido Democrático Trabalhista (PDT), ao Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) e ao Partido Social Cristão (PSC) cada. 206 A relação completa dos dados está disponível em: . Acesso em 16 julho 2016.

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Nesse mesmo sentido, a CRFB/88 estabelece, no âmbito das eleições, a regra da maioria de votos207 para a escolha de Presidente da República (artigo 77, § 2o), Governador e Vice-Governador (artigo 32, § 2o), e Prefeito e Vice-Prefeito (artigo 29, II). Além disso, conforme o que dispõe o texto constitucional208, artigo 47, também as deliberações da Câmara dos Deputados, do Senado Federal e de suas Comissões são tomadas por maioria dos votos (simples ou relativa, a depender da matéria que tratarem), desde que presente, na sessão, a maioria absoluta dos membros da Casa (quorum de instalação da sessão). O Estatuto da Família, em vista da quinta regra do jogo, também se amolda à democracia procedimentalista, na medida em que a aprovação do segundo Parecer seguiu tanto os preceitos constitucionais relativos às deliberações do Congresso Nacional como o rito estampado no Regimento Interno da Câmara dos Deputados (BRASIL, 2016b): Art. 56. Os projetos de lei e demais proposições distribuídos às Comissões, consoante o disposto no art. 139, serão examinados pelo Relator designado em seu âmbito, ou no de Subcomissão ou Turma, quando for o caso, para proferir parecer. § 1º A discussão e a votação do parecer e da proposição serão realizadas pelo Plenário da Comissão. § 2º Salvo disposição constitucional em contrário, as deliberações das Comissões serão tomadas por maioria dos votos, presente a maioria absoluta de seus membros, prevalecendo em caso de empate o voto do Relator.

Dito de outra forma, os Parlamentares votantes na Comissão Especial foram legitimamente eleitos pelos cidadãos que, livremente, gozaram cada qual de seu direito político, por meio de votos de igual peso e frente a uma variedade de partidos políticos organizados, concorrentes entre si, e proponentes de programas distintos. Esses Deputados Federais reuniram-se após o Estatuto da Família ter sido examinado por dois Relatores e proferido o segundo Parecer, a fim de discutirem as propostas ali constantes e, ao fim, 207

Art. 77. A eleição do Presidente e do Vice-Presidente da República realizar-se-á, simultaneamente, no primeiro domingo de outubro, em primeiro turno, e no último domingo de outubro, em segundo turno, se houver, do ano anterior ao do término do mandato presidencial vigente. [...] § 2º Será considerado eleito Presidente o candidato que, registrado por partido político, obtiver a maioria absoluta de votos, não computados os em branco e os nulos. Art. 32. O Distrito Federal, vedada sua divisão em Municípios, reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos com interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços da Câmara Legislativa, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição. [...] § 2º A eleição do Governador e do Vice-Governador, observadas as regras do art. 77, e dos Deputados Distritais coincidirá com a dos Governadores e Deputados Estaduais, para mandato de igual duração. Art. 29. O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com o interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado e os seguintes preceitos: [...] II - eleição do Prefeito e do Vice-Prefeito realizada no primeiro domingo de outubro do ano anterior ao término do mandato dos que devam suceder, aplicadas as regras do art. 77, no caso de Municípios com mais de duzentos mil eleitores. (BRASIL, 1988) 208 Art. 47. Salvo disposição constitucional em contrário, as deliberações de cada Casa e de suas Comissões serão tomadas por maioria dos votos, presente a maioria absoluta de seus membros.

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deliberarem sobre a aprovação ou não do Parecer. A deliberação, como vimos, resultou na aprovação do Parecer, por 17 (dezessete) votos a favor e 5 (cinco) contrários; ou seja, prevaleceu a decisão tomada pela maioria dos votos. No entanto, em que pese o Projeto de Lei mostrar-se em conformidade com as regras primeira à quinta, existe uma condição ou um limite que não foi observado, em se tratando da concepção procedimental de democracia em Bobbio – a sexta regra: “nenhuma decisão tomada por maioria deve limitar os direitos da minoria, particularmente o direito de se tornar por sua vez maioria em igualdade de condições” (BOBBIO, 2000b, p. 427). Em razão desse limite anterior à regra da maioria, é defeso que as decisões coletivas sejam tomadas em transgressão às regras do jogo, ou mesmo que contribuam para que uma ou mais regras sejam tornadas vãs ou sem efeito. Ao se proibir que a decisão tomada conforme a vontade da maioria restrinja os direitos da minoria, deixa-se claro, na visão procedimentalista de democracia, que o poder da maioria deve, sim, conhecer limites. Efetivamente, diz Bobbio (1886, p. 20), os limites que freiam a vontade da maioria partem de um pressuposto necessário à democracia, qual seja o “reconhecimento constitucional dos direitos ‘invioláveis’ [e insuprimíveis] do indivíduo”, hoje identificados como decorrentes dos princípios de Direitos Humanos. Em outras palavras: “sem direitos do homem reconhecidos e protegidos, não há democracia”, nem desenvolvimento da civilização humana (BOBBIO, 2004, p. 1). A esse respeito, convém rememorarmos que, para Bobbio, a democracia moderna assenta-se em uma concepção individualista da sociedade, i.e., o que se deve anunciar e proteger primordialmente são os direitos dos indivíduos dotados de razão e consciência, capazes de avaliar as consequências de suas ações e de buscar o equilíbrio, ainda que por vezes instável, entre os seus interesses e os do outro, rumo à liberdade e à igualdade. Ademais, além de partir do pressuposto, por vezes contramajoritário, dos Direitos Humanos, necessário para a democracia, a limitação à vontade da maioria é tida por Bobbio como um dos mecanismos constitucionais que visam impedir ou obstacularizar o exercício abusivo, ilegítimo e/ou arbitrário do poder. Outro mecanismo citado pelo autor, que resgataremos mais adiante, traduz-se no “eventual controle do parlamento no exercício do Poder Legislativo ordinário por parte de uma corte jurisdicional a quem se pede a averiguação da constitucionalidade das leis” (BOBBIO, 2000a, p. 19). Apontamos ainda nas linhas do Capítulo segundo que o autor apresenta mais três limites à regra da maioria, que demonstram sua não-supremacia: os de validade, de aplicação, e de eficácia. Dessa maneira, de acordo com Bobbio, a regra da maioria não pode ser utilizada ou aplicada, e.g., a) para relativizar sua própria validade segundo os interesses que a movem;

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ou b) para decidir matérias sobre as quais não se pode opinar ou negociar, a exemplo da inviolabilidade dos Direitos Humanos, de valores, princípios e postulados éticos, questões de consciência e foro íntimo, sob pena de se produzirem decisões injustas e antidemocráticas. De forma semelhante ao que preceitua a sexta regra do jogo em Bobbio, a CRFB/88, por meio de sua principiologia, veda que os direitos da minoria sejam restringidos pelas decisões tomadas pela maioria. Conforme já assinalamos, a regra da maioria, embora prevista na Constituição, representa uma norma constitucional, e não um princípio, responsável por orientar a hermenêutica constitucional. Por esse motivo, por configurar uma norma constitucional, sua aplicação deve obediência aos princípios e fundamentos democráticos insculpidos na CRFB/88, dentre eles a dignidade da pessoa humana, a cidadania, a nãodiscriminação por qualquer motivo, a prevalência dos Direitos Humanos nas relações internacionais brasileiras, e os direitos e garantias trazidos no (mas não delimitados ao) Título II da Carta da República. A norma constitucional, portanto, aqui representada pela regra da maioria, está adstrita à orientação dos princípios constitucionais – dentre eles, os de Direitos Humanos. É em razão dos motivos acima assinalados que o Estatuto da Família vai de encontro com a sexta regra do jogo. Ao propor direitos e políticas públicas voltadas a uma única concepção de família a ser reconhecida juridicamente, baseada necessariamente na diversidade de sexos e com fins procriativos, o PL no 6.583/2013, tal como está, exclui quaisquer outras possibilidades de construção ou interpretação de entidade familiar de forma a desconsiderar princípios de Direitos Humanos presentes na própria CRFB/88, pétreos, e garantidos em tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário209. Em outras palavras, o conceito engessado e heterocêntrico de entidade familiar que o Estatuto da Família pretende introduzir no ordenamento pátrio como o exclusivo merecedor de reconhecimento e proteção pelo Estado, em verdade, limita os direitos das “minorias” não-heterossexuais, por exemplo, e atenta contra seus direitos invioláveis como indivíduos.

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Apontamos nos Capítulos anteriores alguns direitos e garantias insculpidos em tratados internacionais de Direitos Humanos, em que o Brasil é signatário, que quedam-se desrespeitados pelo artigo 2o do Estatuto da Família e pelos argumentos lançados nos Pareceres de Ronaldo Fonseca e Diego Garcia: Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 (artigos I, II, III, VI, VII, XII, XVI, XVIII, XIX e XXIX); Pacto Internacional dos Direitos Civil e Políticos de 1966 (artigos 2o a 6o, 10 a 20, 23, 26 e 27); Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966 (artigos 1o a 5o, 10 e 11); Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial de 1968, artigo 5o; Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher de 1979 (artigos 1o ao 6o, 15 e 16); Princípios de Yogyakarta, no 21; os termos da Declaração nº A/63/635: Direitos humanos, orientação sexual e identidade de gênero de 2008 da ONU; os termos da Resolução no 2.435/2008: Declaração sobre Direitos Humanos, Orientação Sexual e Identidade de Gênero de 2008 da OEA; e os termos da Declaração dos Direitos Sexuais aprovada em 1999 pela WAS.

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A noção de Direitos Humanos, para Bobbio, está atrelada à contemplação do sujeito (considerando, ao mesmo tempo, sua miséria e sua grandeza em potencial), que, ao ter seus direitos fundamentais reconhecidos, deixa de ser súdito para tornar-se cidadão. Dessa forma, e como já ponderamos, parece-nos que, ao desconsiderar os contextos e lutas sociais que influenciam as transformações por que passa(ra)m o indivíduo e seus valores, e ao ignorarem os processos de organização-desorganização-organização por que passa(ra)m também as famílias no decorrer da trajetória humana, o PL em comento revela-se instrumento hábil para negar o caráter ativo do cidadão e para acentuar sua sujeição à vontade dita majoritária (CARVALHO, 2003; RIBEIRO, 2013). Em vista disso, e ao contrário do que argumenta Garcia em seu Parecer, entendemos que os direitos relacionados à constituição de família estão ligados essencialmente aos direitos individuais, e não tão-somente aos sociais210. Por mais que a proteção à família e a instituição de medidas e políticas públicas que lhe amparem enquadrem-se nas características próprias dos direitos sociais, José Afonso da Silva (2015, p. 289) nos alerta que os direitos sociais apenas valem “como pressupostos do gozo dos direitos individuais”. Nesse sentido, é no campo dos direitos individuais que o sujeito encontra garantias de liberdade, autonomia e “independência diante dos demais membros da sociedade política e do próprio Estado” para eleger, na sua esfera privada, a forma como vive, como ama, e quem reconhece como família (SILVA, 2015, p. 193). Aliás, nas palavras de Maria Berenice Dias (2015, p. 34-35), “não se pode conceber nada mais privado, mais profundamente humano do que a família, em cujo seio o homem nasce, vive, ama, sofre e morre” [grifos no original]. Além do exposto, parece-nos também que os direitos de liberdade, autonomia e independência para fundar família que foram conferidos ao indivíduo tanto no plano constitucional como no internacional são, em verdade, não-opináveis – razão pela qual é 210

Conforme o entendimento de José Afonso da Silva (2015, p. 288-289), os direitos sociais, “como dimensão dos direitos fundamentais do homem, são prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais. São, portanto, direitos que se ligam ao direito de igualdade”. A CRFB/88 traz em seu bojo, artigos 6o ao 11, o rol de direitos sociais, agrupados por Silva nas seguintes classes: direitos sociais relativos ao trabalhador, à seguridade, à educação e cultura, à moradia, à família, criança e adolescente e ao meio ambiente. Os direitos individuais, por outro lado, para o autor, são aqueles insculpidos expressamente no artigo 5 o do texto constitucional; os decorrentes dos princípios e regime adotados pela CRFB/88; e os decorrentes de tratados e convenções internacionais adotados pelo Brasil. Trata-se dos direitos à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade – aqueles que reconhecem a autonomia aos particulares diante dos demais indivíduos e do Estado. Ademais, cumpre destacar que Direitos Humanos, para Bobbio, mantêm estreitas relações com os direitos e garantias individuais, como se verifica mesmo do preâmbulo da DUDH/48 da ONU: reconhece-se ali a dignidade inerente a todos os membros da família humana e seus direitos iguais e inalienáveis, inclusive entre homens e mulheres; considera-se como essencial que os Direitos Humanos sejam protegidos pela legislação, para que o ser humano não seja compelido mesmo à rebelião contra a tirania e a opressão.

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vedado, nos termos da democracia procedimentalista, que a maioria decida coletivamente acerca dos construtos que entende ser ou não reconhecidos como família, base da sociedade, nem mesmo a respeito das formas que julga “amadurecidas ao longo de séculos, sem se renderem a modismos que turbam a percepção do que é perdurável” (BRASIL, 2015a). Direitos fundamentais, nessa mesma perspectiva, são também não-negociáveis, de forma que é vedado que a minoria seja constrangida ou obrigada, por ação ou inércia, a abrir mão do direito de constituir família, mesmo que a maioria considera que um ou outro construto familiar não corresponda aos costumes ou valores alegadamente partilhados pela sociedade, contanto que haja o livre e pleno consentimento das partes, como bem ressalta a DUDH/48 Conforme salientamos, apesar das limitações à regra da maioria, o conjunto de regras do jogo nada estabelece em relação ao conteúdo da decisão, o que decidir. Sob esse viés, os Direitos Humanos constituem vedações relacionadas à vontade da maioria como procedimento democrático de tomada de decisões coletivas, e não como limites à restrição propriamente dita do conceito de família. Por esse motivo, parece-nos inviável analisar, sob essa perspectiva, o discurso – sobretudo religioso – que envolve os Pareceres do Estatuto da Família e a gênese do artigo 226 da CRFB/88. Ainda, de acordo com a proposta neoconstitucionalista de democracia perfilhada por Luís Roberto Barroso, a vontade da maioria deve ser limitada, para além de razões procedimentais, em função de determinados conteúdos oriundos da Constituição Federal, sejam materiais/axiológicos, orgânicos ou processuais. Dito de outro modo, o próprio agir dos poderes ordinários conforme a regra da maioria e a própria deliberação majoritária no Estado Democrático de Direito brasileiro deve observar (e limitar-se diante de) valores e consensos mínimos estabelecidos pela CRFB/88. A compreensão hermenêutica do ordenamento jurídico, nos termos da proposta neoconstitucionalista, deve ser baseada, como afirma Barroso, em valores morais partilhados por toda uma determinada comunidade (o valor comunitário), e materializados em princípios no texto constitucional211. Os princípios, por serem abertos, sem predeterminação de sentido,

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Citamos, como exemplo de valores trazidos pela CRFB/88, a constituição do governo brasileiro como Estado Democrático de Direito (artigo 1o, caput); a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana; os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político como fundamentos da República (artigo 1o, incisos I a V); a divisão orgânica entre os Poderes, harmônicos e independentes entre si (artigo 2 o); os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil – construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (artigo 3o e incisos); os direitos individuais, encontrados predominantemente ao longo dos setenta e oito incisos do artigo 5o; os direitos sociais de que trata, em maior parte, o artigo 6 o; os direitos políticos, concentrados entre os artigos 12 e 17; a obediência, pela Administração Pública, aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (artigo 37, caput); a preservação de direitos e garantias individuais como cláusulas pétreas, inalteráveis e inabolíveis (artigo 60, § 4º); o sistema de governo

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e por possuírem todos o mesmo status hierárquico na Constituição, permitem a coexistência dos diferentes argumentos e pontos de vista existentes na sociedade pluralista. A eventual prevalência de um sobre o outro somente pode ser apontada a partir da casuística, do caso concreto. Frente às razões apresentadas, Gustavo Ferreira Santos toma a Constituição como uma espécie de sexta regra do jogo democrático – não como limite procedimental, mas como um sistema aberto de princípios, valores e mandamentos, que tem como uma de suas atribuições centrais a realização dos direitos fundamentais dos indivíduos. Os princípios, assim como os direitos, assevera Barroso, não são imutáveis ou rígidos, mas passam por evoluções constantes em seu significado, como os da liberdade e igualdade. Outros, embora clássicos, sofreram releituras, como a democracia; e outros ainda tiveram suas potencialidades recentemente desenvolvidas, como o da dignidade da pessoa humana. Para mais, a interpretação, doravante, consiste em atribuir sentido ao texto em questão, levando-se em consideração, para tanto, não a simples vontade do legislador ou a aplicação da técnica da subsunção; o neoconstitucionalismo preocupa-se com a ponderação212 entre princípios relevantes e a interação entre a realidade que cerca o intérprete e o problema, “permitindo inclusive a atribuição de significados aos textos constitucionais que ultrapassam sua dicção expressa”, em complemento ao trabalho do Constituinte ou legislador213 (BARROSO, 2013, p. 311). A mudança na hermenêutica jurídica proposta pelo neoconstitucionalismo, e o consequente estabelecimento de valores e consensos mínimos a serem observados pelo Estado Democrático brasileiro, leva em consideração, segundo Barroso, aspectos históricos e sociais, como a complexidade da vida contemporânea, seja no espaço público ou privado; o pluralismo de visões, religiões, valores e interesses que marcam a sociedade a partir do final do século XX; as demandas, tanto nas ruas como no Judiciário, por justiça, promoção e preservação dos direitos fundamentais; e o reconhecimento das deficiências e insuficiências inerentes ao processo político majoritário. Esses consensos mínimos veiculados pela Constituição, acrescenta Barroso, envolvem a vedação ao retrocesso e a garantia de Direitos Humanos e fundamentais, primordiais para o presidencialista (artigo 76, caput); e os direitos difusos, como a proteção ao patrimônio cultural brasileiro (artigo 216) e ao meio ambiente (artigo 225). 212 Na visão de Ronald Dworkin, é razoável que o intérprete se pergunte que peso determinado princípio tem, ou quão importante ele é em se tratando do caso concreto. 213 Entretanto, necessário resgatarmos um esclarecimento explanado por Barroso (2013, p. 234): a interpretação extensiva dos princípios a situações que não foram originalmente previstas apenas é possível em razão da sua abertura, e se tal extensão se inserir logicamente no raio de alcance dos preceitos mandamentais constitucionais. A mesma extensão não pode ser realizada com as regras, que, por serem predominantemente descritivas, não expressam valores nem remetem a fins públicos.

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funcionamento democrático, de forma que é defeso que sejam afetados pelos interesses das maiorias políticas. Bem ao contrário: também na visão substancialista de democracia os Direitos Humanos são entendidos, por vezes, e em patrocínio à causa da humanidade, como direitos contramajoritários. A força contramajoritária dos princípios de Direitos Humanos, notadamente aqueles abarcados explicitamente pela CRFB/88, pode ser ilustrada pelo princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1o, III). Conforme assinalamos no Capítulo segundo, esse princípio é vetor inspirador, interpretativo, harmonizador e vinculante do ordenamento jurídico constitucional e infraconstitucional, além de fonte direta de direitos e deveres. Dessa forma, em caso de colisões, tensões ou ambiguidades entre direitos, o princípio da dignidade humana destaca-se como “bússola na busca da melhor solução”, ainda que aponte em sentido contrário ao pensamento hegemônico. Ademais, na hipótese de violação da dignidade do indivíduo, seja em abstrato ou em concreto, mesmo que por decisão da maioria, a norma ou ato transgressor padecerá de nulidade (BARROSO, 2013, p. 273-274). O conteúdo mínimo da dignidade da pessoa humana, assim como o da democracia, rememoremos, tem por características, além do afastamento de doutrinas abrangentes (sejam religiosas ou ideológicas), a laicidade, a neutralidade política, o antiutilitarismo214, a pluralidade, a garantia da autonomia individual e a universalidade. Entretanto, para que não padeça de banalização, deve ser limitado por um elemento social que Barroso denomina de valor comunitário. Esse limite corresponde não às escolhas individuais, mas à responsabilidade e aos deveres associados a essas escolhas. Por mais importante que seja a autonomia individual, assevera o autor, ela não pode ser entendida ou gozada de forma ilimitada, em razão de que também os direitos, liberdades e autonomia de terceiros devem ser protegidos. Entretanto, além de resguardar os direitos de terceiros, o valor comunitário busca a proteção do indivíduo contra atos autorreferentes, que lesionem a si mesmo, e de valores sociais, na medida em que impõe observância ao “conjunto de valores que correspondem à moral partilhada” mediante fundamentação racional consistente. A moral partilhada a que se refere o autor não está sujeita a formas de paternalismo, moralismo ou tirania das maiorias; 214

De acordo com o filósofo belga Philippe van Parjs, o utilitarismo segue o princípio da maximização da soma das utilidades. “Cada vez que uma decisão deve ser tomada, o utilitarismo exige que sejam estabelecidas as conseqüências associadas às diversas opções possíveis, que, em seguida, avaliemos essas conseqüências do ponto de vista da utilidade dos indivíduos afetados e, enfim, que escolhamos uma das opções possíveis cujas conseqüências são tais que a soma das utilidades que estão a elas associadas é ao menos tão grande quanto àquela associada a qualquer outra opção possível”. (sic) De mais a mais, para o autor, o utilitarismo “parece poder recomendar e legitimar violações intuitivamente inadmissíveis dos direitos dos indivíduos”. (PARJS, 1997, p. 30; 49)

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antes, deve levar em conta se há direitos fundamentais em questão, se é perceptível um consenso social forte a respeito do tema, e se existe risco efetivo para o direito de outras pessoas (BARROSO, 2013, p. 176). Ao analisarmos, portanto, o artigo segundo do Estatuto da Família em conjunto com os argumentos lançados pelos dois Relatores do PL e pelos Deputados Federais na sessão de votação da Comissão Especial, e confrontando-os com a proposta democrática neoconstitucionalista, é possível chegarmos à conclusão de que, também à luz dessa teoria, o PL não se mostra compatível com a democracia brasileira nem com os princípios de Direitos Humanos. Assim sendo, ao pretender dispor sobre os direitos da família e traçar diretrizes de políticas públicas voltadas à sua valorização e apoio, delimitando e restringindo a abrangência de prerrogativas, direitos e garantias unicamente às entidades formadas por pessoas de sexos distintos, por meio de casamento ou união estável, com fins de procriação, ou ainda à comunidade formada por qualquer dos pais e seus filhos, o Parlamentar, por meio do Projeto de Lei, propositalmente, como vimos, nega a determinada parcela da sociedade o gozo de Direitos Humanos, supralegais, garantidos constitucional e internacionalmente. Muito embora as discussões acerca do Estatuto da Família abordem essencialmente a negação ou defesa dos direitos dos não-heterossexuais de constituírem famílias, é preciso que ressaltemos, mais uma vez, que a restrição do rol de famílias, aos olhos do Estado, trazida pelo Estatuto da Família, traz consequências sociais e jurídicas215 negativas também a outras possibilidades de construtos consanguíneos e socioafetivos (formados, por exemplo, entre avós e netos; tios e sobrinhos; irmãos que vivem no mesmo lar; filhos adotivos e um casal do mesmo sexo; e filhos naturais de um dos companheiros e o casal do mesmo sexo). Em se tratando, portanto, de um governo democrático, sobre a ótica neoconstitucional, a compreensão de todo o ordenamento jurídico deve estar fundada nos valores plurais materializados pelos princípios constitucionais, com vistas à realização dos direitos e garantias fundamentais dos indivíduos, tais como a cidadania; a dignidade da pessoa humana; a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; a garantia do desenvolvimento

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Dentre as sociais, podemos citar constrangimentos em hospitais e escolas, e.g., por inexistir no documento de registro dos filhos o nome de seus dois pais, ou das duas mães; ou mesmo acesso a políticas sociais governamentais consolidadas pelo Sistema Único de Assistência Social, como o Bolsa Família; Minha Casa, Minha Vida; Prouni e Isenção de Taxa em Concursos Públicos. Em relação ao mundo jurídico, tal restrição traz implicações, para nomear algumas, nas searas a) previdenciária, pela negativa a pensões, a assistência à saúde; b) sucessória, pela negativa a meação ou herança a companheiro ou familiar sobrevivente, pela não-concessão das garantias próprias do bem de família (em especial a impenhorabilidade) a companheiro ou familiar sobrevivente; c) familiar, pela negativa ou obstáculos produzidos nos trâmites de adoção, de reconhecimento de filhos e de prestação de alimentos; pela negativa à partilha de bens após o termo final da união; e d) civil, pela negativa à adoção de sobrenome de companheiro ou familiar.

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nacional; a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação; e a preservação de direitos e garantias individuais como cláusulas pétreas, inalteráveis e inabolíveis. O Estatuto da Família, ao contrário, condiciona as benesses e proteções ali delineadas a apenas uma dentre as diversas possibilidades construtivas e interpretativas de entidade familiar. Ao nosso entender, a exclusão perpetrada pelo PL no 6.583/2013 – aparentemente imotivada, se analisarmos o Projeto de Lei isoladamente – dos demais modelos familiares do rol apresentado em seu artigo segundo, por si só, já configura atentado aos princípios acima mencionados. Afigura-se-nos inviável assumir que a subordinação de políticas públicas a uma só forma de entidade familiar vá ao encontro da realização dos direitos fundamentais dos indivíduos; antes, parece-nos que o artigo segundo do PL, em verdade, tolhe os direitos de uma parcela da população. No mesmo sentido, entendemos ser inviável admitir que exista cidadania se, ao mesmo tempo, for defeso aos não-heterossexuais formem famílias; ou defender que todos são iguais em dignidade, sem qualquer preconceito ou vedação, enquanto aos casais de mesmo sexo forem postos empecilhos e mais empecilhos para adotarem uma criança, ao contrário dos heterossexuais, que não padecem das mesmas dificuldades; ou ainda afirmar que o Estatuto da Família contribui para o desenvolvimento de uma sociedade livre, justa e solidária, que promove o bem de todos, se as relações de convivência e afeto entre avós e netos, tios e sobrinhos, ou irmãos que vivem no mesmo lar, forem despidas de especial proteção estatal. Por outro lado, os Pareceres de Garcia e Fonseca evidenciam que a eleição de um modelo específico de família a ser protegido pelo Estado não é imotivada, mas parte de disputa por interesses. Conforme tratamos em momentos anteriores, os Relatores do Estatuto da Família compartilham do mesmo perfil ideológico e de ânimo religioso fiel ao que motivou o Constituinte de 1987-1988 a inserir no artigo 226 da CRFB/88 o termo binário o homem e a mulher para a caracterização de família, base da sociedade, merecedora de especial proteção do Estado. Aliás, mesmo o Deputado Anderson Ferreira, em entrevista concedida à revista Fórum216 em 2014 acerca do Estatuto da Família, deixou evidente que o artigo segundo do PL foi articulado para garantir proteção apenas àqueles que compartilham de suas crenças religiosas: “Tenho um princípio, sou representante de um segmento, o dos evangélicos, este é o meu conceito. [...] Eu legislo pra defender a família brasileira, não posso fazer um projeto

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Disponível em: . Acesso em: 17 julho 2016.

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de lei para beneficiar uma classe que não comunga com os princípios cristãos, isso, esqueça” (sic) (FORUM, 2014). Ao longo da entrevista, Ferreira afirma que, para ele, o conceito de família resume-se ao casal heterossexual. Além disso, para o Deputado, quando um indivíduo se torna evangélico, é porque houve o arrependimento de seus pecados – dentre eles, o da homossexualidade. Na sua lógica, não é possível que alguém seja evangélico e homossexual ao mesmo tempo. E arremata: “O que não podemos é deixar minorias estabelecerem regras à maioria, não podemos deixar que apenas um lado seja ouvido. [...] 80% da população é cristã, então, 80% da população não concorda com o casamento homossexual” (FORUM, 2014). O que percebemos dos discursos de Ferreira, Fonseca e Garcia é que o agir democrático, para os Deputados, poderia resumir-se simplesmente na deliberação conforme a vontade da maioria e com justificativa em suas convicções religiosas (que sequer são, de fato, majoritárias em termos de representatividade, como analisamos outrora). No entanto, relembremos que, na visão substancialista de democracia, é defeso que Direitos Humanos sejam afetados pelos interesses das maiorias políticas e ideológicas. Dessa forma, a Constituição Federal, como sexta regra do jogo, e a partir da veiculação de seus valores e princípios, impõe que os Direitos Humanos e individuais, sobretudo a dignidade das pessoas, sejam respeitados e salvaguardados de qualquer espécie de paternalismo, moralismo ou tirania das maiorias. A propósito, afigura-se-nos necessário destacar, mesmo que brevemente, a relevância da agenda contra-hegemônica ou contramajoritária de Direitos Humanos para a democracia. Conforme afirma o filósofo argentino Carlos Augusto Cullen, o termo agenda, em latim, é um gerundivo do verbo fazer, ou seja, exprime ação que está por se realizar ou que será realizada. Assim, agenda relaciona-se ao que deve ser atuado, ao que deve ser feito, e não meramente ao que deve ser declarado. Em outras palavras, o sentido profundo de uma agenda, para Cullen, mantém ligação maior com o que devemos atuar, e não com o que devemos declarar. Quando se trata de Direitos Humanos, é importante que declaremos e sigamos avançando nas declarações, mas, em última instância, é a sua vigência que importa – e isso tem a ver com o que devemos fazer para que os Direitos Humanos contribuam de forma eficaz para as lutas sociais217. Aliás, é nesse mesmo sentido que Beth Simmons destaca a força dos litígios e das demandas de grupos que envolvem Direitos Humanos no seu fazer cumprir nos âmbitos internacional e doméstico. Segundo a autora, cresce cada vez mais o número de indivíduos e 217

Reiteramos, neste momento, as palavras de Helena Esser dos Reis (2014, p. 268), acerca da DUDH/48: “O esforço de transformação solicitado pela Declaração não é ingênuo nem retórico. Parte do suposto que o ideal é normativo, mas que é também indicativo para a ação, o qual jamais será atingido se os princípios não se transformarem em regras para a ação”. [grifos nossos]

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grupos que se servem do sistema judicial para explicitarem compromissos feitos por seus países em tratados internacionais de Direitos Humanos, mas que não foram observados. Além disso, ativistas de grupos e organizações têm utilizado, estrategicamente, tratados de Direitos Humanos a fim de que se aumente a consciência, inclusive nacional, por direitos. Não raro, dentre o leque de estratégias que um movimento social utiliza para assegurar a mudança da agenda política de seu país – portanto, tomando uma postura contra-hegemônica – estão tratados de Direitos Humanos ratificados. Outra característica que se identifica nos discursos de Ferreira, Fonseca e Garcia é o caráter utilitarista de família, na medida em que, segundo o que consta nos Pareceres, a família formada por pessoas de sexos distintos cumpre, ao menos potencialmente, a sua função última: a criação e recriação, de modo natural, da comunidade humana. Por outro lado, os casais formados por pessoas do mesmo sexo estão impossibilitados de cumprirem com esse requisito – um dos motivos pelos quais suas associações não merecem, aos olhos desses Deputados, ser reconhecidas como famílias. Estamos, portanto, diante de duas espécies diferentes de uniões: uma, útil para a sociedade, habilitada para a procriação, amadurecida ao longo dos séculos, resguardada por Deus e merecedora de especial proteção do Estado, denominada família; e outra, de mero afeto, modista, efêmera, similar a um Cavalo de Troia e inútil para a sociedade, já que impossibilitada de gerar naturalmente novos cidadãos. O modelo eleito, sob essa visão, justificar-se-ia mesmo que uma minoria seja sacrificada em prol da máxima utilidade possível à sociedade. Contudo, a feição utilitarista é contrária ao princípio da dignidade humana, e, portanto, vai de encontro com os valores democráticos. Aliás, outras duas características inerentes ao princípio da dignidade humana são a laicidade e o afastamento de doutrinas abrangentes, sejam religiosas ou ideológicas. Todavia, também como já afirmamos, tanto os Pareceres relativos ao Estatuto da Família – e, em vista do conteúdo da entrevista de Anderson Ferreira à revista Fórum, também a redação original do PL – como o que dispõe a literalidade do artigo 226 da CRFB/88, marco da semântica de família no Brasil, estão envoltos de interesses e preceitos confessionais. Em vista disso, não nos parece possível sustentar o caráter democrático do conceito de família trazido pelo artigo segundo do Projeto de Lei no 6.583/2013, nem mesmo sua compatibilidade com os princípios constitucionais e internacionais de Direitos Humanos. Ademais, a nova hermenêutica constitucional não se satisfaz simplesmente com a invocação à vontade do legislador ou com a aplicação da técnica da subsunção. É preciso que se atribua sentido ao texto em questão a partir da ponderação de princípios relevantes e que haja interação entre a realidade que cerca o intérprete e o problema que encontra em mãos.

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Logo, mostra-se insuficiente que o artigo 226 da CRFB/88 seja invocado tão-somente em virtude do que entendia o Constituinte à época, ou porque supostamente retrata a vontade da maioria. Ainda, conforme verificamos ao longo da primeira ponderação, o conceito de família retratado no PL a) nega as diversificadas possibilidades construtivas e interpretativas de entidade familiar; b) afasta-se da compreensão de família mais flexível, pautada na nãoestagnação das formas de convivência familiar; c) desconsidera os contextos e lutas sociais que influenciam as transformações por que passam o indivíduo e seus valores; e d) ignora os processos de organização-desorganização-organização por que passam também as famílias no decorrer da trajetória humana. A partir de tais verificações, é possível concluirmos que autor e Relatores do Estatuto da Família não observaram a complexidade da vida contemporânea nem as demandas sociais por justiça, promoção e preservação dos direitos fundamentais. Faltaram, portanto, com a necessária interação entre a realidade e anseios que circundam a sociedade brasileira e o mandamento constitucional de se preservar uma visão de mundo includente, plural, que reconheça todas as formas de diversidade, inclusive no âmbito das configurações familiares. Não bastasse, o artigo 226 da CRFB/88, em especial seu § 3º, representa, no sistema jurídico brasileiro, regra, e não princípio constitucional. Princípios, como vimos, traduzem-se em ideias a serem buscadas, valores irradiados por todo o ordenamento, de sentido aberto; expressam decisões políticas fundamentais ou fins públicos a serem realizados a partir de condutas avaliadas pelo intérprete constitucional. As regras, por outro lado, são comandos objetivos, descritivos de comportamento, que expressam um preceito, proibição ou permissão aplicado na modalidade tudo ou nada. Assim, quando a CRFB/88 dispõe que “Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”, está, em verdade, afirmando uma regra, que descreve o comportamento familiar e expressa as modalidades de família literalmente permitidas no texto constitucional. Não exprime fins públicos a serem realizados – como o faz os princípios da dignidade da pessoa humana, liberdade, igualdade e solidariedade, para citar alguns –, nem transmite

noções

a

serem

observadas

pelas

demais

normas

constitucionais

e

infraconstitucionais, a exemplo dos valores da cidadania e promoção do bem de todos. Para mais, como afirma Barroso, a CRFB/88 impõe um conjunto de regras e valores a serem observados tanto pelas normas de direito constitucional como de direito civil – e um dos exemplos que o autor traz é o reconhecimento de possibilidades plurais de construções familiares a partir de princípios constitucionais como o da afetividade em detrimento de

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concepções puramente formais ou patrimoniais. É em vista, portanto, da principiologia que rege a CRFB/88 que se permite ao intérprete ou operador do Direito atribuir significados ao texto constitucional que ultrapassam sua dicção expressa, como que em complemento ao trabalho do Constituinte, a fim de que cumprido um dos objetivos principais da Constituição: a garantia de direitos fundamentais. Dito de outra forma, é em vista dos valores constitucionais que se permite interpretar o rol de entidades familiares apresentados pelo artigo 226 da CRFB/88 como exemplificativo, e não taxativo, em vista do que preceituam os Direitos Humanos. Afirmamos, mais uma vez, e em conformidade com Barroso, que o valor fundamental e o objetivo do constitucionalismo democrático estão consubstanciados no princípio da dignidade da pessoa humana. Em vista disso, aliado com o que prescreve o neoconstitucionalismo, entendemos que o Estatuto da Família, enquanto projeto de lei ordinária, deveria ter prestado especial atenção ao princípio da dignidade da pessoa humana quando da caracterização de entidade familiar em seu bojo. Isso porque, ao invés de delimitar o reconhecimento de família exclusivamente ao modelo tradicional, o princípio insculpido no artigo 1o, III, da CRFB/88, aponta a legitimização do direito à família como laico, politicamente neutro, universal, plural, garantidor da intimidade e da autonomia individual, solidário, fundamental a todos – qualquer que seja a modalidade familiar e quaisquer que forem os indivíduos que a integrem, sem discriminações. Dessa forma, em razão da violação à dignidade dos indivíduos que não se encaixam nos moldes preconizados pelo Estatuto da Família, tal Projeto de Lei, caso sancionado, já nascerá nulo, conforme depreende-se das afirmações de Barroso. A respeito do valor comunitário, limite ao princípio da dignidade humana pautado nos valores compartilhados pela sociedade, salientamos que, com efeito, não se trata de restrições às escolhas individuais, mas de mecanismo de proteção dos valores sociais e dos direitos e autonomias de terceiros. O entendimento de família como entidade plural e como direito acessível a todos não coloca em risco direito de terceiros; muito pelo contrário, garante-lhes a segurança jurídica instrumentalizada pelas certidões de nascimento, casamento e óbito expedidas, assentamentos cartorários, formais de partilha, testamentos etc. Ademais, em relação às famílias compostas por pessoas do mesmo sexo, e perfilhando o entendimento dos Ministros Ayres Britto, Luiz Fux e Gilmar Mendes quando da votação no STF em 2011, outro marco da semântica de família no Brasil, não nos afigura possível que o reconhecimento desse modelo familiar afronte os direitos dos construtos formados por indivíduos de sexos distintos. Também, no que tangencia à proteção de valores sociais, a ser promovida pelo

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princípio da dignidade da pessoa humana, frisamos que a) diversos direitos fundamentais estão postos em questão quando se trata do direito à família; b) inexiste, como vimos, risco efetivo para o direito de outras pessoas; e c) não se pode falar de um consenso social forte em relação ao tema218. Por fim, parece-nos que o conceito de família previsto pelo PL no 6.583/2013, alegadamente movido em respeito à vontade da maioria brasileira, mas atendendo, ainda que implicitamente, a interesses de cunho religioso, tende mais ao retrocesso, sobretudo em razão da naturalização da família e ao apego a preceitos religiosos, que à construção de uma sociedade livre, justa e solidária, sobretudo em razão do entendimento restrito de possibilidade familiares e consequente negação de Direitos Humanos a parcela da sociedade. Entendemos que, com efeito, o texto do Estatuto da Família, como Projeto de Lei, deveria ser submetido ao controle de convencionalidade preventivo – um dos mecanismos democráticos que visa impedir ou obstacularizar o exercício abusivo, ilegítimo e/ou arbitrário do poder 219, inclusive pelo Legislativo220 – com vistas a verificar sua possibilidade de validade no plano do direito brasileiro, caso chegue a ser sancionado pelo Poder Executivo e, portanto, vigente. De acordo com o que assevera Valério Mazzuoli, e conforme apontamos no Capítulo anterior, as normas domésticas, como é o caso do Estatuto da Família, devem se sujeitar, para 218

Segundo pesquisa nacional realizada pelo IBOPE (Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística) entre os dias 14 e 18 de julho de 2011, 45% dos brasileiros mostraram-se favoráveis à decisão do Supremo Tribunal Federal em autorizar a união estável para casais do mesmo sexo, enquanto 55% mostraram-se contrários. Dentre os 2.002 (dois mil e dois) entrevistados, a pesquisa identifica que os indivíduos menos incomodados com o tema são as mulheres, os mais jovens, os mais escolarizados e as classes mais altas. Geograficamente, as regiões Sul e Sudeste se destacam como as áreas brasileiras com menos resistência às questões que envolvem o assunto. Os dados completos da pesquisa estão disponíveis em: . (IBOPE, 2011) Outro estudo do mesmo instituto, realizado entre 11 e 19 de março de 2013, aponta que, dentre 2.363 (dois mil trezentos e sessenta e três) internautas entrevistados em todo o país, 47% deles identificaram-se como favoráveis ao casamento civil entre homossexuais, tanto do sexo masculino, quanto feminino. A notícia está disponível no sítio eletrônico do IBOPE: . (IBOPE, 2013) Acesso em: 17 julho 2016. 219 De acordo com o autor, a obrigação de controlar a convencionalidade das leis no continente americano remonta ao ano de 2006, quando a Corte lnteramericana de Direitos Humanos julgou o caso Almonacid Arellano e outros vs. Chile, e estabeleceu na Sentença, parágrafo 124: “A Corte tem consciência de que os juízes e tribunais internos estão sujeitos ao ímpeto da lei e, por isso, estão obrigados a aplicar as disposições vigentes no ordenamento jurídico. Porém, quando um Estado ratifica um tratado internacional como a Convenção Americana, seus juízes, como parte do aparato do Estado, também estão submetidos a ela, o que os obriga a velar para que os efeitos das disposições da Convenção não se vejam prejudicados pela aplicação de leis contrárias ao seu objeto e fim, e que desde o seu início carecem de efeitos jurídicos. Em outras palavras, o Poder Judiciário deve exercer uma espécie de 'controle de convencionalidade' entre as normas jurídicas internas que aplicam nos casos concretos e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Nesta tarefa, o Poder Judiciário deve ter em conta não somente o tratado, senão também a interpretação que do mesmo tem feito a Corte lnteramericana, intérprete última da Convenção Americana”. [grifos do autor] (MAZZUOLI, 2015, p. 421) 220 Conforme defende Ingo Wolfgang Sarlet (2015), “ O Poder Legislativo, quando da apreciação de algum projeto de lei, assim como deveria sempre atentar para a compatibilidade da legislação com a CF, também deveria assumir como parâmetro os tratados internacionais, o que, de resto, não se aplica apenas aos tratados de direitos humanos, mas deveria ser levado ainda mais a sério nesses casos. Não se pode olvidar que legislação interna incompatível com algum tratado ratificado pelo Brasil e que esteja em vigor na esfera supranacional configura violação do tratado, cabendo ao Poder Legislativo operar de modo preventivo também nessa seara”.

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além do controle de constitucionalidade, também à apuração de compatibilidade vertical com a CRFB/88 e os tratados de Direitos Humanos em vigor no Brasil (entendidos como normas supralegais), posto que configuram limites materiais de observância obrigatória pelo Poder Legislativo. Caso falhe nessa compatibilidade de coerência, diz o autor, a lei, mesmo que vigente, não terá validade ou eficácia no ordenamento interno, devendo ser rechaçada pelo Judiciário no caso concreto. Mazzuoli aponta que, na lógica do duplo controle vertical, se a lei antinômica em questão for posterior à CRFB/88, nasce uma inconstitucionalidade, que deve ser combatida pelas vias do controle difuso ou concentrado de constitucionalidade. A respeito de possível inconstitucionalidade encontrada no Estatuto da Família, a Comissão Especial da Diversidade Sexual do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), gestão 2013/2016, publicou nota de repúdio221 contra o Projeto de Lei em setembro de 2015, um dia após a aprovação de seu segundo Parecer pela Comissão Especial da Câmara dos Deputados. De acordo com o que alega a Comissão da OAB (2015), o artigo 226 da CRFB/88 não limita os conceitos de família ou casamento à entidade que se forma entre um homem e uma mulher – a aparente restrição só se encontra na referência à união estável. Entretanto, o Supremo Tribunal Federal, ao interpretar a Constituição Federal, em 2011, reconheceu, de forma unânime, que as uniões entre pessoas do mesmo sexo configuram união estável, de forma que devem gozar de direitos e obrigações idênticos às formadas por casais de sexos distintos. A eficácia erga omnes e o efeito vinculante de tal decisão impulsionaram, ato seguinte, a expedição de Resolução pelo Conselho Nacional de Justiça que proíbe que as autoridades públicas recusem a habilitação, celebração de casamento civil ou a conversão de união estável homoafetiva em casamento. “Deste modo, o indigitado Projeto de Lei é materialmente inconstitucional”, continua a nota (OAB, 2015), “por tentar, via lei ordinária, alterar a Constituição, ao propor um conceito de família trazendo restrições e limitações que não existem no texto constitucional e que já se encontra explicitado por quem tem competência para fazê-lo”. No entanto, independente de discussão no Judiciário ou no STF acerca da constitucionalidade ou não do Estatuto da Família caso venha a ser sancionado, Mazzuoli (2011) sustenta que, sendo a lei posterior a tratados internacionais de Direitos Humanos, e incompatível com eles – ainda que eventualmente compatível com a CRFB/88 –, a norma nasce inválida, e consequentemente ineficaz, apesar de, quiçá, vigente. Em outras palavras,

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Disponível em: . Acesso em: 18 julho 2016.

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mesmo que, aprovado, e vigente o Estatuto da Família, e ainda que não seja objeto de questionamento de constitucionalidade, ainda assim, por sua incompatibilidade com princípios de Direitos Humanos insculpidos em tratados internacionais paradigmas ratificados pelo Brasil, a lei ordinária restará inválida, sem possibilidades de aplicação, em decorrência do crivo de inconvencionalidade. A função de prezar pela compatibilidade das leis infraconstitucionais por meio do controle de convencionalidade cabe aos tribunais internacionais, criados por convenções entre os Estados; ao Legislativo nacional; e aos tribunais pátrios (para além do controle de constitucionalidade), sem que necessitem de prévia autorização internacional, em razão de seu caráter difuso. Em relação ao plano nacional, assim, cabe ao magistrado, ou ao Ministro, ao aplicar ou interpretar a lei ordinária, basear-se no diálogo entre as fontes internas constitucionais e de Direitos Humanos, sejam supralegais ou internacionais, para resolver questões antinômicas. A propósito, conforme entendimento esposado pelo Ministro Luiz Fux em 2011, quando do reconhecimento pelo STF das uniões estáveis homoafetivas equiparadas às heteroafetivas, é particularmente nos casos em que se trata de direitos de minorias que se “incumbe à Corte Constitucional operar como instância contramajoritária, na guarda dos direitos fundamentais plasmados na Carta Magna em face da ação da maioria”, ou mesmo para “impor a ação do Poder Público na promoção desses direitos” (BRASIL, 2011c). Quanto ao legislador, no exercício de suas funções, deve observar a coerência ou compatibilidade que a nova norma deve manter com a CRFB/88 e com os princípios supralegais ou internacionais de Direitos Humanos. Aliás, aqui cabe ressaltar a importância dessa agenda contra-hegemônica como limites também ao Poder Legislativo. Ao contrário do que enfatizaram repetidas vezes Ronaldo Fonseca e Diego Garcia, o papel do legislador não se restringe à confecção desenfreada de normativas legais, seja em atenção ao que entendem por vontade da maioria, seja em prol de interesses ou crenças pessoais. Os Direitos Humanos, entendidos também como contramajoritários, constituem verdadeiros freios ou contrapesos aos anseios de uma denominada maioria democrática. O ser humano deve gozar de Direitos Humanos em vista, simplesmente, da sua condição de pessoa, sem que esses direitos fundamentais possam ser-lhe retirados por qualquer maioria ocasional ou por iniciativa da representação majoritária. No plano internacional, Mazzuoli destaca que a Corte Interamericana de Direitos Humanos, no exercício de sua competência consultiva, não controla propriamente a convencionalidade das leis, dado que seus pareceres não possuem força vinculante perante os

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Estados-partes. A atuação da Corte se pauta na aferição da convencionalidade de dada norma ou ato administrativo interno, tendo como paradigma a CADH/69 ou outro tratado de Direitos Humanos, conforme dispõe o art. 64, 1, da Convenção: Os Estados-membros da Organização poderão consultar a Corte sobre a interpretação desta Convenção ou de outros tratados concernentes à proteção dos direitos humanos nos Estados americanos. Também poderão consultá-la, no que lhes compete, os órgãos enumerados no capítulo X da Carta da Organização dos Estados Americanos, reformada pelo Protocolo de Buenos Aires. (BRASIL, 1992)

A aferição de convencionalidade se dá a pedido de um Estado-membro da Organização e em observância ao artigo 64, 2, da CAHD/69, pela Corte, que “poderá emitir pareceres sobre a compatibilidade entre qualquer de suas leis internas e os mencionados instrumentos internacionais” (BRASIL, 1992). O controle de convencionalidade, por outro lado, reserva-se apenas ao exercício de controle de compatibilidade de leis domésticas, tendo a CADH/69 ou quaisquer outros tratados internacionais de Direitos Humanos como referência, realizado no âmbito contencioso do Tribunal. Todavia, tanto os documentos produzidos pela aferição de convencionalidade (sentenças, pareceres, opiniões consultivas), como as decisões provenientes do controle de convencionalidade propriamente ditos constituem o que Mazzuoli (2011, p. 93-94), denomina de bloco de convencionalidade, “que deve servir de paradigma e referencial ético aos juízes e tribunais nacionais quando do exercício de compatibilização das normas domésticas com as do sistema interamericano de direitos humanos”. A respeito do exercício do controle de convencionalidade efetuado no plano internacional, e que acarretou efeitos no âmbito doméstico, Cristina Figueiredo Terezo traz alguns apontamentos acerca de Direitos Humanos, família e diversidade sexual no Sistema de Proteção Interamericano de Direitos Humanos – cujos pilares são a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), com sede em Washington D.C., Estados Unidos da América, e a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CorteIDH), em San José, Costa Rica – ancorados, sobretudo, na Convenção Americana de Direitos Humanos222 de 1969 (CADH/69). 222

Artigo 1º. Obrigação de respeitar os direitos. 1. Os Estados-partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação alguma, por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social. Artigo 2º. Dever de adotar disposições de direito interno. Se o exercício dos direitos e liberdades mencionados no artigo 1 ainda não estiver garantido por disposições legislativas ou de outra natureza, os Estados-partes comprometem-se a adotar, de acordo com as suas normas constitucionais e com as disposições desta Convenção, as medidas legislativas ou de outra natureza que forem necessárias para tornar efetivos tais direitos e liberdades.

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Um dos casos estudados é o conhecido como Marta Lucía Álvarez Giraldo vs. Colômbia, apresentado à CIDH em maio de 1996. Segundo o que consta, a vítima estaria impossibilitada de receber visitas íntimas em um centro penitenciário colombiano por tratarse de um casal homossexual, o que afetaria o regime de disciplina interna e de moralidade, por entender que a cultura latino-americana não admite tal prática. O pedido de visita íntima foi rechaçado administrativa e judicialmente. Alegaram a violação aos artigos 5o.1, 2o, 11 e 24 da CADH/69, sendo que a Comissão acrescentou violação também ao 11.2 do mesmo diploma, que se refere à vida privada. Outro caso apresentado pela autora, José Alberto Pérez Meza vs. Paraguai, data de 1999. As alegações foram baseadas em violações ao artigo 24 da CADH/69, devido à negativa de reconhecimento de união entre Jenaro Antonio Espínola Tami e Carlos Alfredo Espínola Tami, que viviam juntos desde 1961. Em novembro de 1999, o casal deu início ao processo de reconhecimento de casamento, o qual foi negado em primeira e segunda instâncias, já que a legislação paraguaia não reconhece o casamento entre pessoas do mesmo Artigo 4º. Direito à vida. 1. Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente. Artigo 5º. Direito à integridade pessoal. 1. Toda pessoa tem direito a que se respeite sua integridade física, psíquica e moral. Artigo 8º. Garantias judiciais. 1. Toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza. Artigo 11. Proteção da honra e da dignidade. 1. Toda pessoa tem direito ao respeito da sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade. 2. Ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, em sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação. Artigo 17. Proteção da família. 1. A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e deve ser protegida pela sociedade e pelo Estado. 2. É reconhecido o direito do homem e da mulher de contraírem casamento e de constituírem uma família, se tiverem a idade e as condições para isso exigidas pelas leis internas, na medida em que não afetem estas o princípio da não-discriminação estabelecido nesta Convenção. 3. O casamento não pode ser celebrado sem o consentimento livre e pleno dos contraentes. 4. Os Estados-partes devem adotar as medidas apropriadas para assegurar a igualdade de direitos e a adequada equivalência de responsabilidades dos cônjuges quanto ao casamento, durante o mesmo e por ocasião de sua dissolução. Em caso de dissolução, serão adotadas as disposições que assegurem a proteção necessária aos filhos, com base unicamente no interesse e conveniência dos mesmos. 5. A lei deve reconhecer iguais direitos tanto aos filhos nascidos fora do casamento, como aos nascidos dentro do casamento. Artigo 19. Direitos da criança. Toda criança terá direito às medidas de proteção que a sua condição de menor requer, por parte da sua família, da sociedade e do Estado. Artigo 24. Igualdade perante a lei. Todas as pessoas são iguais perante a lei. Por conseguinte, têm direito, sem discriminação alguma, à igual proteção da lei. Artigo 25. Proteção judicial. 1. Toda pessoa tem direito a um recurso simples e rápido ou a qualquer outro recurso efetivo, perante os juízes ou tribunais competentes, que a proteja contra atos que violem seus direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição, pela lei ou pela presente Convenção, mesmo quando tal violação seja cometida por pessoas que estejam atuando no exercício de suas funções oficiais. 2. Os Estados-partes comprometem-se: a) a assegurar que a autoridade competente prevista pelo sistema legal do Estado decida sobre os direitos de toda pessoa que interpuser tal recurso; b) a desenvolver as possibilidades de recurso judicial; e c) a assegurar o cumprimento, pelas autoridades competentes, de toda decisão em que se tenha considerado procedente o recurso. [grifos acrescidos] (BRASIL, 1992)

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sexo. A Comissão, entretanto, não admitiu a petição em razão de que os fundamentos que motivaram as demandas judiciais domésticas não contemplaram a discriminação e a violação à igualdade, impedindo, portanto, que o Paraguai se pronunciasse internamente sobre tais questões, antes de se dirigir à CIDH. Um caso mais recente analisado pela CIDH é o Ángel Alberto Duque vs. Colômbia. Trata-se, aqui, da negativa de direito à vítima de receber uma pensão devido ao falecimento por HIV-AIDS de seu companheiro, com quem convivia há mais de dez anos, e com quem mantia forte relação de dependência econômica. Duque, também portador de HIV-AIDS, haveria apresentado um pedido para a obtenção da pensão, o qual foi indeferido, inclusive judicialmente, sob o fundamento de que a legislação colombiana não contemplava a possibilidade de recebimento de pensão procedente de uniões entre pessoas do mesmo sexo. A petição apresentada à Comissão Interamericana aponta violações aos artigos 4o, 5o, 8o, 24 e 25 da CADH/69. Na decisão de admissibilidade do caso, a CIDH opta por examinar os artigos 5o, 8o.1, 24 e 25 da Convenção, todos relacionados às obrigações contidas nos artigos 1 o.1 e 2o, mas declara inadmissível a análise do artigo 4o da CADH/69, por não vislumbrar elementos específicos que versem sobre a matéria tutelada na referida disposição legal. A Corte, ao fim, declarou a responsabilidade do Estado colombiano pela violação ao direito de igualdade perante a lei, reconhecido no artigo 24 e combinado com o artigo 1o.1, ambos da CADH/69. Ademais, condenou a Colômbia no dever de a) realizar, no prazo de seis meses, publicação da Sentença proferida em Diário Oficial colombiano, em jornais de ampla divulgação e em sítio eletrônico oficial do Estado; b) garantir à vítima, Ángel Alberto Duque, o trâmite prioritário de eventual solicitação de pensão por morte; c) pagar, dentro do prazo de um ano, a quantidade total de US$ 20.000,00 (vinte mil dólares estadunidenses) fixada por danos morais, assim como por ressarcimento por custas e gastos arcados pela vítima; d) reintegrar ao Fundo de Assistência Legal de Vítimas da Corte Interamericana de Direitos Humanos a quantia de US$ 2.509,34 (dois mil quinhentos e nove dólares e trinta e quatro centavos estadunidenses) em razão de gastos relativos ao trâmite do caso; e e) remeter ao Tribunal, dentro do prazo de um ano, um informe sobre as medidas adotadas para seu cumprimento. A Corte, segundo a decisão, supervisionará o cumprimento integral da Sentença, e, tendo o Estado colombiano cumprido cabalmente o ali disposto, o caso será dado por concluído (OEA, 2016). O derradeiro caso, e apontado por Terezo como responsável por uma decisão emblemática pela Corte Interamericana, é o Atala Riffo e filhas vs. Chile. Karen Atala

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separou-se judicialmente de Ricardo Jaime López Allende em março de 2002, e dessa união nasceram três filhas, que permaneceram sob a guarda e tutela da mãe. Em janeiro de 2003, Ricardo reclamou a guarda das crianças por entender que a relação de Karen com uma outra mulher causaria sérios danos à formação intelectual e à saúde das filhas. O caso, conta Terezo, ganhou alta repercussão e um procedimento de investigação judicial, pois Karen Atala é magistrada chilena. Ricardo Allende pediu judicialmente a guarda provisória das filhas, o que foi acatado pelo juiz local, alegando interesse superior das crianças. A decisão em primeira instância, entretanto, determinou que as menores deveriam continuar com Karla Atala, o que foi mantido em segundo grau. Após vários recursos, o caso alcançou a jurisdição da Suprema Corte chilena em março de 2004, que, em decisão controversa, outorgou a guarda das crianças ao pai, entendendo que os interesses das menores devem estar acima dos da mãe. Para a Corte, os interesses das crianças são incompatíveis com o fato de a mãe relacionar-se com companheira do mesmo sexo, já que tal situação provocaria um risco para as menores, impedindo que vivam em um modelo de família tradicional. O caso passou a um âmbito internacional pela Comissão Interamericana, a qual confirmou as violações contidas na CADH/69 e, ante o nãocumprimento das recomendações presentes no relatório de mérito, a CIDH apresentou uma demanda ante a Corte Interamericana de Direitos Humanos em setembro de 2010, alegando violações aos artigos 11, 17, 19, 24 (cujas obrigações são dotadas de efeitos erga omnes, vinculantes a todos os Estados), 8o e 25, todos com conexão ao artigo 1o.1 da CADH/69. Em relação à noção de igualdade, a Corte Interamericana opinou que deve ser desvinculada diretamente da unidade de natureza do gênero humano, além de inseparável da dignidade essencial da pessoa. Ademais, é incompatível toda situação que, frente à dignidade essencial da pessoa, trate determinado grupo com privilégios por considerá-lo superior; ou que, ao contrário, por considerá-lo inferior, trate-o com hostilidade ou de qualquer forma que o discrimine do gozo de direitos que são reconhecidos àqueles que não são considerados incursos em tal condição de inferioridade. Ainda segundo a Corte, não é admissível criar diferenças de tratamento entre seres humanos, por possuírem todos uma única e idêntica natureza. De mais a mais, a CIDH afirma que a obrigação contida no artigo 24 da CADH/69 resulta violada sempre que o Estado adotar medidas discriminatórias, e, portanto, infringir as obrigações de respeitar e garantir sem discriminações, contempladas no artigo 1o.1 da Convenção. Nesse sentido, o Estado deve combater todas as práticas discriminatórias e de diferenças de trato em todos os níveis, principalmente no âmbito do Poder Público. Deve

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também adotar medidas afirmativas necessárias para garantir a igualdade perante a lei para todos, principalmente aos que tenham sido historicamente excluídos e que se encontrem em maior risco de sofrer discriminação. Havendo, portanto, exclusão, restrição ou privilégio que não seja objetivo e razoável e que provoque violações aos Direitos Humanos – como se verifica na diferença atribuída em razão de orientação sexual –, existe discriminação, a qual é vedada pelo texto convencional, diz a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Outrossim, o direito à vida privada inclui, também, a personalidade, a identidade, as decisões sobre a vida sexual, as relações familiares e pessoais, de forma que a Comissão Interamericana opina pela proibição da interferência abusiva e arbitrária do Estado, posto que tal garantia tem por finalidade assegurar que toda regulamentação esteja em conformidade com as normas e objetivos da CADH/69, assim como que sejam razoáveis. Por essa razão, a CIDH estabeleceu uma conexão entre o artigo 11.2 e o 17 da Convenção, uma vez que a proteção à vida privada se estende à da família, afirma Terezo. A respeito do modelo de família reconhecido pela Convenção Americana de Direitos Humanos, a Corte Internacional afirmou, no caso Atala Riffo e filhas vs. Chile, que a CADH/69 não adota um modelo fechado de família. Aliás, jurisprudência daquele Tribunal já se manifestou que a vida familiar não se limita ao matrimônio, como se observa dos parágrafos 69 e 70 da Opinião Consultiva no 17, de 22 de agosto de 2002, que trata da condição jurídica e Direitos Humanos da criança. Nesse documento, a Corte Interamericana de Direitos Humanos ressalta que a Corte Europeia de Direitos Humanos tem sustentado em diversas ocasiões que o conceito de vida familiar não está reduzido unicamente ao casamento, e deve abarcar outros laços familiares de fato, nos quais as partes têm vida em comum fora do casamento. A Corte Interamericana, assim, avalia que o termo familiares deve ser entendido em sentido amplo, abarcando também todas as pessoas vinculadas por um parentesco próximo. A imposição, portanto, de um conceito único de família deve ser analisada não apenas como uma possível ingerência arbitrária contra a vida privada, diz a Corte Americana no caso de Karen Atala, mas também pelo impacto de que esse conceito pode ter em um núcleo familiar. Ao final, em relação ao caso Atala Riffo e filhas vs. Chile, a Corte decidiu: a) responsabilizar o Chile pela violação de direito à vida privada, à igualdade, à nãodiscriminação e à garantia de imparcialidade consagrados nos artigos 11.2, 24 e 8o.1, combinados com o artigo 1o.1, da CADH/69 em prejuízo de Karen Atala; b) responsabilizá-lo, também por violação ao direito à igualdade, à não-discriminação e ao de ser ouvido,

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consagrados nos artigos 24 e 8o.1, combinados com os artigos 19 e 1o.1 da CADH/69 em prejuízo das menores; c) responsabilizá-lo ainda pela violação aos artigos 11.2 e 17.1, combinados com o artigo 1o.1, da CADH/69 em prejuízo de Karen Atala e suas filhas; d) condenar o Estado a fornecer às vítimas, caso solicitem, atenção médica e psicológica, ou psiquiátrica, gratuita, imediata, adequada e efetiva, por meio das instituições públicas de saúde especializadas; e) condenar o Chile a publicar a Sentença em Diário Oficial, em jornais de ampla divulgação e em sítio eletrônico oficial do Estado; f) condená-lo a realizar um ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional em razão das ilegalidades que cometeu no caso em questão; g) condená-lo a continuar implementando, em prazo razoável, programas e cursos permanentes de educação e capacitação (em Direitos Humanos, orientação sexual e não-discriminação, proteção dos direitos das comunidades LGBTTTI e superação de estereótipos de gênero a respeito a essa comunidade) dirigidos a funcionários públicos e judiciários; h) condená-lo a pagar às vítimas a quantia de US$ 40.000,00 (quarenta mil dólares estadunidenses) referente a indenização por danos materiais e morais e ressarcimento por custas e gastos advindos do processo; e i) condená-lo a remeter ao Tribunal, dentro do prazo de um ano, um informe sobre as medidas adotadas para seu cumprimento. A Corte supervisionará o cumprimento integral da Sentença, e, tendo o Estado chileno cumprido cabalmente o ali disposto, o caso será dado por concluído (OEA, 2012). Terezo menciona, por derradeiro, que, embora o Sistema Interamericano não possua jurisprudência sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo, a interpretação atribuída ao artigo 1o.1 da CADH/69 para englobar a orientação sexual em “outra condição” (a fim de obrigar os Estados a não adotarem medidas discriminatórias, como demonstrou a análise do caso Karen Atala e filhas vs. Chile), pode, no futuro, propiciar que casos dessa natureza sejam apreciados pelo Sistema. É possível mesmo que um desses casos levados à apreciação da Comissão ou Corte Internacional de Direitos Humanos, como prevê Terezo, envolva o Estatuto da Família, caso venha a ser sancionado pelo Poder Executivo. No mais, em se considerando o caminho percorrido pelo Brasil nos trilhos da democracia e a força constitucional, internacional e contra-hegemônica dos Direitos Humanos223, podemos afirmar que a semântica de família

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Conforme asseverou o Ministro Marco Aurélio em 2011: “ No mais, ressalto o caráter tipicamente contramajoritário dos direitos fundamentais. De nada serviria a positivação de direitos na Constituição, se eles fossem lidos em conformidade com a opinião pública dominante. Ao assentar a prevalência de direitos, mesmo contra a visão da maioria, o Supremo afirma o papel crucial de guardião da Carta da República […]”. (BRASIL, 2011c)

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brasileira não comporta interpretações reducionistas, utilitaristas ou restritivas, sob pena de incorrermos em negação de direitos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS ACERCA DE UM JOGO EM ANDAMENTO E DO ANDAMENTO DO JOGO: AS APOSTAS NO AFETO, PLURALISMO, RIQUEZA DE CULTURAS E RELIGIÕES, DIVERSIDADE E TOLERÂNCIA PARA AS DESORGANIZAÇÕES E REORGANIZAÇÕES DA FAMÍLIA CONTEMPORÂNEA NA DEMOCRACIA BRASILEIRA Ao longo do nosso trabalho, salientamos o movimento, o “estar em transformação”, conforme aponta Norberto Bobbio (1986, p.9), enquanto característica intrínseca tanto à democracia moderna quanto às possibilidades interpretativas e construtivas de família. Apontamos também, ao final do Capítulo terceiro, que, em que pese a semântica de família brasileira constituir um projeto dinâmico, não comporta, à luz dos Direitos Humanos e dos princípios constitucionais, interpretações que acarretem em retrocesso224 de direitos aos indivíduos. Ao contrário: tanto os pilares da democracia procedimentalista e substancialista, como a principiologia constitucional e de Direitos Humanos225 voltam-se para o exercício de se compreender família enquanto calcada nos valores do pluralismo, da diversidade, da tolerância, do afeto e do respeito às culturas e às religiões. Conforme assevera Bobbio, a democracia moderna – contexto em que está inserida a família brasileira – deve ser entendida como um sistema político que pressupõe livre dissenso, competição e concorrência – aliás, até mesmo o “consenso da maioria implica que exista uma minoria de dissentâneos” (BOBBIO, 1986, p. 62). Ainda, afirma o autor que apenas nas sociedades pluralistas226 o dissenso é possível, na medida em que “uma sociedade pluralista consente uma maior distribuição do poder, uma maior distribuição do poder abre as portas para a democratização da sociedade civil e, enfim, a democratização da sociedade civil alarga a democracia política” (BOBBIO, 1986, p. 63-64). Dessa forma, fazem-se necessárias, nas democracias pluralistas, duas frentes de batalha: uma contra o poder que parte do alto em nome do poder que vem de baixo; a outra é concernente ao “controle recíproco entre os grupos que representam interesses diversos”, também referidos como pequenas oligarquias 224

Nesse sentido, Maria Berenice Dias (2015, p. 51) entende que “nenhum texto proveniente do constituinte originário pode sofrer retrocesso que lhe dê alcance jurídico social inferior ao que tinha originariamente, proporcionando retrocesso ao estado pré-constituinte”. Ademais, em relação ao legislador infraconstitucional, assevera que este “precisa ser fiel ao tratamento isonômico assegurado pela Constituição, não podendo estabelecer diferenciações ou revelar preferências. Do mesmo modo”, continua, “todo e qualquer tratamento discriminatório levado a efeito pelo judiciário mostra­se flagrantemente inconstitucional”. 225 Como bem afirma Champeil-Desplats (2013, p. 140), “a democracia e os direitos humanos expressam valores supremos, que apesar de não serem perfeitamente postos em prática, são indiscutíveis e insuperáveis”. 226 Para o autor, o pluralismo é caracterizado por grupos que representam interesses diversificados, que se exprimem por meio de movimentos políticos, também diversos, que lutam entre si pela conquista do poder, ainda que temporária e pacífica. (BOBBIO, 1986)

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(BOBBIO, 1986, p. 60-61). O ideal, revela Bobbio, seria se essas pequenas oligarquias tornassem-se menos oligárquicas, por meio de uma democratização da sociedade civil sempre mais e melhor participante, para que o poder seja controlado, e não apenas distribuído. O pluralismo, nesse sentido, permite que apreendamos uma característica fundamental da democracia moderna, qual seja a licitude do dissenso. Este, “desde que mantido dentro de certos limites (estabelecidos pelas denominadas regras do jogo), não é destruidor da sociedade mas solicitador, e uma sociedade em que o dissenso não seja admitido é uma sociedade morta ou destinada a morrer” (BOBBIO, 1986, p. 61). O consenso, sob essa perspectiva procedimentalista, estaria reservado unicamente para as regras do jogo. Em sentido semelhante, Luís Roberto Barroso entende caber à Constituição de uma nação garantir não apenas o espaço próprio do pluralismo político para o adequado funcionamento dos mecanismos democráticos, mas também assegurar o respeito aos direitos fundamentais e estabilidade quanto às garantias e valores essenciais, inclusive especialmente às minorias políticas. Esses, segundo o autor, são alguns dos “fins maiores do constitucionalismo democrático, inspirado pela dignidade da pessoa humana, pela oferta de iguais oportunidades às pessoas, pelo respeito à diversidade e ao pluralismo, e pelo projeto civilizatório de fazer de cada um o melhor que possa ser” (BARROSO, 2013, p. 114). Assim sendo, os substancialistas aderem à concepção de Constituição como, para além de documento político, verdadeira fonte de valores de uma sociedade democrática (justiça, liberdade, igualdade), ao passo que admitem a realização de controle do resultado de quaisquer deliberações políticas que eventualmente venham de encontro com tais valores. A propósito, no que tangencia aos conceitos diversidade e pluralismo, o autor afirma que, embora próximos, não são sinônimos. Na acepção que emprega, “respeito à diversidade significa a aceitação do outro, o respeito à diferença, seja ela étnica, religiosa ou cultural. Respeito ao pluralismo”, por outro lado, “significa reconhecer que existem diferentes concepções de mundo e de projetos de vida digna, que devem conviver e não devem ter pretensão de hegemonia” [grifos no original] (BARROSO, 2013, p. 114). Sob esse respeito, a Constituição Federal de 1988 traz a figura do pluralismo em seu preâmbulo, ao afirmar tratar-se de “sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias [...]” (BRASIL, 1988). Em que pese a literatura especializada apontar posições divergentes227 quanto à relevância jurídica do preâmbulo da CRFB/88, José Afonso 227

Pedro Lenza (2011, p. 489), ao tratar acerca da relevância jurídica do preâmbulo constitucional, aponta três posições sistematizadas por Jorge Miranda: “a) tese da irrelevância jurídica: o preâmbulo situa-se no domínio

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da Silva entende que a pluralidade ali estampada “é uma realidade, pois a sociedade se compõe de uma pluralidade de categorias sociais, de classes, grupos sociais, econômicos, culturais e ideológicos”; a pluralidade invocada pelo texto constitucional, ainda segundo o autor, se ancora não somente em “acolher uma sociedade conflitiva, de interesses contraditórios e antinômicos”, mas também em buscar o “equilíbrio entre as tensões múltiplas e por vezes contraditórias, em conciliar a sociabilidade e o particularismo, em administrar os antagonismos e evitar divisões irredutíveis” (SILVA, 2015, p. 145). Parece-nos, assim, que a despeito das divergências tratadas pela literatura jurídica acerca da (ir)relevância do preâmbulo constitucional, e considerando os estudos realizados ao longo deste trabalho, é possível afirmarmos que, ao mesmo tempo em o pluralismo inserto no espírito da CRFB/88 revela-se pontualmente em dadas circunstâncias, encontra-se, em outras, jogado às margens, desconsiderado pelo poder em nome dos interesses de uma pretensa hegemonia. Em outras palavras, de acordo com as linhas do ordenamento constitucional, são assegurados, como valores supremos de uma sociedade justa, fraterna, pluralista e sem preconceitos, os exercícios dos direitos sociais e individuais; a liberdade; a segurança; o bemestar; o desenvolvimento; a igualdade e a justiça, fundado o Estado na cidadania, na dignidade da pessoa humana e no pluralismo politico com vistas à construção de uma sociedade livre, justa e solidária, sob a prevalência dos direitos humanos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade ou quaisquer outras formas de discriminação (BRASIL, 1988). As linhas do texto constitucional desvelam esforço para o alcance de pleno respeito tanto à dignidade da pessoa humana como às suas liberdades, inclusive à do dissenso, na medida em que vislumbra ser possível que grupos diversos, que representam interesses também diversos, exprimirem-se por meio de movimentos políticos distintos, com o fito de concorrerem entre si pela conquista temporária e pacífica do poder (BOBBIO, 1986). Essa movimentação pluralista, que permite o direito de oposição, mas que protege a dignidade da pessoa humana até mesmo de deliberações políticas que transgridam ou venham de encontro da política, sem relevância jurídica; b) tese da plena eficácia: tem a mesma eficácia jurídica das normas constitucionais, sendo, porém, apresentado de forma não articulada; c) tese da relevância jurídica indireta: ponto intermediário entre as duas, já que, muito embora participe ‘das características jurídicas da Constituição’, não deve ser confundido com o articulado”. [grifos no original] Afirma ainda o jurista que o Ministro Celso de Mello, “após interessante estudo, conclui que ‘o preâmbulo ... não se situa no âmbito do Direito, mas no domínio da política, refletindo posição ideológica do constituinte ... Não contém o preâmbulo, portanto, relevância jurídica. O preâmbulo não constitui norma central da Constituição do Estado-membro. O que acontece é que o preâmbulo contém, de regra, proclamação ou exortação no sentido dos princípios inscritos na Carta... Esses princípios sim, inscritos na Constituição, constituem normas centrais de reprodução obrigatória, ou que não pode a Constituição do Estado-membro dispor de forma contrária, dado que, reproduzidos, ou não, na Constituição estadual, incidirão na ordem local...’”. [grifos no original] (LENZA, 2011, p. 489-490)

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com os valores contidos na Constituição, configura-se inevitável em qualquer regime democrático – ou mais do que isso, necessária. Nessa perspectiva, o texto constitucional, em se revelando pluralista, entremostra a diversidade própria do brasileiro e da brasileira em meio ao reconhecimento das diferenças e à realização da igualdade (KRETZMANN, 2007). A CRFB/88 traz em seu bojo garantias para o continuum de movimentos, heterogêneos que sejam, de têmpera contra-hegemônica ou emancipatória, com base no princípio da dignidade da pessoa humana, e que permitem aos indivíduos a busca de uma identidade sem que se esqueça das diferenças. Afinal, (con)vivem no Brasil povos diferentes228, seja em razão das várias matizes (indígena, europeia, africana asiática etc.), seja em razão da diversidade de culturas e religiosidades, ou mesmo “devido às realidades discriminatórias vividas e as dificuldades de atingirem os direitos de cidadão, tão ‘garantidos’ pelo Estado”, a exemplo, cita Carolina Kretzmann (2007, p. 32), das mulheres, dos homoafetivos, dos deficientes e de “todos aqueles que vêem seus direitos humanos constituírem algo invisível para o Estado” (sic). Ainda, quando do reconhecimento dos direitos ligados à diferença, em especial dos socioambientais, Carlos Frederico Marés de Souza Filho (2002, p. 23) defende que a CRFB/88 “abre as portas para um novo direito fundado no pluralismo, na tolerância, nos valores culturais locais, na multietnicidade, que rompe com a lógica excludente do Estado Constitucional e seu Direito único”. Assim, o entendimento de pluralismo expresso tanto por Bobbio como por Barroso não se afasta dos conceitos de tolerância e de democracia, mas andam em conjunto229, na medida em que a “tolerância torna a diferença possível; a diferença torna a tolerância necessária” (WALZER, 1999, p. XII). A tolerância, um dos valores expressos por documentos internacionais de Direitos Humanos230, possibilita, no entender de Michael Walzer (1999, p. 4), “a coexistência pacífica de grupos de pessoas com histórias, culturas e 228

No sentir de Kretzmann (2007), “É essa maneira própria e original de ser, com uma identidade única e diferenciada, que não deve ser oprimida e assimilada, devendo ser reconhecida e respeitada, que constitui os fundamentos dos ideais do multiculturalismo e que quer introduzir uma nova concepção na busca pelo respeito à dignidade da pessoa humana, aos direitos humanos e a todos os aspectos que esse respeito englobaria”. 229 Ao passo que Bobbio (1986) defende a importância do pluralismo para a caracterização da democracia moderna, e que Barroso (2013) afirma ser o respeito à diversidade e ao pluralismo uma das inspirações do constitucionalismo democrático, o autor Michael Walzer (1999, XI), logo na introdução de Da tolerância, assevera que “Tolerar e ser tolerado tem algo do governar e ser governado de Aristóteles: é a tarefa dos cidadãos democráticos”. Para mais, no entender de Clodoaldo Meneguello Cardoso (2003, p. 127), “a autêntica tolerância é sempre libertadora da violência e da opressão”. 230 Citamos como exemplo a Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 (artigo XXVI); os termos da Declaração de Princípios sobre a Tolerância de 1995; os termos da Declaração sobre a eliminação de todas as formas de intolerância e discriminação fundadas na religião ou nas convicções de 1981; o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966 (artigo 13); a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial de 1968 (artigo 7o) e os Princípios de Yogyakarta (no 16 e recomendação adicional alínea g).

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identidades diferentes [...]”. Segundo o autor, em qualquer sociedade pluralista sempre haverá pessoas para as quais será difícil conviver com uma ou outra diferença. Nesse sentido, tolerantes são aqueles “que aceitam homens e mulheres cujas práticas se recusam a imitar. Convivem com uma alteridade que, por mais que aprovem sua presença no mundo, é diferente daquilo que conhecem, algo de fora e estranho” (WALZER, 1999, p. 18-19). Walzer, em Da tolerância, descreve quatro possibilidades dessa atitude ou estado de espírito, que seguem avançando em um continuum. A primeira delas, que “remonta às origens da tolerância religiosa nos séculos XVI e XVII, é simplesmente uma resignada aceitação da diferença para preservar a paz. As pessoas vão se matando durante anos e anos, até que, felizmente, um dia a exaustão se instala, e a isso denominamos tolerância” (WALZER, 1999, p. 16). A segunda atitude, continua, “é passiva, descontraída, bondosamente indiferente à diferença: ‘Tem lugar pra tudo no mundo’” (WALZER, 1999, p. 16). Em relação à terceira, o filósofo político afirma que “decorre de uma espécie de estoicismo moral: um reconhecimento baseado no princípio de que os ‘outros’ têm direitos, mesmo quando exercem tais direitos de modo antipático” (WALZER, 1999, p. 16). Já a quarta possibilidade “expressa abertura para com os outros; curiosidade, talvez respeito, uma disposição de ouvir e aprender” (WALZER, 1999, p. 17). No ponto mais avançado do continuum, afirma Walzer (1999, p. 17), está o “endosso entusiástico à diferença”. Nas palavras do autor: É um endosso estético, se a diferença for tomada como a representação cultural da grandeza e diversidade da criação divina ou do mundo natural. É um endosso funcional, se a diferença for vista, como na liberal argumentação multiculturalista, como uma condição necessária para a prosperidade humana, aquela que possibilita a cada homem e mulher as escolhas que dão significado a sua autonomia. (sic) (WALZER, 1999, p. 17)

Walzer ressalta que os regimes de tolerância bem-sucedidos não dependem de uma forma específica dessa virtude, ou seja, não é preciso que todos os participantes estejam situados no mesmo ponto do continuum. No entanto, para o autor, “Não há dúvidas de que as relações pessoais que atravessam fronteiras culturais seriam melhoradas se as pessoas avançassem para além da tolerância mínima [...]” (WALZER, 1999, p. 18). É de forma semelhante a Walzer que Clodoaldo Meneguello Cardoso se propõe a investigar quais os sentidos de tolerância no mundo contemporâneo. O foco do conceito de tolerância, assevera Cardoso (2003, p. 130; 145), recai na “constatação da diversidade humana”, levando-se em conta “a articulação equilibrada entre identidade e diversidade, o que somente é possível com a superação das desigualdades sociais”. O autor propõe alguns postulados para um novo sentido de tolerância:

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Em primeiro lugar, a possibilidade da construção de uma cultura de tolerância implica a satisfação das necessidades fundamentais das grandes maiorias excluídas do bem-estar material e espiritual. A fome, a pobreza, a marginalização são resultados de situações de profunda intolerância e focos de novas atitudes de intolerâncias e violências. A tolerância não pode ocorrer em relacionamentos marcados pela desigualdade, em que ocorre a dominação entre indivíduos ou grupos sociais. O marco da tolerância está na igualdade social. Respeitar a diversidade cultural não pode significar aceitar as desigualdades socioeconômicas. A tolerância deve ser uma ação solidária na recuperação dessas desigualdades. A tolerância deve ser o reconhecimento da diversidade cultural dos diversos estratos sociais, contrapondo-se à hegemonia de uma cultura dominante que subjuga e marginaliza as outras classes e grupos sociais. A tolerância tem limites claros: “Os limites da tolerância residem em primeiro lugar na não-aceitação da intolerância nem das relações de exploração entre classes e grupos sociais” [...]. Sem limites, a tolerância seria a sua própria negação. (CARDOSO, 2003, p. 144)

Se concordarmos com a democracia como representada pela alegoria das regras do jogo, poderemos entender o pluralismo, a diversidade, a tolerância e a riqueza de religiosidades e culturas como elementos motrizes essenciais ao desenrolar do próprio jogo, consagrados pela Constituição Federal de 1988 (tanto implicitamente em seu texto, como na principiologia que o sustenta) e pelos princípios de Direitos Humanos, sejam advindos de documentos internacionais ou mesmo insertos na própria CRFB/88. Dentre as mais diversas áreas em que o jogo se desenrola, considerando suas regras, força motriz e limites, encontra-se a familiar. Com efeito, já nos idos de 1999 o jurista Luiz Edson Fachin descrevia a família a partir de uma (então) nova concepção, movida, para além dos elementos essenciais à democracia acima destacados, também pelo princípio da afetividade: [A família] como refúgio afetivo, centro de intercâmbio pessoal e emanador da felicidade possível, família como sendo o mosaico da diversidade, ninho da comunhão no espaço plural da tolerância, valoriza o afeto, afeição que recoloca novo sangue para correr nas veias de um renovado parentesco, informado pela substância de sua própria razão de ser e não apenas pelos vínculos formais ou consanguíneos. Tolerância que compreende o convívio de entidades, espectro plural, sem supremacia desmedida, sem diferenças discriminatórias, sem aniquilamentos. Tolerância que supõe possibilidade e limites. Um tripé que, feito desenho, pode-se mostrar apto a abrir portas e escancarar novas questões. Eis então o direito ao refúgio afetivo. (FACHIN, 1999, p. 306)

Assim como Fachin, e frente às desorganizações e reorganização por que passam as entidades familiares ao longo do tempo – aqui, notadamente, as brasileiras –, Maria Berenice Dias aponta a afetividade como o princípio231 que fundamenta o Direito de Família 231

De acordo com Rodrigo da Cunha Pereira (2014, p. 174), “o afeto ganhou status de valor jurídico e, consequentemente, logo foi elevado à categoria de princípio como resultado de uma construção histórica em que

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contemporâneo232, que, deixando de lado considerações de caráter patrimonial ou biológico, voltou-se, em verdade, para a estabilidade das relações socioafetivas e para a comunhão de vida. O afeto, nesse sentido, não representa tão-somente um “laço que envolve os integrantes de uma família. Também tem um viés externo, entre as famílias, pondo humanidade em cada família, compondo”, continua a autora, “a família humana universal, cujo lar é a aldeia global, cuja base é o globo terrestre, mas cuja origem sempre será, como sempre foi, a família” (DIAS, 2015, p. 52). A propósito, não podemos deixar de ressaltar que tal entendimento exteriorizado por Dias vai ao encontro da parte inicial do preâmbulo da Declaração Universal de Direitos Humanos, ao assegurar que o “reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo [...]” [g.n.] (ONU, 1948). O afeto que funda e justifica uma entidade familiar, aponta Rodrigo da Cunha Pereira (2014, p. 172), “é um afeto especial, não somente um sentimento, mas uma ação, uma conduta”. Se, por um lado, existem relações de afeto que não constituem família, por outro lado, afirma o autor, “Sem afeto não se pode dizer que há família. Ou, onde falta o afeto a família é uma desordem, ou mesmo uma desestrutura” (PEREIRA, 2014, p. 174). As relações familiares, portanto, descortinadas de qualquer discurso moral ou religioso, são marcadas pela “constitucionalização de um modelo de família eudemonista e igualitário” (DIAS, 2015, p. 52). Além disso, devem ser norteadas pelo princípio da afetividade, adotado implicitamente pela CRFB/88 por meio de seus fundamentos e principiologia essenciais: a dignidade da pessoa humana (artigo 1o, III); a solidariedade (artigo 3o, I); a adoção como escolha afetiva (artigo 227, §§ 5o e 6o); a igualdade entre os filhos, independente de serem biológicos ou afetivos (artigo 227, § 6o); a proteção à família monoparental, seja a formada por laços sanguíneos ou por adoção (artigo 226, § 4o); a união o discurso psicanalítico é um dos principais responsáveis, vez que o desejo e o amor começaram a ser vistos e considerados como o verdadeiro sustento do laço conjugal e da família. Isso se deu a partir da compreensão e introdução do discurso psicanalítico no campo jurídico, na medida em que o sujeito do inconsciente e subjetividades passaram a ser considerados pelo Direito”. [grifos no original] 232 Para Sérgio Resende de Barros (2006, p. 175), o Direito de Família, embora não frequentemente correlacionado com os Direitos Humanos, constitui, na verdade, “o mais humano dos direitos”, por, dentre outros, garantir o direito à família. Sob esse prisma, o autor afirma que o direito à vida, à “Liberdade, igualdade, fraternidade, felicidade, segurança, saúde, educação e outros valores humanos fundamentais se relacionam com o direito à família e remetem ao recinto familiar – o lar – onde eles se realizam em e como direitos familiais. Mas, a principiar do próprio direito à família, somente se realizarão plenamente, se estiverem envolvidos e amparados pelo afeto. [...]A humanidade se constrói dignamente pela força maior da solidariedade humana, em cuja origem está a solidariedade familiar, incrementada pelo afeto culminando no amor. O amor faz do indivíduo humano um ser humano. Identifica uns com os outros e gera em todos a solidariedade entre todos. A solidariedade é a força motriz dos direitos humanos. É a única força capaz de construir dignamente a humanidade em toda a sociedade humana, a partir de seu núcleo inicial: a família. Nesses termos, o direito à família se liga ao maior dos direitos humanos: o direito à humanidade”. [grifos no original] (BARROS, 2006, p. 178-179)

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estável (artigo 226, § 3o); a convivência familiar assegurada à criança e ao adolescente, independente de origem biológica (artigo 227); e a realização de cada um dos indivíduos integrantes por meio, inclusive, de assistência estatal (artigo 226, § 8o) (PEREIRA, 2014, p. 177; 179). Entretanto, ainda são recorrentes no território nacional notícias de crimes movidos pela intolerância, tanto consubstanciada em interesses religiosos e políticos, como em homolesbotransfobia, racismo, misoginia ou xenofobia, p.e. Para além da visibilidade atribuída aos ilícitos penais cometidos contra a vida e contra a honra, o pluralismo e a tolerância previstos no texto e/ou espírito constitucionais sofrem golpes desferidos também pelo Estado. Certa feita, o magistrado titular da 17a Vara Federal do Rio de Janeiro entendeu que o candomblé e a umbanda “não contêm os traços necessários de uma religião a saber, um texto base (corão, bíblia etc) ausência de estrutura hierárquica e ausência de um Deus a ser venerado” (sic) (BRASIL, 2014c). Em outro momento, o Deputado Federal Jair Bolsonaro (à época filiado ao PTB-RJ) afirmou, em cadeia nacional233, que apenas não estupraria a colega Parlamentar Maria do Rosário (PT-RS) porque ela “não merece”, empurrando-a e chamando-a de “vagabunda”. Além disso, o mesmo Deputado asseverou em Plenário, em data posterior que, no Brasil, o Dia Internacional dos Direitos Humanos “é o dia internacional da vagabundagem! Os direitos humanos no Brasil só defendem bandidos, estupradores, marginais, sequestradores e até corruptos! O Dia Internacional dos Direitos Humanos no Brasil serve para isso. E isso está na boca do povo, nas ruas”. Ao final, exclamou: “Parabéns aos vagabundos do Brasil, que estão sob o guarda-chuva da Comissão de Direitos Humanos da Deputada Maria do Rosário!” (BRASIL, 2014d). A realidade acima descrita evidencia que, embora deva subsistir o amparo constitucional do pluralismo, e consequente construção de uma sociedade fraterna e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida com a solução pacífica das controvérsias, ainda nos deparamos, não raro, com manifestações – inclusive públicas – de desrespeito e violação aos princípios mais caros à Constituição Federal de 1988. Tais fatos permitem-nos questionar, ainda, em que ponto do continuum proposto por Walzer o Brasil se encontra, em termos de tolerância. Teríamos chegado ao nível de reconhecimento do outro como igual ao eu e merecedor dos mesmos direitos; ou mesmo à etapa de ouvir e aprender

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com o outro; ou quem sabe ao estado do endosso e apoio à diferença, à diversidade e à alteridade? Em vista de todo o exposto, restam-nos uma conclusão e algumas indagações. A conclusão: a semântica de família no Brasil constitui mais um projeto inacabado234. Muito embora seja reconhecido que a decisão do STF em 2011, ao equiparar as uniões estáveis de pessoas de mesmo sexo às de pessoas de sexos diferentes, tenha trazido avanços à semântica da família brasileira, a discussão não foi encerrada, e o assunto não foi “pacificado”, como os juristas gostam de caracterizar as temáticas sobre as quais o Supremo já deitou seu entendimento. E mais: embora suscetível a transformações e possível objeto de dissenso entre os indivíduos, há que se considerar que, em se tratando das possibilidades construtivas e interpretativas de entidade familiar, mesmo as transformações e o dissenso encontram três limites centrais: as regras do jogo democrático, notadamente as restrições atinentes à vontade da maioria, a respeito das quais não cabe questionamento; os princípios de Direitos Humanos conjugados com a axiologia constitucional pós-CRFB/88, em especial a dignidade da pessoa humana, o respeito à diferença e o reconhecimento do outro enquanto indivíduo; e a vedação ao retrocesso, seja social, seja jurídico. Antes de prosseguirmos, é preciso lembrarmos que a democracia brasileira, na sua fragilidade, embora caminhe em direção à liberdade e igualdade, ainda não pode ser caracterizada como ideal. Aliás, é possível que esse fato mantenha relações com a polissemia que determinados agentes públicos, notadamente políticos, vêm reverberando, no âmbito dos Poderes Judiciário e Legislativo, em defesa de pontos de vista antagônicos, não raro seguindo seus próprios interesses particulares, sem a devida atenção a) ao conteúdo mínimo próprios às categorias conceituais; b) à interpretação segundo a CRFB/88; c) à ponderação de princípios constitucionais e de Direitos Humanos; e d) aos dois limites centrais acima descritos. As indagações, por fim, dizem respeito aos argumentos utilizados pelo autor, ambos os Relatores e defensores do Estatuto da Família: em que medida tais premissas e justificativas podem configurar pedras de tropeço ao caminhar democrático? Nesse sentido, caso 234

Tomamos o termo emprestado de Pinheiro quando, em sua obra, apercebe-se de que o discurso de laicidade apresentado pelo sujeito constitucional ainda está involto de máscaras. O autor indaga se, em verdade, a laicidade naturalizada não teria o condão de “servir de reforço ou legitimação de desigualdades mais profundas, ancoradas na exclusão de cidadãos (se é que podem ser assim chamados) de segunda ou terceira classe – papel que já foi desempenhado pela religião”. (PINHEIRO, 2008, p. 106) [grifos no original] Propõe, por conseguinte, a secularização da laicidade, para que o “direito de ver exibido símbolo religioso específico na esfera pública não se converta num dogma de fé, com pretensão de verdade, sem se sustentar em argumentos racionais e razoáveis na arena pública – afinal”, assevera, “mesmo a representação simbólica da memória cultural de uma nação de cidadãos está sujeita ao banho ácido de um discurso público sem concessões”. (PINHEIRO, 2008, p. 108)

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sancionado e vigente, em que proporção a novel lei ordinária trará prejuízos à democracia, ao pluralismo, e a direitos como à diversidade e à diferença? Como reagirão os movimentos sociais que lutam em favor da tolerância, do reconhecimento de minorias, e que influenciam, em última instância, na desorganização e reorganização das entidades familiares? E os segmentos religiosos a favor da manutenção da família tradicional, contrarreagirão? No mais (ou no mínimo), e aqui lançando notas de otimismo, a proposição e defesa do Estatuto da Família podem ser interpretados como um convite a se (re)pensar a direção que o Brasil vem trilhando em termos de processo civilizatório e o local que, com efeito, ocupam os indivíduos – sujeitos de direitos e autor de reivindicações – na realidade democrática nacional.

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_____. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Duque vs. Colômbia. Julgado em 26 de fevereiro de 2016. 2016. Disponível em: . Acesso em: 18 julho 2016. _____. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Opinião Consultiva no 17, de 22 de agosto de 2002. 2002. Disponível em: . Acesso em: 18 julho 2016. _____. Resolução no 2.435/2008: Declaração sobre Direitos Humanos, Orientação Sexual e Identidade de Gênero. 2008. Disponível em: . Acesso em: 17 junho 2016.

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SARLET, Ingo Wolfgang. Controle de convencionalidade dos tratados internacionais. Disponível em: . Acesso em: 31 julho 2016.

265

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ANEXO A – Projeto de Lei nº 6.583, de 16 de outubro de 2013

267

PROJETO DE LEI Nº

, DE 2013

(Do Sr. Anderson Ferreira)

Dispõe sobre o Estatuto da Família e dá outras providências.

O Congresso Nacional decreta:

Art. 1º Esta Lei institui o Estatuto da Família e dispõe sobre os direitos da família, e as diretrizes das políticas públicas voltadas para valorização e apoiamento à entidade familiar. Art. 2º Para os fins desta Lei, define-se entidade familiar como o núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união estável, ou ainda por comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes. Art. 3º É obrigação do Estado, da sociedade e do Poder Público em todos os níveis assegurar à entidade familiar a efetivação do direito à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania e à convivência comunitária.

Das diretrizes gerais Art. 4º Os agentes públicos ou privados envolvidos com as políticas públicas voltadas para família devem observar as seguintes diretrizes: I - desenvolver a intersetorialidade das políticas estruturais, programas e ações;

268

II - incentivar a participação dos representantes da família na sua formulação, implementação e avaliação; III - ampliar as alternativas de inserção da família, promovendo programas que priorizem o seu desenvolvimento integral e participação ativa nos espaços decisórios; IV - proporcionar atendimento de acordo com suas especificidades perante os órgãos públicos e privados prestadores de serviços à população, visando ao gozo de direitos simultaneamente nos campos da saúde, educacional, político, econômico, social, cultural e ambiental; V - garantir meios que asseguram o acesso ao atendimento psicossocial da entidade familiar; VI - fortalecer as relações institucionais com os entes federados e as redes de órgãos, gestores e conselhos da família; VII - estabelecer mecanismos que ampliem a gestão de informação e produção de conhecimento sobre a família; VIII - garantir a integração das políticas da família com os Poderes Legislativo e Judiciário, com o Ministério Público e com a Defensoria Pública; e IX - zelar pelos direitos da entidade familiar.

Dos direitos

Art. 5º É obrigação do Estado, garantir à entidade familiar as condições mínimas para sua sobrevivência, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam a convivência saudável entre os seus membros e em condições de dignidade. Art. 6º É assegurada a atenção integral à saúde dos membros da entidade familiar, por intermédio do Sistema Único de Saúde – SUS, e o Programa de Saúde da Família, garantindo-lhes o acesso em conjunto articulado e contínuo das ações e serviços, para a prevenção, promoção, proteção e recuperação da saúde, incluindo a atenção especial ao atendimento psicossocial da unidade familiar.

269

§ 1º A prevenção e a manutenção da saúde dos membros da entidade familiar serão efetivadas por meio de: I – cadastramento da entidade familiar em base territorial; II – núcleos de referência, com pessoal especializado na área de psicologia e assistência social; III – atendimento domiciliar, e em instituições públicas, filantrópicas ou sem fins lucrativos e eventualmente conveniadas com o Poder Público; IV –

reabilitação

do

convívio

familiar

orientada por profissionais

especializados. V – assistência prioritária à gravidez na adolescência. § 2º Incumbe ao Poder Público assegurar, com absoluta prioridade no atendimento e com a disponibilização de profissionais especializados, o acesso dos membros da entidade familiar a assistentes sociais e psicólogos, sempre que a unidade da entidade familiar estiver sob ameaça. § 3º Quando a ameaça a que se refere o parágrafo anterior deste artigo estiver associada ao envolvimento dos membros da entidade familiar com as drogas e o álcool, a atenção a ser prestada pelo sistema público de saúde deve ser conduzida por equipe multidisciplinar e terá preferência no atendimento. Art. 7º Todos as famílias têm direito de viver em um ambiente seguro, sem violência, com garantia da sua incolumidade física e mental, sendo-lhes asseguradas a igualdade de oportunidades e facilidades para seu aperfeiçoamento intelectual, cultural e social enquanto núcleo societário. Art. 8º As políticas de segurança pública voltadas para proteção da família deverão articular ações da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e ações não governamentais, tendo por diretrizes: I - a integração com as demais políticas voltadas à família; II - a prevenção e enfrentamento da violência doméstica; III - a promoção de estudos e pesquisas e a obtenção de estatísticas e informações relevantes para subsidiar as ações de segurança pública e permitir a

270

avaliação periódica dos impactos das políticas públicas quanto às causas, às consequências e à frequência da violência entre membros das entidades familiares; IV - a priorização de ações voltadas para proteção das família sem situação de risco, vulnerabilidade social e que tenham em seu núcleo membros considerados dependentes químicos; V - a promoção do acesso efetivo das famílias à Defensoria Pública, considerando as especificidades da condição da entidade familiar. Art. 9º É assegurada prioridade na tramitação dos processos e procedimentos e na execução dos atos e diligências judiciais, em qualquer instância, em que o interesse versado constitua risco à preservação e sobrevivência da entidade familiar, devendo a parte interessada justificar o risco em petição endereçada à autoridade judiciária. Art. 10 Os currículos do ensino fundamental e médio devem ter em sua base nacional comum, como componente curricular obrigatório, a disciplina “Educação para família”, a ser especificada, em cada sistema de ensino e estabelecimento escolar, de acordo com as características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e da clientela. Art. 11 É garantida a participação efetiva do representante dos interesses da família nos conselhos e instâncias deliberativas de gestão democrática das escolas. Art. 12 As escolas deverão formular e implantar medidas de valorização da família no ambiente escolar, com a divulgação anual de relatório que especifique a relação dos escolares com as suas famílias. Art. 13 O Dia Nacional de Valorização da Família, que ocorre no dia 21 de outubro de cada ano, nos termos da Lei nº 12.647/2012, deve ser celebrado nas escolas públicas e privadas com a promoção de atividades no âmbito escolar que fomentem as discussões contemporâneas sobre a importância da família no meio social. § 1º Na data a que se refere o caput deste artigo, o Ministério Público e as Defensorias Públicas em todos os níveis promoverão ações voltadas ao interesse da família, com a prestação de serviços e orientação à comunidade.

271

Do conselho da família

Art. 14 Os conselhos da família são órgãos permanentes e autônomos, não jurisdicionais, encarregados de tratar das políticas públicas voltadas à família e da garantia do exercício dos direitos da entidade familiar, com os seguintes objetivos: I - auxiliar na elaboração de políticas públicas voltadas à família que promovam o amplo exercício dos direitos dos membros da entidade familiar estabelecidos nesta Lei; II - utilizar instrumentos de forma a buscar que o Estado garanta à família o exercício dos seus direitos; III - colaborar com os órgãos da administração no planejamento e na implementação das políticas voltadas à família; IV - estudar, analisar, elaborar, discutir e propor a celebração de instrumentos de cooperação, visando à elaboração de programas, projetos e ações voltados para valorização da família; V - promover a realização de estudos relativos à família, objetivando subsidiar o planejamento das políticas públicas; VI - estudar, analisar, elaborar, discutir e propor políticas públicas que permitam e garantam a integração e a participação da família nos processos social, econômico, político e cultural no respectivo ente federado; VII - propor a criação de formas de participação da família nos órgãos da administração pública; VIII - promover e participar de seminários, cursos, congressos e eventos correlatos para o debate de temas relativos à família; IX - desenvolver outras atividades relacionadas às políticas públicas voltadas à valorização da família. § 1º

A lei, em âmbito federal, estadual, do Distrito Federal e municipal,

disporá sobre a organização, o funcionamento e a composição dos conselhos da

272

família, observada a participação da sociedade civil mediante critério, no mínimo, paritário com os representantes do poder público. Art. 15 São atribuições dos conselhos da família: I - encaminhar ao Ministério Público notícia de fato que constitua infração administrativa ou penal contra os direitos da família garantidos na legislação; II - encaminhar à autoridade judiciária os casos de sua competência; III - expedir notificações; IV - solicitar informações das autoridades públicas; V - assessorar o Poder Executivo local na elaboração dos planos, programas, projetos, ações e proposta orçamentária das políticas públicas voltadas à família. Art. 16 Esta lei entra em vigor na data de sua publicação, produzindo efeitos a partir de 1º de janeiro do ano subsequente ao de sua publicação.

JUSTIFICAÇÃO

A família social, funcionando como uma espécie

num sistema -

porque

devemos conferir grande importância à família e às mudanças que a têm alterado a sua estrutura no decorrer do tempo. Não é por outra razão que a Constituição Federal dispensa atenção especial à família, em seu art. 226 da Constituição Federal, ao estabelecer que a família é base da sociedade e deve ter especial proteção do Estado. Conquanto a própria carta magna tenha previsto que o Estado deve proteger a família, o fato é que não há políticas públicas efetivas voltadas especialmente à valorização da família e ao enfrentamento das questões complexas a que estão submetidas às famílias num contexto contemporâneo. São diversas essas questões. Desde a grave epidemia das drogas, que dilacera os laços e a harmonia do ambiente familiar, à violência doméstica, à gravidez na adolescência, até mesmo à desconstrução do conceito de família, aspecto que aflige as famílias e repercute na dinâmica psicossocial do indivíduo.

273

A questão merece aprofundamento e, na minha opinião, disciplinamento legal. O Estado

adores têm tarefa central

nessa discussão. A família vem sofrendo com as rápidas mudanças ocorridas em sociedade, cabendo ao Poder Público enfrentar essa realidade, diante dos novos desafios vivenciados pelas famílias brasileiras Tenho feito do meu mandato e da minha atuação parlamentar instrumentos de valorização da família. Acredito firmemente que a felicidade do cidadão está centrada sobretudo na própria felicidade dos membros da entidade familiar. Uma família equilibrada, de autoestima valorizada e assistida pelo Estado é sinônimo de uma sociedade mais fraterna e também mais feliz. Por cultivar essa crença, submeto à apreciação dos nobres pares o presente projeto de lei que, em síntese, institui o Estatuto da Família. A proposta que ora ofereço pretende ser o ponta pé inicial de uma discussão mais ampla a ser empreendida nesta Casa em favor da promoção de políticas públicas que valorizem a instituição familiar. O estatuto aborda questões centrais que envolvem a família. Primeiro propugna duas ideias: o fortalecimento dos laços familiares a partir da união conjugal firmada entre o homem e a mulher, ao estabelecer o conceito de entidade familiar; a proteção e a preservação da unidade familiar, ao estimular a adoção de políticas de assistência que levem às residências e às unidades de saúde públicas profissionais capacitados à orientação das famílias. Entre outras temas de interesse da família, o projeto propõe ainda: que a família receba assistência especializada para o enfrentamento do problema da droga e do álcool; que o Estado preste apoio efetivo às adolescentes grávidas prematuramente; que seja incluída no currículo escolar a disciplina “Educação para família”; a prioridade na tramitação de processos judiciais e administrativos em demandas que ponham em risco à preservação e sobrevivência da entidade familiar; a criação do conselho da família no âmbito dos entes federados; o aperfeiçoamento e

275

promoção à interdisciplinaridade das políticas voltadas ao combate da violência doméstica. Em síntese, proposta busca a valorização e o fortalecimento da entidade familiar, por meio da implementação de políticas públicas, razão pela qual peço o inestimável apoio dos nobres pares.

Sala das Sessões, 16 de outubro de 2016.

Deputado ANDERSON FERREIRA PR-PE

ANEXO B – Parecer do Relator nº 1 do PL 6.583/2013 pelo Deputado Ronaldo Fonseca (PROS-DF)

277

COMISSÃO ESPECIAL DESTINADA A PROFERIR PARECER AO PROJETO DE LEI Nº 6.583, DE 2013

Dispõe sobre o Estatuto da Família e dá outras providências. Autor: Deputado Anderson Ferreira Relator: Deputado Ronaldo Fonseca

I - RELATÓRIO

Trata-se de Projeto de Lei, de autoria do ilustre Deputado Anderson Ferreira, para instituir em nosso ordenamento jurídico o Estatuto da Família para dispor sobre os direitos da família e estabelecer diretrizes de políticas públicas para a valorização e apoiamento à entidade familiar. Em sua Justificação, o Autor informa que “a família é considerada o primeiro grupo humano organizado num sistema social, funcionando como uma espécie unidade-base da sociedade” e por essa razão “devemos conferir grande importância à família e às mudanças que têm alterado a sua estrutura no decorrer do tempo.” Destaca que a própria Constituição estabelece proteção à família, mas não há regulamentação sobre políticas públicas efetivas voltadas especialmente para a valorização da família e ao enfrentamento das questões complexas sobre a estrutura da família nos dias atuais.

278

O Projeto de Lei aborda questões centrais que envolvem a família, como: o fortalecimento dos laços familiares a partir da união conjugal formada entre o homem e a mulher, ao estabelecer o conceito de entidade familiar; a proteção e a preservação da unidade familiar, ao estimular a adoção de políticas de assistência que levem, às residências e às unidades de saúde pública, profissional capacitado para orientação à famílias. Além disso, o Autor propõe que a família receba assistência especializada para o enfrentamento do problema da droga e do álcool; que o Estado preste apoio efetivo às adolescentes grávidas prematuramente; que seja incluída no currículo escolar a disciplina “Educação para família”; prioridade na tramitação de processos judiciais e administrativos em demandas que ponham em risco à preservação e sobrevivência da entidade familiar; a criação do conselho da família no âmbito dos entes federados; o aperfeiçoamento e promoção à interdisciplinaridade das políticas voltadas ao combate da violência doméstica. Em 2 de abril de 2014, foi instalada a Comissão Especial e eleitos os Deputados Leonardo Picciani para Presidência, Silas Câmara para 1ª. Vice-Presidência, Anderson Ferreira para a 2ª. Vice-Presidência, Fátima Pelaes para a 3ª. Vice-Presidência. Em 09 de abril de 2014, o Presidente designou a mim, Deputado Ronaldo Fonseca, Relator. Em audiências públicas realizadas pela Comissão, foram ouvidos os seguintes expositores:  Pastor Cláudio Duarte;

279

 Lindinalva Rodrigues, Promotora de Justiça do Estado do Mato Grosso;  Sandra Maria Teodora Amaral, vice-presidente da ONG de Volta Pra Casa;  Dr. João Luis Fisher, Juiz e coordenador da Justiça Estadual da Assoiação dos Magistrados Brasileiros;  Édino Fialho, deputado estadual Legislativa do Rio de Janeiro;

da

Assembleia

 Maria Cristina Boaretto, representante do Instituto de Atenção Básica e avançada à Saúde – IABAS;  Thiago Trindade, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Medicina da Família e Comunidade;  Júlio Rufino Torres, representante do Conselho Federal de Medicina;  Lenise Garcia, Professora da UnB e membro da Comissão de Bioética da CNBB – Convenção Nacional dos Bispos Brasileiros;  Andréa Pachá, Juíza de Direito da 4ª. Vara de Órfãos e Sucessões do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro;  Walter Gomes de Souza, Chefe da Seção de Colocação em Família Substituta, SEFAM da 1ª. Vara da Infância e da Juventude do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios;  Roberto Tykanori, Coordenador da Saúde Mental do Ministério da Saúde;  Leon Garcia, Diretor de Articulação e Coordenação de Políticas sobre Drogas, representando a Secretaria nacional de Políticas sobre Drogas do Ministério da Justiça;  Enid Rocha Andrade Silva, representante do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA;

280

 Beatriz Cruz da Silva, Coordenadora Geral de Ações de Prevenção em Segurança Pública da Secretaria Nacional de Segurança Pública/MJ;  Dr. Adriano Seduvim, vice-presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros.

Nas audiências públicas, foram debatidos os seguintes temas: 1) conceitos de família e importância da família para a sociedade; 2) adoção: atual legislação, estatísticas e importância do terceiro setor nesse cenário; 3) políticas públicas de saúde: Sistema Único de Saúde, Programa Saúde da Família, cadastramento de entidades familiares, criação de núcleos de referência com profissionais especializados na área de psicologia e assistência social, atendimento em instituições filantrópicas através de convênio com o poder público e atendimento domiciliar, assistência à gravidez na adolescência; 4) políticas públicas de internação compulsória e a importância da família nesse contexto, priorização de ações voltadas para proteção das famílias em situação de risco, vulnerabilidade social e que tenham em seu núcleo membros considerados dependentes químicos; recentes ações do Governo; 5) políticas de segurança pública direcionadas à entidade familiar abordando integração com as demais políticas voltadas à família; a prevenção e enfrentamento da violência doméstica; a promoção de estudos e pesquisas e a obtenção de estatísticas e informações relevantes para subsidiar as ações de segurança pública e permitir a avaliação periódica dos impactos das políticas públicas quanto às causas, às consequências e à frequência da violência entre membros das entidades familiares.

281

A partir das valiosas contribuições dos expositores, refletimos e elaboramos um Relatório alinhado aos preceitos constitucionais e valores morais e éticos de nossa sociedade, com o fim de garantir direitos e o desenvolvimento de políticas públicas para a valorização da família. Foi apensado a este, o Projeto de Lei nº 6.584, de 2013, do próprio autor da proposição principal, no sentido de instituir a “Semana Nacional de Valorização Da Família”, que integrará o calendário oficial do País. Uma emenda foi apresentada pelo Sr. Deputado Marcos Rogério, no sentido de tornar obrigação do Estado, da sociedade e do Poder Público em todos os níveis a efetivação do direito à vida desde a concepção, modificando o art. 3º do projeto. É o Relatório.

II - VOTO DO RELATOR

A esta Comissão Especial compete analisar as propostas sob os aspectos de admissibilidade jurídica e legislativa (Art. 34, II, § 2º) do Projeto de Lei nº 6583, de 2013, do apenso, o PL nº 6.584, de 2013, ambos do Sr. Anderson Ferreira, que “dispõe sobre o Estatuto da Família” e “Institui a Semana de Valorização Família”, respectivamente, e da Emenda do Sr. Marcos Robério, sendo a apreciação conclusiva (art. 24, II do Regimento Interno). Sob o enfoque da constitucionalidade formal, o Projeto de Lei nº 6.583, de 2013, o seu apenso, o PL nº 6.584, de 2013, e a Emenda

não

apresentam

vícios,

porquanto

observadas

as

282

disposições constitucionais pertinentes à competência da União para legislar sobre a matéria (art. 22), do Congresso Nacional para apreciá-la (art. 48) e da iniciativa (art. 61). Entretanto, entendemos que o §1º do art. 13 do Projeto de Lei nº 6.583, de 2013, ao determinar que o Ministério Público e a Defensoria Pública promovam ações voltadas ao interesse da família no “Dia Nacional de Valorização da Família”, afigura-se-nos inconstitucional por vício de iniciativa, motivo pelo qual será o dispositivo excluído em nosso Substitutivo. Quanto à constitucionalidade material, não se vislumbra conflito entre Projeto de Lei nº 6.583, de 2013 e o seu apenso, o PL nº 6.584, de 2013, a Constituição Federal, cujo objetivo é garantir a valorização e a proteção da família atendendo aos preceitos estabelecidos no art. 226 da Constituição Federal. Quanto à emenda proposta no âmbito desta Comissão Especial,

parece-nos

igualmente

atender

às

exigências

de

constitucionalidade. Não há, outrossim, injuridicidade. A técnica legislativa é adequada. Quanto ao mérito, cremos que tem pleno fundamento a preocupação do autor ao pensar em mecanismos de defesa e valorização da família, instituindo o “Estatuto da Família”. Esclarece com maestria o conceito positivado em nossa Constituição de 1988 - CF, quando estabelece, em seu artigo 226, o que se deve entender como família, para que receba especial proteção do Estado. Toda a preocupação contida no art. 226 foi

283

construída sob a égide da proteção da família por razões ligadas a seu papel de ser base da sociedade, vejamos: “Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.” (grifos nossos)

Quanto a isso, cumpre dizer que o Capítulo VII da CF tem seu foco precípuo na formação das crianças, que se tornam novos cidadãos independentes para a sociedade. Conforme se depreende das obrigações impostas à família em seu art. 227: “Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”

Pois bem, para delimitarmos o conceito de família, que deve usufruir da ESPECIAL proteção do Estado e que deve arcar pessoalmente com as obrigações impostas pelo Estado no art. 227, deve-se identificar aquela entidade que cumpre esse papel, que a faz ser base da sociedade. Não podia ser diferente, essa busca deve estar centrada na CF que tem a assertiva que fundamenta e consolida a lei menor que busca dar luz ao tenebroso momento em que vivemos de definição do conceito de família. Embora em sede de lei ordinária, o que deve ser valorado é o que diz a CF. Três compreendido

formatos como

o

Constituinte

entidade

familiar.

delineou Aquele

para advindo

ser do

284

casamento civil, a União estável e o monoparental (a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes), art. 226, §4 da CF. Com o advento do julgamento pelo Supremo Tribunal Federal da ADPF nº 132-RJ pela ADI nº 4.277-DF, com a aplicação da técnica da “interpretação conforme a Constituição” ao artigo 1.723 do Código Civil, foi introduzido na jurisprudência, ao meu ver equivocadamente, um novo conceito de família formada pelos pares homossexuais. A realidade que temos hoje, são união estável e casamento civil de pessoas do mesmo sexo, não abarcados pelo art. 226 da CF, mas sustentados por decisão do STF e CNJ, recebendo o status de família “homoafetiva”. O nosso voto não tem a pretensão de confrontar sistematicamente a decisão do STF, mas com todo respeito ao Excelso Tribunal, ficarei restrito ao mandamento constitucional do art. 226 e seus parágrafos, por entender que a decisão de criar a “família homoafetiva” não foi interpretativa, mas inovou, criando lei, data vênia, usurpando prerrogativa do Congresso Nacional. Por outro giro, não se pode modificar texto constitucional por lei ordinária, restringindo assim este relator, a ficar adstrito à literalidade

do

texto

constitucional.

Tenho

consciência

das

transformações sociais e culturais que proporcionam a existência de diferentes arranjos familiares, já atendidos pela Constituição, o que não se pode dizer das tais “famílias homoafetivas”. Neste sentido, faz necessário diferenciar FAMÍLIA das RELAÇÕES DE MERO AFETO, convívio e mútua assistência; sejam essas últimas relações entre pessoas de mesmo sexo ou de

285

sexos diferentes, havendo ou não prática sexual entre essas pessoas. Dos alicerces do direito de família se observam inúmeras obrigações e direitos advindos da consanguinidade entre pais e filhos, gerando o parentesco por linha reta e colateral. Dessa circunstância

advém

também

o

conceito

de

“paternidade

responsável” um pressuposto inafastável da família. É óbvio, mas necessário dizer, só ser possível a geração conjunta de novos cidadãos da união do homem com a mulher e, apenas dessa instituição, a família, que o Estado teria justificativa de exigir conjuntamente e pessoalmente o cumprimento do dever do art. 227 e de conferir ESPECIAL proteção do Estado. É importante asseverar que apenas da família, união de um homem com uma mulher, há a presunção do exercício desse relevante papel social que a faz ser base da sociedade. O Estado nunca se motivou a proteger a família por simplesmente haver afeto, convívio ou mútua assistência entre os adultos que a compõe. O que se mostra relevante para o Estado é assegurar proteção à base da sociedade; que proporciona a geração, educação e profissionalização (independência) dos seus novos cidadãos. O Estado é tão centrado na reprodução e na criança como fator motivador da proteção do Estado à família, que, se de um lado protege e impinge obrigações desde logo à união do homem com a mulher, da qual se presume reprodução e o cumprimento do art. 227 da CF, de outro vem a considerar também família sujeita à mesma proteção especial aquela unidade monoparental na qual já

286

há a figura da criança a ser protegida, segundo o § 4° do art. 226 da CF. O Estado, desde o início de cada união de homem com mulher, confere proteção especial à família, porque, dada sua presunção de sustentação do relevante papel social que a faz base da sociedade, é desejável que seus integrantes tenham a tranquilidade das garantias especiais advindas do direito de família aos nubentes desde logo, seja pelas obrigações recíprocas impostas pela lei, pelos subsídios estatais, como a pensão, seja pelo auxílio estatal direto a seus futuros descendentes. Em verdade, não justifica ao Estado subsidiar início de nova relação de dependência econômica entre adultos; se dela não se prever exercício do relevante papel social da família em gerar e criar filhos. Só deve haver ESPECIAL proteção para aqueles que tiverem atributos diferenciados em prol da continuidade sustentável da própria sociedade. O que não impede a associação de pessoas para o convívio com base no mero afeto. Não faz sentido ao Estado proteger qualquer relação de mero afeto, pois dela não se presume reprodução conjunta e o cumprimento do papel social que faz da família ser base da sociedade. Não há atributos intrínsecos às relações de mero afeto que as façam ser merecedoras de especial proteção do Estado como tal. Estender o arcabouço jurídico protetivo e obrigacional da família a pares homossexuais gera: a) enriquecimento sem causa por não se presumir deles o ônus de ser base da sociedade; b) discriminação contra o indivíduo não integrante desse tipo de relação; pois haveria o gozo de direitos especiais não extensíveis a

287

todos; não sendo justo obter subsídio Estatal pelo simples fato de conviver com outrem, ao contrário; c) injustiça, pois em nada estaria reconhecida a relevância e o reconhecimento do papel da união do homem e da mulher como sustentáculo da sociedade, razão da existência de especial proteção. Em verdade, há enorme inadequação e não há motivo para o Estado aplicar as obrigações recíprocas entre o homem e a mulher sobre integrantes de relações de mero afeto, fazendo-os suportar, por exemplo, ônus de alimentos uns para com os outros; contra o próprio interesse estatal de haver novos cidadãos adultos independentes e que justifica inicialmente a proteção especial do Estado sobre a família. Além disso, outros exemplos seriam: o dever de consumar e dar assistência sexual, bem como a fidelidade, obrigações adquiridas com o casamento. As relações de mero afeto não precisam e não devem ser tuteladas pelo direito de família, pois hoje tais relações são verdadeiramente livres e gozam de autotutela. Há no ordenamento jurídico vigente instrumentos válidos para que seus integrantes a formatem da maneira que desejarem. A verdade é a de que “O direito brasileiro oferta às pessoas do mesmo sexo, que vivam em comunhão de afeto e patrimônio, instrumentos jurídicos válidos e eficazes para regular, segundo seus interesses, os efeitos materiais dessa relação, seja pela via contratual ou, no campo sucessório, a via testamentária”, ... A modernidade no direito não está em vê-lo somente sob o ângulo sociológico, mas também normativo, axiológico e histórico”. Cumpre aqui cotejar o acórdão do STF, prolatado no julgamento da ADPF 132/RJ e da ADI 4277/DE, já citado, que criou

288

a possibilidade de se reconhecer união estável entre pessoas de mesmo sexo para receberem benefícios no Estado do “Rio de Janeiro” e que acabou firmando sua jurisprudência, apesar de a maior quantidade numérica de decisões até então fossem em contrário. Cumpre salientar que nos votos apresentados, afirmava-se “omissão” do Poder Legislativo, mas sabido já era que tais demandas haviam sido apresentadas ao legislativo; que não pôde encontrar em seu “consenso de maioria” razões que justifiquem extensão do direito de família às relações de mero afeto.

Ademais,

lê-se

do

referido

acórdão

que



o

“entendimento da impossibilidade de ortodoxo enquadramento da união homoafetiva nas espécies de família constitucionalmente estabelecidas.”. Mostra-se ainda o entendimento de dois ministros sobre a questão que “a coloca como matéria aberta à conformação legislativa“. Decidiram por dever de ofício, mas esperam o pronunciamento do Legislativo sobre o devido tratamento da questão.

Esse processo do STF centrou-se na possibilidade de pagamento de benefícios governamentais a homossexuais e não tocou ou aprofundou sua análise sobre a conformação e adequação desse tipo de relação a ser tutelado pelo direito de família como um todo. Se de um lado o STF estendeu benefícios a esses, sob uma análise institucionalmente restrita, de outro, data vénia, não abordou a inadequação de impingir-lhes as obrigações advindas do direito de família.

289

De qualquer forma, esta Casa não se prende ao parâmetro do Poder Judiciário que possui limitações institucionais quanto ao espectro de sua análise.

O Poder Judiciário por vezes não se prende às razões históricas e fáticas da existência do direito analisando um pleito que evoca apenas e tão-somente a igualdade de alguns atributos, nos quais não se assenta a razão da existência do direito, para a sua concessão. Assim, a igualdade corre o risco de ser trampolim para aquisição de direitos injustificáveis. O Poder Legislativo, ao contrário, quando propõe e aprova um Projeto de Lei concedendo um incentivo fiscal, subsídio ou outro direito, aprecia sempre a justificação do que o acompanha. Nesse sentido, não há direito que surja no âmbito legislativo dissociado de sua causa justificativa identificável no grupo que se deseja beneficiar ou proteger. Para se configurar a suposta igualdade no caso, o STF teve de identificar e afastar a diferença, qual seja: a reprodução. No entanto, é exatamente nesse quesito que se reside a razão da existência de especiais direitos protetivos à família. O eminente Ministro Aires Brito erroneamente afirmou citando uma advogada

sabidamente

militante

Berenice Dias afirma que

dos

“agora

homossexuais:

““Maria

não se exige mais a

tríplice identidade: família-sexo-procriação”. O Poder Judiciário, a contrário do Poder Legislativo, não tem a obrigação de considerar o impacto orçamentário e financeiro da demanda e demais reflexos e ônus para a sociedade, pois a ele é dado interpretar a Lei (e não inovar, como o fez). O Poder

290

Legislativo deve necessariamente considerar o custo da concessão de novos direitos e sua importância relativa frente à sociedade que se quer ter, dita por ela mesma na figura de seus representantes. No caso específico, na extensão da proteção do Estado às relações de mero afeto, há também o inconveniente de se direcionar mais recursos para adultos em detrimento do que pode ser alocado em políticas de assistência e proteção de crianças e adolescentes, motivo da existência de proteção especial à família. Ademais,

o

STF

pratica

verdadeira

injustiça

e

discriminação por não poder, com suas limitações institucionais adstritas ao processo, estender esses direitos para as demais relações de mero afeto não homossexuais. Quando se cria direitos por via judicial, apenas aqueles que demandam são eventualmente beneficiados, deixando-se os demais iguais fora da análise e dos seus efeitos. No caso, nem os primeiros poderiam obtê-los. O comportamento e os arranjos das relações de mero afeto e convívio são muito antigos. O que acontece é que eventual aceitação pela sociedade da existência do comportamento não transforma e não cria, de per si, novo ‘papel social’ identificável nessas relações e não se mostra possível reprodução advinda da união que as possibilite gozar da presunção dada às famílias pelo enlace do homem com uma mulher. Qualquer pessoa pode denominar como família sua relação de afeto e convívio com quem quer que seja, no entanto, estamos aqui definindo o que é família para efeito da proteção especial do Estado, bem como qual entidade é legítima a estar subordinada e beneficiada pela instituição jurídica da família.

291

Observe que o enfoque da especial proteção estatal está na proteção à criança e não em propiciar satisfação cerimonial aos nubentes, premiando seu enlace e afeto, fazendo-os gozar de benefícios injustificáveis além dos direitos e garantias fundamentais do indivíduo. Exatamente para não haver dúvidas das razões que justificam ao Estado proteger e impingir obrigações à família, que no §3° do art. 226 da CF inseriu-se literalmente a referência ao Homem e a Mulher como integrantes da União Estável passível de gozo da especial proteção do Estado como família, ressaltando-se ainda que o ideal é que a família se reja pelos ditames jurídicos do casamento, algo reservado ao casal, homem e mulher, in verbis: “ § 3º - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.”

Apesar dessa literalidade do mandamento constitucional, insculpido no art. 226 da CF, no qual se reconhece a união estável apenas entre o homem e a mulher para efeito de proteção especial do Estado, o STF em seu posicionamento do acórdão, ao meu ver, afrontou a racionalidade da lógica formal de interpretação de qualquer texto jurídico. Para tal, se transcreve o achismo de um dos votos: “Mas é exato que a referência expressa a homem e mulher garante a eles, às expressas, o reconhecimento da união estável como entidade familiar, com os consectários jurídicos próprios. Não significa, a meu ver, contudo, que se não for um homem e uma mulher, a união não possa vir a ser também fonte de iguais direitos.” Por que seria necessário dar expressamente o direito para a união do Homem com a Mulher e se consideraria implícito esse mesmo direito para aqueles que o pleitearam no judiciário mais de

292

25 anos depois? Ao judiciário não é dado fazer juízo de valor, mas aplicar a lei buscando seu motivo balizador original e fático. No entanto, na função desta Casa, discutindo-se um projeto de lei, é necessário enxergarmos o pensamento do constituinte de 1988, identificando suas razões na construção do Estado brasileiro e na concessão de ESPECIAL proteção à família, pois é nesse contexto que se pode haver decisão. Devemos também lembrar a opção do Estado brasileiro em seu preâmbulo: “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.” (grifos nossos)

Desse modo, apesar de o Estado ser laico, por não possuir religião oficial, nem influência de autoridades eclesiásticas no Estado, todo o arcabouço jurídico que o constituinte coloca, incluindo-se a dignidade da pessoa humana, a igualdade perante a lei e demais direitos fundamentais, individuais e coletivos, é dado sob a proteção de Deus. Nesse sentido, deve-se também esperar respeito dessa Casa ao credo reconhecidamente balizador dos valores da maioria absoluta de religiosos e não religiosos e que construiu nossa sociedade

brasileira,

bem

como

todo

o

ocidente.

Isso,

indiscutivelmente faz trazer como família admissível a iniciada com

293

um homem e uma mulher, não é à toa a preocupação de colocá-la de maneira literal na CF (art. 226, § 3°, para não haver dúvidas). Ademais, não se pode considerar que a família seja invenção da religião, mas ela é reconhecida na Religião como algo essencial à sociedade e merecedora de respeito por parte do Estado; que não deve querer modificá-la, apenas pode ver motivos para protegê-la. Não se trata, portanto, de uma questão religiosa, mas de respeito à opinião da população que, além de ver razões fáticas que fazem da família uma instituição merecedora de proteção e normatização, a consideram o centro do ensino, desenvolvimento e orientação do indivíduo sob a proteção de Deus. Não se pode pensar que todos os direitos especiais especificamente dado aos integrantes da família, e somente à ela, sejam ensejadores de discriminação, já que o próprio constituinte estava imbuído dos demais princípios da sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social, sob a proteção de Deus. Deve-se ressaltar que “diferenciar” não se confunde com “discriminar”. Ademais, para se exigir respeito à diversidade e afastar a discriminação, exige-se, a priori, identificação de diferenças, respeito a elas e reconhecimento de sua importância, no caso, a reprodução. Entendemos que a interpretação do STF no art. 226, § 3° sobre o conceito de entidade familiar, incluindo a união entre pessoas de mesmo sexo, é equivocada, afronta a lógica interpretativa, e contraria todos os requisitos e motivos que foram postos pelo constituinte para proteger de maneira especial a família. O STF não se debruçou sobre o que faz da família ser a Base da

294

Sociedade e informou que sua opinião seria a de que família é um “lugar de felicidade” que deve ser dado a todos. O STF não percebe que felicidade é sentimento subjetivo interno e que família é família ainda que sem afeto ou felicidade. Não é o querer e nem seria possível ao Estado conferir felicidade a alguém, sobretudo por meio de uma formalidade e um arcabouço jurídico formal que, antes de beneficiar, impinge obrigações. Promover “o bem estar de todos”, objetivo da República Federativa do Brasil, segundo o art. 3° da CF não se confunde com dar felicidade ao indivíduo. Se o raciocínio de estender os direitos protetivos especiais da família às relações de mero afeto se assentar no raciocínio adotado no STF com base na “promoção do bem estar de todos”, faria com que esses direitos deixassem de ser ESPECIAIS e deveriam ser considerados integrantes do rol de “direitos e garantias fundamentais” e não poderiam existir apenas para os que mantêm relacionamentos, mas a qualquer indivíduo. Todo o direito protetivo especial do Estado à família é dirigido, direta, ou indiretamente ao bem estar da criança e adolescente; é isso que se percebe do art. 227 em especial de seu § 3°. Por essas razões, concordamos, no mérito, com a proposta do Autor, mantendo a redação do art. 2º da proposição. De modo semelhante, o instituto da adoção tenta preservar o interesse da criança tanto nas suas necessidades materiais quanto sentimentais, se possível. Pois bem, toda criança que se torna passível de adoção sofreu a perda de seu pai e de sua mãe por circunstâncias diversas. Assim, com a adoção se busca o suprimento dessa perda, que não se resume a aspectos materiais.

295

Nesse sentido, o Estado possibilita e até incentiva a que casais venham a adotar, pois assim, tanto a figura do pai, quanto da mãe, estariam supridas. Nesse sentido, não podemos subordinar as crianças a obterem adoção que cristalize a impossibilidade de suprirem o trauma da perda e falta de convívio com seu pai e sua mãe. Nas relações de mero afeto, sobretudo nas que as pessoas que a compõe forem de mesmo sexo, a criança que sob essa hipótese fosse adotada passaria a ter de maneira irremediável a ausência da figura do pai, ou da mãe. Importa dizer que a adoção por solteiro ou por uma única pessoa, não teria esse condão contrário à plenitude do interesse da criança e teria o paralelo com a família monoparental. Lembra-se, no entanto, que, em qualquer caso, a concretização da adoção deve se subordinar ao interesse e atendimento da criança, sendo obrigação das autoridades envolvidas fazer avaliação disso em seu deferimento. Como se busca restituir a situação original da criança, pelo menos sob o aspecto sentimental ligado à sua estrutura familiar, mostra-se contrário inseri-la em outra estrutura, que para ela é completamente anômala. Neste caso, não há para a criança, nesse momento de seu desenvolvimento, de carência e fragilidade, a possibilidade de se rejeitar tal inserção no bojo de uma relação de mero afeto. Em verdade, admitir adoção por duas pessoas de mesmo sexo conjuntamente, afasta a verdadeira priorização e razão de existência do instituto jurídico da adoção, pois em vez de se buscar restituir a condição anterior da criança, priorizando o seu interesse e

296

carência, se privilegia o atendimento de adultos; que possuem inviabilidade natural de terem filhos conjuntamente. Ademais, o advento da concessão pelos Tribunais da “adoção homoafetiva”, desconsidera o fato de que o tema dos pares homossexuais formando famílias, ainda não está pacificado na sociedade. Trazer a criança para o meio de um furacão é no mínimo desprezo à proteção dos direitos desse menor, que sofrerá consequências enormes. Em verdade, despido de qualquer preconceito, mas na busca de construir um conceito alicerçado em análise científica e comportamental, analisando trabalhos científicos, observa-se que, a despeito de ter sido retirado o termo homossexualismo da relação de doenças da OMS há 21 anos, tal atitude não proveio de estudos científicos cabais que fizessem considerar tal comportamento como normal. Ainda são feitos trabalhos científicos que apontam comportamentos ligados ao homossexualismo como relacionados a distúrbios, objeto de estudo na medicina. Como tais assuntos não estão cabalmente definidos pela academia científica, não se pode subordinar a direção da vida de crianças a potenciais riscos. Deve-se reconhecer o papel fundamental que a existência do convívio com a figura do pai e da mãe têm para o bom desenvolvimento

da

criança

e

da

própria

sociedade;

algo

observável pelos séculos, testado pela sociedade e amplamente reconhecido como algo bom. Por outro giro, não se pode admitir o Instituto da adoção voltado tão somente a atender os desejos do adotante, ao contrário, deve

prevalecer

em

qualquer

pleito,

quer

seja

de

pares

homossexuais ou casais héteros, o interesse absoluto em atender

297

os direitos da criança ou adolescente. Dos arts. 39 a 52 do ECA (com as modificações da Lei 12.010 0 ), temos tais exigências legais e a do art. 3, com efeito, é a mais relevante: “a adoção será deferida quando apresentar reais vantagens para o adotando e fundar-se em motivos legítimos”. Em direção semelhante, o art. 1. 2

do Código Civil prevê que “somente será admitida a adoção

que consistir efeito beneficio para o adotando”. Nesse raciocínio, é necessário observarmos que, o fato de crianças estarem em abrigos, como alguns alegam, “abandonadas”, não deve ser uma justificativa para, simplesmente, entregá-las à adoção a casais homoafetivos. Prevalecendo essa tese, não teríamos mais de 30 mil casais héteros na fila para a adoção. Já se teria feito uma limpa nos abrigos de menores. Mas não é assim, a lei rigorosamente privilegia DIREITOS constituídos à essa criança, que ao meu ver, a priori, tem o direito de ter uma mãe e um pai. As decisões judiciais concedendo a adoção a pares homossexuais,

estão

fundamentadas

na

jurisprudência

que

consentiu como entidade familiar as “uniões homoafetivas”, o que o Estatuto da Família vem em sentido contrário. Em sede de recurso na Apelação que autorizou a adoção por par homossexual pelo STJ, o Ministério Público do Estado de São Paulo argumenta quanto direito subjetivo da criança e do adolescente, in verbis: (...) não se vislumbra a existência de 'reais vantagens' para a adotanda. Realmente, a adotanda, hoje uma criança, amanhã uma adolescente, passará por uma serie de constrangimentos e discriminações, sempre que exibir em seus documentos pessoais sua inusitada condição de filha de duas mulheres.

298

A lei diz que nenhuma criança será objeto de qualquer forma de negligencia, discriminação etc. (ECA, art. 5o), porém é notório que a presente adoção fornece elemento propicio a gerar futura discriminação, de sorte que se afigura licito concluir pela inexistência de reais vantagens à adotanda, estando ausente o requisito a que alude o artigo 43 do ECA. (fls. 293/294, eSTJ).

Em consonância com esse entendimento, temos recente explanação

do

Cardeal

Angelo Bagnasco,1

da

Conferência

Episcopal Italiana (CEI), usou nesta segunda-feira (10/11/2014) uma metáfora curiosa - para dizer o mínimo - para comentar implicitamente

eventuais

aberturas

da

Igreja

Católica

a

homossexuais. Segundo ele, as "novas figuras" da família têm o único objetivo de confundir as pessoas e criar uma espécie de Cavalo de Troia, invenção utilizada pelos gregos na Antiguidade para invadir e destruir a cidade homônima. "Os filhos não são objetos para se produzir ou se pretender, não estão a serviço dos desejos dos adultos. São os sujeitos mais frágeis e delicados, eles têm direito a um pai e a uma mãe", afirmou o religioso, que é também arcebispo de Gênova. O assunto é bem mais complexo, do que simplesmente consentir com os ditos avanços da sociedade. Um olhar mais atencioso para OMS (Organização Mundial da Saúde) na categoria das classificações de doenças, SID 10, servirá para a construção definitiva de parâmetro para decidir quanto a adoção por pares homossexuais. Considerando tudo isso, não se pode admitir adoção de crianças simplesmente com base no mero afeto e por pares do 1

Portal Terra.com.br, de 10/11/2014.

299

mesmo sexo, razão pela qual inserimos o tema em nosso Substitutivo. Nas diretrizes gerais, o projeto merece encômios. Políticas públicas voltadas para a família, como hoje já está acontecendo nos mais variados órgãos públicos competentes, têm de ser norteadas por princípios que levem em conta as particularidades de todos os protegidos. Com muita propriedade, assevera Sílvio de Salvo Venosa (Direito de Família, Ed. Atlas, 7ª ed.): “... trata-se do campo do direito mais bafejado e influenciado por ideias morais e religiosas. Os chamados direitos de família constituem na verdade um complexo de direitos e deveres, como o pátrio poder ou poder familiar. O direito de família está centrado nos deveres, enquanto nos demais campos do direito de índole patrimonial o centro orientador reside nos direitos, ainda que também orientados pelo cunho social, como a propriedade.”

A proposta estabelece, do art. 5º ao 13, direitos que devem ser garantidos à entidade familiar, de forma a permitir sua sobrevivência O Projeto de Lei mostra-se positivo ao propor um cadastramento

das

famílias

para

atendimeto

domiciliar

por

instituições públicas ou filantrópicas conveniadas com o Poder Público e auxílio no processo de reabilitação do convívio familiar e assistência à gravidez na adolescência. Através das audiências públicas, cujas contribuições foram importantíssimas, identificamos que a questão da saúde da família deve estar atrelada a ideia de prevenção. O cadastramento e mapeamento

das

famílias

é

de

suma

importância

para

identificarmos os problemas e colocar em prática políticas públicas.

300

Como afirmado pela representante do Instituto de Atenção Básica e avançada à Saúde – IABAS, “se o Poder Público estiver apenas no posto de saúde, sem partir para verificar o que acontece no recinto, na residência das pessoas, não verá a realidade”. E encerra, afirmando que “o Estatuto da Família contempla de modo satisfatório o problema da saúde das pessoas, formadoras do núcleo familiar”. Outra questão importante relacionadas à saúde é a internação compulsória e o processo de reabilitação do dependente químico. Entendemos que a internação compulsória é necessária em determinados casos, especialmente, naqueles em que os membros da família não sabem mais como ajudar o adolescente ou familiar viciado em drogas e que, muitas vezes, encontra-se a vagar pelas ruas, como um zumbi. Por essa razão, acrescentamos em nosso Substitutivo, a internação compulsória. No que diz respeito à segurança pública concordamos com a proposta do Autor, que ao nosso ver atende às demandas das famílias por políticas integradas entre a União, Estados, Municípios e Distrito Federal que promovam a prevenção e o enfrentamento da violência doméstica. Quando pensamos em educação, a proposta inova ao estabelecer uma base curricular nacional comum com a inclusão da disciplina “Educação para a Família”. Além disso, propõe a criação de conselhos nas escolas para formular e implantar medidas de valorização da família no âmbiente escolar e traz os pais para escola.

301

“O Dia Nacional de Valorização da Família”, Lei 12.647/2012, criado recentemente, veio para fomentar atividades no âmbito escolar sobre a importância da família para a construção de uma sociedade com valores e princípios. Nesse sentido, no que diz respeito ao Projeto de Lei nº 6.584,de 2013, apensado, que cria a “Semana Nacional de Valorização

da

Família”,

entendemos

que

o

mesmo

está

prejudicado, considerando a existência da Lei nº 12.647/2012, que trata do mesmo tema. Quanto à prioridade na tramitação dos processos e procedimentos e na execução dos atos e diligências judiciais, em qualquer instância, em que o interesse versado constitua risco à preservação e sobrevivência da entidade familiar, somos favoráveis e se alinha à ideia de proteção e fortalecimento da entidade família. No concernente ao Conselho da Família, verificamos que a criação desse órgão dependerá da boa vontade dos Poderes envolvidos, quer federais, estaduais, municipais ou distritais, mas isto, a exemplo dos Conselhos Tutelares, não se apresenta infactível. Somente algumas atribuições, como expedir notificações, assessorar o Poder Executivo, podem ser tidas como exorbitantes dos ditames constitucionais. Normas programáticas, bem o sabemos, mas algo tem de ser feito para que a família, célula mater da sociedade, não venha a se extinguir, colocando em risco a existência do próprio Estado. Pelo exposto, nosso voto é pela constitucionalidade, juridicidade, boa técnica legislativa do Projeto de Lei n.º 6.853, de 2013 e do Projeto de Lei nº nº 6.584, de 2013, apensado, e da

302

Emenda apresentada; e no mérito pela aprovação do Projeto de Lei n.º 6.853, de 2013, e da Emenda apresentada, na forma do Substitutivo em anexo; e pela rejeição do Projeto de Lei nº nº 6.584, de 2013. Sala da Comissão, em

de

de

2014.

Deputado Ronaldo Fonseca Relator

COMISSÃO ESPECIAL DESTINADA A PROFERIR PARECER AO PROJETO DE LEI Nº 6.583, DE 2013

SUBSTITUTIVO AO PROJETO DE LEI Nº 6.583, DE 2013

Dispõe sobre o Estatuto da Família e dá outras providências.

303

Autor: Deputado Anderson Ferreira Relator: Deputado Ronaldo Fonseca

O Congresso Nacional decreta:

Art. 1º Esta Lei institui o Estatuto da Família e dispõe sobre os direitos da família, e as diretrizes das políticas públicas voltadas para valorização e apoiamento à entidade familiar. Art. 2º Para os fins desta Lei, define-se entidade familiar como o núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união estável, ou ainda por comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes. Art. 3º É obrigação do Estado, da sociedade e do Poder Público em todos os níveis assegurar à entidade familiar a efetivação do direito à vida desde a concepção, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania e à convivência comunitária. Das diretrizes gerais Art.



Os

agentes

públicos

ou

privados

envolvidos com as políticas públicas voltadas para família observarão as seguintes diretrizes: I - desenvolver a intersetorialidade das políticas estruturais, programas e ações;

304

II - incentivar a participação dos representantes da família na sua formulação, implementação e avaliação; III - ampliar as alternativas de inserção da família, promovendo programas que priorizem o seu desenvolvimento integral e participação ativa nos espaços decisórios; IV - proporcionar atendimento de acordo com suas especificidades perante os órgãos públicos e privados prestadores de serviços à população, visando ao gozo de direitos simultaneamente nos campos da saúde, educacional, político, econômico, social, cultural e ambiental; V - garantir meios que asseguram o acesso ao atendimento psicossocial da entidade familiar; VI - fortalecer as relações institucionais com os entes federados e as redes de órgãos, gestores e conselhos da família; VII - estabelecer mecanismos que ampliem a gestão de informação e produção de conhecimento sobre a família; VIII - garantir a integração das políticas da família com os Poderes Legislativo e Judiciário, com o Ministério Público e com a Defensoria Pública; e IX - zelar pelos direitos da entidade familiar. Dos direitos Art. 5º É obrigação do Estado, garantir à entidade familiar as condições mínimas para sua sobrevivência, mediante a

305

efetivação de políticas sociais públicas que permitam a convivência saudável entre os seus membros e em condições de dignidade. Art. 6º É assegurada a atenção integral à saúde dos membros da entidade familiar, garantindo-lhes o acesso em conjunto articulado e contínuo das ações e serviços, para a prevenção, promoção, proteção e recuperação da saúde, incluindo a atenção especial ao atendimento psicossocial da unidade familiar. § 1º A prevenção e a manutenção da saúde dos membros da entidade familiar serão efetivadas por meio de: I – cadastramento da entidade familiar em base territorial; II



núcleos

de

referência,

com

pessoal

especializado na área de psicologia e assistência social; III – atendimento domiciliar, e em instituições públicas, filantrópicas ou sem-fins lucrativos e eventualmente conveniadas com o Poder Público; IV – reabilitação do convívio familiar orientada por profissionais especializados. V



assistência

prioritária

à

gravidez

na

adolescência. § 2º Incumbe ao Poder Público assegurar, com absoluta prioridade no atendimento e com a disponibilização de profissionais especializados, o acesso dos membros da entidade familiar a assistentes sociais e psicólogos, sempre que a unidade da entidade familiar estiver sob ameaça.

306

§ 3º Quando a ameaça a que se refere o parágrafo anterior deste artigo estiver associada ao envolvimento dos membros da entidade familiar com as drogas e o álcool, a atenção a ser prestada pelo sistema público de saúde deve ser conduzida por equipe multidisciplinar e terá preferência no atendimento. Art. 7º Todas as famílias têm direito a viver num ambiente seguro, sem violência, com garantia da sua incolumidade física

e

mental,

sendo-lhes

asseguradas

a

igualdade

de

oportunidades e facilidades para seu aperfeiçoamento intelectual, cultural e social enquanto núcleo societário. Art. 8º As políticas de segurança pública voltadas à proteção da família deverão articular ações da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e ações não governamentais, tendo por diretrizes: I - a integração com as demais políticas voltadas à família; II - a prevenção e enfrentamento da violência doméstica; III - a promoção de estudos e pesquisas e a obtenção de estatísticas e informações relevantes para subsidiar as ações de segurança pública e permitir a avaliação periódica dos impactos

das

políticas

públicas

quanto

às

causas,

às

consequências e à frequência da violência entre membros das entidades familiares;

307

IV - a priorização de ações voltadas para proteção das família sem situação de risco, vulnerabilidade social e que tenham em seu núcleo membros considerados dependentes químicos; Art. 9º É assegurada prioridade na tramitação dos processos e procedimentos e na execução dos atos e diligências judiciais, em qualquer instância, em que o interesse versado constitua risco à preservação e sobrevivência da entidade familiar, devendo a parte interessada justificar o risco em petição endereçada à autoridade judiciária. Art. 10 Os currículos do ensino fundamental e médio devem ter em sua base nacional comum, como componente curricular obrigatório, a disciplina “Educação para família”, a ser especificada, em cada sistema de ensino e estabelecimento escolar, de acordo com as características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e da clientela. Art. 11 É garantida a participação efetiva do representante dos interesses da família nos conselhos e instâncias deliberativas de gestão democrática das escolas. Art. 12 As escolas deverão formular e implantar medidas de valorização da família no ambiente escolar, com a divulgação anual de relatório que especifique a relação dos escolares com as suas famílias. Art. 13 O Dia Nacional de Valorização da Família, que ocorre no dia 21 de outubro de cada ano, nos termos da Lei nº 12.647, de 16 de maio de 2012, deve ser celebrado nas escolas públicas e privadas com a promoção de atividades no âmbito

308

escolar que fomentem as discussões contemporâneas sobre a importância da família na sociedade. Parágrafo único. Na data a que se refere o caput deste artigo, o Poder Público, em todos os níveis, promoverá ações voltadas ao interesse da família, com a prestação de serviços e orientação à comunidade. Do conselho da família Art. 14 Os conselhos da família são órgãos permanentes e autônomos, não jurisdicionais, encarregados de tratar das políticas públicas voltadas à família e da garantia do exercício dos direitos da entidade familiar, com os seguintes objetivos: I - auxiliar na elaboração de políticas públicas voltadas à família que promovam o amplo exercício dos direitos dos membros da entidade família restabelecidos nesta Lei; II - utilizar instrumentos de forma a buscar que o Estado garanta à família o exercício dos seus direitos; III

-

colaborar

com

o

Poder

Público

no

planejamento e implementação das políticas voltadas à família; IV - estudar, analisar, elaborar, discutir e propor a celebração de instrumentos de cooperação, visando à elaboração de programas, projetos e ações voltados para valorização da família; V - promover a realização de estudos relativos à família, objetivando subsidiar o planejamento das políticas públicas;

309

VI - estudar, analisar, elaborar, discutir e propor políticas públicas que permitam e garantam a integração e a participação da família nos processos social, econômico, político e cultural no respectivo ente federado; VII - promover e participar de seminários, cursos, congressos e eventos correlatos para o debate de temas relativos à família; VIII - desenvolver outras atividades relacionadas às políticas públicas voltadas à valorização da família. Parágrafo

único.

A

lei

disporá

sobre

a

organização, o funcionamento e a composição dos conselhos da família, observada a participação da sociedade civil, mediante critério, no mínimo, paritário com os representantes do poder público. Art. 15 São atribuições dos conselhos da família: I - encaminhar ao Ministério Público notícia de fato que constitua infração administrativa ou penal contra os direitos da família garantidos na legislação; II - encaminhar à autoridade judiciária os casos de sua competência; III - expedir notificações; IV públicas;

-

solicitar

informações

das

autoridades

310

V – sugerir ao Poder Executivo local a elaboração de planos, programas, projetos, ações e proposta orçamentária das políticas públicas voltadas à família. Art. 16 O § 2º do art. 42 da Lei 8.069, de 13 de julho de 1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente passa a vigorar com a seguinte redação: “Art. 42. Podem adotar os maiores de dezoito anos, independentemente do estado civil. .................................................................

§

2º.

Para

adoção

conjunta,

é

indispensável que os adotantes sejam casados civilmente ou mantenham união estável, constituída nos termos do art.

226

da

Constituição

Federal,

comprovada

a

estabilidade da família,. ..........................................................(NR)

Art. 16. O art. 9º da Lei 10.216, de 6 de abril de 2001 – Estatuto da Criança e do Adolescente passa a vigorar com o acréscimo do seguinte parágrafo único: “Art. 9º ................................................. Parágrafo

único.

O

dependente

de

drogas ilícitas será internado compulsoriamente, pelo juiz

311

competente, ouvido o Ministério Público. quando vagar pelas ruas ou a pedido dos familiares, (NR) Art. 18 Esta lei entra em vigor em 1º de janeiro do ano subsequente ao de sua publicação.

de 2014.

Sala da Comissão, em

de

Deputado Ronaldo Fonseca Relator

ANEXO C – Parecer do Relator nº 2 do PL 6.583/2013 pelo Deputado Diego Garcia (PHS-PR)

313

COMISSÃO ESPECIAL DESTINADA A PROFERIR PARECER AO PROJETO DE LEI Nº 6.583, DE 2013 (Apenso o PL nº 6.584/13)

Dispõe sobre o Estatuto da Família e dá outras providências.

Autor: Deputado ANDERSON FERREIRA Relator: Deputado DIEGO GARCIA

I – RELATÓRIO

Trata-se de Projeto de Lei, de autoria do ilustre Deputado Anderson Ferreira, que pretende instituir em nosso ordenamento jurídico o Estatuto da Família, para dispor sobre os direitos da família e estabelecer diretrizes de políticas públicas para a valorização e apoio à entidade familiar. Em sua Justificação, o Autor informa que “a família é considerada o primeiro grupo humano organizado num sistema social, funcionando como uma espécie de unidade-base da sociedade” e, por essa razão, “devemos conferir grande importância à família e às mudanças que têm alterado a sua estrutura no decorrer do tempo”. Destaca que a própria Constituição estabelece proteção à família, mas não há regulamentação sobre políticas públicas efetivas voltadas especialmente para a valorização da família e ao enfrentamento das questões complexas sobre a estrutura da família nos dias atuais. O Projeto de Lei aborda questões centrais que envolvem a família, como: o fortalecimento dos laços familiares a partir da união conjugal formada entre o homem e a mulher, ao estabelecer o conceito de entidade familiar; a proteção e a preservação da unidade familiar, ao estimular a adoção de políticas de assistência que levem, às residências e às unidades de saúde pública, profissionais capacitados para orientação às famílias.

314

Além disso, o Autor propõe que a família receba assistência especializada para o enfrentamento do problema da droga e do álcool; que o Estado preste apoio efetivo às adolescentes grávidas prematuramente; que seja incluída no currículo escolar a disciplina “Educação para Família”; que haja prioridade na tramitação de processos judiciais e administrativos em demandas que ponham em risco a preservação e sobrevivência da entidade familiar; a criação do conselho da família no âmbito dos entes federados; o aperfeiçoamento e promoção à interdisciplinaridade das políticas voltadas ao combate da violência doméstica. Em 2 de abril de 2014 foi instalada a primeira Comissão Especial e eleitos os Deputados Leonardo Picciani para Presidência, Silas Câmara para 1ª Vice-Presidência, Anderson Ferreira para a 2ª VicePresidência, Fátima Pelaes para a 3ª Vice-Presidência. Em 9 de abril de 2014, o Presidente designou como relator o deputado Ronaldo Fonseca. Nesta legislatura, a Comissão foi instalada em 12 de março de 2015, sendo eleito presidente o Deputado Sóstenes Cavalcante. Os demais eleitos foram Marco Feliciano, Rogério Marinho e Silas Câmara, respectivamente, 1º, 2º e 3º Vice-Presidentes. E a relatoria foi incumbida a mim. Em audiências públicas realizadas pela Comissão, em 2014, foram ouvidos os seguintes expositores:  Pastor Cláudio Duarte;  Lindinalva Rodrigues, Promotora de Justiça do Estado do Mato Grosso;  Sandra Maria Teodora Amaral, vice-presidente da ONG de Volta Pra Casa;  Dr. João Luis Fisher, Juiz e coordenador da Justiça Estadual da Associação dos Magistrados Brasileiros;  Édino Fialho, deputado estadual da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro;  Maria Cristina Boaretto, representante do Instituto de Atenção Básica e avançada à Saúde – IABAS;  Thiago Trindade, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Medicina da Família e Comunidade;

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 Júlio Rufino Torres, representante do Conselho Federal de Medicina;  Lenise Garcia, Professora da UnB e membro da Comissão de Bioética da CNBB – Convenção Nacional dos Bispos Brasileiros;  Andréa Pachá, Juíza de Direito da 4ª. Vara de Órfãos e Sucessões do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro;  Walter Gomes de Souza, Chefe da Seção de Colocação em Família Substituta, SEFAM da 1ª. Vara da Infância e da Juventude do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios;  Roberto Tykanori, Coordenador da Saúde Mental do Ministério da Saúde;  Leon Garcia, Diretor de Articulação e Coordenação de Políticas sobre Drogas, representando a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas do Ministério da Justiça;  Enid Rocha Andrade Silva, representante do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA;  Beatriz Cruz da Silva, Coordenadora Geral de Ações de Prevenção em Segurança Pública da Secretaria Nacional de Segurança Pública/MJ;  Dr. Adriano Seduvim, vice-presidente Associação dos Magistrados Brasileiros.

da

Em 2015, foram ouvidos, em audiências públicas:

 Antonio Jorge Pereira Júnior, Doutor pela USP e Professor da UNIFOR;  Paulo Tominaga, Diretor de Relações Institucionais da CNEF – Confederação Nacional das Entidades de Família;

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 Pedro Paulo de Magalhães Oliveira Júnior, Mestre em Informática;  João Malheiro de Oliveira, Doutor em Educação pela UFRJ e Consultor Educacional;  Vladimir Brega Filho – Promotor de Justiça em Santa Cruz do Rio Pardo-SP;  Elizabeth Kipman Cerqueira, Diretora do Centro Interdisciplinar de Estudos em Bioética do Hospital São Francisco de Assis;  Cleusa Vieira Bombonati, Coordenadora Nacional do Ministério para as Famílias da Renovação Carismática Católica no Brasil;  Lenise Garcia, Doutora em Microbiologia e Imunologia pela Universidade Federal de São Paulo;  Clemildo Sá – Conselheiro Tutelar no DF;  Thaís Angélica Gouveia, advogada especialista em direito constitucional e direito penal;  Deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ);  Pastor Silas Malafaia, Psicólogo, Presidente da Assembleia de Deus Vitoria em Cristo;  Toni Reis, Professor, lutador social e ativista pelos direitos humanos.

Nas audiências públicas, foram debatidos os seguintes temas: 1) conceitos de família e importância da família para a sociedade; 2) adoção: atual legislação, estatísticas e importância do terceiro setor nesse cenário; 3) políticas públicas de saúde: Sistema Único de Saúde, Programa Saúde da Família, cadastramento de entidades familiares, criação de núcleos de referência com profissionais especializados na área de psicologia e assistência social, atendimento em instituições filantrópicas através de convênio com o poder público e atendimento domiciliar, assistência à gravidez na adolescência; 4) políticas públicas de internação compulsória e a importância da família nesse contexto, priorização de ações voltadas para proteção das famílias em situação de risco, vulnerabilidade social e que

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tenham em seu núcleo membros considerados dependentes químicos; recentes ações do Governo; 5) políticas de segurança pública direcionadas à entidade familiar, abordando integração com as demais políticas voltadas à família; a prevenção e enfrentamento da violência doméstica; a promoção de estudos e pesquisas e a obtenção de estatísticas e informações relevantes para subsidiar as ações de segurança pública e permitir a avaliação periódica dos impactos das políticas públicas quanto às causas, às consequências e à frequência da violência entre membros das entidades familiares; redução da maioridade penal. A partir das valiosas contribuições dos expositores, refleti e elaborei um Relatório alinhado aos preceitos constitucionais e valores morais e éticos de nossa sociedade, com o fim de garantir direitos e o desenvolvimento de políticas públicas para a valorização da família. Recebi colaboração pontual da Câmara Municipal de Varginha, com modelo de projeto de lei prevendo equipe interprofissional para atender necessidades da família. Também contei com um importante esclarecimento da Professora Regina Beatriz Tavares dos Santos, fundadora e presidente da ADFAS, Associação de Direito da Família e Sucessões. Foi apensado a este, o Projeto de Lei nº 6.584, de 2013, do próprio autor da proposição principal, no sentido de instituir a “Semana Nacional de Valorização Da Família”, que integrará o calendário oficial do País. Uma emenda foi apresentada pelo nobre deputado Marcos Rogério, no sentido de tornar obrigação do Estado, da sociedade e do Poder Público em todos os níveis a efetivação do direito à vida desde a concepção, modificando o art. 3º do projeto. É o Relatório.

II – VOTO DO RELATOR

A esta Comissão Especial compete analisar as propostas sob os aspectos de admissibilidade jurídica e legislativa (art. 34, II, § 2º) do Projeto de Lei nº 6.583, de 2013, do apenso, o PL nº 6.584, de 2013, ambos do Sr. Anderson Ferreira, que “dispõe sobre o Estatuto da Família” e “Institui a Semana de Valorização Família”, respectivamente, e da Emenda do Sr. Marcos Rogério, sendo a apreciação conclusiva (art. 24, II do Regimento Interno).

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Sob o enfoque da constitucionalidade formal, o Projeto de Lei nº 6.583, de 2013, o seu apenso, o PL nº 6.584, de 2013, e a Emenda não apresentam vícios, porquanto observadas as disposições constitucionais pertinentes à competência da União para legislar sobre a matéria (art. 22), do Congresso Nacional para apreciá-la (art. 48) e da iniciativa (art. 61). Entretanto, entendi que o § 1º do art. 13 do Projeto de Lei nº 6.583, de 2013, ao determinar que o Ministério Público e a Defensoria Pública promovam ações voltadas ao interesse da família no “Dia Nacional de Valorização da Família”, afigura-se-me inconstitucional por vício de iniciativa, motivo pelo qual será o dispositivo excluído em meu Substitutivo. Quanto à constitucionalidade material, não se vislumbra conflito entre o Projeto de Lei nº 6.583, de 2013, e o seu apenso, o PL nº 6.584, de 2013, e a Constituição Federal, cujo objetivo é garantir a valorização e a proteção da família, atendendo aos preceitos estabelecidos no art. 226 da Constituição Federal. Quanto à emenda proposta no âmbito desta Comissão Especial, parece-me igualmente atender às exigências de constitucionalidade. Não há, outrossim, injuridicidade. A técnica legislativa é adequada. Quanto ao mérito, acredito deva ser aprovada a matéria em comento, com algumas ressalvas e sugestões pontuais de alteração. Antes, todavia, mostra-se oportuno resgatar tópicos do entendimento da matéria, bem como da conjuntura em que vive a sociedade brasileira, para esclarecer a compreensão que se reputa concorde com a consciência histórica e humana da Constituição vigente. Fazem-se considerações de temas pertinentes à compreensão deste Relator, após um semestre de atenta participação nas sessões, com colegas deputados, em percuciente audição de cidadãos de diversas ciências e profissões, que se dispuseram a comparecer nos encontros profícuos da Comissão. Além disso, fiz questão de voltar aos materiais produzidos na anterior legislatura. Sumarizo em sete tópicos o que considero relevante para a devida apreciação dos demais membros da Comissão Especial. O último deles traz o comentário relativo ao conteúdo do projeto.

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1A competência originária e exclusiva da Constituinte e do Congresso Nacional para legislar em matéria de Direito de Família.

A relação entre o direito constitucional e o direito ordinário é tema consolidado nos tempos atuais. O primeiro busca sintetizar – mesmo a despeito da inflação constitucional de que nos ressentimos no Brasil – a ideia de direito capaz de consolidar o consenso social. Por tais razões, é próprio do texto constitucional tratar os temas fundamentais da ordem juspolítica de maneira suscinta e principiológica, sem descer, portanto, às minúcias dos assuntos. Tal papel, por seu turno, cabe justamente ao direito ordinário que, fruto de uma deliberação menos exigente – prova disso está na diferença de quóruns exigidos tanto na proposição das matérias, quanto para a sua aprovação – dá contornos específicos às matérias constantes no texto constitucional. Embora, no conjunto, a Constituição brasileira não tenha seguido essa lição consagrada nos estados de direito democráticos contemporâneo, no que diz respeito à proteção da família, como veremos, o texto pátrio tem boa técnica e bom conteúdo. Tanto as linhas principiológicas delineadas na Constituição, quanto a sua especificação ofertada pelo direito ordinário pressupõe deliberação legislativa. É próprio do estado de direito democrático pressupor que é mais sensato crer na mediania de uma assembleia em que a pluralidade de visões sobre o mundo esteja plasmada do que em um componente aristocrático, por mais virtuosos que sejam seus quadros. Por tal razão, o delineamento do texto constitucional a ser realizado pelo direito ordinário é função precípua do Parlamento. Trata-se de escandalosa usurpação da função constitucional quando o Poder Judiciário ou o Poder executivo pretendem enxertar carne à alma do texto constitucional. Para o Executivo, a própria Constituição previu a hipótese de sustação dos atos que usurpassem prerrogativa constitucional do Congresso Nacional. Quanto ao Poder Judiciário, o silêncio constitucional a respeito do tema, alinhado a um ativismo judicial que, como já previa há décadas o eminente Miguel Reale, permite o que chamava de totalitarismo jurídico. Observamos diuturnamente hipóteses em que o Poder Judiciário, para além de resguardar direitos, cria-os para além de suas funções constitucionais. Já não é sem tempo a necessidade de restaurar o equilíbrio constitucional: o

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Parlamento delineia o direito e o judiciário – óbvio que não de modo mecânico – faz os direitos assegurados pelo parlamento valerem na ordem do dia. Com relação à família, o desenho estipulado pela Constituição segue o melhor tanto quanto à técnica, quanto ao conteúdo. Assim o fez no art. 5º, XXVI, LXII e LXIII, art. 6º, IV, XII, art. 183, art. 191, art. 201, § 12, art. 203, I e V, art. 205, 220, § 3º, II, art. 221, IV e, de modo especial, o Capítulo VII (arts. 226 ss). O texto constitucional oferece os desenhos mais abstratos e fundamentais do instituto e como que reclama ao direito ordinário os contornos mais específicos. A corte não é o legislador. No Brasil, desde a Constituição de 1937 se menciona a família como derivada do casamento, prescrevendo-se a ela especial proteção. Assim, também a Constituição de 1988 tipifica quem faria jus à especial proteção, como se explicará na sequência, sem vedar que outras associações pudessem ser criadas, sob outro argumento, pelo Parlamento, com fundamento não no art. 226, mas no conjunto de dispositivos das garantias fundamentais. A Constituição de 1988, por sinal, surge quando já havia parceria civil de pessoas do mesmo sexo na Inglaterra, e isso mesmo levou os constituintes a ratificarem, como se encontra nos anais da Constituinte, que a união estável apta a especial tutela seria “entre o homem e a mulher”, com artigos “o” e “a” antecedendo cada palavra, de modo a clarificar qual seria o modelo habilitado para a especial proteção estatal. Isso de modo algum significa proibição a qualquer outro arranjo social que os cidadãos desejassem estabelecer entre si, e não contrariasse a lei. Simplesmente indicavam as situações de especial atenção do Estado com base no art. 226, que é restritivo, propositadamente, por duas expressões: base da sociedade e especial proteção. Mesmo que o casamento de pessoas do mesmo sexo possa ser uma ideia a ser considerada, essa decisão não compete ao judiciário. Sob a Constituição, juízes têm o poder para dizer o que é a lei, e não como deveria ser. A Constituição de 1988, em seu art. 226, fala em família, “base da sociedade”, como credora de uma proteção qualificada de “especial”. Afinal, que configuração de família se identificaria com a base da sociedade e, logo, credora dessa especial atenção do Estado? Seria aquela que cada pessoa tem como sendo sua família, independentemente de qualquer critério

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objetivo, ou haveria características necessárias para reconhecimento jurídico de um agrupamento como tal?

2-

Honestidade intelectual e respeito às opiniões divergentes.

Em nosso país, infelizmente, nota-se muitas vezes o uso abusivo e pejorativo de palavras depreciativas com o intuito de diminuir as pessoas que legitimamente entendem que o casamento é um instituto para pessoas de sexo diferente. Os que agem assim, na exata medida em que dizem defender a dignidade humana, solapam a dignidade de seu adversário intelectual, com modos que denunciam falta de respeito e de honestidade intelectual. Tive a oportunidade de rever os debates entre colegas da Comissão em 2014. Assustou-me notar que a postura reducionista vinha de modo sistemático de um lado do debate, que usava de estratégias apelativas, com o intuito de gerar antipatia ao seu adversário político. Tais estratagemas desviam, parece-me, da postura ética e da urbanidade adequada a representantes da população que devem parlamentar colegiadamente na confecção de leis. Para trabalharmos efetivamente sobre razão pública, é importante identificar e banir deste ambiente algumas falsas dicotomias, que efetivamente desviam do saudável debate de ideias. Listei quatro delas, sobre as quais de imediato me pronuncio: (1) Quem não advoga pelo casamento de pessoas do mesmo sexo é homofóbico; (2) Quem defende a família “tradicional” é fundamentalista; (3) O Estatuto da Família quer excluir várias modalidades familiares; (4) Não se pode aprovar um Estatuto que não contemple todos os modelos de vida da atualidade.

2.1 “Quem não advoga pelo casamento de pessoas do mesmo sexo é homofóbico”.

Tem sido constante o uso reiterado da expressão “homofóbico” para quem pensa em desacordo com o grupo LGBT e simpatizantes. Ora, a homofobia tem a ver com a aversão à pessoa do homossexual, que seria destratada em razão de sua orientação. Dizer que toda posição que não encampe os interesses LGBT seria uma postura homofóbica é um artifício desonesto, porque respeitar a uma pessoa não se confunde com acatar suas práticas ou trabalhar para que seus interesses sejam equiparados

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a direitos. Se, em consciência, e conforme a razão pública, não me parece que seja caso de defender uma dada causa, tenho a liberdade de fazê-lo. Por exemplo, devo respeitar qualquer pessoa que goste de usar armas. Nem por isso, serei obrigado a me engajar em campanhas para liberação do uso de armas, e, caso me oponha a essa prática e à liberação de armas, nem por isso estarei agindo contra a pessoa que gosta e usa armas. Posso desaprovar a liberação das armas por entender, em consciência, que é mais seguro para o País, e para o bem comum. Posso assim defender meu ponto de vista. E devo ser respeitado enquanto cidadão e ter meus argumentos ouvidos. Assim, defender e respeitar a pessoa que tem orientação sexual diversa da minha é um dever. Não há, todavia, dever de acatar interesses ou de engajamento na promoção da ideologia homossexual. Não é correto taxar de homofóbico quem não se alia a essa bandeira. Simplesmente exerce sua liberdade e seu direito. O homofóbico atua contra a pessoa homossexual. Mesmo na decisão do Supremo Tribunal Federal, em 2011, o relator, ministro Ayres Britto, criou o contexto bifurcado: quem não lhe acompanhasse, segundo ele, em favor da promoção da união de pessoas do mesmo sexo ao status do artigo 226, seria preconceituoso. Em contraste, o ministro da Suprema Corte dos Estados Unidos, Anthony Kennedy, relator do voto vencedor no caso Obergefell v. Hodges, ressalvou a honestidade, a liberdade de pensamento e de expressão de quem, em consciência, entende que o casamento deve ser mantido entre pessoas de sexo diferente. Além disso, nem todos os homossexuais advogam pelo casamento de pessoas do mesmo sexo, senão se manifestam contrário a tal, alegando razões de natureza pública. Nesse sentido, vale citar o fundador, na França, do movimento “Plus gay sem casamento”, Xavier Bongibault, de 21 anos, homossexual, assim como Jean-Pier Delaume-Myard, autor de literatura infantil, que escreveu o livro Homosexuel contre le mariage pour tous (Homossexual contra o casamento para todos), ou ainda reportagem da BBC que mostra diversos outros homossexuais também contrários ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, nos EUA, na Austrália e no Brasil. Não cabe taxar tais pessoas de homofóbicas.

2.2

“Quem defende a família ‘tradicional’ é fundamentalista”.

Outra falsa afirmação: “quem defende a família ‘tradicional’ é fundamentalista”. Aqui se manifesta dupla falta de respeito e falsificação da verdade. É errado defender a família ‘tradicional’? Ou, por outras palavras, será que família ‘tradicional’ merece ser atacada? Por quê? Segundo ponto: o fundamentalismo religioso traduz uma postura de violência com o fim

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de impor um credo a alguém. Ora, quem acusa outrem de “fundamentalista religioso” deve provar que se trata de uma pessoa violenta e que está constrangendo outra a aderir a seu ponto de vista religioso. Assim, é desonesto equiparar o religioso, ou um simples cidadão cuja postura religiosa é conhecida, e que traz argumentos oportunos ao debate, em moldes de razão pública, a um fundamentalista. Também é desonestidade atribuir a seus argumentos o rótulo de “argumentos religiosos”, se sua base argumentativa, em si mesma, é de razão pública. Ainda que o fundamento íntimo de sua ação esteja inspirado em uma dada religião – e a Constituição garante liberdade de credo e de pensamento – isso não autoriza ninguém a desmerecer sua pessoa, e seus argumentos, em sede parlamentar, em razão dessa motivação. Desse modo, não é correto, para quem se arvora em defensor da minoria, usar de artifício desse jaez – falsa atribuição de fundamentalismo religioso – para tentar abafar a voz de quem se lhe opõe, no legítimo debate político.

2.3

“O Estatuto da Família quer excluir várias modalidades familiares”.

O Estatuto da Família se alicerça na Constituição Federal e, como tal, está cingido pelo texto da Norma Fundamental. Trata-se de competência do Congresso Nacional regulamentar, para maior eficácia, a especial proteção constitucionalmente garantida à família, base da sociedade. A maior parte das modalidades de convivência humana passa pelo casamento, pela união estável ou pela filiação, que são a base da sociedade. Assim sendo, dizer que o Estatuto pretende excluir o que seja, é uma falácia. O Estatuto vem para colocar a família, base da sociedade, credora de especial proteção, no plano das políticas públicas de modo sistemático e organizado, como até então não se fizera. Nada impede que os cidadãos, mediante seus representantes políticos, advoguem pela inclusão de novos benefícios a outras categorias de relacionamento, mediante argumentos que possam harmonizar-se à razão pública. Portanto, o Estatuto, uma vez que não proíbe nada ao Congresso, de modo algum pode ser alcunhado de impeditivo para o que seja.

2.4 “Não se pode aprovar um Estatuto que não contemple todos os modelos de vida da atualidade”.

Os projetos de lei que surgem nas casas legislativas têm objeto e finalidades indicadas. Novamente, a finalidade do Estatuto é trazer

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para o âmbito infraconstitucional a família base, segundo descrita na Constituição Federal. Ele pretende partir de um consenso definido pela própria Constituição Federal para ir adiante. Ampliar o rol de pretensões é um modo de prejudicar o atingimento da finalidade principal do Estatuto. Assim, o projeto optou por trazer o que já dizia a Constituição. As razões seguintes esclarecem melhor o porquê dessa opção. Diferente seria o projeto de uma emenda Constitucional. Fica em aberto para quem deseje fazê-lo.

3A “base da sociedade” e a “especial proteção”: razões da Constituição, razões do Estatuto da Família.

Há diversos estilos de viver em nossa sociedade, democrática e tolerante. Mas, em meio a tal variedade, há alguns arranjos especialmente importantes porque, a partir deles, se cria e se recria, de modo natural, a comunidade humana. Foi com interesse em proteger de modo especial essa matriz geracional da sociedade que se estabeleceu o art. 226, denominando-a “base da sociedade”. Nem toda associação humana é base da sociedade e nem toda relação fará jus à especial proteção, ainda que toda comunidade, se não contrária ao bem comum ou à lei, deva ser respeitada e faça jus à tutela geral do Estado. Como diz o autor do projeto sob exame, a família é o primeiro agrupamento. Ao mesmo tempo, oportuno é dizer que a Constituição do Brasil configura como tal, para efeitos de especial proteção do Estado, aquela entidade que se constitui em base da sociedade. Merece atenção do Parlamento, e de toda a população, duas expressões recolhidas no caput do art. 226 da Constituição: “base da sociedade” e “especial proteção”. São termos-chave, condicionantes da hermenêutica constitucional. Por isso, também se sugere sua incorporação ao art. 2º do PL. Acerca da expressão “base da sociedade”, deve-se notar que traduz a ideia de condição de existência e subsistência. Ou seja, o constituinte, ao alocar a família no Título VIII, denominado, “Da Ordem Social”, teve em mente a família enquanto organização essencial para a sustentabilidade da própria sociedade civil. E apontou, de modo explícito e implícito, as notas necessárias dessa essencialidade. Não deixou a cargo dos cidadãos definirem os modelos de convivência a serem tidos como base, de modo subjetivo, pois a base neste caso se refere à sociedade como tal, e não ao indivíduo em si mesmo considerado, de modo isolado e particular. Nesse sentido, é necessário notar que se preserva, sempre, a liberdade de cada pessoa de organizar sua própria vida e relações como bem pretender, enquanto não afronte a lei. Ao mesmo tempo em que se reconhece em

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algumas dessas organizações traços reveladores de sua condição de matriz geracional da vida social. Portanto, a expressão base da sociedade opera o efeito de tipificação constitucional para a entidade que merecerá peculiar cuidado. Por outras palavras, a especial proteção deverá ser dada à situação constitutiva e necessária para a perpetuação da sociedade civil. Reconhece-se uma discriminação positiva na Constituição, legítima no Estado Democrático de Direito. Para os demais agrupamentos permanece a proteção geral ou alguma outra que se queira dar, por outra motivação diferente daquela. A Constituição, assim, harmonizou-se ao que se apresentava mais adequado. Foi reflexo da democracia em sua dimensão espacial e temporal. Na dimensão espacial, a Assembleia Constituinte trouxe representantes eleitos pela maioria dos cidadãos para conformarem o projeto do novo Estado-nação, naquele momento histórico, cientes de que balizariam a vida para o futuro. Trabalharam na identificação das entidades que traziam as notas necessárias de sustentabilidade da vida em sociedade. Também souberam respeitar a democracia em sua dimensão temporal: resguardaram percepções da Humanidade amadurecidas ao longo de séculos, sem se renderem a modismos que turbam a percepção do que é perdurável. Decidiram dar posicionamento constitucional às situações em conexão profunda com a natureza humana em sua condição social, ao tratar da família, base da sociedade, assim como em sua condição de individualidade, ao trazerem os direitos fundamentais de cada pessoa. Trata-se de uma tradição constitucional no Brasil dispensar especial proteção à família que se reconhece como substantiva e necessária. O art. 144 da Constituição de 1934 atribuíra ao Estado o dever de cuidar de modo especial da família: “A família, constituída pelo casamento indissolúvel, está sob a proteção especial do Estado”. A Constituição de 1937, por sua vez, afirmava que “a família, constituída pelo casamento indissolúvel, está sob a proteção especial do Estado”. Também destacava que “Às famílias numerosas serão atribuídas compensações na proporção dos seus encargos”. Entendia-se como família um modelo condizente com o que se reputava essencial para a preservação da sociedade, objetivamente. Portanto, a família a receber especial proteção decorreria do casamento, segundo as Constituições de 1934, 1937, 1946 (art. 163) e 1967 (art. 167). Em 1988, como novidade, reconheceram-se como aptas à proteção qualificada outras duas situações, que traziam elementos fragmentados da modalidade exemplar, o casamento, ainda reconhecido como a referência máxima. Nesse momento se atribuiu especial proteção à união estável entre o homem e a mulher, bem como à comunidade formada por um dos pais e seus filhos. Ao mesmo tempo em que determinava que a lei deveria facilitar a conversão da união estável – entre o homem e a mulher – em casamento.

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A família protegida, portanto, era aquela considerada base da sociedade, desde 1937. É sinal de maturidade reconhecer o valor dos conceitos forjados por aqueles que nos antecederam na História. Lapidaram, mediante reflexão, estudo e trabalho, institutos jurídicos vinculados à preservação do essencial para a vida em sociedade. São, desse modo, conquistas sociais que temos o dever de sustentar e transmitir para as gerações vindouras. Merecem perdurar em razão de descreverem o substancial e necessário. Desse modo, o texto constitucional manifesta sabedoria, tendo-se alinhado a percepções comuns a todos os povos, avançadas durante milênios, em toda a geografia do planeta. Nesse contexto, nas diversas civilizações humanas que a História e a Antropologia registram, comprova-se o traço comum da relação entre o homem e a mulher como o lastro substancial da família. Apesar da multiplicação dos estilos de convivência humana nos tempos atuais, e da tolerância com tais, a relação homem-mulher, sob as mais variadas incidências e perspectivas culturais, ainda é o principal fundamento de sustentabilidade social. A unidade entre homem e mulher traduz a máxima diversidade humana no mesmo projeto. Também biologicamente impera a necessidade de gametas masculino e feminino para a geração de novo ser humano. Essa reunião, como regra, opera-se na relação entre tais, sendo a principal fonte de reprodução das sociedades. Desse modo, há necessidade de participação do homem e da mulher na geração e perpetuação da condição humana. Trata-se de condição sine qua non da procriação. Ao mesmo tempo, a fragilidade e dependência da pessoa recém-nascida torna imperiosa a presença de quem lhe aporte o necessário para sobreviver e se desenvolver, até que possa cuidar de si. Assim, como para existir se requisita material genético de um homem e de uma mulher, para que o humano criado possa vingar, bem como desenvolver-se, necessitará de quem lhe assista. Como regra essa atribuição cabe aos pais, preferencialmente encarregados dessa tarefa, pela natureza da vida e pela sociedade. Desse modo, a ordem jurídica lhes carreia o poder familiar. Na ausência de um deles, o referido poder recairá sobre o outro. A designação de pai e mãe diz com essa necessidade humana de ter papéis complementares na função educativa realizada pelo homem e a mulher. Afinal, essa mesma pessoa deverá, durante sua vida, relacionar-se com homens e mulheres e, sempre, em sua gênese estará a participação de um homem e uma mulher. Na ausência de um ou outro dos pais, o direito consolida o poder familiar no remanescente. Tal assistência é essencial para seu desenvolvimento e, logo, para o bem comum. Desse modo, a Constituição de 1988 estendeu a especial proteção à comunidade formada por um dos pais e seus filhos. Por isso se protege, sabiamente, a família monoparental, desde 1988. Como decorrência disso, o Estatuto da Criança e do Adolescente permitiu também a adoção unipessoal,

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desde 1990. Pode-se assim configurar uma família monoparental mediante adoção. O Estado conferirá a tal comunidade a especial proteção, reconhecendo-a, portanto, oficialmente, como entidade familiar. Trata-se de atribuição da proteção especial ao mínimo necessário. Inexoravelmente, a família monoparental também está vinculada ao fenômeno da procriação, que somente com a criação amadurece como fato de sustentação da base social. Essa vinculação é de fácil reconhecimento por quem não esteja de olhos vendados ideologicamente. Vale notar que a expressão “especial proteção”, por si mesma, é restritiva. A palavra “especial” não admite extensão a ponto de servir a todas as situações. “Especial” se opõe a “comum” ou “geral”. Por isso mesmo, aplicar tal proteção a somente três categorias de entidade não significa, de modo algum, excluir, injustamente, outras quaisquer, se a “especial proteção” tem fundamento próprio em atributo da entidade destinatária. Opera-se, portanto, a incidência sobre aquela entidade que faz jus ao tratamento particularizado. No caso da Constituição Federal de 1988, reforce-se: o critério para a tutela diferenciada foi o reconhecimento dos traços de essencialidade da instituição, naturalmente habilitada para a procriação e a criação. Fora de tais contextos, para situações de livre união de cidadãos que não se configuram como base da sociedade, o Estado e a lei disporão de outros meios e recursos para assisti-los. Por exemplo, a criança e o adolescente sem pai ou mãe serão atendidos pelos institutos da guarda e tutela, que devem igualmente ser bem aplicados no melhor interesse da criança, preferencialmente exercitado na família extensa ou ampliada. Mas a fundamentação não é mais o art. 226, senão o 227 da Constituição Federal. A família extensa ou ampliada, na verdade, é derivação e sombra da família nuclear. O Constituinte de 1988 definiu na Norma Fundamental o dever de proteção especial às situações essencialmente necessárias para a constituição e preservação da sociedade, uma vez relacionadas à procriação e à criação. Ao redor dessas realidades se renova a sociedade humana, sem qualquer subterfúgio. São situações de autopoiese da sociedade civil, estabelecidas mediante enlace voluntário entre o homem e a mulher, expressos no casamento ou união estável, ou derivados da relação de paternidade e filiação, mesmo subsistindo apenas um pai ou uma mãe. Nesse sentido também se manifestava o Relator de 2014, na preparação de seu voto, quando recordava a intrínseca conexão entre os artigos 226 e 227 da Constituição Federal, aquele a tratar da família e este da prioridade absoluta da criança, do adolescente e do jovem, no atendimento de

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seus direitos. A proteção especial vinculada à entidade familiar monoparental alinhava-se à teleologia do art. 227: atender a prioridade absoluta dos direitos da criança e do adolescente, garantindo sua assistência junto a um dos pais. Portanto, o ideal seria que houvesse pai e mãe. Assim, o reconhecimento da entidade familiar monoparental surge como amparo, e não como estímulo ao que se denominou “produção independente”. Assim também se compreende porque a adoção prefere o ambiente constituído mediante casamento entre homem e mulher, de modo a ofertar ao adotante a representatividade do máximo de diversidade humana no lar. Depois, a união estável entre o homem e a mulher e, por fim, a adoção unipessoal, no caso em que não há quadro melhor a ofertar em matéria de adoção. Isso corresponde ao melhor interesse da criança, ela mesma expressão da composição de um homem e uma mulher. Pelos argumentos acima alinhavados, nota-se que o fulcro da proteção especial não é o afeto individual, tampouco relações sexuais, ou qualquer modelo de relacionamento querido e “desejado” pelas pessoas na diversidade das possibilidades. Antes se trata de conferir especial auxílio à situação que se identifica como básica na sociedade, revelando-se objetivamente necessária para a geração e criação do gênero humano em sociedade. Voltemos ao Relator de 2014. Dizia ele que: O Estado, desde o início de cada união de homem com mulher, confere proteção especial à família, porque, dada sua presunção de sustentação do relevante papel social que a faz base da sociedade, é desejável que seus integrantes tenham a tranquilidade das garantias especiais advindas do direito de família aos nubentes desde logo, seja pelas obrigações recíprocas impostas pela lei, pelos subsídios estatais, como a pensão, seja pelo auxílio estatal direto a seus futuros descendentes. Explicado o porquê da especial proteção, em total conexão com o dever do Estado de cuidar da relaçãobase da própria subsistência social, abre-se a reflexão para tratar das motivações de ampliação dessa base, ou simplesmente da concessão de benefícios, antes vinculados a ela, para outras relações que com ela não se confundem. O Deputado Ronaldo Fonseca recordava, assim, que o constituinte não elegeu certas categorias de relação para conferir especial proteção baseado no mero interesse econômico dos membros respectivos. O fato motivador era a relevância específica das categorias indicadas para a manutenção da própria sociedade, como fontes genéticas, naturais, da matriz social. Isso, parece-me, não impede que outras categorias de relação possam

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ser contempladas com alguns benefícios prescritos para a família, base da sociedade, apesar de com ela não se identificarem plenamente. Mas esse tipo de situação também não se justificaria em nome do mero afeto, do qual tratarei mais à frente. Em verdade, não justifica ao Estado subsidiar início de nova relação de dependência econômica entre adultos; se dela não se prever exercício do relevante papel social da família em gerar e criar filhos. Só deve haver ESPECIAL proteção para aqueles que tiverem atributos diferenciados em prol da continuidade sustentável da própria sociedade. O que não impede a associação de pessoas para o convívio com base no mero afeto. Não faz sentido ao Estado proteger qualquer relação de mero afeto, pois dela não se presume reprodução conjunta e o cumprimento do papel social que faz da família ser base da sociedade. Não há atributos intrínsecos às relações de mero afeto que as façam ser merecedoras de especial proteção do Estado como tal (Relatório 2014, p. 10). Adiante também se falará da possibilidade de tutela de categorias de relacionamento que não se identificam com a base da sociedade, mas poderiam ser protegidas melhormente pela ordem jurídica, em atenção à solidariedade especial entre conviventes que são parceiros vitais. Hoje é comum que os partidários do esvaziamento total das notas características da família, base da sociedade, tentem vencer o debate buscando, a todo custo, associar posição de seus oponentes a uma visão exclusivamente religiosa, e logo, particular, da realidade, como se lhes faltasse respaldo na natureza das coisas. Com tal subterfúgio, pretendem contaminar argumentos absolutamente racionais e, logo, de extensão universal, mediante a afirmação, não comprovada, de que seriam redutíveis a conjecturas religiosas, particulares e, logo, destituídas de objetividade. Nesse contexto, e sem mostrarem que o argumento seja efetivamente de cunho religioso, arvoram-se então como defensores do “Estado Laico” – que não interfere nas religiões, mas respeita as manifestações do povo e de cada cidadão –, quando na verdade o que pretendem é um “Estado Laicista” – perseguidor da religião e daqueles que as professam. Falseiam, portanto, a noção de Estado Laico, uma genuína conquista das religiões, em prol da liberdade religiosa. Falsificam porque querem reduzir o argumento racional à condição de mera opinião religiosa. Além de falso o argumento, tal atitude demonstra, por parte daqueles que assim se portam, uma postura

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antidemocrática, eivada de intolerância religiosa para com cidadãos que professam uma dada fé, sustentados pelo direito fundamental de liberdade de crença. Fazem de tudo para que os cidadãos que professem alguma fé sejam tratados como párias políticos, e sejam segregados da vida pública. Daí os adjetivos infundados e preconceituosos de “fundamentalismo”, ou “dogmatismo”, onde não há tal comportamento, de modo a provocar sentimentos de aversão que possam embaçar a percepção das verdades aptas à razão. Na verdade, o que lhes incomoda é o fato de que, eventualmente, para além da dimensão racional, haja quem tenha reforço de suas posições, pessoais e legítimas, pela congruência da verdade racional com a dimensão racional das religiões. Ora, acontece que a razão humana é capaz de observar a realidade e dela extrair notas objetivas, permanentes, de seu adequado funcionamento, independentemente da religião. Com essa perspectiva funcionam as ciências, nas diversas modalidades. Por obséquio, a própria laicidade do Estado foi uma conquista realizada, sobretudo, pelas próprias instituições cristãs, como reação em face da tentativa de autoridades ou poderes públicos de impor-se às autoridades religiosas.

4A afetividade no Direito de Família, a objetividade do artigo 226 e a solidariedade familiar.

Convém notar que, a despeito de a afetividade compor, com frequência, a vida de relação, especialmente nas situações familiares, em razão de sua instabilidade e internalidade, o Direito não poderia, sobre tal, apoiar os deveres jurídicos mais importantes da vida, e mais perduráveis, como aqueles derivados das relações familiares. Ao mesmo tempo, desde uma perspectiva filosófica, o amor, enquanto relação de solidariedade, também não se identifica com o afeto. Este permanece na dimensão da sensibilidade passiva, realizando-se na sensação de um, enquanto aquele se vincula à dimensão da voluntariedade ativa, exaurindo-se no serviço ao outro, em uma conduta, antes que em uma sensação. Recorde-se que “conduta” vem de “conduzir-se”, ato deliberado. De todo modo, não cabe ao Direito impor ou administrar sentimentos, mas sim regular condutas da vida em sociedade, estabelecendo os mínimos necessários à vida social, compaginando a liberdade individual com a responsabilidade, sendo que ambas as realidades se concretizam em sociedade.

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Ao Direito interessam, desse modo, as relações de alteridade em sua dimensão de exterioridade. Neste sentido, o afeto, em si mesmo, não é considerado elemento jurídico. Para corroborar esse fato, vale lembrar que no casamento civil a lei não exige verificação do afeto entre os nubentes, senão que leva em consideração a declaração de vontade negocial das partes, após o cumprimento de outros requisitos objetivos que permitam a habilitação; o mesmo com relação à união estável: os fatos objetivos que servirão a comprovar a relação, caso esteja ela em juízo, não são declarações de afeto, mas conformações ao “estado de casado”; deveres entre pais e filhos também não são condicionados pelo afeto; nos alimentos prestados entre cônjuges e companheiros, ou ex-cônjuges e ex-companheiros, idem. Até mesmo no dever de cuidar dos filhos, cuja omissão tem levado alguns a pleitearem “indenização por abandono afetivo”, o que a lei exige, e o juiz poderá determinar seja reparado, decorre da falta de uma conduta objetiva, externa, dos pais, antes que de uma ausência de sentimento. A esse respeito, dizia a Ministra Fátima Nancy Andrighi, do Superior Tribunal de Justiça, que se pode impor o dever de cuidado – conduta –, mas não se pode imperar sobre o amor – liberalidade –, ou o afeto – passividade. Metaforicamente, podemos recordar que também o pensamento, enquanto operação imanente do indivíduo, não tem avaliação jurídica, porquanto permanece no interior da pessoa. Mas, quando ganha externalidade, adentra no âmbito da liberdade de expressão que, por sua vez, pode ser medida e deve respeitar certos limites. Isso se dá somente quando se converte em comportamento e se exterioriza como ação concreta sobre as pessoas. Portanto, os deveres jurídicos familiares nascem antes da imposição de condutas de solidariedade decorrente das relações estruturais da sociedade, ao redor da criação e procriação humanas, expressando-se especialmente nos vínculos entre o homem e a mulher, com o fim de constituição de família, e nos vínculos entre pais e filhos. A família, desde a perspectiva do Direito, desse modo, tem fundamento objetivo. Os deveres de conduta jusfamiliares decorrem de situações estabelecidas voluntariamente entre homem e mulher que se unem, desimpedidos legalmente para tanto, e de situações de paternidade, factuais, estabelecidas de modo jurídico, natural ou mediante adoção. São deveres estáveis e permanentes, aptos a conferir segurança aos seus membros. O afeto, enquanto subjetivo e individual, nesse contexto, não poderia ser elemento apto para sustentar deveres jurídicos. Ele, afeto, pode estar presente, ou não, na gênese das relações voluntárias ou da procriação. Sua ausência, não obstante, não leva ao desaparecimento de deveres intrínsecos aos vínculos oriundos da relação familiar estabelecida na relação de casamento ou união estável entre homem e mulher, ou na relação de filiação.

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Também em face do divórcio, nas situações em que não mais existe qualquer afeto, o vínculo de solidariedade jurídica permanece. Subsiste a imposição legal do dever de assistência para toda a vida, cumpridos alguns requisitos, dentre os quais os de necessidade de um e capacidade de auxílio do outro. O mesmo com relação aos filhos: não desaparece o dever de prestar cuidado em razão da inexistência de afeto entre pais e filhos. O que fundamenta juridicamente o dever de assistência entre pais e filhos é a solidariedade jurídica e não a afetividade. Tanto pela Lógica, quanto pela Antropologia e pela Teoria Geral do Direito, o afeto não é o elemento adequado e necessário para atribuição de deveres jurídicos em matéria de família. De rigor, o afeto, enquanto elemento interno a cada pessoa, não é requisitado pelo Direito para a constituição jurídica do casamento, da união estável e da filiação. O afeto também não é a melhor expressão da liberdade plena, no sentido de não ser um produto da deliberação humana. A pessoa que tem afeto, antes está numa posição passiva, afetada. O afeto é um sentimento. Por vezes se alia a uma conduta nobre, conforme à dignidade humana. Por vezes se distancia da atitude correta, sendo avesso a compromissos familiares e deveres sociais. Sobre a afetividade não é possível haver um controle pleno. Ninguém impera sobre seus afetos, no sentido de dizer para si: goste de fulano, tenha afeto por cicrano, deseje ser bom. Mas conduz, ou pode conduzirse, mediante sua vontade, e deliberar agir de um modo correto, mesmo quando os afetos inclinariam para atitudes opostas. Por vezes, o afeto transmuda-se em desafeto, sua perspectiva negativa, que mantém a natureza igualmente de afeto, de sentimento, sendo causa de crimes, se não controlado pela capacidade de autodeterminação que conduza a pessoa ao bem. Inúmeras tragédias familiares decorrem exatamente da exaltação dos afetos, descompromissados dos deveres jurídicos. O desafeto pelo filho, o desafeto pela antiga esposa ou esposo, o desafeto pelo pai ou mãe, não são escusas, perante a sociedade e a ordem jurídica, para o descompromisso do dever de solidariedade, de respeito, de ajuda, de serviço. A lei também não chancela comportamentos decorrentes de afetos contrários aos bons costumes. Um par romântico constituído por uma mulher, mãe, e seu filho, como se dele fosse esposa, por exemplo, não receberá do Estado a conformação ao casamento ou união estável. O Direito não legitima a conduta conivente com esse afeto. Antes, proíbe-a, mediante impedimento matrimonial. Mesmo que ambos vivam, factualmente, como marido e mulher, nem por isso o Estado dará guarida a tal situação, e nem lhe

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conferirá a especial proteção prometida à família, base da sociedade, pois remanesce nela uma atributo desagregador da sociedade. Pedófilos nutrem afeto pela prática sexual com crianças; zoófilos pela atividade sexual com animais. Nem uma e nem outra situação são protegidas pela lei, apesar de decorrerem de movimentos da sensibilidade que satisfazem a alguém. Há também quem se relacione afetiva e sexualmente com duas, três ou mais pessoas, simultaneamente. Novamente, nem por isso tal relação ganhará legitimidade, como alguns pretendem. A bigamia, por sinal, é crime no Brasil. Ora, o Direito de Família está para favorecer condutas relevantes para a manutenção da sociedade civil, em harmonia com valores de coexistência. É oportuno recordar isso, nesse momento, uma vez que muitos se dizem defensores da família, travestindo de progresso o que representa o maior retrocesso da história contemporânea. Já dizia André Frossard, da Academia de Letras da França, que “a sociedade contemporânea, em sua inigualável covardia, prefere legalizar os seus erros a corrigi-los”. Portanto, deve-se notar a distorção de quem pretende entronizar o afeto como fundamento do Direito de Família. Jamais poderia sêlo, pois o afeto é uma realidade individual, interna, instável, tantas vezes avesso aos ideais e às virtudes sociais. O discurso da afetividade, qual canto de sereia, encanta. E tal qual, conduz ao naufrágio as sociedades que se deixam seduzir. A família, base da sociedade jamais estaria bem aprumada se estivesse lastreada em tal elemento. Nesse sentido também se desenvolvia a reflexão do Relator de 2014: O Estado nunca se motivou a proteger a família por simplesmente haver afeto, convívio ou mútua assistência entre os adultos que a compõe. O que se mostra relevante para o Estado é assegurar proteção à base da sociedade; que proporciona a geração, educação e profissionalização (independência) dos seus novos cidadãos. O Estado é tão centrado na reprodução e na criança como fator motivador da proteção do Estado à família, que, se de um lado protege e impinge obrigações desde logo à união do homem com a mulher, da qual se presume reprodução e o cumprimento do art. 227 da CF, de outro vem a considerar também família sujeita à mesma proteção especial aquela unidade monoparental na qual já há a figura da criança a ser protegida, segundo o § 4° do art. 226 da CF (Relatório 2014, p. 9-10). A família é tratada no título VIII da Constituição Federal de 1988, que trata “Da Ordem Social”. Sob tal denominação, o Constituinte descreve direitos e deveres de interesse social. Impera, portanto, a

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preocupação pelo bem comum, antes do interesse individual. Não é prioridade do constituinte, aqui, tratar dos direitos e garantias fundamentais, desde uma perspectiva do indivíduo, como o faz quando trata dos direitos e garantias individuais no art. 5º. No artigo 226, o protagonista é a sociedade civil, em especial seu núcleo essencial, a família. Não se pode desvirtuar esse fato para afirmar primazia dos afetos individuais, muitas vezes fonte de comportamentos contrários à família, base da sociedade.

5Consideração do efeito provisório do STF quando superpôs a atividade legislativa. A Resolução abusiva do CNJ.

É oportuno trazer o entendimento do nobre relator de 2014, deputado Ronaldo Fonseca, quando teceu comentários acerca da decisão do Supremo Tribunal Federal na avaliação da ADPF nº 132-RJ e ADI nº 4.277-DF que, mediante interpretação, rompeu com o significado das palavras do art. 1.723 do Código Civil, para estender norma referente à união estável entre o homem e a mulher, de modo a aplicá-la à união entre pessoas do mesmo sexo. O Código Civil trazia as mesmas palavras que a Constituição Federal. De rigor, a competência para alteração ou edição de nova lei, ou para modificação ou aditamento da Constituição Federal, pertenceria ao Congresso Nacional, que guarda representação majoritária similar à Assembleia Constituinte. Nesse sentido, e em respeito a tal procedimento, vale recordar que, no mesmo ano em que o STF desconsiderou o texto constitucional de 1988, em matéria de união estável, e desbordou de sua competência constitucional, alterando a um só passo norma promulgada pelo Congresso Nacional quando da aprovação do Código Civil de 2002, e o texto constitucional de 1988, o Tribunal Constitucional da França, em caso similar, não acolheu pretensão de duas mulheres que pleiteavam casar-se, quando o Código Civil francês exigia diferença de sexos. Os ministros da Corte Constitucional da França disseram não haver discriminação negativa, uma vez que as situações eram, efetivamente, desiguais e, logo, estava o legislador legitimado para tratar desigualmente as situações desiguais, como consequência da própria igualdade constitucional, argumento invocado pelas autoras da ação. Ao mesmo tempo, o Tribunal aconselhou que as mulheres recorressem ao Parlamento, para a modificação pretendida, pois se via incompetente, institucionalmente, para lhes acolher a pretensão. Dizia o Relator de 2014, em manifestação que merece ser aqui trazida:

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Com o advento do julgamento pelo Supremo Tribunal Federal da ADPF nº 132-RJ e pela ADI nº 4.277DF, com a aplicação da técnica da “interpretação conforme a Constituição” ao artigo 1.723 do Código Civil, foi introduzido na jurisprudência, ao meu ver equivocadamente, um novo conceito de família formada pelos pares homossexuais. A realidade que temos hoje, são união estável e casamento civil de pessoas do mesmo sexo, não abarcados pelo art. 226 da CF, mas sustentados por decisão do STF e CNJ, recebendo o status de família “homoafetiva”. O nosso voto não tem a pretensão de confrontar sistematicamente a decisão do STF, mas com todo respeito ao Excelso Tribunal, ficarei restrito ao mandamento constitucional do art. 226 e seus parágrafos, por entender que a decisão de criar a “família homoafetiva” não foi interpretativa, mas inovou, criando lei, data vênia, usurpando prerrogativa do Congresso Nacional. Por outro giro, não se pode modificar texto constitucional por lei ordinária, restringindo assim este relator, a ficar adstrito à literalidade do texto constitucional. Tenho consciência das transformações sociais e culturais que proporcionam a existência de diferentes arranjos familiares, já atendidos pela Constituição, o que não se pode dizer das tais “famílias homoafetivas”. Neste sentido, faz necessário diferenciar FAMÍLIA das RELAÇÕES DE MERO AFETO, convívio e mútua assistência; sejam essas últimas relações entre pessoas de mesmo sexo ou de sexos diferentes, havendo ou não prática sexual entre essas pessoas (Relatório 2014, p. 8). Isto posto, o colega enunciava, de modo preclaro, três incongruências que decorreriam da equiparação total da união de pessoas do mesmo sexo às categorias de relacionamento enunciadas no art. 226 da Constituição Federal de 1988: Estender o arcabouço jurídico protetivo e obrigacional da família a pares homossexuais gera: a) enriquecimento sem causa por não se presumir deles o ônus de ser base da sociedade; b) discriminação contra o indivíduo não integrante desse tipo de relação; pois haveria o gozo de direitos especiais não extensíveis a todos; não sendo justo obter subsídio Estatal pelo simples fato de conviver com outrem, ao contrário; c) injustiça, pois em nada estaria reconhecida a relevância e o

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reconhecimento do papel da união do homem e da mulher como sustentáculo da sociedade, razão da existência de especial proteção (Relatório, p. 10-11). Chama a atenção, na sequência, novamente, ao caráter restritivo da “especial proteção”, que se justificaria somente pelo especial interesse da sociedade civil na relação entre homem e mulher, como se dizia, matriz autopoiética da geração humana, objetivamente: Em verdade, há enorme inadequação e não há motivo para o Estado aplicar as obrigações recíprocas entre o homem e a mulher sobre integrantes de relações de mero afeto, fazendo-os suportar, por exemplo, ônus de alimentos uns para com os outros; contra o próprio interesse estatal de haver novos cidadãos adultos independentes e que justifica inicialmente a proteção especial do Estado sobre a família. Além disso, outros exemplos seriam: o dever de consumar e dar assistência sexual, bem como a fidelidade, obrigações adquiridas com o casamento. As relações de mero afeto não precisam e não devem ser tuteladas pelo direito de família, pois hoje tais relações são verdadeiramente livres e gozam de autotutela. Há no ordenamento jurídico vigente instrumentos válidos para que seus integrantes a formatem da maneira que desejarem. A verdade é a de que “O direito brasileiro oferta às pessoas do mesmo sexo, que vivam em comunhão de afeto e patrimônio, instrumentos jurídicos válidos e eficazes para regular, segundo seus interesses, os efeitos materiais dessa relação, seja pela via contratual ou, no campo sucessório, a via testamentária”, ... A modernidade no direito não está em vê-lo somente sob o ângulo sociológico, mas também normativo, axiológico e histórico” (Relatório 2014, p. 11). Novamente o deputado Ronaldo Fonseca retomava o acórdão do STF, prolatado no julgamento da ADPF 132/RJ e da ADI 4.277/DF, já citado, que criara a possibilidade de se reconhecer união estável entre pessoas de mesmo sexo para receberem benefícios no Estado do Rio de Janeiro. Recordava, então, que tal decisão acabou firmando jurisprudência, apesar de que a maior quantidade de decisões, até ali, fossem em sentido contrário. Recordava que em alguns dos votos, os ministros diziam que se manifestavam em razão da “omissão” do Poder Legislativo. Na verdade, demandas haviam sido apresentadas ao Legislativo que, até então, não havia chegado a um “consenso de maioria”, a justificar extensão do direito de família às relações de mero afeto. Copiava trecho do texto decisório, no qual se dizia

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que havia “entendimento da impossibilidade de ortodoxo enquadramento da união homoafetiva nas espécies de família constitucionalmente estabelecidas”. Mostrava, ainda, o entendimento de dois ministros sobre a questão, que subordinavam a matéria, em seu conjunto, “à conformação legislativa”. Decidiriam, segundo diziam, por dever de ofício, mas se subordinariam ao pronunciamento do Legislativo, que detém a competência sobre o devido tratamento da questão. Isso mostra que, de rigor, a decisão do STF não se deveria tomar como definitiva, até porque a nova conformação dada pelo STF dependeria, ainda, de manifestação específica do Parlamento mediante emenda constitucional. Ou seja, a decisão do STF, na compreensão de alguns de seus membros, naquele momento, não poderia ser tida como definitiva. Qual foi o escopo principal da decisão do STF naquele processo? A possibilidade de pagamento de benefícios governamentais a parceiros homossexuais que dividiam a vida e o lar. De rigor, não tocaram ou aprofundaram na análise da conformação e adequação daquele tipo de relação, quanto à adequação de ser tutelada pelo direito de família como um todo. “Se de um lado o STF estendeu benefícios (...), sob uma análise institucionalmente restrita, de outro, data venia, não abordou a inadequação de impingir-lhes as obrigações advindas do direito de família” (Relatório 2014, p. 12). Quanto à independência do Poder Legislativo em relação ao Judiciário, o Parlamento não teria porque se submeter ao parâmetro que o Poder Judiciário estabelecia naquele momento, como reconhecido expressamente por ministros que participaram do pleito, pois atuavam com limitações institucionais quanto ao espectro de sua análise. Efetivamente, naquele instante, o STF não se deteve nas razões históricas e fáticas da existência do direito tal qual se encontrava, senão que o estendera aos pares do mesmo sexo os benefícios que pleiteavam. Limitara-se, sim, a analisar o pleito evocando apenas e tão-somente a igualdade de alguns atributos. Não se detiveram a perscrutar as razões da existência do direito tal qual constava na Constituição. Por isso também cabe ao Parlamento chamar a si o que lhe compete, de modo a evitar que a super-atuação do Judiciário, termine por invadir o espaço da atividade política, escorando-se em um aparente argumento de igualdade, transformado em perigoso artifício, fazendo-se “trampolim para aquisição de direitos injustificáveis” (Relatório 2014, p. 13). Mediante ativismo judicial magistrados têm ultrapassado o que estaria sob sua competência, desbordando do espectro decisório. Diferentemente, o Poder Legislativo, quando propõe e aprova um Projeto de Lei, e concede um incentivo fiscal, subsídio, ou outro

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direito, aprecia sempre a justificação do que o acompanha. Nesse sentido, o nobre deputado, Relator de 2014, dizia que “Nesse sentido, não há direito que surja no âmbito legislativo dissociado de sua causa justificativa identificável no grupo que se deseja beneficiar ou proteger”. E arrematava que, “para se configurar a suposta igualdade no caso, o STF teve de identificar e afastar a diferença, qual seja: a reprodução” (Relatório 2014, p. 13). Foi dessa forma que o ministro relator do caso em apreço, no STF, simplesmente afastou aquele que seria exatamente o quesito responsável pela razão de ser da “especial proteção” prometida à família. Escorara-se no argumento da mais famosa advogada da causa homossexual, para quem estariam superadas a associação entre família e procriação. Ora, até o presente momento, a maior parte dos nascimentos se dá em lares onde o pai e mãe vivem sob união estável ou casamento. Portanto, carece de suporte fático a afirmação da então Des. Maria Berenice Dias, que tenta induzir ao pensamento de que, dada a faculdade de se ter, ou não, filhos, a reprodução teria desaparecido da conjuntura da vida a dois, como se mesmo a teleologia da Constituição e do Código Civil deixasse de ter nesse fato sua raiz fundamental. Evocava o relator, como fato a relativizar a decisão do STF, a falta de avaliação do impacto econômico e demais desdobramentos, algo pertinente em face de mudança de tal vulto. Isso é de competência do Legislativo. “O Poder Judiciário, ao contrário do Poder Legislativo, não tem a obrigação de considerar o impacto orçamentário e financeiro da demanda e demais reflexos e ônus para a sociedade, pois a ele é dado interpretar a Lei (e não inovar, como o fez)”. E, acima dos cálculos financeiros, competiria ainda aos legisladores avaliar os possíveis e prováveis efeitos desencadeados pela edição de uma norma de alto impacto social. Vale recordar, a esse passo, um fato de desdobramentos similares. Por exemplo, quando se pensa em matéria de biossegurança, o princípio da precaução impôs um cuidado especial na regulamentação dos alimentos transgênicos. Ainda que se mostrassem aparentemente mais vantajosos, segundo determinados critérios de rentabilidade e resistência a pragas, desconhecia-se a gama de efeitos colaterais que a alteração genética artificial de sementes poderia provocar à saúde humana. Assim, os alimentos orgânicos deveriam permanecer sendo produzidos e cuidados, sem qualquer contraindicação. Já os transgênicos deveriam ser tratados de modo diferenciado, mais restritivo. Assim, cabe ao Legislativo “considerar o custo da concessão de novos direitos e sua importância relativa frente à sociedade que se quer ter, dita por ela mesma na figura de seus representantes” (Relatório 2014, p. 14). Outra omissão do STF, naquela decisão, portanto, teria sido a discriminação em face de outras situações, que igualmente não são a base da sociedade, mas poderiam fazer jus a uma proteção diferenciada. Em razão de “limitações institucionais adstritas ao processo”, não estendeu esses

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direitos para as demais “relações de mero afeto”, mesmo não homossexuais, como a que se pode vislumbrar entre irmãos ou amigos de sexos diferentes que compartilham vida e lar como se fossem uma família. Claro que “apenas aqueles que demandam são eventualmente beneficiados, deixando-se os demais iguais fora da análise e dos seus efeitos” (Relatório 2014, p. 14). Neste sentido, pontuar-se-á adiante a possibilidade da criação da “parceria vital”, em razão da solidariedade entre duas pessoas que compartilham a vida em comum. Por outro lado, convém recordar que, a despeito de as relações de mero afeto e convívio existirem desde datas imemoriais, a sua vulgarização social não as transforma em ‘base da sociedade’, fato ainda reconhecido às relações entre homem e mulher, com sua respectiva potencialidade reprodutiva, mediante união sexual de ambos. Outro fato importante nesse momento é relembrar que uma pessoa pode denominar como sua “família”, subjetiva e livremente, qualquer relação de afeto e convívio. Assim como pode denominar como “mãe” ou “pai”, pessoas por quem nutre profundo afeto, talvez com mérito, ainda que seja seu pai ou mãe juridicamente. A definição objetiva da família, para efeitos jurídicos, como credora da proteção especial do Estado, portanto, depende da conformação das relações àquilo que o Estado reputa como sendo “base da sociedade”, antes que da atribuição individual afetiva. Ao mesmo tempo, recorde-se que o enfoque da especial proteção estatal se deve à associação da eventual procriação e criação – portanto, com reflexo na proteção à criança, prioridade absoluta na Constituição Federal –, antes de ser prescrição voltada a propiciar “satisfação cerimonial aos nubentes, premiando seu enlace e afeto, fazendo-os gozar de benefícios (...) além dos direitos e garantias fundamentais do indivíduo” (Relatório 2014, p. 15). Com todo respeito ao STF, ele usurpa funções quando invade searas que só poderiam ser bem debatidas mediante deliberação ampla. Isso exige o bom funcionamento da razão prática, que é o modo como pensamos os temas ligados à ação política, moral, e ao direito. Por definição, temas ligados ao agir humano. Esses temas só são bem apreciados mediante grande deliberação. Deve-se notar ainda algo paradoxal: age o Congresso Nacional também quando não age, em aparente equívoco lógico. Age quando diz: “nós achamos que não devamos mudar”. E esta inação deliberada, proposital, do Congresso Nacional, deve ser respeitada. E quando não o é, opera-se uma usurpação de outras funções constitucionais. Portanto, cabe ao Parlamento, enquanto órgão de representação majoritária, tratar de matérias como a reconsideração do que deva ser considerado base da sociedade após atenta observação e deliberação, bem como a ele também compete, pelas mesmas razões, o

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estabelecimento de especiais benefícios para categorias diferenciadas de convivência humana que não se identificam com a base da sociedade. Para que não houvesse dúvida quanto às razões que justificariam ao Estado proteger e estabelecer deveres à família, o § 3° do art. 226 da CF fez referência expressa ao homem e à mulher como integrantes da união estável, habilitando-a, então, como entidade apta para a especial proteção do Estado. O casamento guardaria ainda maiores benefícios que a união estável, a ponto de o constituinte determinar que fosse facilitada sua conversão em casamento. Lê-se no dispositivo: “Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”. Dentre os ministros do STF de 2011, houve quem entendesse que, apesar de a conceituação da união estável como entidade familiar, credora da especial proteção, grafar expressamente “o homem e a mulher”, não haveria impedimento para configurar-se como entidade familiar também a união de dois homens ou duas mulheres. Furtou-se o STF de avaliar se tal situação se identificaria como “base da sociedade”, o que lhe faria, efetivamente, credora da “especial proteção”. A simples situação de afeto intenso e de desejo de ser família, não seriam suficientes para, objetivamente, transformar a situação em supedâneo objetivo de sustentação da vida em sociedade. Lia-se em um dos votos dos ministros: “Não significa, a meu ver, contudo, que se não for um homem e uma mulher, a união não possa vir a ser também fonte de iguais direitos”. A discricionariedade dos ministros do STF tem como limite as possibilidade semânticas e as motivações de fundo do texto constitucional. Não se poderia, mediante interpretação, ultrapassar as balizas construídas de modo expresso no texto constitucional, e confirmadas nas atas da que trazem as discussões travadas na Assembleia Constituinte. Compete ao Congresso Nacional, em seu caráter de representação da população brasileira, alterar o texto da Constituição, mediante trabalhoso procedimento de emenda, propositadamente dificultoso, de modo a se garantir a efetiva articulação majoritária. Mesmo neste caso, deve ainda atuar sem contrariar as cláusulas pétreas. Fora do procedimento de emenda, todavia, na confecção de leis, o exercício da competência legislativa pelo Congresso deve estar cingido pelos limites da Constituição. Compete aos deputados identificarem e respeitarem as razões dos constituintes na definição das políticas públicas do Estado brasileiro. Também na conformação da especial proteção à família. Para ir além da moldura constitucional, seria necessário trabalhar sobre a própria Norma Fundamental. Nesse sentido, o Projeto de Lei sob exame, como tal – um projeto de lei, e não uma emenda – não tem o poder de propor categorias diferentes de relacionamento humano como credoras de especial

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proteção por serem equiparadas à base da sociedade. O erro do STF e do CNJ, naquelas decisões, de rigor, merecem retificação ao invés de ratificação do Congresso Nacional. As situações identificadas como base da sociedade, portanto, estão anotadas no rol constitucional. Sobre elas se constrói o Estatuto da Família. Situações que trazem como nota a natural potencialidade de criação e recriação, por si mesmas, da sociedade civil. Isso não impede que casais possam deliberar, segundo o livre planejamento familiar, não fazer uso das faculdades reprodutivas. Isso não altera a potencialidade natural. O mesmo quanto às situações de infertilidade, exceção. Como regra geral, homens e mulheres são férteis. O casamento do homem com a mulher, além disso, consuma, em si, a união livre dos sexos masculino e feminino, irreversivelmente marcados pela genética, a despeito de quaisquer ações voltadas a atenuar tal realidade, com fito de conformá-la à identidade expressada pela psique humana. Não é possível, e seria ilusório, negar o influxo da disposição cromossômica sexuada, de natureza biológica imutável, sobre a condição fisiológica do humano. Toda operação que pretende reverter o status físico, nesse sentido, para remodelar, apoia-se, inclusive, na inevitabilidade da condição genética, para impor à pessoa um tratamento de caráter hormonal. Trabalha-se, sempre, sobre a condição de um corpo com referências comportamentais masculinas ou femininas, para então manipulálas. O STF de 2011, além de tudo, parece ter-se rendido ao argumento de que haveria somente homofobia e preconceito como razões para o impedimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo. O mesmo quanto à resolução do Conselho Nacional de Justiça que, depois, ao arrepio de qualquer consideração da competência também do Congresso Nacional, por artifício técnico abusivo, usurpou o poder do Parlamento, excluiu a sociedade civil da discussão acerca do casamento entre pessoas do mesmo sexo, e autorizou que pessoas do mesmo sexo celebrem casamento. Em flagrante rompimento com a ordem procedimental constitucional, o CNJ praticou um golpe à democracia e à representação majoritária, introduzindo, à revelia da lei, o fim da exigência de sexos diferentes para o casamento. As atitudes dos dois órgãos, sob mesma presidência inclusive, desconsideraram a solidez de argumentos que justificavam a opção do Constituinte de 1988, representante majoritário, que não agira por preconceito, vetado na própria Constituição, mas segundo conceito de sustentabilidade e de diferenças objetivas de situações, como afirmou o Tribunal Constitucional da França em 2011. “O STF não se debruçou sobre o

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que faz da família ser a base da sociedade e informou que sua opinião seria a de que família é um “lugar de felicidade” que deve ser dado a todos. O STF não percebe que felicidade é sentimento subjetivo interno e que família é família ainda que sem afeto ou felicidade” (Relatório 2014, p. 18). Assim, ainda resta curioso como o CNJ, mediante uma resolução, em atitude similar ao STF, saltou o Parlamento para autorizar, à revelia de lei específica, que duas pessoas do mesmo sexo se casem. A Resolução nº 175/2013 traz como fundamento a seguinte exposição: “nos acórdãos prolatados em julgamento da ADPF 132/RJ e da ADI 4277/DF”, pelos quais o Supremo Tribunal Federal “reconheceu a inconstitucionalidade de distinção de tratamento legal às uniões estáveis constituídas por pessoas de mesmo sexo”, e no “julgamento do RESP 1.183.378/RS”, pelo qual o Superior Tribunal de Justiça “decidiu inexistir óbices legais à celebração de casamento entre pessoas de mesmo sexo”.

6A parceria vital: alternativa de lege ferenda para situações diferentes da “base da sociedade”.

Mas, em face do que fez o STF em 2011, e o CNJ na sequência, que retificação deve ser levada adiante pelo Congresso Nacional, ao chamar a si o que por direito lhe pertence, devolvendo-se à sociedade civil o poder que lhe compete? A partir do quadro instalado e, em uma autêntica e ampla perspectiva, o que fazer em face de situações que não se consubstanciam como “base”, fundamento ou condição de existência da sociedade civil, sem jus, portanto, à proteção especial do art. 226, mas que trazem alguma nota a demandar uma proteção diferenciada, para além da proteção geral que já é garantida a todo cidadão? Haveria algum impedimento a se conceber nova categoria de proteção diferenciada? Para casos que escapam à condição de essencialidade para a sociedade civil, vislumbra-se, na atual conjuntura, a possibilidade da formalização legal de uma “parceria vital”, apta a conferir benefícios à sociedade oriunda da reunião deliberada de cidadãos que compartilham residência e esforços na manutenção do lar comum, com intenção de perdurabilidade. A categoria, de lege ferenda, seria admissível desde que não afetasse direitos indisponíveis de terceiros. E poderia ser aprovada como iniciativa do Congresso Nacional na atual legislatura. Sob tal denominação – “parceria vital” – sem necessária conexão com a procriação ou a criação da família, base da sociedade, poderse-ia reconhecer o enlace de solidariedade entre duas pessoas, que entre si

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estabeleceriam vínculo de peculiar interdependência, ajustando a lei, entre tais, o caráter de dependência para efeitos previdenciários. Caberia ainda definir a possibilidade de que os parceiros pudessem optar de participar, também, da condição de herdeiro do outro, em posição similar àquela que caberia ao cônjuge ou companheiro, caso este não existisse, ou de herdeiro testamentário presumido, na hipótese de inexistência de tal instrumento, para receber 50% do patrimônio liberado para ser disposto em testamento. Isso se daria mediante alteração da legislação sucessória, para pleno acolhimento da categoria. Poderiam estar sob tal denominação as uniões de irmãos, amigos e outras quaisquer, independentemente da orientação sexual. Sob tal instituto se albergariam todas situações não subsumíveis às categorias do art. 226. Na dimensão sucessória, poderia operar efeitos quando não houvesse vínculo de conjugalidade, uma vez que o consorte ocuparia esta posição. A fundamentação da “parceria vital” seria, portanto, a especial solidariedade entre duas pessoas, desvinculadas de conjugalidade, e que se reunissem na manutenção do lar comum. Isso atenderia também reuniões de pessoas do mesmo sexo, independentemente da orientação sexual de tais, uma vez que a orientação sexual, por si mesma, não justificaria direitos especiais, sob risco de excluir aqueles que vivessem plena e efetiva interdependência, na simples condição de amigos ou irmãos, sem qualquer envolvimento sexual. Desta feita, a lei requisitaria atributos para conferência do status de parceria vital às situações subsumíveis. Seria limitada a uma parceria vital por indivíduo, exigindo-se sua efetiva comprovação à época da instituição, bem como se prescreveria o modo de seu reconhecimento junto aos órgãos competentes do registro civil, com o ônus e o bônus da nova situação. Ônus que se expressaria no eventual dever de prestar alimentos em caso de o parceiro necessitar, mesmo após a extinção do vínculo. Tal procedimento iria ao encontro da realização da sociedade livre, justa e solidária, objetivo da República Federativa do Brasil, segundo art. 1º, III. Enunciada essa sugestão, de lege ferenda, por conexa ao tema dessa Comissão, a ele não mais voltaremos neste momento.

7A família como agente nas políticas públicas: comentários finais ao conteúdo do Projeto.

Neste passo, urge lembrar como o tema da família é tratado na Declaração Universal dos Direitos Humanos, que foi adotada e proclamada pela Resolução nº 217 A (III) da Assembleia Geral das Nações

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Unidas em 10 de dezembro de 1948, e assinada pelo Brasil na mesma data. Lê-se: “Artigo XII - Ninguém será sujeito a interferências na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataques à sua honra e reputação. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques”. ....................................... “Artigo XVI - Os homens e mulheres de maior idade, sem qualquer restrição de raça, nacionalidade ou religião, têm o direito de contrair matrimônio e fundar uma família. Gozam de iguais direitos em relação ao casamento, sua duração e sua dissolução”. “2. O casamento não será válido senão com o livre e pleno consentimento dos nubentes”. “3. A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção da sociedade e do Estado”. ....................................... “Artigo XXV - 1. Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, o direito à segurança, em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle”. 2. A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozarão da mesma proteção social. A família, em seu desenvolvimento histórico, sofreu influências religiosas políticas, econômicas, que tiveram caracteres protetivos reprodutivos e socioculturais. Em sua evolução, passou de um tipo patriarcal, em que a figura do pai ou chefe de família era o senhor soberano, e hoje a responsabilidade pela chefia, mantença e demais encargos familiares incumbe a ambos os cônjuges. A estes direitos e deveres nosso atual Código Civil intitula “poder familiar”. Em nosso País, em que vige o Estado Democrático de Direito, valores foram erigidos a fundamentos da própria República: a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), a construção de uma sociedade livre justa e

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solidária (art. 3°, I), a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. No concernente à nossa Constituição Federal, diversas foram as alterações trazidas no campo da família. O Código Civil de 2002, embasado nesses novos aspectos constitucionais, regulamentou a função social da família, tendo em vista os novos valores culturais vigentes em nossa sociedade. Buscou o Código Civil proporcionar a igualdade absoluta entre os cônjuges, com a regulação do poder familiar (art. 1.630 usque 1.638), dos direitos dos filhos, havidos ou não da relação de casamento; protegeu as relações que derivam do estabelecimento da guarda dos menores; de sua educação, manutenção; do reconhecimento do direito aos alimentos recíprocos entre pais e filhos, com a responsabilidade extensiva a todos os descendentes (art. 1.696); a responsabilidade de mútua assistência, mesmo quando finda a sociedade conjugal. Indubitavelmente, a família que se expressa como base da sociedade tem importância fundamental no equilíbrio do Estado brasileiro. Consequentemente, este intervém nessas relações, visando a sua própria subsistência. Para San Tiago Dantas, “o que caracteriza o direito de família diferenciando-o dos demais ramos do direito é a predominância do elemento social sobre o técnico na formação da norma jurídica. O conteúdo social determina, ora mais, ora menos, o que a norma dispõe”1. Assim, o Parlamento deve estar atento à natureza própria da família, base da sociedade para cingir-se, em sua atividade legiferante, aos limites intrínsecos da célula fundamental de criação e recriação da vida em sociedade. Por isso, não falta razão à preocupação do autor do Projeto de Lei sob apreciação, ao pensar em mecanismos de defesa e valorização da família, base da sociedade, instituindo o “Estatuto da Família”, em consonância com a Constituição Federal de 1988. O conceito positivado em nossa Constituição de 1988 estabelece, em seu artigo 226, quais categorias de convivência devem receber especial proteção estatal, por identificadas com a base da sociedade, cabendo a outras formas de associação humana diferenciados modos protetivos. Cumpre dizer que o art. 226 foi construído sob a égide da criação e reprodução social. Assim, o Constituinte, para além do conceito de família a envolver um homem e uma mulher, referiu-se também à unidade 1

DANTAS, Francisco Clementino de San Tiago, Programa de Direito Civil. Ed. Rio.

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monoparental; o que nos leva a crer que o constituinte estaria mesmo preocupado com a relação pais e filhos como justificativa, inclusive, para a existência da proteção aos cônjuges. Por outro lado, os constituintes restringiram, deliberadamente, o conceito de união estável à união de um homem e uma mulher, impedindo a possibilidade de que esta união estável pudesse ocorrer entre pessoas de mesmo sexo, enquanto entidade familiar credora de especial proteção. Isso de modo algum impede que homens ou mulheres que desejem, possam viver como parceiros sexuais e afetivos. Apenas não se equivalem, enquanto base da sociedade, às relações entre homem e mulher, exatamente na medida em que estas últimas, como regra, trazem, naturalmente, o suficiente e necessário para a renovação das gerações. Acima de qualquer taxação de preconceito, paira a objetividade do reconhecimento das diferenças, reais, vinculadas à fecundidade. Como regra, nas uniões entre homens e mulheres estão presentes as fontes naturais da geração. Enquanto isso, não há condições para recriação natural da vida social somente a partir de pares do mesmo sexo. Deve-se ressaltar que “diferenciar” não se confunde com “discriminar” negativamente. Ademais, para se exigir respeito à diversidade e afastar a discriminação, exige-se, a priori, identificação de diferenças. Portanto, reconhecer a presença das fontes de criação humana no par homem-mulher é simplesmente descrever a realidade. O mesmo quando se diz que não há geração natural entre duas pessoas do mesmo sexo. Entendemos que a interpretação do Supremo Tribunal Federal do art. 226, § 3°, sobre o conceito de entidade familiar, incluindo a união entre pessoas do mesmo sexo, foi equivocada e contrariou os requisitos postos pelo constituinte. Se esse Poder Judicante se vê obrigado a julgar questões fundadas na alegação de igualdade, deve fazê-lo verificando-se a igualdade no mesmo contexto que o constituinte a colocou. Mudanças identificáveis na sociedade justificariam a equiparação – a igualdade – de tratamento somente na medida em que se aplicassem idênticas premissas justificadoras da existência oriundas da percepção de mesmos atributos e potencialidades nas relações de direito que se querem igualar, o que não se verifica. Observando a mens legis do Constituinte Originário (conforme pesquisa realizada pelo Centro de Documentação e de Informação – CEDI, desta casa), verificamos que a inclusão de homem e mulher como formadores de uma família, para proteção do Estado, teve como objetivo precípuo o desestímulo ao concubinato, ou seja, a relação entre homem e mulher desimpedidos para o casamento, conforme Emenda 33, aprovada pelo

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Relator, naquela ocasião, e que se transformou no atual § 3º, do art. 226, de nossa Constituição. E em segundo momento, o acréscimo dos artigos definidos masculino e feminino antecedendo as expressões “homem” (“o homem”) e “mulher” (“a mulher”), foi posto para limitar interpretações diversas. Restaria somente ao Parlamento o poder de inovar, nessa matéria, mediante procedimento de emenda constitucional, ou mediante a criação de nova categoria de relação, podendo denominar de parceria vital ou de união civil, que não se vinculasse à união estável, para não ferir a ordem constitucional democraticamente estabelecida. Por essa razão, concordo, no mérito, com a proposta do nobre Autor, mantendo a essência da redação do art. 2º da proposição, com duas alterações de precisão técnica. Primeiro, trazendo ao texto a nota de tipificação constitucional da categoria de relação que se protege de modo especial, a saber, a família “base da sociedade”. Segundo, compondo o texto do Estatuto com a terminologia de “comunidade entre pais e filhos”, em lugar da que consta na Constituição, que diz “pai ou mãe e seus descendentes”. Note-se, todavia, que, de rigor, como decorrência da relação de paternidade-filiação, seja na forma que se tenha dado, perante a lei todo filho efetivamente se torna descendente. Em suas diretrizes gerais, o projeto merece elogios. Políticas públicas voltadas para a família, como hoje já tramitam nos mais variados órgãos públicos competentes, têm de ser norteadas por princípios que levem em conta as particularidades de todos os protegidos. Em seu art. 3º, estabelece que é obrigação do Estado, da sociedade e do Poder Público assegurar à entidade familiar a efetivação de diversos direitos, entre os quais se inclui a saúde. Essa regra, na verdade, é a reiteração de mandamentos positivados tanto no art. 6º, como no art. 196, da Constituição Federal de 1988. No entanto, agora com ênfase do protagonismo da família, base da sociedade. Nessa perspectiva também devem agir os agentes de saúde, de modo a considerar a família de cada pessoa que atendem. Conforme esse último dispositivo, “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doenças e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. Nesse contexto, é preciso esclarecer que a CF/1988 reconheceu, de forma expressa, a saúde como um direito fundamental e universal, vedado qualquer tipo de discriminação no acesso aos serviços

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prestados. Com isso, alcançou-se grande avanço no Estado Democrático de Direito, pois, no contexto pós-constitucional, ocorreram diversas inovações legislativas e institucionais em favor do cidadão. De acordo com a CF/1988, o dever do Estado na proteção da saúde consiste na elaboração de políticas públicas para a redução dos riscos de doença e agravos à saúde dos indivíduos e da população e a organização de uma rede de serviços públicos de qualidade capaz de garantir acesso universal e igualitário aos serviços de saúde e de interesse da saúde. Ressalte-se, porém, que esse dever não exclui os dos indivíduos e da sociedade em geral. Para formular essas políticas públicas, o Estado deve atuar por meio de todos os seus Poderes. Assim, ao Executivo cabe o exercício do poder de polícia, a execução das políticas públicas e do orçamento, entre outras atividades. Ao judiciário compete julgar, quando demandado, os conflitos que envolvam o direito à saúde. Já ao Legislativo é dada a atribuição de aprovar leis que orientem e possibilitem a atuação dos demais poderes em defesa da saúde. Diante dessa breve explanação, percebe-se que o art. 3º do Projeto de Lei nº 6.583, de 2013, representa a expressão do trabalho do Poder Legislativo, que, por meio do estabelecimento de uma norma, reafirma a regra constitucional e dá instrumentos aos cidadãos para cobrança do cumprimento dessa garantia. O Projeto de Lei nº 6.583, de 2013, ainda traz dispositivo que reitera política pública de saúde já existente. Trata-se do art. 6º, que garante, entre outros direitos, o de atenção integral à saúde dos membros da família, por meio do Sistema Único de Saúde e do Programa Saúde da Família. Embora meritório, a princípio, opinamos que o artigo em análise merece pequeno reparo, pelas razões que seguem. O Programa Saúde da Família foi criado em 1993 e, gradativamente, os valores repassados e os mecanismos de remuneração foram reajustados, o que permitiu a sua expansão. Com isso, tornou-se a principal estratégia do Ministério da Saúde para reestruturação do modelo de atenção à saúde. Por isso, hoje em dia, o que antes era o Programa Saúde da Família evoluiu para Estratégia Saúde da Família (ESF), já que o termo “programa” aponta para um contexto em que a atividade tem início, desenvolvimento e finalização – o que não ocorre com o ESF, que representa um modelo de reorganização da atenção primária sem prazo para ser finalizado.

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Consoante a Política Nacional de Atenção Básica, de 2012, “a Estratégia Saúde da Família visa à reorganização da atenção básica no País, de acordo com os preceitos do Sistema Único de Saúde, e é tida pelo Ministério da Saúde e gestores estaduais e municipais, representados respectivamente pelo Conass e Conasems, como estratégia de expansão, qualificação e consolidação da atenção básica por favorecer uma reorientação do processo de trabalho com maior potencial de aprofundar os princípios, diretrizes e fundamentos da atenção básica, de ampliar a resolutividade e impacto na situação de saúde das pessoas e coletividades, além de propiciar uma importante relação custo-efetividade”. Essa Estratégia, todavia, faz parte do Sistema Único de Saúde, assim como diversas outras estratégias do Poder Público, igualmente acessíveis aos cidadãos brasileiros. Quando o dispositivo do Projeto de Lei estabelece que “é assegurada a atenção integral à saúde dos membros da entidade familiar, por intermédio do Sistema Único de Saúde – SUS, e o Programa Saúde da Família”, entende-se, em primeira análise, que se trata de dois institutos diferentes, embora, na verdade, o Sistema Único de Saúde, de acordo com o artigo 4º da Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, consiste no “conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da Administração direta e indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público”. Assim, não é preciso especificar a Estratégia Saúde da Família no texto do artigo. Por fim, devo salientar, outra vez, que, se aprovados, os dispositivos analisados servirão como reafirmação de direito já existente e não trarão inovações ao ordenamento jurídico, sendo por isso mesmo suficiente a ação legiferante desta Comissão Especial para o fim de reforço. Trata-se de prática comum na elaboração de estatutos, como o da Criança e do Adolescente (Lei 8.069, de 13 de julho de 1990) e do Idoso (Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003). No entanto, sinto-me na obrigação de mencionar esse fato, para fins de registro. A proposta estabelece, do art. 5º ao 13, direitos que devem ser garantidos à entidade familiar, de forma a permitir sua sobrevivência em diversas áreas, como: saúde, internação de dependentes químicos, segurança pública e educação. Neste tema já há várias políticas e programas que se encontram em funcionamento e que, em razão do protagonismo da família, deverão ser acompanhados pelos Conselhos da Família nas respectivas esferas - nacional, estadual, municipal e distrital -, a serem criados por força do Estatuto. Assim, por oportuno, serão mencionadas algumas políticas públicas e programas governamentais, todos eles carentes de alinhamento por uma

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estrutura que permita vislumbrá-los coordenadamente desde a perspectiva da família, facilitando-se assim a defesa da própria família e dos instrumentos de proteção. I - Políticas públicas: Saúde: (1) Política Nacional de Atenção Básica; (2) Política Nacional de Planejamento Familiar; Desenvolvimento Social: (3) Política Nacional de Assistência Social; Desenvolvimento Urbano: (4) Política Nacional de Habitação e Desenvolvimento Urbano; Desenvolvimento Agrário: (5) Políticas Públicas para Agricultura Familiar; Educação: (6) Política Nacional de Educação Infantil. II - Programas governamentais: 1 - Programa Bolsa Família; 2 - Programa Saúde da Família; 3 - Programa de Erradicação do Trabalho Infantil; 4 - Programa Saúde na Escola; 5 - Programa Minha Casa Minha Vida; 6 - Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar. O Projeto de Lei mostra-se positivo ao propor um cadastramento das famílias para atendimento domiciliar por instituições públicas ou filantrópicas conveniadas com o Poder Público e auxílio no processo de reabilitação do convívio familiar e assistência à gravidez na adolescência. Por meio das audiências públicas, cujas contribuições foram importantíssimas, identifiquei que a questão da saúde da família deve estar atrelada à ideia de prevenção. O cadastramento e mapeamento das famílias são de suma importância para identificarmos os problemas e colocar em prática políticas públicas. Como afirmado pela representante do Instituto de Atenção Básica e avançada à Saúde – IABAS, “se o Poder Público estiver apenas no posto de saúde, sem partir para verificar o que acontece no recinto, na residência das pessoas, não verá a realidade”. E encerra, afirmando que “o Estatuto da Família contempla de modo satisfatório o problema da saúde das pessoas, formadoras do núcleo familiar”. No que diz respeito à segurança pública, concordo com a proposta do Autor, que a meu ver atende às demandas das famílias por políticas integradas entre a União, Estados, Municípios e Distrito Federal que promovam a prevenção e o enfrentamento da violência doméstica. Observando o que menciona o item IV do art. 12 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH): “Os pais e, quando for o caso, os tutores, têm direito a que seus filhos e pupilos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com suas próprias convicções.”

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Os Estados membros estão obrigados a adotar medidas legais ou de outro caráter para que o exercício dos direitos e liberdades assegurados pelo Pacto de São José da Costa Rica (CADH) venha a tornar-se efetivo. É precisamente o que desejamos com a adição do art. 9º. Com efeito, se os pais têm direito a que seus filhos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com suas próprias convicções – o que é, de resto, um direito natural reconhecido universalmente –, não há como deixar de proclamar a absoluta precedência dos valores de ordem familiar relativos à moral sexual e religiosa sobre qualquer conteúdo que possa ser veiculado na educação escolar. Essa precedência é absoluta, como dissemos, porque o direito assegurado pelo art. 12, IV, da CADH, é exclusivo: não pode ser exercido por terceiros sem delegação expressa do titular. Além disso, propõe-se a criação de conselhos nas escolas para formular e implantar medidas de valorização da família no ambiente escolar e traz os pais para escola. “O Dia Nacional de Valorização da Família”, Lei 12.647/2012, criado recentemente, veio para fomentar atividades no âmbito escolar sobre a importância da família para a construção de uma sociedade com valores e princípios. Nesse sentido, no que diz respeito ao Projeto de Lei nº 6.584, de 2013, apensado, que cria o “Dia Nacional de Valorização da Família”, entendo que o mesmo está prejudicado, considerando a existência da Lei nº 12.647/2012, que trata do mesmo tema. Outra matéria que se apresenta de acordo com os fundamentos processuais vigentes é a fixação de prioridade de tramitação aos assuntos pertinentes à família. Ora, apesar de existirem Varas de Família especializadas em diversas cidades, não se trata da realidade de todas elas. Assim, oportuna a estipulação de norma federal criadora do princípio de priorização de matéria familiar. No concernente aos Conselhos da Família, por força do Estatuto da Família a criação desse órgão será dever legal dos Poderes envolvidos, federais, estaduais, municipais ou distritais, sendo tais esferas passíveis de demanda judicial para implementação dos mesmos. Deverão atuar como órgãos deliberativos e ter acesso aos demais conselhos que lidam com temas conexos, como os abaixo indicados. Por outro lado, no atual estado em que se encontra a proteção que é devida à família, verifico que inúmeros órgãos do Poder

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Executivo tratam de defender e trabalhar em benefício, todavia sem a referência central à família. E a Constituição confere posição de destaque à família, base da sociedade. Por isso oportuno, novamente, a criação dos Conselhos de Família, de modo a trabalharem com o conjunto de demais Conselhos desde a perspectiva familiar, tais como: (1) Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH); (2) Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA); (3) Conselho Nacional dos Direitos da Mulher – CNDM; (4) Conselho Nacional dos Direitos do Idoso (CNDI); (5) Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência (CONADE); (6) Conselho Nacional de Combate à Discriminação de LGBT (CNCD/LGBT); (7) Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), e (8) Conselhos Estaduais Penitenciários. Além disso, caberá ainda ao Conselho de Família, em cada esfera, subsidiar o Poder Legislativo para alteração de leis que possam melhorar o atendimento à família, base da sociedade. Nesse sentido, anoto abaixo alguns tópicos que merecerão especial atenção do Conselho de Família e, caso seja de interesse dessa Casa Legislativa, poderiam culminar em alterações a favorecer a família, base da sociedade: (1) Pacificar a caracterização do menor sob guarda como dependente, o que estaria em conformidade ao ECA (art. 33, § 3), sendo todavia omissa a Lei 8.213, de 1993, que traz o procedimento adotado pela Previdência. Há decisões judiciais estendendo o benefício. O Estatuto da Família poderia definir também essa matéria; (2) Salário-família; (3) Salário-maternidade; (4) Assistência Social e Benefício de Prestação Continuada – BPC –, inovação que surgiu com a Constituição de 1988, tem sido um importante instrumento para o auxílio de famílias em situação de miserabilidade; (5) Pensão por morte, benefício devido aos dependentes do segurado, sendo equivalente a 50%, acrescida de parcela de 10% por dependente, do valor da aposentadoria a que o segurado recebia ou teria direito no momento do óbito (arts. 74 a 79, da Lei 8.213/91); (6) Auxílio-reclusão, devido, nas mesmas condições da pensão por morte, aos dependentes do segurado de baixa renda recolhido à prisão que não receber remuneração da empresa nem estiver em gozo de auxílio-doença, aposentadoria ou abono de permanência. Observo, também, numa análise do Projeto, que o nobre proponente sugere normas programáticas, bem o sabemos, mas algo tem de ser feito para que a família, célula mater da sociedade, não venha a se extinguir, colocando em risco a existência do próprio Estado.

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Feitas as ressalvas, o mais relevante contributo do Estatuto virá, portanto, na viabilização técnica da presença de representantes da família junto aos órgãos deliberativos estatais encarregados da elaboração das políticas públicas. Desde 1988 instituíram-se conselhos voltados aos direitos da criança e do adolescente, do idoso, das pessoas deficientes. Mas a família, apesar de sua centralidade no sistema jurídico, e na vida de cada cidadão, continuava marginalizada em sua representação política. Tal lacuna vem a ser preenchida pelo Estatuto, que pretende instituir o Conselho da Família nos três âmbitos da federação – União, Estados e Municípios –, devendo ter, no mínimo, composição paritária entre membros da sociedade civil e do Estado. Ao mesmo tempo, o Estatuto da Família tem o mérito de não pretender, de modo algum, fazer tábula rasa do Código Civil e demais instrumentos normativos referentes à família, elaborados em legislaturas anteriores, democraticamente construídos, como pretende o PLS 470/2013. Pelo contrário, considera todos eles importantes para a defesa sistemática da família, valorizando o ingente esforço do Parlamento e da sociedade civil na fixação de tais leis.

Resumindo:

A competência originária e exclusiva da Constituinte e do Congresso Nacional para legislar em matéria de Direito de Família.

Devemos diferenciar a relação entre o direito constitucional e o direito ordinário. O primeiro busca sintetizar a ideia de direito capaz de consolidar o consenso social. Por tais razões, é próprio do texto constitucional tratar os temas fundamentais da ordem juspolítica de maneira suscinta e principiológica, sem descer, portanto, às minúcias dos assuntos. Tal papel, de descer às minúcias dos assuntos, por seu turno, cabe justamente ao direito ordinário que, fruto de uma deliberação menos exigente dá contornos específicos às matérias constantes no texto constitucional. Embora, no conjunto, a Constituição brasileira não tenha seguido essa lição consagrada nos estados de direito democráticos contemporâneo, no que diz respeito à proteção da família, como veremos, o texto pátrio tem boa técnica e bom conteúdo. Tanto as linhas principiológicas delineadas na Constituição, quanto a sua especificação ofertada pelo direito ordinário

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pressupõe deliberação legislativa. É próprio do estado de direito democrático pressupor que é mais sensato crer na mediania de uma assembleia em que a pluralidade de visões sobre o mundo esteja plasmada do que em um componente aristocrático, por mais virtuosos que sejam seus quadros. Por tal razão, o delineamento do texto constitucional a ser realizado pelo direito ordinário é função precípua do Parlamento. Trata-se de escandalosa usurpação da função constitucional quando o Poder Judiciário ou o Poder executivo pretendem enxertar carne à alma do texto constitucional. Para o Executivo, a própria Constituição previu a hipótese de sustação dos atos que usurpassem prerrogativa constitucional do Congresso Nacional. Quanto ao Poder Judiciário, o silêncio constitucional a respeito do tema, alinhado a um ativismo judicial que, como já previa há décadas o eminente Miguel Reale, permite o que chamava de totalitarismo jurídico. Observamos diuturnamente hipóteses em que o Poder Judiciário, para além de resguardar direitos, cria-os para além de suas funções constitucionais. Já não é sem tempo a necessidade de restaurar o equilíbrio constitucional: o Parlamento delineia o direito e o judiciário – óbvio que não de modo mecânico – faz os direitos assegurados pelo parlamento valerem na ordem do dia. Com relação à família, o desenho estipulado pela Constituição segue o melhor tanto quanto à técnica, quanto ao conteúdo. Assim o fez no art. 5º, XXVI, LXII e LXIII, art. 6º, IV, XII, art. 183, art. 191, art. 201, § 12, art. 203, I e V, art. 205, 220, § 3º, II, art. 221, IV e, de modo especial, o Capítulo VII (arts. 226 ss). O texto constitucional oferece os desenhos mais abstratos e fundamentais do instituto e como que reclama ao direito ordinário os contornos mais específicos. São basicamente três os elementos fundamentais da família a que se refere a Constituição: a família é a base da sociedade, merece uma atenção especial por parte do Estado e a natural distinção dos sexos (homem e mulher). Portanto, absolutamente conveniente é a determinação mais específica do tema na sequência das legítimas reticências deixadas pelo texto constitucional. Esse é o mister a ser cumprido pelo presente projeto, que tem duas funções elementares. Em primeiro lugar, ele cumpre a inglória missão de evidenciar o óbvio, algo desnecessário se não fosse a deturpação corrente pela qual a família e sua proteção são vitimizadas. Além disso, o projeto restaura a competência do Congresso Nacional para a análise do tema, uma vez que as usurpações perpetradas pelo Supremo Tribunal Federal e – mais grave! – pelo Conselho Nacional de Justiça deformaram o desenho do estado de direito e, principalmente, da democracia brasileira.

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A Constituição reconhece a família como base da sociedade, porque aquela a sustenta. Uma sociedade, dada a finitude biológica de seus membros, depende da reprodução para se manter viva no tempo. Até esse ponto, não há grandes diferenças entre o ser humano e os animais. Estes também dependem para a manutenção de mecanismos reprodutivos – de natureza sexuada, vale dizer – para sua perpetuação. Apesar das semelhanças biológicas, há uma diferença fundamental entre animais e pessoas. Os primeiros realizam atos sexuais reprodutivos por imposição dos instintos. Não há qualquer aspecto deliberativo e muito menos qualquer comunicação de sentido. Neles estão presentes a satisfação biológica, estimulador único da atividade que tem por fim a procriação. A “base” dos grupos animais, isto é, o que garante a sua sustentação no tempo (perpetuação) é, pois, o instinto. A pessoa humana, de outro lado, não obstante a inicial semelhança com os animais – já que também depende de uma reprodução sexuada para a sua perpetuação – tem comportamento absolutamente diverso. Os atos reprodutivos humanos não são (e não podem ser!) determinados por apetites instintivos. Eles são, ou idealmente devem ser, atos de vontade, iluminados pela inteligência, que submete, por sua vez a sua sensibilidade e os apetites que brotam dela. Para esclarecer o tema, é natural que não nos espante o fato de que, na maioria das espécies animais, o macho deixa a fêmea (e a futura prole) logo após o coito, de modo irresponsável, e a própria fêmea deixa seu rebento logo que vencidos os cuidados iniciais que permitam sua potencial sobrevivência. Comportamentos que julgamos irrelevantes e neutros nos animais revelam-se absolutamente perversos quando praticados pela pessoa humana. Isso ocorre, porque reprodução humana, posto que se trata de ser moralmente livre, pressupõe liberdade e implica responsabilidade. Pressupõe liberdade, porque não há na pessoa instintos que a constranjam ao ato sexual; por outro lado, os atos livres, e as suas consequências, exigem respostas daqueles que os executam. A resposta exigida pela natureza humana é justamente a família como substrato natural do agrupamento social humano. Os vínculos criados pela complexíssima relação sexual humana exigem contornos de tal ordem que apenas um agrupamento primário – cujo pertencimento a um grupo não se dá pelo que a pessoa faz, mas pelo que ela é – poderia oferecer. Desprovido das especificidades dos animais, a pessoa humana depende de um uma instituição que garanta estabilidade, chaves de

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leitura para a compreensão da realidade e formação no âmbito das dimensões humanas (econômica, científica, estética, religiosa, ética, política e jurídica). Tal instituição é a família, que sustenta a sociedade e lhe oferece uma chance de continuar e de se desenvolver. Como vimos, a família sustenta a sociedade – é sua base, como prefere o texto constitucional –, pois o ser humano depende para a sua concepção, desenvolvimento e formação de um ambiente natural, estável e de natureza primária. Uma instituição dessa magnitude, por seu turno, não pode ficar ao sabor dos ventos que correntes dos mais diversos matizes fazem soprar. Essa é a razão pela qual a Constituição brasileira delineou que a família – por ser base da sociedade – merece uma especial atenção. Fez questão de esclarecer o que é considerado família.

Honestidade intelectual e respeito às opiniões divergentes.

Em nosso país, infelizmente, nota-se muitas vezes o uso abusivo e pejorativo de palavras depreciativas com o intuito de diminuir as pessoas que legitimamente entendem que o casamento é um instituto para pessoas de sexo diferente. Os que agem assim, na exata medida em que dizem defender a dignidade humana, solapam a dignidade de seu adversário intelectual, com modos que denunciam falta de respeito e de honestidade intelectual. Tive a oportunidade de rever os debates entre colegas da Comissão em 2014. Assustou-me notar que a postura reducionista vinha de modo sistemático de um lado do debate, que usava de estratégias apelativas, com o intuito de gerar antipatia ao seu adversário político. Tais estratagemas desviam, parece-me, da postura ética e da urbanidade adequada a representantes da população que devem parlamentar colegiadamente na confecção de leis. Para trabalharmos efetivamente sobre razão pública, é importante identificar e banir deste ambiente algumas falsas dicotomias, que efetivamente desviam do saudável debate de ideias. Listei quatro delas, sobre as quais de imediato me pronuncio: (1) Quem não advoga pelo casamento de pessoas do mesmo sexo é homofóbico; (2) Quem defende a família “tradicional” é fundamentalista; (3) O Estatuto da Família quer excluir várias modalidades familiares; (4) Não se pode aprovar um Estatuto que não contemple todos os modelos de vida da atualidade.

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1. Tem sido constante o uso reiterado da expressão “homofóbico” para quem pensa em desacordo com o grupo LGBT e simpatizantes. Ora, a homofobia tem a ver com a aversão à pessoa do homossexual, que seria destratada em razão de sua orientação. Dizer que toda posição que não encampe os interesses LGBT seria uma postura homofóbica é um artifício desonesto, porque respeitar a uma pessoa não se confunde com acatar suas práticas ou trabalhar para que seus interesses sejam equiparados a direitos. Se, em consciência, e conforme a razão pública, não me parece que seja caso de defender uma dada causa, tenho a liberdade de fazê-lo. Por exemplo, devo respeitar qualquer pessoa que goste de usar armas. Nem por isso, serei obrigado a me engajar em campanhas para liberação do uso de armas, e, caso me oponha a essa prática e à liberação de armas, nem por isso estarei agindo contra a pessoa que gosta e usa armas. Posso desaprovar a liberação das armas por entender, em consciência, que é mais seguro para o País, e para o bem comum. Posso assim defender meu ponto de vista. E devo ser respeitado enquanto cidadão e ter meus argumentos ouvidos. Assim, defender e respeitar a pessoa que tem orientação sexual diversa da minha é um dever. Não há, todavia, dever de acatar interesses ou de engajamento na promoção da ideologia homossexual. Não é correto taxar de homofóbico quem não se alia a essa bandeira. Simplesmente exerce sua liberdade e seu direito. O homofóbico atua contra a pessoa homossexual.

2. Outra falsa afirmação: “quem defende a família ‘tradicional’ é fundamentalista”. Aqui se manifesta dupla falta de respeito e falsificação da verdade. É errado defender a família ‘tradicional’? Ou, por outras palavras, será que família ‘tradicional’ merece ser atacada? Por quê? Segundo ponto: o fundamentalismo religioso traduz uma postura de violência com o fim de impor um credo a alguém. Ora, quem acusa outrem de “fundamentalista religioso” deve provar que se trata de uma pessoa violenta e que está constrangendo outra a aderir a seu ponto de vista religioso. Assim, é desonesto equiparar o religioso, ou um simples cidadão cuja postura religiosa é conhecida, e que traz argumentos oportunos ao debate, em moldes de razão pública, a um fundamentalista.

3. O Estatuto da Família se alicerça na Constituição Federal e, como tal, está cingido pelo texto da Norma Fundamental. Trata-se de competência do Congresso Nacional regulamentar, para maior eficácia, a especial proteção constitucionalmente garantida à família base da sociedade. A maior parte das modalidades de convivência humana passa pelo casamento,

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pela união estável ou pela filiação, que são a base da sociedade. Assim sendo, dizer que o Estatuto pretende excluir o que seja, é uma falácia. O Estatuto vem para colocar a família base da sociedade, credora de especial proteção, no plano das políticas públicas de modo sistemático e organizado, como até então não se fizera. Nada impede que os cidadãos, mediante seus representantes políticos, advoguem pela inclusão de novos benefícios a outras categorias de relacionamento, mediante argumentos que possam harmonizar-se à razão pública. Portanto, o Estatuto, uma vez que não proíbe nada ao Congresso, de modo algum pode ser alcunhado de impeditivo para o que seja.

4. Os projetos de lei que surgem nas casas legislativas têm objeto e finalidades indicadas. Novamente, a finalidade do Estatuto é trazer para o âmbito infraconstitucional a família base, segundo descrita na Constituição Federal. Ele pretende partir de um consenso definido pela própria Constituição Federal para ir adiante. Ampliar o rol de pretensões é um modo de prejudicar o atingimento da finalidade principal do Estatuto. Assim, o projeto optou por trazer o que já dizia a Constituição. As razões seguintes esclarecem melhor o porquê dessa opção. Diferente seria o projeto de uma emenda Constitucional.

A “base da sociedade” e a “especial proteção”. Há diversos estilos de viver em nossa sociedade, democrática e tolerante. Mas, em meio a tal variedade, há alguns arranjos especialmente importantes porque, a partir deles, se cria e se recria, de modo natural, a comunidade humana. Foi com interesse em proteger de modo especial essa matriz geracional da sociedade que se estabeleceu o art. 226, denominando-a “base da sociedade”. Nem toda associação humana é base da sociedade e nem toda relação fará jus à especial proteção, ainda que toda comunidade, se não contrária ao bem comum ou à lei, deva ser respeitada e faça jus à tutela geral do Estado. Acerca da expressão “base da sociedade”, deve-se notar que traduz a ideia de condição de existência e subsistência. Ou seja, o constituinte, ao alocar a família no Título VIII, denominado, “Da Ordem Social”, teve em mente a família enquanto organização essencial para a sustentabilidade da própria sociedade civil. E apontou, de modo explícito e implícito, as notas necessárias dessa essencialidade. Portanto, a expressão base da sociedade opera o efeito de tipificação constitucional para a entidade que merecerá peculiar cuidado. Por outras palavras, a especial proteção

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deverá ser dada à situação constitutiva e necessária para a perpetuação da sociedade civil. Reconhece-se uma discriminação positiva na Constituição, legítima no Estado Democrático de Direito. Para os demais agrupamentos permanece a proteção geral ou alguma outra que se queira dar, por outra motivação diferente daquela. Vale notar que a expressão “especial proteção”, por si mesma, é restritiva. A palavra “especial” não admite extensão a ponto de servir a todas as situações. “Especial” se opõe a “comum” ou “geral”. Por isso mesmo, aplicar tal proteção a somente três categorias de entidade não significa, de modo algum, excluir, injustamente, outras quaisquer, se a “especial proteção” tem fundamento próprio em atributo da entidade destinatária. Opera-se, portanto, a incidência sobre aquela entidade que faz jus ao tratamento particularizado. No caso da Constituição Federal de 1988, reforce-se: o critério para a tutela diferenciada foi o reconhecimento dos traços de essencialidade da instituição, naturalmente habilitada para a procriação e a criação. O Constituinte de 1988 definiu na Norma Fundamental o dever de proteção especial às situações essencialmente necessárias para a constituição e preservação da sociedade, uma vez relacionadas à procriação e à criação.

A afetividade no Direito de Família, a objetividade do artigo 226 e a solidariedade familiar.

Convém notar que, a despeito de a afetividade compor, com frequência, a vida de relação, especialmente nas situações familiares, em razão de sua instabilidade e internalidade, o Direito não poderia, sobre tal, apoiar os deveres jurídicos mais importantes da vida, e mais perduráveis, como aqueles derivados das relações familiares. Ao mesmo tempo, desde uma perspectiva filosófica, o amor, enquanto relação de solidariedade, também não se identifica com o afeto. Este permanece na dimensão da sensibilidade passiva, realizando-se na sensação de um, enquanto aquele se vincula à dimensão da voluntariedade ativa, exaurindo-se no serviço ao outro, em uma conduta, antes que em uma sensação. Ao Direito interessam, desse modo, as relações de alteridade em sua dimensão de exterioridade. Neste sentido, o afeto, em si mesmo, não é considerado elemento jurídico. Para corroborar esse fato, vale lembrar que no casamento civil a lei não exige verificação do afeto entre os nubentes, senão que leva em consideração a declaração de vontade negocial

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das partes, após o cumprimento de outros requisitos objetivos que permitam a habilitação; o mesmo com relação à união estável: os fatos objetivos que servirão a comprovar a relação, caso esteja ela em juízo, não são declarações de afeto, mas conformações ao “estado de casado”; deveres entre pais e filhos também não são condicionados pelo afeto; nos alimentos prestados entre cônjuges e companheiros, ou ex-cônjuges e ex-companheiros, idem. Sobre a afetividade não é possível haver um controle pleno. Ninguém impera sobre seus afetos, no sentido de dizer para si: goste de fulano, tenha afeto por cicrano, deseje ser bom. Mas conduz, ou pode conduzirse, mediante sua vontade, e deliberar agir de um modo correto, mesmo quando os afetos inclinariam para atitudes opostas. Por vezes, o afeto transmuda-se em desafeto, sua perspectiva negativa, que mantém a natureza igualmente de afeto, de sentimento, sendo causa de crimes, se não controlado pela capacidade de autodeterminação que conduza a pessoa ao bem. Inúmeras tragédias familiares decorrem exatamente da exaltação dos afetos, descompromissados dos deveres jurídicos. O desafeto pelo filho, o desafeto pela antiga esposa ou esposo, o desafeto pelo pai ou mãe, não são escusas, perante a sociedade e a ordem jurídica, para o descompromisso do dever de solidariedade, de respeito, de ajuda, de serviço. A lei também não chancela comportamentos decorrentes de afetos contrários aos bons costumes. Um par romântico constituído por uma mulher, mãe, e seu filho, como se dele fosse esposa, por exemplo, não receberá do Estado a conformação ao casamento ou união estável. O Direito não legitima a conduta conivente com esse afeto. Antes, proíbe-a, mediante impedimento matrimonial. Mesmo que ambos vivam, factualmente, como marido e mulher, nem por isso o Estado dará guarida a tal situação, e nem lhe conferirá a especial proteção prometida à família base da sociedade, pois remanesce nela uma atributo desagregador da sociedade. Pedófilos nutrem afeto pela prática sexual com crianças; zoófilos pela atividade sexual com animais. Nem uma e nem outra situação são protegidas pela lei, apesar de decorrerem de movimentos da sensibilidade que satisfazem a alguém. Há também quem se relacione afetiva e sexualmente com duas, três ou mais pessoas, simultaneamente. Novamente, nem por isso tal relação ganhará legitimidade, como alguns pretendem. Portanto, deve-se notar a distorção de quem pretende entronizar o afeto como fundamento do Direito de Família. Jamais poderia sêlo, pois o afeto é uma realidade individual, interna, instável, tantas vezes avesso aos ideais e às virtudes sociais.

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Consideração do efeito provisório do STF quando superpôs a atividade legislativa. A Resolução abusiva do CNJ.

É oportuno trazer o entendimento do nobre relator de 2014, deputado Ronaldo Fonseca, quando teceu comentários acerca da decisão do Supremo Tribunal Federal na avaliação da ADPF nº 132-RJ e ADI nº 4.277-DF que, mediante interpretação, rompeu com o significado das palavras do art. 1.723 do Código Civil, para estender norma referente à união estável entre o homem e a mulher, de modo a aplicá-la à união entre pessoas do mesmo sexo. O Código Civil trazia as mesmas palavras que a Constituição Federal. De rigor, a competência para alteração ou edição de nova lei, ou para modificação ou aditamento da Constituição Federal, pertenceria ao Congresso Nacional, que guarda representação majoritária similar à Assembleia Constituinte. Nesse sentido, e em respeito a tal procedimento, vale recordar que, no mesmo ano em que o STF desconsiderou o texto constitucional de 1988, em matéria de união estável, e desbordou de sua competência constitucional, alterando a um só passo norma promulgada pelo Congresso Nacional quando da aprovação do Código Civil de 2002, e o texto constitucional de 1988, o Tribunal Constitucional da França, em caso similar, não acolheu pretensão de duas mulheres que pleiteavam casar-se, quando o Código Civil francês exigia diferença de sexos. Os ministros da Corte Constitucional da França disseram não haver discriminação negativa, uma vez que as situações eram, efetivamente, desiguais e, logo, estava o legislador legitimado para tratar desigualmente as situações desiguais, como consequência da própria igualdade constitucional, argumento invocado pelas autoras da ação. Ao mesmo tempo, o Tribunal aconselhou que as mulheres recorressem ao Parlamento, para a modificação pretendida, pois se via incompetente, institucionalmente, para lhes acolher a pretensão.

A parceria vital: alternativa de lege ferenda para situações diferentes da “base da sociedade”.

Mas, em face do que fez o STF em 2011, e o CNJ na sequência, que retificação deve ser levada adiante pelo Congresso Nacional, ao chamar a si o que por direito lhe pertence, devolvendo-se à sociedade civil o poder que lhe compete?

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A partir do quadro instalado e, em uma autêntica e ampla perspectiva, o que fazer em face de situações que não se consubstanciam como “base”, fundamento ou condição de existência da sociedade civil, sem jus, portanto, à proteção especial do art. 226, mas que trazem alguma nota a demandar uma proteção diferenciada, para além da proteção geral que já é garantida a todo cidadão? Haveria algum impedimento a se conceber nova categoria de proteção diferenciada? Para casos que escapam à condição de essencialidade para a sociedade civil, vislumbra-se, na atual conjuntura, a possibilidade da formalização legal de uma “parceria vital”, apta a conferir benefícios à sociedade oriunda da reunião deliberada de cidadãos que compartilham residência e esforços na manutenção do lar comum, com intenção de perdurabilidade. A categoria, de lege ferenda, seria admissível desde que não afetasse direitos indisponíveis de terceiros. E poderia ser aprovada como iniciativa do Congresso Nacional na atual legislatura. Sob tal denominação – “parceria vital” – sem necessária conexão com a procriação ou a criação da família base da sociedade, poderse-ia reconhecer o enlace de solidariedade entre duas pessoas, que entre si estabeleceriam vínculo de peculiar interdependência, ajustando a lei, entre tais, o caráter de dependência para efeitos previdenciários. Caberia ainda definir a possibilidade de que os parceiros pudessem optar de participar, também, da condição de herdeiro do outro, em posição similar àquela que caberia ao cônjuge ou companheiro, caso este não existisse, ou de herdeiro testamentário presumido, na hipótese de inexistência de tal instrumento, para receber 50% do patrimônio liberado para ser disposto em testamento. Isso se daria mediante alteração da legislação sucessória, para pleno acolhimento da categoria. Poderiam estar sob tal denominação as uniões de irmãos, amigos e outras quaisquer, independentemente da orientação sexual. Sob tal instituto se albergariam todas situações não subsumíveis às categorias do art. 226. Na dimensão sucessória, poderia operar efeitos quando não houvesse vínculo de conjugalidade, uma vez que o consorte ocuparia esta posição. A fundamentação da “parceria vital” seria, portanto, a especial solidariedade entre duas pessoas, desvinculadas de conjugalidade, e que se reunissem na manutenção do lar comum. Isso atenderia também reuniões de pessoas do mesmo sexo, independentemente da orientação sexual de tais, uma vez que a orientação sexual, por si mesma, não justificaria direitos especiais, sob risco de excluir aqueles que vivessem plena e efetiva interdependência, na simples condição de amigos ou irmãos, sem qualquer envolvimento sexual. Desta feita, a lei requisitaria atributos para conferência do status de parceria vital às situações subsumíveis. Seria limitada a uma parceria vital por indivíduo, exigindo-se sua efetiva comprovação à época da instituição, bem como se prescreveria o modo

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de seu reconhecimento junto aos órgãos competentes do registro civil, com o ônus e o bônus da nova situação. Ônus que se expressaria no eventual dever de prestar alimentos em caso de o parceiro necessitar, mesmo após a extinção do vínculo. Tal procedimento iria ao encontro da realização da sociedade livre, justa e solidária, objetivo da República Federativa do Brasil, segundo art. 1º, III.

A família como agente nas políticas públicas.

Feitas as ressalvas, o mais relevante contributo do Estatuto virá, portanto, na viabilização técnica da presença de representantes da família junto aos órgãos deliberativos estatais encarregados da elaboração das políticas públicas. Desde 1988 instituíram-se conselhos voltados aos direitos da criança e do adolescente, do idoso, das pessoas deficientes. Mas a família, apesar de sua centralidade no sistema jurídico, e na vida de cada cidadão, continuava marginalizada em sua representação política. Tal lacuna vem a ser preenchida pelo Estatuto, que pretende instituir o Conselho da Família nos três âmbitos da federação – União, Estados e Municípios –, devendo ter, no mínimo, composição paritária entre membros da sociedade civil e do Estado. Ao mesmo tempo, o Estatuto da Família tem o mérito de não pretender, de modo algum, fazer tábula rasa do Código Civil e demais instrumentos normativos referentes à família, elaborados em legislaturas anteriores, democraticamente construídos, como pretende o PLS 470/2013. Pelo contrário, considera todos eles importantes para a defesa sistemática da família, valorizando o ingente esforço do Parlamento e da sociedade civil na fixação de tais leis.

Manipulação da Enquete do Estatuto da Família

No último dia 20 de agosto denunciei a manipulação de votos na enquete do Estatuto da Família, em sessão do Plenário. Durante discurso apresentei dados que comprovam o ocorrido e pedi providências da administração da Casa. A enquete, criada no dia 11 de fevereiro de 2014, tinha como “objetivo avaliar se os cidadãos são favoráveis ou contrários ao conceito incluído no Projeto de Lei 6.583/2013”.

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Desde então a participação na enquete foi notícia por várias vezes no site da Câmara e em outros veículos de comunicação, conforme se vê abaixo: “A enquete sobre o projeto de lei que trata do Estatuto da Família (PL 6583/13) obteve, desde o dia 11 de fevereiro - quando foi incluída no portal da Câmara dos Deputados - até quinta-feira passada (22), um milhão de votos. A enquete questiona se o votante concorda com a definição de família como o núcleo formado a partir da união entre homem e mulher, prevista no projeto. Por enquanto, 62,83% dos participantes votaram a favor do projeto; 36,8%, contra; e 0,37% disseram não ter opinião formada.” (http://www2.camara.leg.br/comunicacao/institucional/noti cias-institucionais/enquete-sobre-estatuto-da-familiachega-a-um-milhao-de-acessos) O “Resultado Final”, depois de mais de 10 milhões de votos, foi esse:  51,62% seriam contra a definição de família como núcleo formado a partir da união entre homem e mulher, prevista no projeto que cria o Estatuto da Família; e  48,09% seriam contra a definição de família como núcleo formado a partir da união entre homem e mulher, prevista no projeto que cria o Estatuto da Família. No entanto, tendo em vista o surpreendente número de votos no mês de julho de 2015 e a repentina mudança de tendência no resultado da enquete, assim como ao analisar o resultado juntamente com os dados fornecidos pelo Centro de Informática da Câmara dos Deputados – CENIN, mesmo que este não possa ser tomado como resultado científico, percebemos que:

1. Mais de três milhões de votos vieram de apenas 66 IPs, sendo que mais de 1,6 milhões vieram de um único IP, todos para a opção “não”. 2. Além disso, mais de 122 mil votos, de um único IP, foram dados no dia 19 de julho, para a opção

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“não”, na cidade de Garanhuns, em Pernambuco, com população em 112 mil habitantes. Desse mesmo IP, durante a vigência da enquete, partiram mais de 260 mil vezes, todos para a opção “não”. 3. Mais de 60 mil votos foram dados no dia 7 de julho, para a opção “não”, em uma cidade nos Estados Unidos, com população em 8.500 habitantes. Desse mesmo IP, durante a vigência da enquete, partiram mais 216 mil vezes, todos para a opção “não”. 4. Tomando ainda os IPs com mais de 50 mil votos, em um total de 12 IPs, percebemos que deles partiram quase 3 milhões de votos, sendo que 99,9999% foram para a opção “não”. Embora a enquete demonstre apenas um sentimento, uma percepção, uma “dica” do que pensa a população sobre qualquer assunto, não podemos tomar o seu resultado como cientificamente válido, e nem essa é a pretensão das enquetes disponibilizadas no site da Câmara. Tendo em vista a manipulação de votos ocorrida, não me aprofundei nos resultados da referida enquete.

Pelo exposto, voto pela constitucionalidade, juridicidade, boa técnica legislativa do Projeto de Lei n.º 6.853, de 2013 e do Projeto de Lei nº 6.584, de 2013, apensado, e da Emenda apresentada; e no mérito pela aprovação do Projeto de Lei nº 6.853, de 2013, e da Emenda apresentada, na forma do Substitutivo em anexo; e pela rejeição do Projeto de Lei nº 6.584, de 2013.

Sala da Comissão, em 1º de setembro de 2015.

Deputado Diego Garcia Relator

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COMISSÃO ESPECIAL DESTINADA A PROFERIR PARECER AO PROJETO DE LEI Nº 6.583, DE 2013 (Apenso o PL nº 6.584/13)

SUBSTITUTIVO AO PROJETO DE LEI Nº 6.583, DE 2013

Dispõe sobre o Estatuto da Família e dá outras providências. Autor: Deputado Anderson Ferreira Relator: Deputado Diego Garcia

O Congresso Nacional decreta:

Art. 1º Esta Lei institui o Estatuto da Família e dispõe sobre os direitos da família, e as diretrizes das políticas públicas voltadas para valorização e apoio à entidade familiar. Art. 2º Para os fins desta Lei, reconhece-se como família, base da sociedade, credora de especial proteção, em conformidade com o art. 226 da Constituição Federal, a entidade familiar formada a partir da união de um homem e de uma mulher, por meio de casamento ou de união estável, e a comunidade formada por qualquer dos pais e seus filhos. Parágrafo único. As relações de parentesco na linha ascendente ou colateral, bem como as relações derivadas de direito assistencial, mediante guarda ou tutela, gozam da proteção específica prevista em leis respectivas. Art. 3º É dever do Estado, da sociedade e do Poder Público em todos os níveis assegurar à entidade familiar a efetivação do direito à vida desde a concepção, à saúde, à alimentação, à moradia, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania e à convivência comunitária.

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Das diretrizes gerais Art. 4º Os agentes públicos ou privados envolvidos com as políticas públicas voltadas para família observarão as seguintes diretrizes: I - desenvolver estruturais, programas e ações;

a

intersetorialidade

das

políticas

II - incentivar a participação dos representantes da família na sua formulação, implementação e avaliação; III - ampliar as alternativas de inserção da família, promovendo programas que priorizem o seu desenvolvimento integral e participação ativa nos espaços decisórios; IV - proporcionar atendimento de acordo com suas especificidades perante os órgãos públicos e privados prestadores de serviços à população, visando ao gozo de direitos simultaneamente nos campos educacional, político, econômico, social, cultural, ambiental e da saúde; V - garantir meios que assegurem o acesso ao atendimento psicossocial da entidade familiar; VI - fortalecer as relações institucionais com os entes federados e as redes de órgãos, gestores e conselhos da família; VII - estabelecer mecanismos que ampliem a gestão de informação e produção de conhecimento sobre a família; VIII - garantir a integração das políticas da família com os Poderes Legislativo e Judiciário, com o Ministério Público e com a Defensoria Pública; e IX - zelar pelos direitos da entidade familiar.

Dos direitos Art. 5º É dever do Estado garantir à entidade familiar as condições mínimas para sua sobrevivência, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam a convivência saudável entre os seus membros e em condições de dignidade. Art. 6º É assegurada a atenção integral à saúde dos membros da entidade familiar, por intermédio do Sistema Único de Saúde, garantindo-lhes o acesso em conjunto articulado e contínuo das ações e

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serviços, para a prevenção, promoção, proteção e recuperação da saúde, incluindo a atenção especial ao atendimento psicossocial da unidade familiar. § 1º A prevenção e a manutenção da saúde dos membros da entidade familiar serão efetivadas por meio de: I - cadastramento da entidade familiar em base territorial; II - núcleos de referência, com pessoal especializado na área de psicologia e assistência social; III - atendimento domiciliar, e em instituições públicas, filantrópicas ou sem fins lucrativos e eventualmente conveniadas com o Poder Público; IV - reabilitação do convívio familiar, orientada por profissionais especializados. V - assistência prioritária à gravidez na adolescência. § 2º Incumbe ao Poder Público assegurar, com absoluta prioridade no atendimento e com a disponibilização de profissionais especializados, o acesso dos membros da entidade familiar a assistentes sociais e psicólogos, sempre que a unidade da entidade familiar estiver sob ameaça. § 3º Quando a ameaça a que se refere o parágrafo anterior estiver associada ao envolvimento dos membros da entidade familiar com as drogas e o álcool, a atenção a ser prestada pelo sistema público de saúde deve ser conduzida por equipe multidisciplinar e terá preferência no atendimento. Art. 7º Todas as famílias têm direito a viver num ambiente seguro, sem violência, com garantia da sua incolumidade física e mental, sendo-lhes asseguradas a igualdade de oportunidades e facilidades para seu aperfeiçoamento intelectual, cultural e social enquanto núcleo societário. Art. 8º As políticas de segurança pública voltadas à proteção da família deverão articular ações da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e ações não governamentais, tendo por diretrizes: I - a integração com as demais políticas voltadas à família; II - a prevenção e enfrentamento da violência doméstica; III - a promoção de estudos e pesquisas e a obtenção de estatísticas e informações relevantes para subsidiar as ações de segurança

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pública e permitir a avaliação periódica dos impactos das políticas públicas quanto às causas, às consequências e à frequência da violência entre membros das entidades familiares; IV - a priorização de ações voltadas para proteção das famílias em situação de risco, vulnerabilidade social e que tenham em seu núcleo membros considerados dependentes químicos. Art. 9º Os pais têm direito a que seus filhos recebam a educação moral, sexual e religiosa que não esteja de desacordo com as convicções estabelecidas no âmbito familiar. Parágrafo único. Tais convicções de que trata o caput têm precedência sobre aquelas estabelecidas em programas oficiais públicos ou privados, quando relacionados à educação moral, sexual e religiosa.

Do conselho da família Art. 10 Os conselhos da família são órgãos permanentes e autônomos, não jurisdicionais, encarregados de tratar das políticas públicas voltadas à família e da garantia do exercício dos direitos da entidade familiar. Art. 11 São atribuições do conselho da família: I - auxiliar na elaboração de políticas públicas voltadas à família, em todos os níveis – federal, distrital, estadual e municipal –, que promovam e garantam o amplo exercício dos direitos dos membros da entidade familiar, em todos os âmbitos; II - acompanhar e fiscalizar a implementação das políticas públicas afetas à entidade familiar; III - criar, estudar, analisar, discutir e propor parcerias de cooperação com a sociedade civil, visando à elaboração de programas, projetos e ações voltados para valorização da família; IV - promover e participar de estudos, seminários, cursos, congressos e eventos relativos à família, objetivando subsidiar o planejamento e acompanhamento das políticas públicas. V - solicitar informações das autoridades públicas;

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VI - sugerir ao Poder Executivo local a elaboração de planos, programas, projetos, ações e proposta orçamentária das políticas públicas voltadas à família. Parágrafo único. A lei disporá sobre a organização, o funcionamento e a composição dos conselhos da família, observada a participação da sociedade civil, mediante critério, no mínimo, paritário com os representantes do poder público. Art. 12 A função de membro do conselho nacional e dos conselhos estaduais e municipais da Família é considerada de interesse público relevante e não será remunerada. Art. 13 Esta lei entra em vigor em 1º de janeiro do ano subsequente ao de sua publicação.

Sala da Comissão, em 1º de setembro de 2015.

Deputado Diego Garcia Relator

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